A MARgem - Revista Eletrônica de Ciências Humanas, Letras e Artes / ISSN 2175-2516
“OVONOVELO”: O VELHO OVO NO NOVO
Mayra Berto Massuda (UNESP-Araraquara)1
Dedicamos este artigo a uma breve reflexão acerca da poesia concreta e visual de Augusto de
Campos. Tal estudo é fruto de uma pesquisa de iniciação científica departamental desenvolvida desde
Agosto de 2008, sob orientação do professor doutor Antônio Donizeti Pires (FCL – UNESP/Araraquara), e que
tem por objetivo uma análise diacrônica da visualidade em poemas selecionados do livro Viva Vaia (19491979) do referido autor. O artigo privilegia a análise do poema “Ovonovelo”, escrito em 1955 e publicado no
livro citado, de maneira a salientar a importância da poesia de vanguarda brasileira na releitura de poéticas
anteriores, a inovação formal proposta pelo Concretismo e principalmente, a importância da visualidade
para a poesia concreta.
A poesia de Augusto de Campos apresenta uma gama variada de intertextos, formas, recursos
visuais, sonoros e hipermidiáticos. O autor tangencia os grandes clássicos da literatura mundial moderna,
devido principalmente ao seu trabalho como tradutor, ensaísta e teórico da área dos estudos literários. Foi
um dos três grandes nomes do Concretismo brasileiro – incluem-se no grupo seu irmão, Haroldo de
Campos, e o poeta Décio Pignatari – após o fim do movimento, continuou produzindo poesias
essencialmente experimentais, muitas vezes em parceria com seu filho, o músico Cid Campos, ou grandes
nomes da literatura e música brasileira contemporânea, como Arnaldo Antunes e Tom Zé.
A destacada produção poética do autor dentro do Movimento da Poesia Concreta, ou
Concretismo, fez saltar-me aos olhos o livro Viva Vaia (1949-1979), que reúne as poesias escritas antes da
articulação do movimento, durante toda a efervescência neo-vanguardista e após o fim do programa
proposto pelos seus principais poetas.
Viva Vaia é composto por 18 séries de poemas, organizados de acordo com o ano de publicação,
ficando visível a transformação histórica que acontece em sua poética e sendo assim possível realizar uma
análise diacrônica de como se dá a abordagem da visualidade dentro da poesia do autor. A visualidade
aparece como o cerne da poesia visual e um dos principais recursos da poesia concreta, lembrando também
a devida importância da sonoridade para o segundo tipo de poesia.
Partimos então da problemática da diferenciação entre poesia visual e poesia concreta, proposta
pelo teórico Philadelpho Menezes. Para o autor, poesia visual é “toda a espécie de poesia ou texto que
utilize elementos gráficos para se somar às palavras, em qualquer época da história e em qualquer lugar”
(MENEZES, 1998, p. 14), já a poesia concreta constituiu a principal produção artística do Concretismo,
movimento literário brasileiro da década de 1950, que fez dos recursos visuais a pedra de toque de sua
poética, uma poesia que se queria e se dizia essencialmente visual e sonora, ou como definira Décio
Pignatari, uma poesia “verbivocovisual”.
Reconhecemos assim, a poesia visual, ou a visualidade na poesia, como um tipo de poética
atemporal, sem “rima, estrutura métrica, estilos identificados por figuras de retórica” (MENEZES, 1998, p.
64). Seus primeiros registros datam da Grécia do período helenístico, e podem ser encontrados nas obras de
Símias de Rodes e Dosíades de Creta. No Brasil, a poesia visual teve aparições esparsas durante o período do
Barroco, Romantismo e do Simbolismo, e foi através de uma vertente construtivista, geométrica e dedicada
ao rigoroso uso de novas técnicas, que a poesia visual se tornou a forma programática central de um
movimento literário de vanguarda da segunda metade do século XX – o Concretismo.
