Anais
II Encontro Nacional de Estudos da Imagem
12, 13 e 14 de maio de 2009 • Londrina-PR
PARA ALÉM DO CHOQUE VISUAL:
REPRESENTAÇÕES DA CULTURA TRADICIONAL JAPONESA ATRAVÉS DO ROCK
João Rodolfo Munhoz Ohara1
[email protected]
Orientador: Prof. Dr. André Luiz Joanilho
Resumo: Em meio ao visual kei – movimento que usava o visual e a música para, ao mesmo
tempo, criar um estilo propriamente japonês de rock e romper com os padrões e
estereótipos japoneses das décadas de 80 e 90 do século XX – surgiram algumas bandas que
mesclavam, em uma expressão essencialmente moderna, características de sua cultura
tradicional – de roupas a influências musicais. Este trabalho pretende analisar visualmente
algumas dessas bandas para (1) compreender as características do visual kei, (2) analisar
as releituras da cultura tradicional japonesa, e (3) poder estabelecer as questões sobre as
representações construídas a respeito desta cultura tradicional nos espaços dentro e fora
do Japão através da difusão das bandas estudadas.
Palavras-chave: Japão, indústria cultural, choque visual.
Abstract: Visual kei was born at the 80’s and 90’s of the 20th century, simultaneously rising
against Japanese social standards of living through music and flamboyant visual and
creating an unique Japanese rock style. Some visual kei bands mixed their different
clothes and colorful hairs, and their musical style, with characteristics of the traditional
culture of Japan. In this paper we will visually analyze these bands with “mixed themes”
to (1) comprehend the visual and musical characteristics of visual kei, (2) analyze the uses
of Japanese traditional culture by some bands and (3) establish the questions about the
representations of this traditional culture constructed in Japan and in other countries
through the diffusion of the studied bands.
Keywords: Japan, cultural industry, visual shock.
Considerado o primeiro movimento essencialmente japonês no rock (cf. YUN,
2005: p. 11), o visual kei surgiu no final da década de 80, sob influências musicais e visuais
tanto externas2 quanto internas3. Com o boom de popularidade na década de 90, novas
bandas surgiram no cenário, abordando inúmeros temas – e, entre tais temas, estava a
cultura tradicional japonesa. Nossa proposta neste trabalho, como parte de uma pesquisa
maior sobre o assunto, é analisar visualmente as releituras da cultura tradicional feitas por
algumas bandas e, com isso, chegar a três pontos: as principais características visuais do
visual kei, os principais traços da cultura tradicional japonesa recuperados e as
1
Graduando em História pela Universidade Estadual de Londrina (UEL).
Essas influências externas vieram principalmente do glam e do hard rock, embora possamos encontrar
também características do punk, do metal e até mesmo do jazz.
3
As influências internas vêm de bandas geralmente classificadas em uma espécie de “proto-visual kei”, como
DEAD END, D’ERLANGER e ZIGGY. Essas bandas já traziam muitas características visuais e sonoras presentes no
visual kei, mas ainda não formavam uma “cena musical”; outro ponto é que a própria nomenclatura do estilo
só surgiria em 1989, criada pela banda X JAPAN.
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representações criadas a respeito dessa cultura tradicional no próprio Japão e em outros
países.
A gênese do choque visual
Durante os anos 70 e 80, uma série de bandas surgiram na cena japonesa,
situadas em diversos estilos de rock (do metal ao post-punk), trajando roupas diferentes e
usando maquiagem e penteados extravagantes. Esse proto-visual kei já contava com as
páginas de várias publicações especializadas em rock, e seria nesse ambiente que surgiria a
cena visual, coroada por 2 momentos: a fundação de revistas específicas de bandas de rock
visual e a adoção do nome do estilo após o álbum “Blue Blood” da banda X JAPAN. Nesse
estágio, o visual kei estava ligado umbilicalmente ao metal e ao punk, estética e
musicalmente4. Com a chegada dos anos 90, criou-se um duplo movimento no cenário: um
boom na quantidade de grupos e a construção de uma identidade artística própria do
estilo. Algumas bandas seminais se apresentam nesse momento como a base dessa
construção identitária: LUNA SEA, apresentando novas influências a cada álbum, do rock
psicodélico ao jazz; Kuroyume, com uma estética musical muito peculiar, que logo se
tornaria a base de quase todas as músicas de bandas menores do período; e, por fim,
Malice Mizer, com o aspecto teatral, a influência do clássico, do rock gótico e,
posteriormente, da música eletrônica.
