MAS O QUE SÃO GÊNEROS MESMO? CONCEPÇÕES DE PROFESSORES
DE LÍNGUA PORTUGUESA
Erica Poliana Nunes de Souza Cunha (PIBIC/REUNI)
Departamento de letras - UFRN
Fernanda de Moura Ferreira (PIBIC/CNPq)
Departamento de letras - UFRN
Orientadora: Maria da Penha Casado Alves
Departamento de letras - UFRN
INTRODUÇÃO
O ensino de Língua Portuguesa delineia-se em três eixos temáticos:
gramática, leitura e produção de textos, focalizando cada um deles um ponto em
específico da linguagem. Há uma polêmica em torno da organização desses eixos, por,
de um lado, alguns defenderem como ideal a compartimentação dos eixos em três
blocos como se fossem três disciplinas e, por outro lado, outros julgarem ilógico
compartimentar algo que está intricado pelo fenômeno da linguagem. Um dos
argumentos utilizados por aqueles que são a favor da separação gramática-leitura e
produção de textos-literatura é o de que a disciplina Língua Portuguesa teria conteúdo
em demasia para dar conta. Já os que são contra, afirmam que não há como abordar um
dos eixos sem tocar ou necessitar dos outros. Deixemos de lado um pouco esta
discussão e foquemos nas aulas de leitura e de produção de textos.
Tendo em vista que o documento oficial das Leis de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional diz que uma das finalidades do ensino médio é destacar “[...] a
língua portuguesa como instrumento de comunicação, acesso ao conhecimento e
exercício da cidadania” (seção IV, art. 36º, I), constatamos aí a importância dada à
disciplina. Entendida como meio de comunicação, a língua cumpre seu papel nas
modalidades escrita e falada. A modalidade escrita, não sendo natural como a fala, exige
treino e dedicação para sua aquisição. Isso posto, para que tenhamos escritores
proficientes é necessário que a escrita seja praticada e exercitada cotidianamente.
Atualmente, produção textual e gênero discursivo são temas que estão
andando de mãos dadas, devido ao ensino da escrita estar pautado na noção de gênero.
Isso porque o trabalho com gênero visa o social, a interação, fazendo com a produção
textual tenha interlocutores, esfera discursiva, veículo, entre outras características que
devem ser levadas em consideração no momento de produção de qualquer texto. Assim,
acredita-se ser o trabalho mais eficaz.
Sendo assim, este trabalho propõe-se a analisar as concepções que
professores de um curso de formação continuada apresentam acerca do gênero
discursivo. O presente artigo é um recorte da pesquisa intitulada “GÊNEROS
DISCURSIVOS: PRODUÇÃO, CIRCULAÇÃO, LEITURA E ANÁLISE EM SALA
DE AULA1”, realizada na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, sob a
coordenação da professora doutora Maria da Penha Casado Alves, que visa analisar
livros didáticos utilizados na rede pública de ensino, atentando para as concepções de
1
Neste projeto atuamos como bolsistas de Iniciação Científica.
gênero que eles trazem como também as concepções dos professores de língua materna
sobre a mesma temática.
ALGUMAS NOTAS SOBRE GÊNERO DISCURSIVO
A presença dos gêneros nas salas de aula tem sido cada vez mais acentuada,
tanto pelas recomendações feitas pelos PCN quanto pela profusão de pesquisas e a
consequente publicação desses estudos que têm o gênero discursivo/textual como objeto
de investigação. Esses estudos têm, quase sempre, apontado os benefícios de se adotar
uma abordagem de gêneros nas aulas, principalmente, de leitura e produção de textos.
Os gêneros discursivos são a concretização da língua. Sendo a língua
dialógica, é na dinâmica das relações sociais que a língua se constitui e os gêneros
discursivos emergem, uma vez que estes são enunciados relativamente estáveis e
circulam na sociedade. Todo enunciado toma forma dentro de um gênero discursivo e
este é corporificado através do enunciado, que sempre é concreto, sempre se
materializa, no caso da língua, seja por meio da fala ou da escrita.
