A N O 2 6 o u t u b r o 2 0 1 2 N º 2 1 5 / / meio período
especial
os novos significados de
trabalho
o que é riqueZa hoje?
O que você estÁ
fazendo com o
seu tempo?
Eliezer
Batista
trip girls
especial
nas Páginas Negras
aos 88 anos, o pai de
Eike e um dos maiores
empreendedores do
Brasil resolve falar
www.trip.com.br
trabalho
por esporte
o campeão de mma e policial
do bope, paulo thiago
o megaskatista bob burnquist
os medalhistas paraolímpicos
o mestre do SUP que trocou
a administração pelo remo
o monge e
o executivo
o incrível e improvável
encontro de
Abilio Diniz e Lama
Michel Rinpoche
"garotas
propaganda"
Cinco
publicitárias
tiram folga das
agências e posam
lindas e nuas
Número 215 • R$ 10,90 • € 3,50
O que acontece
quando um dos
empresários
mais conhecidos
e poderosos
do país, aos
75 anos e em
plena transição
pessoal e
profissional,
se encontra
com um jovem
paulistano
que virou monge
budista aos
12 anos?
Ponto
de
mutação
ilustração adams carvalho
D
e um lado, um dos empresários mais
conhecidos e discutidos do Brasil, um
dos símbolos mais visíveis do capitalismo e do empreendedorismo brasileiros,
construtor de um império empresarial nas
décadas de 70, 80 e 90, o segundo líder empresarial mais admirado do Brasil em 2010
e 2011 conforme pesquisa da revista Carta
Capital. Um homem que vive um momento de
tensão e mudanças importantes ao entregar
o controle das empresas fundadas por ele
e sua família a um grupo estrangeiro num
ruidoso processo dissecado pela mídia e cheio
de percalços. De outro, um jovem paulistano
saudado como a reencarnação de altíssima
linhagem de um mestre do budismo tibetano,
que, aos 12 anos, resolveu se mudar para um
monastério na Índia para seguir os ensinamentos de seu mestre e tornar-se monge. Pois,
durante duas tardes de junho e agosto, essas
duas personalidades ímpares, Abilio Diniz e
Michel Lens César Calmanovis (mais conhecido como lama Michel Rinpoche), estiveram
frente a frente para uma troca de ideias sem
travas, franca e desinteressada, na casa do
empresário, em São Paulo – com participação
de três de seus filhos adultos e de sua esposa,
Geyze, do editor da Trip, Paulo Lima, e da
mãe do lama Michel, a psicóloga Bel César.
“Acho que pelo fato de não morar no
Brasil há muito tempo fui encontrá-lo sem
preconceitos nem ideias preconcebidas”,
lembra o religioso de 31 anos, radicado na
cidade italiana de Albagnano di Bèe, a cerca
de 100 quilômetros de Milão, onde cuida da
Gangchen World Peace Foundation, organização não governamental fundada por seu
mestre, lama Gangchen, para divulgar a cul-
tura de paz pelo mundo. “E me deparei com
um homem gentil, inteligente e disponível
para falar e ouvir.”
Os dois encontros (que renderam cerca de
seis horas de conversa no total) nasceram de
questões que Abilio Diniz vive no momento.
Em junho ele entregou o controle do Grupo
Pão de Açúcar, empresa fundada pelo pai,
Valentim, nos anos 1940, onde trabalhou a
vida inteira e que alçou à condição de maior
varejista do país, ao grupo Casino, após um
ano de intensa queda de braço com os franceses. A sociedade com o Casino começou
em 1999, quando Abilio buscou apoio de um
investidor estrangeiro para capitalizar seu
negócio. Nesse período, o grupo brasileiro
cresceu, adquiriu empresas gigantes como
Ponto Frio e Casas Bahia e se tornou a maior
empresa de distribuição da América Latina.
O processo, entretanto, foi longo, complexo
e não escapou de questionamentos, entreveros e ruídos. Hoje, Abilio permanece como
presidente do conselho de administração,
mas com poderes limitados.