UNESP – Faculdade de Ciências e Letras – Campus de Araraquara – Pesquisadora de Iniciação Científica do Departamento de
Literatura. E-mail: [email protected]
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Gonzalo Aguilar destaca a importância que os principais poetas do movimento deram à
visualidade, justificando sua assertiva através do modo como foram feitas as primeiras mostras públicas dos
poemas produzidos pelo grupo:
Em dezembro de 1956, realizou-se a Exposição Nacional de Arte Concreta no Museu de Arte
Moderna de São Paulo. Participaram do evento artistas plásticos e escultores, e os poetas
concretos expuseram seus poemas-cartazes, posicionando-se como grupo de vanguarda.
Formavam esse grupo os integrantes de Noigandres (Augusto e Haroldo de Campos, Décio
Pignatari e Ronaldo Azeredo) e os poetas Ferreira Gullar e Wlademir Dias Pino [...] (AGUILAR,
2005, p. 55)
A importância da visualidade para a poesia concreta fica clara também se considerarmos a
influência que o movimento sofreu do manifesto da arte concreta, publicado em 1930 por Van Doesburg,
que filiava as artes ao “geometrismo organizado segundo uma estrutura matemática do quadro, marcado
pela simetria da composição [...], traduzidos no binômio ‘cor/forma não-figurativa’” (MENEZES, 1991, p. 61).
Na assimilação dos conceitos da arte concreta, a poesia do Concretismo fez a opção pela transformação no
modo de comunicação de seus significados através de uma visualidade estrutural construtiva.
Desse modo, a poesia concreta, como projeto programático sustentado pela poesia visual e
sonora, visa:
explorar as camadas materiais do significante (o som, a letra impressa, a linha, a superfície da
página; eventualmente, a cor, a massa) e, por isso, levam a rejeitar toda concepção que
esgote nos temas ou na realidade psíquica do emissor o interesse e a valia da obra. A poesia
concreta quer-se abertamente antiexpressionista (BOSI, 1997, p. 532, grifo do autor)
A partir dos manifestos publicados pelos três principais poetas e teóricos do Concretismo,
reunidos no livro Teoria da poesia concreta, podemos depreender que a poesia Concreta baseava-se não só
em seu próprio projeto e teoria, mas também em um Paideuma de autores que serviram de referência para a
produção do movimento. Seriam eles: Ezra Pound, pelo uso do método ideogrâmico de composição,
valorizando a essência do léxico empregado; e. e. Cummings, pela inserção de uma nova sintaxe que se
desintegrava a partir do fonema; Mallarmé, pelo seu método de “subdivisões prismáticas da idéia” e sua
nova espacialização do poema; e James Joyce, pela atomização do efeito da linguagem e associação de
vozes simultâneas. Os poetas do Concretismo se basearam também nas obras dos futuristas, dadaístas e dos
brasileiros Guimarães Rosa, João Cabral de Melo Neto e Oswald de Andrade.
O Concretismo atualiza as propostas inovadoras da poesia moderna. Assimila seus conceitos de
dissonância, impessoalidade, construção racional da poesia e fim da subjetividade intimista, que, numa
atitude extremada, culminaram na crise do verso proposta por Mallarmé e Baudelaire. A solução seria a
substituição do ritmo verso-linear por um novo ritmo espácio-temporal, numa representação
“verbivocovisual” que permitisse uma compreensão sintética-ideogrâmica do poema.
Assim, visando atender às exigências de uma nova linguagem que se fizesse compreender no
caótico mundo pós-Segunda Guerra, o Concretismo vai inovar nos métodos de composição literária nos
campos semântico, sintático, lexical, morfológico, fonético e tipográfico.