A estabilidade do gênero discursivo reside no fato de que cada esfera
discursiva constrói seus próprios enunciados, que atendem às suas necessidades
comunicativas. No entanto, é preciso atentar para o fato de que a estabilidade é relativa,
tendo em vista que cada enunciado, independente do gênero a que pertence, é único e
irrepetível. Isso porque as condições comunicativas nunca se repetem, pensando que o
tempo é ininterrupto e não volta atrás e que as circunstâncias de produções jamais
acontecerão uma segunda vez. Porém, os enunciados costumam preservar o estilo, a
construção composicional e o conteúdo temático do gênero a que pertencem. Os três
elementos citados estão presentes indissoluvelmente em todo e qualquer enunciado e
são eles que determinam, além de outros fatores, em qual gênero discursivo um dado
enunciado se enquadra.
Além dos três elementos citados acima, os “tipos relativamente estáveis”,
como nos diz o filósofo 2 da linguagem Bakhtin, são caracterizados pela esfera
discursiva na qual circulam, pelas necessidades comunicativas a que se prestam, entre
outros. É importante ressaltar a diversidade de gêneros que existem na sociedade, sejam
orais ou escritos.
Em suma, os gêneros são a língua em uso e a expressão de sua dinâmica. São
frutos da interação verbal e das necessidades comunicativas da sociedade, que é criada e
recriada por meio da linguagem. A própria comunicação verbal se dá através dos
gêneros, pois segundo Bakhtin, fora de um gênero o sujeito não fala, não interage
verbalmente com outro. Isso já é motivo suficiente para que o gênero seja estudado
tanto nos centros de pesquisa e universidades quanto nas escolas. Bakhtin (2003),
ressaltando a relevância do estudo acerca da natureza dos enunciados e dos gêneros diznos que:
O estudo da natureza dos enunciados e dos gêneros discursivos é,
segundo nos parece, de importância fundamental para superar as
concepções simplificadas da vida do discurso, do chamado “fluxo
discursivo”, da comunicação, etc., daquelas concepções que ainda
dominam a nossa linguística. Além do mais, o estudo do enunciado
como unidade real da comunicação discursiva permitirá
2
O denominamos “filósofo” por ser esta a escolha feita pelo próprio Bakhtin em sua última entrevista.
compreender de modo mais correto também a natureza das unidades
da língua (enquanto sistema) – as palavras e orações. (p. 269)
ANÁLISE DO CORPUS
A sala de aula deve ser um ambiente de interação entre os alunos e o
conhecimento adquirido e acumulado ao longo dos milênios, sendo o âmbito escolar o
local propício para esse intercâmbio. Os textos são a ferramenta que servem de ponte
entre os alunos e o conhecimento e na sala de aula, não devem se restringir apenas
aqueles presentes no material didático, mas deve contemplar a diversidade que circula
socialmente. Os alunos devem ter contato com a abundância de gêneros que circulam
nas diversas esferas discursivas, tomando consciência de que em qualquer situação de
comunicação estão produzindo textos (gêneros) e é em contato com eles que assimilarão
de forma mais natural as características dos modelos composicionais adequados para as
diferentes situações comunicativas.
Para realçar a compreensão quanto à importância e o diferencial do ensino de
gênero, e não apenas das sequências textuais para a prática de escrita, os Parâmetros
Curriculares Nacionais trazem uma passagem que justifica o uso dessa concepção para
nortear as aulas de língua: “Ensinar a escrever textos torna-se uma tarefa muito difícil fora do
convívio com textos verdadeiros, com leitores e escritores verdadeiros e com situações de
comunicação que os tornem necessários.” (BRASIL, 1997, p. 28). A formação continuada dos
professores e um trabalho mais sistematizado em sala de aula é imprescindível para que os
discentes desenvolvam uma prática de escrita não unicamente endereçada ao professor, ou seja,
os textos produzidos na escola não se constituam em mero exercício para a correção gramatical
do professor. Assim, as práticas de sala de aula de leitura e escrita ao se nortearem por uma
concepção dialógica de linguagem, poderiam apresentar aos alunos uma atividade de leitura e
escrita mais significativa e atinente às demandas do mundo da vida.
