Violência x Cidade
O papel do Direito Urbanístico
na violência urbana
PAULO AFONSO CAVICHIOLI CARMONA
Direito, Transdisciplinaridade & Pesquisas Sociojurídicas
VIOLÊNCIA X CIDADE
O papel do Direito Urbanístico
na violência urbana
Paulo Afonso Cavichioli Carmona
Violência x Cidade
O papel do Direito Urbanístico
na violência urbana
Daniela
Prefácio
Campos Libório Di Sarno
MADRI | BARCELONA | BUENOS AIRES | São Paulo
Coleção Direito, Transdisciplinaridade & Pesquisas Sociojurídicas
Coordenador: Bruno Amaral Machado
Conselho Científico Editorial da Coleção (FESMPDFT): Adilson Abreu Dallari (PUC-SP) /
Antonio Henrique Graciano Suxberger (Uniceub/FESMPDFT) / Bruno Amaral Machado
(coordenador Uniceub/FESMPDFT) / Cristina Zackseski (UnB) / Ela Wiecko (Unb) / Evandro
Piza Duarte (UnB) / Fabio Roberto D’Ávila (PUC-RS) / Gabriel Ignacio Anitua (Universidade
de Buenos Aires) / Iñaki Rivera Beiras (Universidade de Barcelona) / Ingo Wolfgang Sarlet
(PUC-RS) / Jefferson Carús Guedes (Uniceub) / Julio Zino Torrazza (Universidade de
Barcelona) / Luis Manuel Fonseca Pires (PUC-SP) / Márcio Pugliesi (PUC-SP) / Máximo
Sozzo (Universidade Del Litoral) / Miguel Etinger de Araújo Júnior (UEL) / Nilo Batista
(UERJ) / Paulo Gustavo Branco Gonet (IDP/FESMPDFT) / Roberto Bergalli (Universidade de
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Violência x cidade: o papel do direito urbanístico na violência urbana
Paulo Afonso Cavichioli Carmona
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Carmona, Paulo Afonso Cavichioli
Violência x cidade: o papel do direito urbanístico na violência urbana / Paulo Afonso
Cavichioli Carmona ; prefácio Daniela Campos Libório Di Sarno - 1. ed. - São Paulo:
Marcial Pons ; Brasília, DF: Fundação Escola Superior do Ministério Público do
Distrito Federal e Territórios, 2014.
(Direito, Transdisciplinaridade & Pesquisas Sociojurídicas)
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-66722-28-4
1. Direito urbanístico - Brasil. 2. Planejamento urbano - Brasil. I. Fundação Escola
Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios. II. Título. III. Série.
14-15184
CDU: 349.44
© Paulo Afonso Cavichioli Carmona
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Impresso no Brasil [09-2014]
À minha eterna namorada Flávia, com amor, admiração e
gratidão por sua compreensão, carinho, presença e incansável
ajuda ao longo do período de elaboração deste estudo.
Aos meus pais, Afonso e Ivonete, e às minhas irmãs, Ana
Elisa e Maria Barbara, pelo apoio, exemplo e incentivo.
Ao meu querido afilhado, Paulo Afonso Correia Lima
Siqueira Filho, que completou seu terceiro ano de vida,
esperança de um futuro melhor.
AGRADECIMENTOS
À Professora Dra. Daniela Campos Libório Di Sarno, pela atenção e
apoio durante o processo de definição e orientação.
Ao Dr. Francisco Roberto Alves Bevilacqua, que, nos anos de convivência, muito me ensinou, contribuindo para meu crescimento científico e
intelectual.
Aos meus amigos de pós-graduação Edgar Guimarães, Sérgio Banhos,
Fernando Canhadas e Rodrigo Colnago, pelo incansável companheirismo.
Aos Drs. Nelson Saule Jr., Luis Manuel Fonseca Pires, Adilson Abreu
Dallari e Daniel Ferreira, pelas inestimáveis contribuições prestadas por
ocasião da banca de defesa de tese.
