CORPO E TEMPORALIDADE
Delia Catullo Goldfarb
RESUMO: Este breve artigo oferece uma síntese do livro “Corpo, tempo e
envelhecimento” também disponível neste site. Aborda alguns eixos possíveis para
pensar as vicissitudes da subjetividade no processo do envelhecimento
Quando ouvimos frases como: “eu quero fazer tantas coisas mas meu corpo já
não me deixa” ou “ainda há tanto para ser feito mas acho que meu tempo já está
acabando” nos encontramos ante um discurso altamente significativo de alguém que
fala de limites e limitações muito frequentemente irreversíveis. De alguém que fala
do corpo e do tempo.
Esclareçamos primeiramente a questão do corpo. Perguntemo-nos de que nos
fala um idoso quando se refere a seu corpo com estas palavras. O que esta nos dizendo
quando se refere a seu corpo como um estranho, um outro, algo que o prejudica.
Quando sentimos prazer e estamos bem com “nosso” corpo o sentimos como
próprio, é algo que nos pertence; mas quando o sofrimento se faz presente, sentimos
que alguma coisa que nos ataca de fora, esse nosso corpo se revela incontrolável
desconhecido e estranho. Rugas, cabelos brancos, doenças degenerativas, presbiopia,
etc, são sentidos como esses agressores externos que vêm questionar nossa imagem de
potência, saúde e beleza. Então quando um idoso fala de seu corpo com estas
palavras, está falando de um corpo de sofrimento, está falando de uma contradição, de
um psiquismo desejante, vivo, com vontade de fazer muitas coisas, e de um corpo que
já não serve como instrumento. O que jamais poderemos esquecer e que este corpo
sofredor ou decadente pôde continuar sendo objeto de investimentos amorosos
suficientemente significativos que façam uma ponte com o prazer. Mas, este corpo é
diferente do abordado por outras áreas do conhecimento.
Quando falamos de corpo desde o ponto de vista da psicanálise não nos
referimos ao organismo natural objeto de estudo das ciências biológicas; falamos de
um corpo sobre o qual os afetos, os prazeres e sofrimentos e as emoções vão deixando
marcas, construindo história, criando uma imagem corporal que quer ser permanente,
imagem que nos permitirá nos reconhecermos sempre os mesmos, apesar das
mudanças que o tempo ou as circunstâncias de vida venham nos impor.
Este corpo passará por significativas transformações ao longo da vida. Na
adolescência esse corpo que cresce desordenadamente a mercê das vissicitudes
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hormonais, fará o sujeito se sentir estranho. Mas o jovem sabe que essas mudanças
não são outra coisa que o prelúdio de um futuro de pleno uso de sua capacidade
corporal.
Mas quando o idoso se olha no espelho, (ou no olhar dos outros) este lhe
devolve uma imagem ligada a uma deterioração das capacidades corpóreas e de perda
de beleza, imagem na qual o idoso não se reconhece e diz: “esse não sou eu”. Embora
saiba que aquela imagem lhe pertence, ela produz uma impressão de estranheza,
frequentemente apavorante porque não se liga a um futuro pleno de realizações mas
antecipa ou confirma a velhice, enquanto que a imagem da memória é uma imagem
idealizada que remete a completude e onipotência.
Quando a pessoa que envelhece diz: “esse não sou eu”, diz que o rosto em que
poderia se reconhecer tranquilamente não é aquele. Quero novamente esclarecer que a
falta de reconhecimento de que falo não se refere ao sujeito como tal, pois tanto o
adolescente quanto o idoso sabem que aquela imagem lhes pertence, mas
experimentam ante ela uma estranheza, um susto. Chamo este momento singular de
estranheza ante a própria imagem de “espelho negativo”. É um fenômeno que anuncia
a proximidade da velhice em termos de estética e que se acompanha de outros que
dizem sobre a funcionalidade do corpo e sobre o valor social que cada cultura outorga
a esta fase da vida.
Ele acontece antes da velhice se instalar como vivência existencial do sujeito e
geralmente relacionado a um acontecimento na vida do sujeito que aparece sempre
como externo a ele, uma perda, uma doença, ou um dado que vêm do social. É
sempre algo que vem “de fora” e localiza o sujeito em um novo tempo. Este é
justamente o sentimento predominante. Alguma coisa que nos acontece subitamente,
como se um relógio que marcava sempre a mesma hora começasse a funcionar
bruscamente marcando um tempo que passa aceleradamente. Então, bem antes da
velhice chegar assiste-se mais o menos de forma impotente ao declínio corporal.