Assim, esse trabalho se deteve na análise das concepções de professores de
um curso de especialização em Língua Portuguesa sobre a categoria “Gêneros
discursivos” a fim de compreender como essa concepção tem sido recebida e abordada
em sala de aula, considerando que desde os anos 90 os documentos oficiais sinalizam
para um trabalho que teria essa categoria como organizadora das atividades de leitura e
de escrita em sala de aula.
Entre os professores entrevistados sobre onde eles obtiveram as primeiras
informações a respeito da concepção de gênero: 20 dos professores tiveram acesso na
especialização, 7 entrevistados na graduação, 5 professores pelos PCN e 5 deles por
meio de cursos de atualização. Percebemos que muitos dos professores obtiveram o
primeiro contato com os estudos sobre gênero discursivo/textual na especialização,
evidenciando que a formação continuada é indispensável para que tenham acesso a
novas informações, metodologias e a produção científica na área em foco.
Com relação à concepção de gênero discursivo/textual, as respostas colhidas
indicaram diferentes níveis de domínio do conceito, mas em todos percebemos uma
superficialidade na construção dos seus dizeres sobre o tema. Nove dos vinte sete
entrevistados não responderam, um número considerado relevante, que nos levou a
interpretar como insegurança para conceituar ou apresentar uma concepção do que seria
essa categoria.
Observamos também que concepções de gêneros são divergentes e outras
semelhantes. Para exemplificar, seguem algumas das respostas:
P1 “São diferentes textos com determinadas características cada um”.
P2 “São estruturas basicamente específicas de um determinado tipo de
texto”.
Nestas duas passagens, notamos compreensões que se assemelham, pois
apresentam os gêneros como tipos de textos, como estruturas fixas. Podemos, assim, ter
duas interpretações: os entrevistados não os entendem como enunciados relativamente
estáveis, e sim como textos que possuem características fixas; ou que eles estão
aproximando as palavras “gênero” e “tipo” como sinônimos propositadamente. A visão
desses dois entrevistados diverge da compreensão deste outro informante que ressalta o
aspecto social do gênero:
P3 “São as diversas formas de se comunicar”.
A concepção desse professor é vaga, pois ele não especifica o que é o gênero
e apenas aborda a sua função, que é de veicular os atos de comunicação.
Outros entrevistados abordaram os aspectos sociais do gênero, conceituando
o seu caráter ideológico de veiculação de uma intenção, como ele mesmo diz,
veiculação de objetivos:
P4 “São as formas como os textos se apresentam em sociedade, com
objetivos e características próprias”.
Nesta resposta, percebemos também que ele compreende o texto como
possuidor de características fixas, e o mais importante de se notar nessa declaração é a
visão de que o gênero é construído socialmente, de acordo com as necessidades dos
falantes. Nenhum dos conceitos citados acima apresenta um embasamento teórico na
conceituação sobre o que é gênero discursivo. Porém, houve um entrevistado que
apresentou um grau de propriedade maior com uma dada teoria que desenvolve estudos
acerca da concepção de como os textos devem ser classificados:
P5 “Os gêneros são estruturas por sequências textuais e além disso, estão
inseridos em práticas sociais e circulam em diversas esferas, como por
exemplo, o gênero monografia circula na esfera acadêmica etc. O gênero
discursivo para Bakhtin são classificados em primários e secundários”.