Mas não são apenas as questões profissionais que mobilizam o executivo. Aos 75
anos, e pai de seis filhos (dois deles ainda
pequenos, Miguel, 2 anos, e Rafaela, 5, frutos
de seu casamento com a economista Geyze
Marchesi), Abilio tem pensado mais na vida.
E na morte. “Nosso encontro nasceu, entre
outras razões, porque venho tentando entender o que existe depois da morte”, diz em
certo momento da conversa que você vai ler
a seguir. Lama Michel devolve: “No budismo
acreditamos que não precisamos deixar a vida
de lado para nos preparar para a morte. Ao
contrário, a melhor preparação para a morte
é viver bem a vida”.
ABILIO DINIZ – Me explica o que é, como
vive um lama.
LAMA MICHEL RINPOCHE – Lama é a tradução tibetana da palavra em sânscrito que
significa guru, aquele que tem a responsabilidade de aprender, praticar e transmitir um
caminho espiritual para outras pessoas. No
budismo tibetano, um lama pode ou não ser
um monge. Não é uma obrigação.
Você é um monge? Qual a diferença?
Sim, sou um monge budista. Monge é alguém
que faz uma escolha pessoal, que tem votos
básicos de não matar, não roubar, não mentir,
não tomar substâncias que tirem a clareza
da mente, como álcool e drogas, e não ter
relações sexuais. Para se tornar lama é preciso ser reconhecido como a reencarnação
de um mestre, que foi o meu caso, ou então
conquistar discípulos ao longo do tempo,
ensiná-los, guiá-los e exercer aquele papel,
até ser reconhecido como tal. Há vários lamas
que são casados, têm família, e outros que
seguem uma vida monástica.
paulo lima
“viver apenas
para me sustentar materialmente nunca fez
muito sentido.
meu objetivo de
vida é encontrar um estado
de equilíbrio,
de alegria, de
felicidade e
satisfação que
não dependa da
situação”
Você vive em um monastério?
Vivi 12 anos em um mosteiro. Hoje eu vivo numa
casa, junto com meu mestre [lama Gangchen
Rinpoche, 72 anos]. Existe com ele uma relação
não só de respeito, mas de serviço, de ajudá-lo
no que for preciso. É um pouco o caminho
do meio. Não é a vida no monastério, e não
é uma vida “normal” de uma família. Mas a
qualquer momento o monge pode deixar de
ser monge. Só não pode, depois, voltar a ser.
Quando escolhe deixar, ele deixa. Mas pode
continuar a ensinar, ter uma vida dedicada,
como já ocorreu várias vezes.
Você mora onde?
Vivo na Itália há seis anos. Morei na Índia
por 12 anos, mas todo ano vou ao Tibete para
estudar. Na Itália não moro em um monastério, porque um monastério é uma estrutura
só para monges... Veja, durante séculos o
budismo se desenvolveu por meio da comunidade monástica e os leigos aprendiam
relativamente pouco. Hoje em dia, no Ocidente, pela primeira vez o budismo chega para
leigos e não exclusivamente para monges.
Esse nosso encontro nasceu, entre outras
coisas, porque tenho estudado sobre o que
existe após a morte. O que você entende
por vida depois da morte?
Bem, para entender o que é a morte, temos de
entender do que somos feitos durante a vida.
No budismo acreditamos em três níveis de
existência: corpo e mente grosseiros, sutis e
muito sutis. O nível grosseiro é aquele que estudamos em anatomia; o sutil é o das emoções;
e com o muito sutil não entramos em contato
durante a vida. Para fazer uma transformação
verdadeiramente profunda e efetiva, que se leva
de uma vida para outra, é importante entrar
em um estado de consciência mais profundo,
ou seja, nesse nível que chamamos de muito
sutil. E isso só é possível no momento da morte.
É por isso que, dentro do budismo, se preparar
para esse momento é essencial. Infelizmente no
Ocidente a morte é ainda um tabu, mas todos
nós deveríamos ser educados em relação a ela
desde a infância. Porque é importante saber
usar aquele momento de uma boa forma e se
direcionar. Acreditamos que na hora da morte
a mente grosseira é absorvida pela mente sutil.