4
Deste ponto podemos citar os álbuns “BLUE BLOOD”, de 1989, da banda X JAPAN, e “La Vie En Rose”, do
mesmo ano, da banda D’ERLANGER.
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Imagem 1 - LUNA SEA: uma das bandas que definiu um “modelo” de visual kei nos anos 90.
(Fonte: Revista Fool’s Mate, setembro de 1992)
Imagem 2 – LUNA SEA (Fonte: Revista Fool’s Mate, maio de 1993)
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A banda LUNA SEA é largamente conhecida por ser uma das grandes bases do
visual kei; várias características visuais e sonoras presentes em seus trabalhos –
especialmente até 1996, considerado o ano de transição da banda, onde o visual passa a
ser mais leve e as músicas mais voltadas para o grande público – poderão ser encontradas
na maioria das bandas dos anos 90, a década do visual por excelência. Observa-se
(conforme as imagens 1 e 2) o uso de maquiagem pesada, produção de penteados
diferentes e um largo trabalho de contrastes – entre o preto, o branco e uma terceira cor.
Outra característica muito marcante é o visual que beira – e às vezes chega até – a
androginia. Musicalmente, há a presença marcante do baixo, que elabora livremente sua
linha, em contraste com a tradição norte-americana, onde o baixo serve de suporte para as
guitarras. O próprio uso de efeitos nas guitarras das bandas de visual kei nos anos 90 se
constitui mais livremente em relação às bandas ocidentais, de forma que se obtêm
sonoridades muito peculiares em algumas músicas.
Assim, formou-se um “modelo” que seria seguido por muitos durante toda a
década de 90 – e até hoje, em alguns casos – e que atingia em cheio o estereótipo social de
seriedade, passividade e introspecção dos japoneses5. Pode-se inferir uma relação entre o
visual kei e a indústria de animes e mangás – prestes a atingir seu auge – mas acreditamos
que tal relação não resiste à verificação, haja vista que o rock visual se constituiu como
um estilo de sucesso mercadológico muito específico6. Outra relação que não nos parece
muito clara é a estabelecida entre o visual das bandas e a tradição do teatro kabuki (cf.
YUN, 2005: p. 14), uma vez que a aceitação social deste foi bem mais profunda que a do
rock visual – que acabou mais ligado a uma cultura juvenil (cf. BILIATTO, 2008: p. 30-40).
O Neo-Japanesque
Em 1999, quando o visual kei já se encontrava em certa decadência comercial,
surgiu em Tokyo uma banda cujo conceito se baseava no resgate da cultura tradicional
japonesa. Com letras inspiradas em lendas ou construídas a partir de alguns modelos já
conhecidos na literatura tradicional do Japão, a banda Kagrra, (com a vírgula) buscava
trazer o “wa”, cuja tradução mais ou menos precisa seria “atmosfera japonesa” (cf. JaME7,
5
Cf. as entrevistas disponíveis nos portais JaME, MUSIC JAPAN e JRock Revolution; os três portais são fontes
muito importantes – e confiáveis – a respeito do rock japonês, contando com uma base de dados atualizada e
com entrevistas exclusivas com as bandas.
6
Por “sucesso mercadológico muito específico”, queremos chamar a atenção para o fato de que pouquíssimas
bandas atingiram o mercado mainstream sem abrir mão de características vitais do rock visual, como a
androginia ou um estilo musical mais livre e solto.
7
O Portal JaME é um portal internacional cuja base de dados se dedica exclusivamente à música japonesa,
gozando de grande reputação entre artistas e fãs. Freqüentemente o portal disponibiliza entrevistas inéditas
feitas durante as turnês japonesas e internacionais das bandas.
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2007). Essa releitura da tradição japonesa, mesclada ao visual kei, essencialmente
moderno, resultou no que a própria banda chamou de neo-japanesque.