Com base nos estudos da teoria de Décio Pignatari e Gonzalo Aguilar, conseguimos identificar
três fases da poesia visual dentro da poesia concreta. A primeira fase é a orgânica, na qual o processo de
composição do poema no espaço da página “tende à fisiognomia e a um movimento imitativo do real
(motion)” (CAMPOS; PIGNATARI, 1975, p. 89), o que Philadelpho Menezes define como poesia figurativa,
recurso amplamente utilizado na poesia visual antes do surgimento do Concretismo. Na segunda fase, a
matemática, considerada por Pignatari como um estágio mais avançado e racional de evolução formal, o
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poema “tende a resolver-se em puro movimento estrutural, estrutura dinâmica (movement).” (CAMPOS;
PIGNATARI, 1975, p.89). São duas formas de representar o conflito da identificação entre “fundo e forma”,
que Pignatari chama de isomorfismo. Na primeira há a imitação do objeto tematizado através do
mimetismo formal, já na segunda, há uma correspondência mais complexa entre o objeto tematizado e a
sua reconstrução estrutural analógica, na qual predomina a forma geométrica e matemática, segundo
Gonzalo Aguilar. A primeira é estática, a segunda é dinâmica. A primeira é imitativa, a segunda é analógica.
E por fim, junto às agitações políticas e ideológicas da década de 1960, surge a fase denominada
virada participante, na qual o processo de composição da poesia concreta declara um engajamento nas
questões sociais e a “abertura da forma aos materiais que a homogeneização [do concretismo] havia
excluído” (AGUILAR, 2005, p.129). Ou seja, é o período que se dá o engajamento tanto da questão social,
como de materiais e experiências formais diferentes. A revolução não se dá apenas no campo temático, mas
também na visualidade e nos materiais utilizados para compor as poesias do período, já que, segundo
Maiakóvski, “sem forma revolucionária não há arte revolucionária” (MAIAKÓVSKI apud AGUILAR, 2005, p.
94).
Assim, temos que a poesia concreta é o movimento literário que muito se valeu da poesia visual,
apresentando visualmente três fases bem delimitadas: a orgânica, a matemática e a virada participante. A
partir do estudo das poesias dessas três fases depreendemos a reflexão proposta nesse artigo.
“Ovonovelo” (1955), como poesia visual, enquadra-se na primeira fase – a orgânica – do
Concretismo, já que seus recursos visuais se baseiam na figurativização e no mimetismo formal do objeto
representado. Realizaremos então, uma leitura analítico-interpretativa desse poema de Augusto de
Campos, retirado da série homônima, presente no livro Viva Vaia (1949-1979).
O poema de Augusto de Campos aborda o antigo questionamento da humanidade quanto à
finitude e à transformação da vida e das coisas.
A inovação formal aparece desde o seu título, no qual as palavras “ovo” e “novelo” justapostas
sugerem uma relação íntima entre o significado das duas. Esse é um exemplo do uso do método
ideogrâmico de compor baseado no ideograma chinês e muito utilizado pelos poetas concretos como
inspiração para a estrutura de seus poemas. Segundo Augusto de Campos, “neste novo processo de compor,
duas coisas reunidas não produzem uma terceira coisa, mas sugerem alguma relação fundamental entre
elas” (CAMPOS; PIGNATARI, 1975, p. 23).
Para Haroldo de Campos, o uso do método ideogrâmico - “justaposição direta de elementos em
conjuntos geradores de relações novas [...]” (CAMPOS; PIGNATARI, 1975, p. 99) – vem do:
[...] desejo de substituir simplesmente uma ordem linguística por outra, mas que parte da
consideração do instrumento ideográfico como o processo mental de organização do poema
em exata consonância com a urgência por uma comunicação mais rápida, direta e econômica
de formas verbais que caracteriza o espírito contemporâneo, anti-discursivo e objetivo por
excelência. Por isso também chamamos o poema que concebemos como uma unidade
totalmente estruturada e maneira sintético-ideogrâmica (todos os elementos sonoros,
visuais e semânticos – verbivocovisuais – em jogo) de poema concreto. (CAMPOS;
PIGNATARI, 1975, p. 99)
Assim, no título do poema, o método ideogrâmico é utilizado através da “combinação e a
apresentação direta de imagens por justaposição (caráter sintético)” (AGUILAR, 2005, p.187), método
definido e utilizado por Ezra Pound e que foi transposto à técnica de composição do poema concreto para
suprir a necessidade de movimento e da comunicação de uma estrutura dinâmica.