Nossa mente sutil é um resultado de todas as
experiências que a gente viveu até hoje. Essa
mente também vai se dissolver e vamos entrar
num estado de consciência ainda mais profundo. É muito importante o momento em que a
mente grosseira for absorvida pela mente sutil
e a mente sutil absorvida pela mente muito
sutil, o último pensamento grosseiro é o que vai
determinar a direção em que isso vai ocorrer.
Então a forma como morremos é mais
determinante nessa passagem do que a
forma como vivemos?
As duas coisas são importantes. Durante
a vida eu crio as causas, no momento da
morte eu crio a condição. O resultado vem
da união de causa e condição. Durante a
vida posso ter criado várias causas positivas, outras negativas. O que acontece no
momento da morte não é um balanço final,
mas, entre minhas várias causas, vou ver qual
acionar. Se eu morrer com uma mente de
raiva, ódio, inveja, medo, isso vai direcionar
pra um estado emocional negativo. Vai fazer
com que causas não positivas que eu criei
amadureçam, e vou me direcionar pra uma
continuidade de um renascimento não bom.
Costumo brincar em minhas palestras que
aos 75 anos de idade prefiro acreditar que sou
eterno, porque se ficar pensando na morte
minha vida perde um pouco a graça. Eu olho
para minha mulher, paras minhas crianças
pequenas... Não é que a morte seja um tabu
para mim, mas eu gostaria de encontrar algo
que me tranquilizasse um pouco mais em
relação a essa perda.
BEL CÉSAR – Os lamas falam que, mesmo
que a gente tenha pouco tempo pela frente,
devemos ter planos para 100 anos de vida. No
budismo acreditamos que não há esse “plano
de carreira” no qual você precisa diminuir no
final. Ao contrário, a melhor preparação para
a morte é viver bem a vida. E a melhor lição
que se deixa para quem fica é mostrar que é
possível lidar com a morte de forma positiva.
São truques que a gente vai encontrando para
acalmar a mente, mas trabalho há quase 20 anos
com pacientes terminais e, no fundo, continuo
achando muito esquisito morrer [risos].
ANA DINIZ (a filha mais velha do empresário esteve num dos encontros) – Cada
vez mais eu acredito que exista um “masterplan” que precisamos seguir e cumprir.
Às vezes, mesmo que o indivíduo tenha
as melhores intenções, não consegue interferir nessa espécie de destino que está
desenhado para ele. Você acredita nisso?
Acredito no que chamamos de interdependência profunda. Por exemplo, estamos hoje aqui,
reunidos. Quantas foram as causas e condições
necessárias pra que esse momento pudesse
existir? Infinitas! A gente vê o quanto a realidade
é delicada. Basta pouco pra que a coisa seja
diferente. Por outro lado, isso mostra que não
temos o verdadeiro controle sobre o que vai
acontecer. A gente tem uma influência, mas não
o controle. Causas que se acumulam ao longo
do tempo, e falta só a condição para que aquele
resultado apareça. São ações. A gente não tem
a capacidade de viver o presente estando desligado do passado. Hoje aconteceu isso por causa
“ os novos desempregados da europa são fruto de
duas gerações que
fizeram de tudo
para educá-los e
não deixar que
nada lhes faltasse. é uma geração
sem compromisso,
que nunca precisou se esforçar
para nada”
disso e daquilo. Não é verdade. Se olharmos
bem, aquilo que ocorre hoje foi gerado lá atrás.
Na verdade, nós mesmos acabamos gerando
e chamando certas situações para lidar com
nossos aspectos internos. E, enquanto a gente
não fizer uma transformação interna, aquela
situação vai se repetir em nossa vida. Certa
vez, fui procurado por uma moça com dificuldades profissionais, ela dizia que ninguém a
reconhecia no trabalho. Perguntei se ela havia
experimentado aquele mesmo sentimento em
algum outro momento da vida. “Desde que me
entendo por gente” foi a resposta. Ou seja, no
caso, o problema não estava no trabalho, mas
em seu interior, e enquanto não for resolvido
vai se repetir pela vida dela.