Dizemos que o tempo da vida se desenvolve entre o nascimento e a morte.
Mas este tempo vivido é diferente do tempo medido. O tempo medido, o da idade
cronológica pouco têm a ver com o tempo vivido ou subjetivo. No entrecruzamento
destes dois tempos se encontra o sujeito que envelhece, aquele que além de medir o
tempo vivido, começa a contar o que lhe resta para viver e, no melhor dos casos, faz
planos para esse tempo que ainda está por vir. Assim, o tempo psicológico é a
percepção da passagem de nossa vida, e todo o que é vivo é perecedouro e está sujeito
a mudanças.
O tempo do envelhecimento está ligado à consciência da finitude, que se
instaura a partir de diferentes experiências de proximidade com a morte durante a vida
toda, mas que na velhice adquire a dimensão do iniludível. Em uma pessoa jovem este
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tipo de experiências provocam mudanças consideráveis, mas ele sabe que têm a vida
toda pela frente para reparar, modificar, construir. Na pessoa mais idosa o elemento
mais angustiante é o estreitamento do horizonte de futuro, já não tem mais todo o
tempo pela frente, só resta mais um pouco e pode não ser suficiente para abrigar tanto
desejo. Este tempo subjetivo é o tempo que interessa à psicanálise.
Neste sentido vale a pena repensar a questão da reminiscência, esta forma
especial de fantasia que se desenvolve especialmente na velhice mais avançada.
Contrariamente ao que se acredita, a reminiscência não representa um sinal de
decrepitude ou depressão. Ela realiza uma articulação entre as três dimensões
temporais outorgando ao ser um sentido de comando da realidade e continuidade do
ser.
A perda de objetos significativos de difícil substituição, somadas às
dificuldades provocadas pelas limitações físicas funcionais e a consciência de finitude
incrementam no idoso a necessidade de bem estar. Assim, a reminiscência pode ser
entendida como uma forma de exercício da memória histórica que será elaborativa se
achar um eco, uma escuta apropriada e um aproveitamento social, impedindo a
depressão do vazio de objetos. A reminiscência é a insistência da história.
Quando não é possível investir no porvir, o psiquismo se defende da
destruição investindo no passado idealizado. Assim, além de se manter vínculos no
presente, se evita que as lembranças se evaporem e a história subjetiva se perca sob os
efeitos da demência.
Não devemos confundir a reminiscência com a nostalgia onde a lembrança se
refere sempre a um objeto perdido, irrecuperável e em poder dos outros, como por
exemplo, a juventude. A nostalgia é uma experiência sempre dolorosa, que não
consegue recriar o prazer no ato de contar porque não pode recriar o objeto. O velho
nostálgico e deprimido fala de suas lembranças com tristeza e raiva enquanto o velho
reminiscente o faz sempre com um certo orgulho e satisfação.
Agora, de que falamos quando falamos de velhos? Falamos de um sujeito
psíquico em constante crescimento e evolução, altamente afetado pela representação
de um corpo que declina e pela consciência da finitude. Mas, estamos falando de um
limite e não de uma limitação. Limite que será o do corpo biológico que sofre uma
involução, mas não daquele outro que sabemos capaz de prazer, instrumento de amor
e que deverá ser incentivado a sentir e se sensibilizar com a proximidade dos outros e
a força dos vínculos.
Limite que será o da finitude elaborativa orientando investimentos adequados,
promovendo reflexão e não desespero, solidariedade e não solidão.
Limite enfim que não feche a porta à paixão sempre possível.
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Delia Catullo Goldfarb Psicóloga e psicanalista com mestrado pela PUC-SP e
doutorado em psicologia pela USP-SP. Tem especialização em Gerontologia pela
SBGG e FLACSO. Além de atuar em clínica particular é consultora do PNUD,
assessora em políticas públicas e criadora do curso “Psicogerontologia: fundamentos
e perspectivas” na COGEAE/PUC-SP. É membro fundador da Rede Ibero-americana
de Psicogerontologia e da Associação Nacional de Gerontologia. Como pesquisadora
se dedica principalmente aos temas: Alzheimer, depressão, cuidados e cuidadores,
demências, acompanhamento terapêutico com idosos, psicanálise e envelhecimento,
finitude, fragilidade, dependência, família e políticas públicas. Tem publicado os
livros "Corpo, tempo e envelhecimento" e "Demências" pela editora Casa do
Psicólogo, além de diversos artigos no Brasil e no exterior.
[email protected]
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