A C` hama dos Movimentos Campesino-indígenas Bolivianos Conselho Editorial Av. Carlos Salles Block, 658 Ed. Altos do Anhangabaú, 2º Andar, Sala 21 Anhangabaú – Jundiaí-SP – 13208-100 11 4521-6315 | 2449-0740 [email protected] Profa. Dra. Andrea Domingues Prof. Dr. Antonio Cesar Galhardi Profa. Dra. Benedita Cássia Sant’anna Prof. Dr. Carlos Bauer Profa. Dra. Cristianne Famer Rocha Prof. Dr. Fábio Régio Bento Prof. Dr. José Ricardo Caetano Costa Prof. Dr. Luiz Fernando Gomes Profa. Dra. Milena Fernandes Oliveira Prof. Dr. Ricardo André Ferreira Martins Prof. Dr. Romualdo Dias Profa. Dra. Thelma Lessa Prof. Dr. Victor Hugo Veppo Burgardt ©2014 Elizardo Scarpati Costa Direitos desta edição adquiridos pela Paco Editorial. Nenhuma parte desta obra pode ser apropriada e estocada em sistema de banco de dados ou processo similar, em qualquer forma ou meio, seja eletrônico, de fotocópia, gravação, etc., sem a permissão da editora e/ou autor. C8233 Costa, Elizardo Scarpati. Movimentos Sociais Latino-americanos: A C’hama dos Movimentos Campesino-indígenas Bolivianos/Elizardo Scarpati Costa. Jundiaí, Paco Editorial: 2014. 156 p. Inclui bibliografia. Inclui Figuras e Tabelas ISBN: 978-85-8148-522-5 1.Campesinato 2. Movimentos Sociais 3. Povos Indígenas 4. Globalização. I. Costa, Elizardo Scarpati. CDD: 301 Índices para catálogo sistemático: Grupos Sociais Bolívia 305 984 IMPRESSO NO BRASIL PRINTED IN BRAZIL Foi feito Depósito Legal Sumário Prefácio....................................................................................5 Introdução...............................................................................7 Capítulo 1 Os movimentos sociais, as relações entre Estado e sociedade civil e a globalização como epicentro da modernidade latino-americana...............................................13 1.1 Perspectivas Teóricas sobre os Movimentos Sociais.........13 1.2 As relações entre o Estado e a sociedade civil: As configurações históricas do Estado-nação na América Latina e na Bolívia....................................................34 1.3 Globalização, Estado e sociedades latino-americanas.......49 Capítulo 2 Hipóteses de trabalho e orientação metodológica...................57 2.1 Hipóteses de trabalho......................................................57 2.2 Orientação metodológica.................................................59 Capítulo 3 Estado, poder, terra e coca: O que querem os movimentos indígenas?...............................65 3.1 A luta pela nacionalização e preservação dos recursos naturais: uma questão fulcral dos povos indígenas......................................................................65 3.2 Educação bilíngue, para que te quero?.............................76 Capítulo 4 Atores em jogo na construção de um novo Estado democrático, multicultural e plurinacional na Bolívia: Olhares presentes e perspectivas futuras sob a égide dos movimentos sociais e campesino-indígenas.............79 4.1 O socialismo do século XXI na Bolívia: O cenário sociopolítico e a crise do modelo neoliberal............79 4.2 Correntes e tendências dos movimentos indígenas bolivianos...............................................................96 4.3 O Estado plurinacional constitucional: A face do “capitalismo andino-amazônico” no período pós-neoliberal?.........................................................107 4.4 Os movimentos indígenas na encruzilhada: Entre o Estado e a comunidade indígena..............................118 Conclusão...........................................................................125 Referências...........................................................................133 Anexo1 – Solidariedade internacional...................................145 Anexo 2 – Algumas fotografias do ampliado nacional...........146 Anexo 3 – Documento histórico e organizativo da CSUTCB..148 Anexo 4 – História da federação...........................................153 Prefácio Os protestos sociais e as manifestações de variada ordem quase sempre constituem uma oportunidade para repensar a relação entre o Estado e a sociedade civil. Quer porque desafiam as (in) capacidades de “governação” por parte do sistema político, quer porque põem à prova as capacidades organizativas e transformadoras protagonizadas por vários grupos e identidades numa determinada sociedade. Como noutros contextos, a América Latina foi historicamente um espaço onde a capacidade para protestar e desafiar o sistema político e econômico sempre esteve na ordem do dia, quer em contextos políticos adversos (de repressão e ditadura), quer em contextos democráticos (de que são exemplos mais recentes, no âmbito da realidade brasileira, os protestos que desde junho de 2013 