Imagine uma pessoa extraordinariamente
rica – não falo só dos bens materiais, mas
de amor, filhos, casamento, enfim, todas as
coisas maravilhosas e plenas da vida. Por
mais incrível que seja essa transformação,
é difícil imaginar que ela conduza a algo superior àquilo que a pessoa já vive. E, quando
houver essa transformação, pelo que você
está dizendo, não existe nenhum link com
o que ficou pra trás.
O link existe, o que não existe é resultado sem
causa. Quando você cria um vínculo profundo
com uma pessoa, esse vínculo continua de
uma vida pra outra, não de forma racional, mas
num nível mais sutil. A morte é uma perda?
À esq., a psicóloga
Bel César, mãe do
lama Michel: “Morrer
é muito esquisito”
De cima pra baixo: Abilio
em seu escritório; ao lado do
filho João Paulo e de outros
parceiros de corrida; e, na
pág. ao lado, nos tempos do
hipermercado Jumbo, nos
anos 1970
Você mora na Itália, que passa por uma grave
crise, com muito desemprego. Como budista, o que você pensa que se possa fazer no
campo econômico? O que fazer com esses
jovens que estão sofrendo, desempregados,
para que tenham uma dimensão diferente?
O problema é bem complexo. Tenho observado
bastante. Grande parte desses jovens europeus cresceu sendo muito mimada. Nunca
passaram por dificuldade de verdade, nunca
foram colocados à prova. Tenho amigos empresários que têm dificuldade em contratar
gente mais jovem. Dizem que os caras não
se esforçam. Por outro lado, conheço muitos
jovens que não querem correr atrás. Estão
sobrevivendo, não ambicionam grandes coisas, se acomodam e deixam a vida passar.
O fato é que, quando uma pessoa nunca passou por uma situação de ter que se esforçar
para sobreviver, nunca enfrentou dificuldades, nunca dependeu das próprias pernas,
ela acaba se acomodando às situações a sua
volta. Esse problema existe na Europa. A nova
Concordo com você, também sinto a
falta de ambição dos jovens. Mas que
tipo de valores podemos passar? O carinho, o abraço que nós vemos quando
vamos à missa aqui na igreja São José,
por exemplo, é cada vez mais raro.
A igreja católica perde cada vez mais fiéis
para crenças criadas em cima do marketing. Na Europa, nem isso, as igrejas estão
vazias, e a religião é só um dado estatístico. Que mensagem podemos passar num
cenário assim?
Uma coisa é passar um valor pra uma pessoa ou
um grupo. Em Milão, temos o centro onde recebo
Cristiano Mascaro/Editora Abril
geração de desempregados nasceu dos filhos
dos filhos do pós-guerra. Duas gerações que
fizeram de tudo para educar e não deixar faltar nada aos filhos resultaram numa geração
que nunca precisou fazer esforço algum. Uma
das coisas mais importantes do ponto de vista espiritual é mostrar para as pessoas que a
vida não é feita apenas de bens materiais – em
outras palavras, a vida é mais do que resolver
problemas e encontrar prazeres. Mas as pessoas passam a vida entre essas duas coisas:
evitam o sofrimento e procuram o prazer.