Imagem 3 – Kagrra,: principal banda a fazer releituras da cultura tradicional japonesa
dentro do visual kei (Fonte: YUN, 2005, p. 55)
Musicalmente, o Kagrra, traz uma sonoridade leve, ainda – em linhas gerais –
influenciada pelo visual kei clássico dos anos 90, o que significa dizer que o baixo é bem
destacado e livre das guitarras. Somado a isso, a banda trouxe o uso de escalas orientais e
de instrumentos tradicionais – em especial o koto, um instrumento de treze cordas em
formato de mesa – para ajudar a criar sua atmosfera orientalizada8. Visualmente, a banda
lançou mão de roupas e acessórios mais tradicionais em conjunto com os cabelos e as
maquiagens modernas, além de uma produção cenográfica bem elaborada, para reforçar o
“wa”.
Observa-se muita influência, nas temáticas abordadas pela banda, do período
Heian – o período que é classicamente tratado como florescimento prodigioso das artes no
Japão, sendo considerado como a caracterização mais comum da tradição japonesa (cf.
8
Pode-se ter como exemplo mais claro algumas músicas mais recentes, como “Utakata”, “Uzu” ou “Paraizo”,
mas a atmosfera do “wa” já se apresenta desde a demo-tape de 1999.
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SANSOM, 1973: p. 188-273; HALL e MASS, 1988)9. Soma-se a isso o fato do vocalista da
banda – e principal compositor – ser fã de histórias japonesas de terror, cujas raízes se
encontram por entre lendas populares.
Imagem 4 – Kagrra,: a releitura da cultura tradicional é mais facilmente identificável
através do uso de kimonos e adereços (Fonte: Revista SHOXXbis #6, maio de 2006)
Assim, observa-se a reconstrução do que seria a cultura tradicional japonesa
entre os jovens japoneses e estrangeiros. Essa ressignificação parte das balizas japonesas
em relação ao seu passado, de sua própria representação de passado, e torna-se produto
cultural a ser consumido em muitos outros lugares. Coloca-se, então, uma questão: esse
produto cultural realmente reconstrói representações? E, se sim, quais representações da
cultura tradicional são construídas pela juventude do Japão e de outros países através
destas bandas? É na busca por tais respostas que nossa pesquisa se situa; entre a história e
a antropologia, entre tradição e modernidade, o que tentamos compreender é a
construção de representações a respeito do passado através de produtos culturais
considerados “menores”, demonstrando, conforme nossa hipótese teórica, que o consumo
9
Temos consciência das conseqüências de se utilizar uma bibliografia com tamanho distanciamento temporal,
mas devemos lembrar que dois fatores dificultam nossa pesquisa neste sentido: primeiramente, a produção das
“grandes sínteses” encontra-se, há décadas, em decadência, e a situação da História da Ásia é ainda mais
crítica quanto a isso; em segundo lugar, a disponibilidade de periódicos na área é bastante escassa, o que
dificulta o contato com produções mais recentes sobre a área.
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da indústria cultural – como qualquer outro tipo de consumo – não é passivo, não dispensa
o receptor da atividade de ressignificação e não se dedica ao empobrecimento do universo
mental e cultural de seu público10.
10
Para tanto, dialogamos com as teorias de Michel de Certeau, Pierre Bourdieu e Roger Chartier, a respeito das
práticas culturais e da dispersão da atividade criativa através do consumo.
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Referências Bibliográficas
BILIATTO, Carusa Gabriela Dutra. “O além dos além é um transbordo”. Do tabu à
transgressão: representações da morte na cultura gótica. Londrina: UEL, 2008. Monografia
de conclusão de curso (bacharelado em Ciências Sociais), 2008.
BOURDIEU, Pierre. A Distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: EDUSP; Porto
Alegre: Zouk, 2008.
CERTEAU, Michel de. A Cultura no Plural. 3ª ed. Campinas: Papirus, 2003.
________. A Invenção do Cotidiano. Rio de Janeiro: Vozes, 1994.
CHARTIER, Roger. A História Cultural: Entre Práticas e Representações. Lisboa: DIFEL,
1990.
HALL, John W. e MASS, Jeffrey P. Medieval Japan: essays in institutional history. Stanford:
Stanford University Press, 1988.
PORTAL JaME. Entrevista antes do show JRock Revolution. Los Angeles, Maio 2007.
Disponível em: < http://www.jame-world.com/us/article.php?id=2313>.
SANSOM, George B. Japan: a short cultural history. Tokyo: Bunkyo-ku, 1973.
YUN, Josephine. Jrock, ink. Berkeley: Stone Bridge Press, 2005.
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