Em “Ovonovelo” é a idéia representada pelo ovo, ou o novelo que, partindo da intertextualidade
com o poema “O ovo” (325 a. C.), de Símias de Rodes, é descrita e retrabalhada modernamente, numa
abordagem mimética da forma dos objetos representados. Segundo Philadelpho Menezes, Augusto de
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Campos atualiza o discurso da transformação do velho no novo através do conceito da circularidade e do
infinito. As palavras saem umas de dentro das outras (ovo – novo – novelo – velho), renovando a temática
da transformação das coisas e da poesia.
No discurso, a estrutura formal do poema é extremamente dependente do tema. A forma gráfica
do poema imita o ovo, que representa a transformação do velho no novo pelo princípio de circularidade.
Esse processo de transformação dá-se tanto no tocante da vida, como no da palavra. Vemos assim, não só a
representação da eterna busca do homem moderno pela completude do seu ser, mas também, numa
abordagem metalinguística, a transformação do discurso e a busca pela perfeição da palavra.
Na primeira estrofe, o poeta aborda a transformação do que é velho no que é novo, fazendo
referência ao “feto” ainda na “fonte”, no útero, “na jaula dos joelhos”, “dentro do centro”. Essa primeira
novena, não apenas tem o formato de ovo, mas as idéias citadas acima também remetem a imagens
ovaladas. Assim, para o eu-lírico, o início da vida – e da palavra – se dá a partir da transformação do que já
existia no que pode ainda ser criado, ampliando o universo dos possíveis, no que Sartre chama de
“correlativo transcendente” (BOSI, 2001, p. 35)
Na segunda estrofe, as idéias tornam-se mais orgânicas – são citadas a nudez e a carne crua, na
tentativa de encontrar a origem da essência da vida e possivelmente da poesia. Apesar de continuarem
sugerindo as mesmas imagens ovaladas da estrofe anterior, o foco transforma-se no zero (o nada) e no
nascimento de um bebê: “crua criança incru/stada no cerne da/ carne viva en”. É o momento do nascimento
da vida e da palavra.
Assim, a imagem do poeta poderia também se associar à de uma gestante. Isso é resultado da
poética moderna iniciada em Mallarmé, Baudelaire e Rimbaud na segunda metade do século XIX. O poeta
não é mais o ser inspirado, mas um demiurgo responsável pela criação do mundo, da realidade
representada no poema. Assim como a mulher grávida, que forma o feto durante nove meses, o poeta é
aquele que racionalmente constrói o poema.
A terceira estrofe segue, cronologicamente, para o momento da amamentação do bebê, em que
“os seios são/ peitos nos/ dedos”. Analogamente, o poeta alimenta sua obra com imagens poéticas e
intertextos, para que ela cresça e sobreviva. Palavras como “ponto” e “seio”, que remetem a imagens
circulares, aparecem mais uma vez.
Já a última estrofe parece sugerir o fim da vida, “no/ turna noite/ em torno em treva/ turva sem
contorno/ morte negro nó cego”, que culmina com o renascimento a partir dessa mesma matéria orgânica
que “se torna/ sol”. A busca sombria e noturna da perfeição - na vida e na poesia – se associa também à
dificuldade de aceitação da poética questionadora que os poetas concretos inauguraram. E por fim um
prenúncio: após passar pelas trevas, o poema pode renascer.