E quem nunca enfrentou dificuldades se frustra
por não encontrar o prazer que gostaria. E essa
busca por prazer é um grande problema, porque
é algo que não acaba nunca. Cada vez que a
gente bate a cara, tem que aprender alguma
coisa. Por que eu estou batendo a cara? Não
é porque alguém fez algo contra mim. Tento
levar essa consciência para pessoas com quem
converso. Só que observo nessa geração um
discurso de que o mundo não lhes dá oportunidade de trabalho. Acham que tudo deve ser
dado a eles, mas, do outro lado, não acham que
devam manter nenhum compromisso. Seria
muito melhor parar de se perguntarem o que
o mundo deve dar e, perguntarem o que eles
podem dar ao mundo. Isso mudaria bastante
a situação. Falta trabalho, mas também falta
quem queira trabalhar com compromisso. Se
estamos vivendo isso hoje a responsabilidade é de todos nós. Temos o hábito de colocar
toda a culpa nos políticos. É preciso recuperar a força de vontade de dizer “minha vida
depende de mim mesmo”. Me vem à mente
agora uma amiga professora que deveria estar
aposentada, mas lhe tiraram o benefício e ela
continua trabalhando... Mas, entre os jovens,
sinto uma estagnação.
divulgação , filipe araujo / agência estado
“ recentemente,
disse em uma
entrevista que,
se for para
alguém eleger
um único objetivo na vida,
meu conselho
é: escolha ser
feliz. coloque
isso como meta
e o resto se
ajusta depois”
Sim, é uma perda porque nossa existência é
baseada no que a gente tem, no que a gente é
aqui, nesta vida. Qual é o processo de preparação pra que a morte não seja uma perda? A
gente cita três níveis diante da morte pra um
praticante espiritual. O primeiro nível é não
ter arrependimentos diante da própria morte.
Eu fiz coisas erradas, mas eu reconheci, me
arrependi do que eu fiz, fiz algo pra mudar,
segui a minha vida com coerência dentro de
mim no meu dia a dia. Não tenho contas a
pagar. Esse primeiro nível é muito importante
porque, não sabendo nunca quando a morte
vai chegar, tenho que todo dia estar em paz,
tudo no lugar. O segundo nível é não ter medo
da morte. Para isso é um processo longo. Nós
temos nossa identidade, que é baseada principalmente no nosso corpo, nosso nome, coisas
que possuímos, sejam bens materiais, pessoas,
posições. Na morte, tudo isso se perde, tudo
que posso ter acumulado nessa vida eu não
levo comigo, mas com as pessoas que estão
à minha volta eu crio um vínculo profundo.
E por isso vai continuar. Para não ter medo
diante da morte, devo cultivar uma identidade
que vá além da imagem, além das pessoas
à minha volta, além daquilo que eu sou ou
possuo nesta vida. Isso é um dos processos
mais importantes que existem no caminho
espiritual. É um processo longo, gradual.
pessoas toda semana e falo sobre valores. Uma
média de 50 a 80 pessoas que vêm, de todas as
classes sociais e idades. Poderíamos também
colocar na internet ou falar na TV, mas ainda
assim seria algo restrito. Então, como chegar nas
pessoas? A grande dificuldade é que depende
muito delas, da receptividade. Se a pessoa não
está aberta, ela não recebe, não importa o que
você leve. Acho que a espiritualidade faz muita
falta, independentemente da religião. Sou a
favor de qualquer religião, mas, em relação a
alguns cultos, percebo que muitas vezes eles
atraem as pessoas com objetivos completamente mundanos: uma casa, um carro. Estão
longe de um caminho espiritual. Agora, como
levar espiritualidade real para as pessoas? É
um processo nada fácil. A consciência de um
processo de desenvolvimento interior independente da realidade material à nossa volta é um
luxo, no mundo de hoje. Mesmo onde isso é
mais difundido, na Ásia, ela está se perdendo,
devagarzinho, dando lugar ao materialismo.
O que eu faço é levar aquilo em que acredito aonde quer que eu vá. E ajudar alguém a
mudar a própria vida: em vez de viver uma
vida materialista, ver que existe algo mais, um
processo interior, algo impossível de transmitir
de maneira unicamente verbal. Só se transmite
olhando nos olhos. Então, o que tento fazer é
estar perto do maior número de pessoas, levar
isso a elas, e vejo que, devagarzinho, um pouquinho vai sendo feito. Por meio das pessoas,
uma por vez, uma vai influenciando a outra, e
dessa forma a gente pode chegar lá.