Ao povo colombiano, que tão bem me recebeu, em especial Dr. Hugo
Acero Velásquez, pela enorme colaboração.
À Professora Maria Derci da Silva Nóbrega, mariliense como eu, pela
excelente revisão gramatical.
À Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e
Territórios, inaudita Instituição do saber, à qual sirvo com orgulho.
Não é um dia para política.
Guardei esta oportunidade, o meu único compromisso de
hoje, para falar-lhes brevemente sobre a epidemia de violência
que assola os EUA e que outra vez mancha nossa pátria e nossas
vidas. Isso não diz respeito a nenhuma raça em particular.
As vitimas da violência são negros e brancos, ricos e
pobres, jovens e velhos, famosos e desconhecidos.
Elas são, acima de tudo, seres humanos a quem outros
seres humanos amavam e de quem necessitavam. Ninguém, não
importa onde viva ou que faça, pode estar certo de quem será o
próximo a sofrer com o ato absurdo de derramamento de sangue.
E, no entanto, isso continua, e continua e continua a acontecer nesse país. Por quê? O que se consegue com a violência?
O que se cria com ela?
Cada vez que a vida de um americano é tirada sem necessidade por outro, não necessariamente americano, seja isso feito
em nome da lei, ou desafiando a lei, por um homem ou por um
grupo, a sangue frio ou por impulso, num ataque de violência ou
como resposta à violência, cada vez que rasgamos um quadro
de uma vida que outro homem com dor e sofrimento pintou para
si próprio e para seus filhos, cada vez que fazemos isso, toda
nação se degrada. Porém, parecemos tolerar o crescente nível
de violência que ignora nossa humanidade e nossa suposta civilização.
Muitas vezes defendemos a arrogância e a desordem e
aqueles que abusam da força. Várias vezes desculpamos os que
querem construir sua própria vida sobre os sonhos destruídos de
outros seres humanos.
Mas uma coisa é certa: a violência gera violência, a
repressão gera represálias e só a purificação de toda nossa
12
Paulo afonso cavichioli Carmona
sociedade pode remover essa enfermidade de nossas almas.
Porque, quando ensina um homem a odiar e a temer o seu
próximo, quando ensina que é um homem inferior pela sua cor
ou sua crença, ou pela ideologia política que segue, quando
ensina que os que são diferentes dele ameaçam sua liberdade e
seu trabalho, ou sua casa, ou sua família, você o está ensinando
a tratar os outros não como cidadãos, mas como inimigos a
quem não deve ajudar, mas derrotar, subjugar e dominar.
Ou seja, aprendemos a ver nossos irmãos como estranhos,
com que dividimos uma cidade, mas não uma comunidade.
Homens que dividem o mesmo espaço físico, mas não os mesmos
objetivos. É impossível acreditar...
Aprendemos a compartilhar apenas um medo, só um desejo
comum de nos afastarmos um dos outros. Só o impulso comum
de responder às diferenças com força.
Nossa vida neste planeta é muito breve. A missão a se
cumprir é grande demais para permitir que essa violência siga
florescendo nesta nossa terra.
É claro que não vamos resolver isso com um programa,
nem com uma resolução, mas, quem sabe, podemos lembrar, nem
que seja por um segundo, que os que vivem conosco são nossos
irmãos, que compartilham conosco o mesmo breve momento de
vida, que eles procuram, como nós, nada mais que a oportunidade de viver a vida, com o propósito e felicidade, ganhando a
satisfação e a realização que puderem.
Sem dúvida, esse vínculo de destino comum, esse vínculo
de metas em comum pode começar a nos ensinar algo. Seguramente podemos aprender, pelo menos, a olhar à nossa volta
e realmente ver o próximo, e, certamente, podemos começar a
nos esforçar um pouco mais para curar nossas feridas e nos
tornarmos irmãos e compatriotas outra vez.