Podemos entender o ovo tanto como uma metáfora para o início da vida, como para a “criação
poética”. A primeira, referindo-se à eterna transformação do velho no novo, ao ciclo de vida-morte de todos
os seres vivos, a uma pessoa dando origem a outra e assim perpetuando sua essência. E a segunda,
referindo-se à transformação ou releitura do discurso poético, da revisitação de poéticas anteriores.
Através de um discurso metalinguístico, o autor faz intertexto com a forma e a temática do
poema de Símias de Rodes, inserindo-o nos conceitos da poética moderna, atualizando seu discurso através
da inovação da linguagem e forma poética propostos pelo Concretismo. Assim, o autor tenta mostrar que o
mais antigo poema visual pode alimentar poéticas posteriores, num trabalho de transformação e de
atualização do que é velho no que é novo. Sendo assim, é pertinente lembrar o pensamento do poeta e
tradutor, Haroldo de Campos, que afirma que a poesia é uma releitura contextualizada, sincrônica, de obras
literárias das épocas anteriores.
Na macro-estrutura do poema, temos 37 versos que se dividem em três estrofes de nove versos,
ou seja, três novenas e uma estrofe de 10 versos (uma décima). A sua metrificação é irregular, porém tendese a iniciar cada estrofe com um número pequeno de sílabas métricas, que aumenta gradativamente e
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depois reduz novamente, formando a figura geométrica de um círculo em cada uma delas. Essa escolha feita
pelo autor tem a intenção de destacar visualmente o aspecto circular dos objetos representados no poema e
no qual a sua temática se resume.
As sílabas métricas mais fortes (tônicas) são aquelas que apresentam “e” e “o” como vogais,
sendo essa assonância fundamental para o ritmo do poema. O formato gráfico dessas letras também remete
à circularidade, conceito presente tanto na visualidade, quanto na temática do poema. Ou seja, o som e a
visualidade do poema são complementares na composição da unidade simbólica do mesmo. Em outras
palavras, a circularidade da forma remete-nos também à circularidade da leitura e do significado.
O poema apresenta poucas rimas consoantes, em que há identidade total do som, e isso é
evidência do questionamento do fazer poético tradicional pelo projeto poético do Concretismo. Porém,
devido à assonância, temos uma vasta gama de rimas toantes, em que há a identificação apenas entre o
som das vogais. Também por conta da assonância, as rimas internas acontecem constantemente. Para
ilustrar vemos: “ovo novelo/ novo no velho”; “ano mero nu / mero do zero”; e “lenda ainda antes /
entreventes”. E a aliteração aparece apenas na primeira estrofe, com a repetição dos fonemas consonantais
representados pelas letras “n”, “lh” e “f”.
A visualidade aparece em “Ovonovelo”, antes de tudo, baseada na proposta de fim do verso e
inovação da distribuição gráfica do poema, iniciada por Mallarmé em Un Coup de Dés (1897). Lembrando
que o poema de Campos foi escrito em 1955, antes da Exposição Nacional de Arte Concreta, e bem no início
da articulação do Movimento da Poesia Concreta, o que demonstra um sutil e ainda não radical rompimento
com a estrutura gráfica tradicional do verso. No poema, há o abandono da morfologia e sintaxe
convencionais em favor de versos segmentados e idéias justapostas sem conectivos, porém, apesar de haver
inovações nos campos gráfico, morfológico e sintático, os versos ainda aparecem organizados linearmente e
ligam-se uns aos outros através de enjabement. Assim, “o sentido salta de um verso para o seguinte, sem
obedecer à pausa final” (GUELFI, 1995, p. 11), algumas vezes gerando ambiguidade. Vemos isso em: “nu /
des do nada”; “ano mero nu/ mero do zero”; “crua criança incru/ stada no cerne”; “carne viva en/ fim nada”;
“no / turna noite”; e em “sono do morcego nu/ ma sombra que o pren/ dia preta letra que”. Desse modo, há
a convivência, no mesmo poema, da sintaxe caótica – percebida nas elipses, interrupções e hipérbatos – e
do caminho contínuo, guiado pelo enjambement.