Mas qual a referência? Até certo tempo atrás,
era a religião. Hoje vejo o jovem quase no
mundo todo sem referência nenhuma.
Acredito que algumas coisas bem práticas e
diretas possam ser feitas. Pra que eu possa ter
um objetivo, é importante ter uma amostra
desse objetivo. Experimentar, ter uma sensação. O meu sonho é que a meditação fizesse
parte da educação como um todo. Não precisa
ser a meditação budista. A meditação como
exercício de autoconsciência. Falta hoje a pessoa parar, respirar e olhar dentro de si mesma.
Ajudaria muito, existem centenas de estudos
que provam isso. É um sonho, acho que um
dia a gente chega lá.
PAULO LIMA – As coisas mais fundamentais
não nos são ensinadas. Veja o quanto nos faz
falta aprender sobre nutrição, por exemplo,
e o quanto somos ignorantes no assunto.
Com certeza. Nós fazemos uma coisa supersimples com um grupo aqui em São Paulo, numa
instituição chamada Cursinho da Poli. Eles
dão preparação pré-vestibular para pessoas
de baixa renda. E há quatro anos nós vamos
até lá para fazer uma meditação de 15 minutos
antes dos simulados. Chamamos de “técnica
de relaxamento e concentração” porque tem
gente que acha que meditação é coisa do diabo
[risos], mas é a mesma coisa, idêntica, é sentar,
respirar, observar. E tem melhorado os resultados das provas, em vários casos a pessoa
começa a observar mais a própria atitude.
É levar junto com a meditação um processo
de educação emocional. Acho que é isso que o
budismo traz e que poucas escolas ensinam, que
podemos nos educar emocionalmente. Posso
me educar a ser uma pessoa mais paciente,
amorosa, e assim por diante.
Toda manhã faço meus exercícios aeróbicos. Começo às seis da manhã e vou até as
sete, e nunca acendo a luz. Essa é minha
hora de meditação e de prece. Converso
com Deus, sou bem amigo dele, sou um
pedinte danado [risos]. Eu até chamo esse
momento de meditação. Mas me explica o
que é meditação no budismo.
A palavra em tibetano para meditação é gom,
que, literalmente, significa se familiarizar, acostumar. A meditação tem alguns pré-requisitos,
mas o conceito básico é gerar um estado mental
que vai se opor a um outro estado mental que
eu quero eliminar. Se eu quero eliminar a raiva,
tenho que desenvolver mais paciência e amor.
Gerar esse sentimento “artificial”, senti-lo, quanto
“costumo brincar
em minhas palestras que, aos
75 anos, prefiro
pensar que sou
imortal. não é
que a morte seja
um tabu, mas
é difícil lidar
com a sensação
de perda
que ela traz”
Aprendi coisas interessantes com o que
você está dizendo. Estar inteiro no momento presente faz muito sentido. Vou tentar
meditar do meu jeito.
Há alguns anos, a prefeitura me pediu para
falar com os chefes das torcidas organizadas
E se o outro não está com a motivação
correta?
Tenho que, de alguma forma, encontrar um
jeito de revirar, para que ele sinta, na escolha
que é boa para mim, que também pode ser
boa para ele. E para isso tenho que saber falar
a linguagem dele. Entender a mentalidade
dele. Então tem uma prática budista que diz
que a forma mais sábia é ganhar a vitória
oferecendo a vitória. É um debate. Mas qual
a dificuldade num debate? Se a pessoa que
está do outro lado não tem sinceridade intelectual, fica difícil. Ela vai criar mil coisas,
vai dizer o absurdo pra não perder a posição.
Outra coisa também é se a pessoa do outro lado não pode revisitar a posição dela.
PAULO LIMA – Interessante o que você
falou, perder para ganhar...
Dar a vitória...
Lama Michel entre seus pares
no Tibete (acima e no topo da
página); e ao lado da mãe e do
seu mestre
Você nunca teve dúvidas em relação à
trajetória que escolheu?