eclodiram e se alastraram um pouco por todo o país reclamando uma outra política de transportes). Este livro fala-nos de um desses contextos de afirmação de movimentos sociais, designadamente da afirmação dos movimentos campesino-indígenas bolivianos. Trata-se de um estudo resultante de uma tese de mestrado defendida com sucesso na Universidade de Coimbra e na qual o seu autor, Elizardo Scarpati Costa, começa por dialogar com as tradições de teorias de movimentos sociais na América Latina para, sequencialmente, se deter nas configurações históricas do Estado nação na América Latina e na Bolívia. O seu foco analítico são, pois, os movimentos indígenas bolivianos no contexto da globalização. No seu detalhe analítico, o estudo não só se ocupa do modo como evolui uma questão crucial para os povos indígenas – a luta pela nacionalização e preservação dos recursos naturais (pontificando a terra e a folha de coca como valores inalienáveis) –, como se detém nos contributos do movimento campesino-indígena para a construção de um Estado democrático, multicultural e 5 Elizardo Scarpati Costa plurinacional na Bolívia. A este respeito, o autor analisa o protagonismo das formas de ação coletiva testemunhado pelas “guerras” da água e do gás. O contexto que o autor analisa está associado à ascensão de Evo Morales ao poder (por sinal, o primeiro líder indígena a ascender à condição de Presidente da República), mostrando como é possível dotar social e constitucionalmente o país de condições geradoras de maiores benefícios para os mais pobres e desfavorecidos, desde logo através de uma política de partilha das receitas dos hidrocarbonetos e dos processos de nacionalização. São, pois, várias as questões de reflexão e interrogação lançadas por este livro: desde logo, as que tratam do processo de reconfiguração identitária quer de campesinos, quer de indígenas, por via da análise dos processos relacionados com a reforma agrária ou da distribuição de riqueza, no caso do primeiros, ou do poder de autogovernação territorial ou mesmo do significado da noção de indígena no meio acadêmico, no caso dos segundos; mas também do cruzamento entre cultura e política ou entre identidade e classe social que decorre da condição de campesino e de indígena; ou ainda, claro está, as conjunturas suscitadas a respeito dos movimentos campesino-indígenas bolivianos, seu trajeto sócio-histórico e suas especificidades face a outros movimentos sociais clássicos (como o movimento sindical) ou mesmo face a novos movimentos sociais de orientações culturais, como os movimentos feministas ou os movimentos negros. Em resumo, um estudo que parece deixar a porta aberta para que, num contexto de reforço da “identidade indígena” (acentuada com a reeleição de Morales), se possam equacionar os movimentos sociais enquanto portadores de uma saída pós-colonial. Hermes Augusto Costa Coimbra, dezembro de 2013 6 Introdução A América Latina no dealbar do século XXI apresenta um cenário político, social e cultural conflitual. Desde a revolução mexicana e cubana no século XX, passando por toda América central e do sul com a revolução boliviana de 1952, os levantamentos sociais estiveram presentes nas sociedades latino-americanas. As manifestações destas rebeliões davam-se através do surgimento do sindicalismo clássico no primeiro momento, alavancadas pelo movimento operário. Depois pelo guerillherismo guevarista, e por último, pelos movimentos sociais que a partir de meados do século passado surgem no cenário de “guerra-fria”, mas são pacificados por regimes militares em todo continente. Assim, a continuidade dos conflitos sociais no século XXI é reflexo direto a este passado histórico mal resolvido, ou seja, os velhos conflitos sociais vêm-se misturando a novos conflitos que resultaram numa situação muito peculiar, como aconteceu na Bolívia, caso que estudaremos nesta obra. Em diversos países do “subcontinente”, o conflito social se faz presente em seus contornos totalizadores que giram em torno de mais e melhores inclusões sociais – aprofundamento da democracia e da redistribuição da riqueza em oposição à crise do neoliberalismo. A Bolívia é um dos países do subcontinente, onde foram impulsionados os grandes conflitos quase insurreccionais no início deste século. Porém, as bases tradicionais do Estado mantiveram-se com a democracia representativa no plano político, e a propriedade privada no plano econômico, mas, veremos que estas bases não são mais as mesmas após as rebeliões. Em larga medida, estas revoltas estão ligadas aos impactos da globalização neoliberal em sua face modernizadora que promoveu o aumento das exclusões sociais (política, econômica, cultural, cognitiva). No caso boliviano, existe um incremento