Na intertextualidade com o poema de Símias, que tematiza a busca da perfeição na poesia
metaforizada na perfeição da forma do ovo, faz-se necessário, para Augusto de Campos, a repetição da
poesia visual figurativa, mesmo que a idéia do projeto do Concretismo seja evitar o mero mimetismo. Se o
poema não tivesse a forma do objeto representado, talvez se perdesse a importância do intertexto e todo o
esforço poético empregado na construção da metáfora que o ovo representa. Desse modo, o poema pode
representar mimeticamente a forma do ovo e retomar a poesia se Símias para sugerir a transformação de
poéticas velhas em novas sem que seja necessário citar a obra ou o autor. No texto “Poesia concreta –
organização”, de Décio Pignatari (1975), há uma referência a esse poema de Augusto de Campos como
pertencente à fase orgânica do Concretismo, já que as suas imagens visuais imitam a forma circular
abordada na temática do poema. Concordo com tal classificação, já que historicamente, o poema de
Augusto de Campos insere-se no momento de organização do Concretismo, quando ainda não havia o
declarado rigor formal. “Ovonovelo” foi escrito no contexto de experimentação formal, e a sua composição
visual figurativa serve mais para representar como a vanguarda se relaciona com a tradição, alimentando-se
do mais antigo poema visual (“O ovo”), do que para fixar a estrutura padrão da poesia concreta.
Ao realizar essa releitura, atualizada e inovadora, de um poema visual da Grécia helenística,
Augusto de Campos demonstra os primeiros passos da inclusão da visualidade em sua poesia dita concreta.
Atualiza também o discurso da poesia moderna, da eterna busca da essência das coisas e da poesia, da
impessoalidade do eu-lírico que agora questiona o caos frente às agitações sociais, políticas, ideológicas e
artísticas do mundo moderno.
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Através da visualidade, Augusto de Campos, ao mesmo tempo em que resgata diacronicamente
a tradição, para que essa não seja esquecida, numa atitude não só de valorização, mas de questionamento,
une sincronicamente essa tradição ao contexto literário que vivencia. Diana Toneto, ao referir-se à obra A
máquina do mundo repensada (2000), de Haroldo de Campos diz que:
o poema [A máquina do mundo repensada] mostra que os movimentos literários fundam-se
na tensão entre a medida do que guardam (passado) e o alcance do que profetizam (futuro),
mediados pelo presente de sua ocorrência: memória e invenção; história e make it new.
Sincronia e diacronia. (TONETO, 2008, p. 14, grifo da autora)
No poema de Augusto de Campos, que em partes é semelhante à proposta de Haroldo, a poesia
é fruto da transformação do velho no novo, num ciclo infinito de renovação de estéticas e movimentos
literários que retomam a tradição, cada um à sua maneira, ora aproximando-se, ora afastando-se dela.
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“Ovonovelo” de Augusto de Camppos (CAMPOS, 20000, p. 94)2
2
Foi utilizada a cópia
c
digitalizada do poema para que não fosse perdidoo nenhum dos elementos visuais exploorados pelo autor.
Seção
o Estudos, Uberlâ
ândia, ano 3, n. 6, p. 13-20, jul./dezz. 2010
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REFERÊNCIAS:
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CAMPOS, Augusto de. Viva vaia (1949-1979). São Paulo: Ateliê editorial, 2000.
CAMPOS, Augusto de; CAMPOS, Haroldo de; PIGNATARI, Décio. Teoria da poesia concreta. São Paulo: Duas Cidades, 1975.
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TONETO, Diana Junkes Martha. Cânone repensado: poesia e sincronia em a máquina do mundo, de Haroldo de Campos. Todas as
letras, São Paulo, v. 10, n. 1, p.12-19, 2008.
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