Nunca. Eu era um garoto de classe média alta
que gostava de fazer as coisas normais da minha
idade, como jogar videogame, quando, aos 12
anos, resolvi ir morar em um monastério no sul
da Índia, em uma situação de pobreza material.
Comia arroz com lentilha e mais nada, simplicidade total. E a vida no monastério não é o
paraíso, o ser humano é igual em todo lugar.
Mas isso nunca foi problema, porque tudo fazia
muito sentido para mim. Aos 11 anos comecei
a questionar o que estava fazendo. Afinal, para
que estudar matemática, geografia, ciências?
Talvez hoje eu tivesse uma resposta diferente,
mas na época a razão era entrar na faculdade,
me formar e conseguir um emprego de que
gostasse e com o qual ganhasse bem. Ao mesmo tempo, nas reuniões de família ouvia os
divulgação / tiziana ciasullo
Nesse diálogo ela própria pode se dar conta
de que está errada.
Você leva ela a isso. Em vez de dizer “você
está errado” eu digo “me explique de que
forma eu estou errado”. Me mostre qual é o
caminho. Sempre me lembro do advogado
do filme Filadélfia, que dizia: “Agora me
explique como se eu fosse uma criança de
4 anos”. Muitas vezes ela percebe que não
consegue justificar sua posição. Nesses conflitos é importante saber jogar. A arrogância
de cada um só penaliza.
PAULO LIMA – Essa é uma lógica que não está
instalada definitivamente, mas que começa
a aparecer no mundo dos negócios ainda de
forma embrionária. Não está na lógica corporativa ainda. Mas, quando você começa a
ver as negociações realmente importantes
da atualidade, se elas não partirem desse
princípio... Por exemplo, quanto aos conflitos
Israel X Palestina, a única possibilidade de
haver alguma vitória é que os dois consigam
perder algo, que abram mão de coisas muito
fundamentais. Se não, esquece, é confrontação, explosão, mortes sem fim.
Isso está dentro do conceito de dar a vitória,
mas entendendo que dando a vitória você
não perde. Você tem a maior vitória. Quem
entra no conceito de ir à luta, destruir, fazer
o outro perder, no final das contas, acaba ele
próprio não ganhando.
GIL SOUZA
Quando existe uma disputa e cada um olha
o fato com uma interpretação diferente,
como resolver?
A primeira coisa é entender como o outro vê
aquilo. Segundo, mostrar para o outro o meu
ponto de vista, usando a linguagem e o ponto
de vista do outro. Quando há conflito entre
duas visões completamente diferentes, se eu
continuo pensando “o meu jeito é assim”, se
eu uso a minha linguagem e o outro usa a
linguagem dele, o conflito só aumenta. Eu vou
ter a vitória quando dou a vitória para o outro,
quando eu encontrar uma visão possível, compartilhada, na qual eu chego ao meu objetivo
e o outro entende que alcançou a vitória. Se
minha posição é correta, e eu estou confortável
com minha posição, eu levo em consideração
o outro e levo essa posição ao outro. E, se o
outro está também com a motivação correta,
podemos encontrar um caminho do meio.