O entrevistado discorre muito brevemente sobre algumas características dos
gêneros discursivos, mostrando-os como estruturas e também distinguindo, sem
conceituar, o que é sequência textual e o que é gênero discursivo, diferentemente de
algumas respostas acima. A resposta evidencia o caráter de concretização desses
enunciados por meio das práticas sociais e também que eles acontecem em
determinadas situações e contextos sociais que especificam e determinam como deve
ser construído o texto. Esse professor aparenta uma familiaridade com a teoria, pois cita
o nome do teórico e uma de suas categorizações.
Alguns dos participantes da pesquisa demonstraram uma superficialidade
para conceituar. Apenas falaram generalizadamente sobre as justificativas que levaram
o gênero para o ensino de produção textual. Na resposta abaixo, podemos ver tal
generalização:
P6 “São as diversas formas de se comunicar”.
Alguns apresentam confusão em suas respostas no momento da
conceituação:
P7 “São que trabalham diretamente com o estudo fala inserido na escrita”.
Essa resposta evidentemente não se apoia em nenhuma das teorias que
abordam a temática do gênero seja ele discursivo ou textual. Isso nos dá margem para
diferentes interpretações: o entrevistado pode ter se confundido por algum motivo que
nos é desconhecido; ele pode não ter a mínima ideia do que seja um gênero textual;
pode não ter base o suficiente para dar uma resposta minimamente satisfatória; entre
outros. Como sabemos, o conceito de gênero vai além da transposição da fala para a
escrita.
CONCLUSÃO
Dos 27 questionários utilizados nesta pesquisa, 9 entrevistados não
responderam a pergunta sobre a concepção de gênero. Os outros responderam, no
entanto, com frases curtas, na maioria das vezes, e sem clareza ao conceituar. Dentre
eles, houve quem apenas tecesse comentários sobre o gênero sem conceituá-lo, porém
todos afirmaram adotar uma perspectiva de gênero na prática de sala de aula.
Muitos professores obtiveram conhecimento da concepção de gênero
discursivo pela primeira vez na especialização. A pesquisa também mostrou que ainda
há uma confusão ao classificar o que é gênero, muitas vezes apresentando para ele a
terminologia de “tipos de texto”, além de não existir um delineamento concreto da
importância e da função de usar nas aulas de produção de texto a concepção de gênero
discursivo/ textual. Isso nos faz questionar a formação que os professores de Língua
Portuguesa receberam ou estão a receber e até mesmo o pouco investimento na
formação continuada de qualidade desses profissionais.
Uma outra constatação pode ainda ser aqui apresentada: apesar do suposto
uso inflacionado do termo e da profusão de publicações sobre essa temática, os
professores ainda não se sentem preparados para um trabalho que tenha o gênero
discursivo como organizador das atividades de leitura e escrita. Mesmo que ainda se
tenha o trabalho com gêneros como “modismo” e que estejamos todos sofrendo de uma
“generite” descontrolada, parece-nos que a moda dos gêneros ainda é prerrogativa para
poucos e a doença ainda não atingiu o nível de pandemia como se tem revozeado por
eventos de linguagem aqui e alhures. O que se pode concluir é que os professores do
ensino básico têm direito a uma formação continuada que os qualifique para um
trabalho com a leitura e a escrita que forme sujeitos letrados para o mundo que exige
cada vez mais leitores e escritores proficientes dos mais diversos gêneros (textos).
REFERÊNCIAS
BAKHTIN, M. Gêneros do Discurso. In:____. Estética da Criação Verbal. São Paulo:
Martins Fontes, 2003.
BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais:
língua portuguesa Secretaria de Educação Fundamental. – Brasília: 1997.
BRASIL. Lei de diretrizes e bases da educação nacional. Brasília: 1996. Disponível
em: http://portal.mec.gov.br/arquivos/pdf/ldb.pdf, 14/09/2010.
MACHADO, I. Gêneros discursivos. In: BRAIT, B. Bakhtin: Conceitos-chave. 2.ed.
São Paulo: Contexto, 2005.
Download

MAS O QUE SÃO GÊNEROS MESMO