substancialmente qua7 Elizardo Scarpati Costa litativo a este processo – a questão étnica e da (re) emergência dos movimentos indígenas bolivianos (MIBs) como protagonistas da sua História através a sua “ch´ama”1 – assistimos à crescente ascensão dos MIBs a partir da última década do século XX. Esta dinâmica imprimida pelos indígenas tem chamado a atenção não só de intelectuais latino-americanos, mas também do resto do mundo por sua particularidade e pelo seu caráter sui generis. Contudo, a história dos indígenas bolivianos nos remete ao seu passado colonial/republicano: a homogeneização e incorporação dos indígenas na sociedade de classes não representam somente a destruição do modo de produção comunal, mas igualmente a esteriotipação e submissão da cultura milenar indígena. Portanto, a trajetória dos MIBs tem raízes no seu passado de servidão e exclusão étnica, que é resultado da acumulação das opressões e das frustrações sofridas durante todos os séculos passados. Neste início de século XXI, a trajetória protagonizada pelos MIBs para conseguir uma real inclusão política, econômica, social e cultural, significa o redirecionamento do Estado-nação e da sociedade civil boliviana a caminho do reflorescimento da noção de indígena. Por um lado, os MIBs representam um conjunto de acontecimentos históricos que urge compreender analisando a sua complexidade interna e externa; por outro lado, os MIBs protagonizaram a criação de formas inovadoras de intervenção na realidade social da Bolívia. Assim, propomos nesse livro discutir os MIBs procurando entender o seu papel na configuração do Estado-nação, na criação de identidades, as suas características e as suas perspectivas para o futuro, em consonância com a teoria sociológica na busca de um enquadramento adequado à sua composição e organização. Neste sentido, sabemos que a discussão acerca da sociologia dos movimentos sociais é uma das mais complexas da sociologia geral. Hoje em dia, apesar de se ter mais de um século de pro1. A palavra C´hama significa força no idioma Aymara. 8 Movimentos Sociais Latino-americanos dução científica sobre a temática, ainda estamos confrontados a uma grande indefinição sobre os movimentos sociais, como afirma Sidney Tarrow (Melucci, 1996: 12). A própria discussão teórica e epistemológica sobre os MIBs talvez careça ainda de uma melhor sistematização, de modo que se possa compreender qual a magnitude de sua força, da sua identidade e de suas perspectivas. Tal fato deve-se principalmente à análise e à profunda observação descritiva dos agentes sociais em luta, ficando reduzida ao momento histórico em que é desencadeada a ação coletiva, ou seja, restringindo a análise sociológica aos processos políticos em curso, e não se verificando uma teorização decorrente de um estudo aprofundado da natureza identitária e das características distintivas desses novos movimentos sociais (NMSs). Assim, em traços largos, abordaremos no primeiro capítulo as principais perspectivas teóricas da sociologia dos movimentos sociais, desde o paradigma clássico europeu, o paradigma clássico norte-americano até o quasi paradigma latino-americano. Bem como se discutirá a noção de indígena e do Estado-nação na Bolívia. No segundo capítulo, mostraremos o método e as técnicas de pesquisa empregadas nesse estudo. No terceiro capítulo, aprofundar-se-á o debate sobre questões gerais relativas ao porquê da existência dos MIBs e aos seus respectivos objetivos como movimento social. E por fim, no quarto capítulo, debatemos mais as relações da ação coletiva em momentos específicos de ascensão e de estabilização na relação conflitual entre os MIBs e o Estado boliviano no século XXI. 9 PARTE I Enquadramento Teórico e Metodologia Capítulo 1 Os movimentos sociais, as relações entre Estado e sociedade civil e a globalização como epicentro da modernidade latino-americana 1.1 Perspectivas Teóricas sobre os Movimentos Sociais 1.1.1 Teorias e conceitos paradigmáticos da Sociologia dos movimentos sociais: A abordagem clássica americana e europeia Os clássicos da sociologia Karl Marx, Émile Durkheim e Max Weber não apresentaram em suas obras o tema dos movimentos sociais de forma direta (Gohn, 2002). No entanto, estes autores deram iníci, no flanco de uma Sociologia mais orgânica, à discussão que iria constituir a sociologia dos movimentos sociais. Estas contribuições são visualizadas em suas observações sobre os indivíduos e os grupos sociais em sociedade, por exemplo, as classes sociais, os antagonismos, o conflito social, e a transformação social são temáticas essenciais da sociologia política, e analisadas através das lutas sociais estudadas por Marx. Assim, estes conceitos servem como base para um indicativo do ponto