divulgação / tiziana ciasullo
mais eu fizer isso, mais forte esse sentimento vai
surgir de forma espontânea. O primeiro passo é
estar presente no momento presente. Tirar da
mente preocupações do passado e expectativas
do futuro. E aprendemos a fazer isso através da
respiração. Porque a respiração é a parte do nosso
corpo que cria a ponte entre o mundo externo e
o mundo interno. A respiração é como se fosse
o maestro da orquestra do corpo e da mente. Se
a gente tenta respirar rápido e pensar devagar,
não dá certo, nem o contrário. Dizer que meditar é pensar em nada não é correto. Existem
linhas que têm essa visão, eu não acredito nisso,
toda linhagem que eu sigo diz que faz parte da
natureza da mente ter um objeto de percepção,
então no momento que tento pensar em nada
o nada se torna algo. Não posso simplesmente
esvaziar a mente de qualquer pensamento. Posso
meditar de várias formas. Uma das primeiras
meditações que a gente aprende, por exemplo, é
sobre a preciosidade desta vida. Primeiro faço
uma meditação analítica, observando quanto
eu tenho oportunidades raras, corpo em boa
saúde, oportunidade de seguir um caminho
espiritual, poder fazer algo pra ajudar as outras
pessoas e quanto isso é raro no planeta. Nós
somos 7 bilhões. Fazemos parte de várias categorias privilegiadas, aqueles que têm o que
comer, onde viver, não vivem em guerra e assim
por diante, vai indo até chegar no quanto essa
vida é preciosa. E ela é preciosa porque me
dá oportunidade de ter um desenvolvimento
interior e poder beneficiar os outros. Vou refletir
sobre algo que talvez eu já conheça, já tenha
ouvido falar várias vezes, eu mesmo já tenha
explicado. Refletindo sobre isso, fazendo uma
análise, até que eu chegue numa conclusão
final. Aí, quando fico nela, é uma meditação
unidirecionada. Até chegar nela é a meditação
analítica. Mas o primeiro passo é saber estar
presente no momento presente. O objetivo
da meditação é falar pra mente “mente, fica
aqui”. E ela fica, até eu falar pra mudar de lugar.
O que acontece geralmente é você dizer pra
ela ficar aqui, mas, quando olha pro lado, ela
já saiu [risos].
“ posso meditar de
várias formas.
começo com uma meditação analítica,
observando quanto
temos oportunidades
raras, corpo em
boa saúde, temos
o que comer, onde
viver, não estamos
em uma região de
conflito”
aqui em São Paulo, no Museu do Futebol.
Eu gosto de esporte, mas nunca entendi como
alguém pode torcer para um time [risos].
Eu tinha que achar algum vínculo com eles.
Estar “presente no momento presente” eu defini como quando você está jogando futebol,
a bola tá no pé, indo em direção ao gol; se a
mente vai pra outro lugar, você perde a bola.
Durante o nosso dia a dia é muito importante
ter momentos nos quais a gente está presente
no momento presente, livre de preocupações e
pensamentos relativos ao passado e ao futuro
porque, entre outras coisas, é um momento pra
decantar e elaborar nossas emoções.
adultos, todos bem-sucedidos financeiramente,
reclamando bastante da vida. Quando estava
com meu mestre o via sempre feliz, satisfeito,
equilibrado, e pensava: “Eu quero ser assim”.
No meu caso, viver apenas para me sustentar
materialmente nunca fez muito sentido. Meu
objetivo de vida é encontrar um estado de equilíbrio, de alegria, de felicidade, de satisfação,
que seja completamente independente do lugar,
da companhia e da situação em que esteja.
Ou seja, não depender das coisas para ser
feliz. Eu me identifico muito com isso. Recentemente disse em uma entrevista que,
se for para alguém eleger uma única coisa
na vida, um só objetivo, meu conselho é:
escolha ser feliz. Coloque isso como meta
e aposte tudo no caminho da felicidade, o
resto se ajusta depois.
Não tenho nada contra ganhar dinheiro, alcançar uma posição de destaque, ter prazer
sensorial. Isso faz parte da vida. O problema
é ser escravo disso. Certa vez fui convidado
para falar sobre budismo para crianças de uma
escola primária de Milão. Perguntei se elas
já haviam conseguido ganhar o presente que
pediram no Natal ou no aniversário. Todas
responderam que sim, mas também disseram
que a felicidade tinha durado pouco e elas
já sonhavam com outro brinquedo. Todos
nós sabemos disso. É como se a gente não
conhecesse outra brincadeira e ficasse apenas
trocando de brinquedo. Para mim felicidade
é aquele momento em que não desejo que
nada seja diferente daquilo que é.
“ o que eu faço
é levar aquilo
em que acredito aonde quer
que eu vá, e
transmitir isso
olhando nos
olhos. estando
perto das pessoas, uma por
vez, devagarinho, uma vai
influenciando
a outra”
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Entrevista com Lama Michel na revista Trip