de vista objetivo e subjetivo para a organização de um determinado movimento social, neste caso, o movimento operário clássico através da praxis social (Marx, 2003). Para Marx, é impossível separar a “teoria da prática revolucionária de classes sociais”: a teoria e a prática são indissociáveis, sendo a praxis so13 Elizardo Scarpati Costa cial o produto da intervenção coletiva e da ruptura da realidade social. Como é sabido, a proposta de Marx incide, sobretudo, na análise do conflito entre classes sociais dirigentes e subalternas. Ou seja, dentro da matriz teórica marxista, as classes sociais são imprescindíveis para se entender todas as ações políticas e a tomada do poder por uma classe social. Ora, no âmbito da presente investigação caberia perguntar-se, tendo em conta o quadro de referência marxista, o seguinte: até que ponto os indígenas bolivianos organizados através dos MIBs se reivindicam como uma classe social? No sentido que Marx conceituou como sendo a “consciência de classe para si” e não somente “classe em si”. Segundo, existirá na Bolívia um conflito mais étnico que econômico de acordo com o repertório discursivo reivindicativo dos levantes sociais no início do século XXI? Ou os dois processos conflituais (étnico e econômico) são pares entre si, ou seja, estão em consonância sem hierarquização de importância e de valor? Portanto, é necessário fazer uma análise social, política e econômica da Bolívia, para focarmos os MIBs em uma perspectiva marxista, tendo em conta os seguintes aspectos: a questão da identidade indígena, dos atores em jogo, os papéis das lideranças indígenas, o Estado boliviano, a crise do neoliberalismo nos finais do século XX e inícios do XXI, a postura ideológica de alguns partidos políticos bolivianos, para, assim, entendermos como a viabilidade da perspectiva marxista pode ser verificada através dos MIBs como potenciais agentes protagonistas da “revolução social” – “como meios mais eficientes para alcançar a distribuição radical dos bens” (Alexander, 1998: 5) – bem como compreender qual a posição do marxismo2 no cenário conflitual boliviano. 2. Segundo Gohn (2002), em geral, dentro do pensamento sociológico latino-americano, o trabalho de Marx influenciou duas vertentes de pensamento: uma é a que ficou conhecida como o “marxismo ortodoxo”, hegemônico até a década de 60, que priorizava em suas análises os fatores econômicos e estruturais da sociedade capitalista para a criação das demandas políticas dos movimentos sociais tendo à 14 Movimentos Sociais Latino-americanos Por outro lado, a corrente que foi consagrada como paradigma dominante ao lado da matriz marxista até a década de 19603 foi a Escola de Chicago e os interacionistas simbólicos. Dentro desta perspectiva americana de estudo dos movimentos sociais, temos a abordagem de Herbert Blumer (1978) que tem forte inspiração e influência de Robert Park, autor que cunhou o termo multidão para caracterizar ações que, apesar de serem coletivas, são dispersas e individuais. Sua obra é fortemente marcada pela psicologia individualista dos membros em um determinado coletivo (Park apud Estanque, 1999: 85). Blumer foi talvez o mais influente autor da Escola de Chicago, criador do conceito de interacionismo simbólico em 1937 para analisar os comportamentos coletivos – ele descrevia os significados simbólicos, manifestados pelos movimentos sociais, como o conjunto de relações sociais de interação entre os membros do grupo que eram movidos principalmente pelos símbolos com uma ênfase ao microssociológico, enquanto os movimentos sociais eram vistos por Blumer como “pequenas sociedades” (Alexander, 1998: 4). No período do pós-guerra, a comunicação de massas através da propaganda, criava alguns símbolos através da opinião pública, que eram absorvidos por alguns indivíduos e influenciava a mudança do pensamento com relação ao coletivo. Os indivíduos passavam a ter uma perspectiva egoísta da ação coletiva. Além disso, a linguagem é um dos aspectos principais de comunicação simbólica dos grupos. Visto assim, as manifestações públicas são construídas por essas narrativas fomentadas pela comunicação social e absorvidas pelos movimentos sociais (Blumer, 1978). frente Lenin e Trotsky. A segunda perspectiva seria o marxismo baseado nas obras filosóficas e políticas de Marx, que dá ênfase à filosofia e desvincula a teoria de Marx ao movimento operário, ligando-o somente ao trabalho acadêmico, os principais autores desta perspectiva são Rosa Luxemburgo, Gramsci e Lukács. 3. Aqui afirmamos que a matriz teórica americana liderada por Blumer foi dominante não só nos Estados Unidos, mas também em contexto latino-americano até a década de 60. Exclui-se aqui a Europa da nossa observação. 15