(Discurso de Robert Francis Kennedy, senador americano, candidato a presidente dos EUA,
proferido em 5 de junho de 1968, no Hotel Ambassador, em Los Angeles. Poucos minutos após
o discurso, ao sair pela cozinha do hotel, ele foi atingido por três tiros disparados por Sirhan
Bishara, jovem radical palestino, vindo a falecer na manhã do dia seguinte. Robert, conhecido
como Bobby ou RFK, era o irmão mais novo de John Fitzgerald Kennedy (JFK), do qual foi
secretário de justiça, entre 1961-63. O trecho transcrito foi retirado do filme Bobby, de 2006,
escrito e dirigido por Emilio Estevez, que conta os bastidores do discurso.)
ILUSTRAÇÕES
TABELAS
Tabela 1
Gráfico da extensão de vias adequadas ao trânsito de bicicletas em
relação à extensão do sistema viário em cidades do Brasil ................72
Tabela 2
Vítimas de guerras entre 1816-1965 ..................................................82
Tabela 3
Fatores de composição do IGP – Índice Global de Paz .....................154
Tabela 4
Evolução do Brasil no Índice Global de Paz de 2007-2011 ...............161
Tabela 5
Percentual de população urbana por continente em 2000 e 2025 ......165
Tabela 6
Países com maior população em favelas ............................................167
Tabela 7
30 maiores cidades do mundo em população em 2011 ......................169
Tabela 8
Cidades brasileiras entre as 600 maiores do mundo em 2011 ............171
Tabela 9
30 maiores cidades do mundo em densidade populacional em 2007 . 172
14
Paulo afonso cavichioli Carmona
Tabela 10
Cidades brasileiras entre as 250 mais densas do mundo em 2007 ..... 173
Tabela 11
As 10 cidades com maior violência homicida do mundo em 2009 .... 178
Tabela 12
Ranking das 30 eco-cidades Mercer de 2010 .....................................182
Tabelas 13 e 14
Ranking Mercer – 5 melhores cidades por continente .......................184
Tabela 15
Ordenamento das Unidades Federadas por taxas de homicídio (em
100 mil) na população total – Brasil, 1998-2008 ...............................186
Tabela 16
Ordenamento das capitais por taxas de homicídio (em 100 mil) na
população total – Brasil, 1998-2008 ...................................................189
Tabela 17
Ordenamento das capitais por taxas de homicídio (em 100 mil) na
população de 15 a 24 anos – Brasil, 1998-2008 .................................190
Tabela 18
Taxa de homicídios na população total, por Região Metropolitana –
Brasil, 1998-2008 ...............................................................................191
Tabela 19
Crescimento % anual do número de homicídios por área geográfica
e períodos – Brasil, 1980-2008 ...........................................................194
Tabela 20
Evolução das taxas de homicídio na população total segundo área
geográfica – Brasil, 1998-2008 ..........................................................195
Tabela 21
Estatísticas das taxas de homicídios na Colômbia – 1999-2008 ........212
Tabela 22
Taxas de homicídios na Colômbia e Bogotá – 1980-2000 .................213
Tabela 23
Taxas de homicídios nos principais centros urbanos da Colômbia –
1995-2000 ...........................................................................................213
ilustrações
15
Tabela 24
Taxa de polícias por 100 mil habitantes em diversas cidades ............225
Tabela 25
Gráfico da evolução do homicídio na zona El Cartucho no centro de
Bogotá ................................................................................................257
Tabela 26
Esquematização do Modelo Medellín de Bom Governo e Desenvolvimento Social Integral ......................................................................265
Tabela 27
Relações do Programa Paz y Reconciliación: regreso a la legalidad
com outras instituições .......................................................................269
Tabela 28
Gráfico do número de pessoas que circulam por hora numa faixa de
tráfego em São Paulo, 2007 ................................................................315
Tabela 29
Gráfico da qualidade do entorno físico e atividades exteriores ..........317
Tabela 30
Distribuição de acidentes de trânsito no Brasil ..................................323
FIGURAS
Figura 1
Mapa do deficit habitacional total, segundo Unidades da Federação .65
Figura 2
Exemplo de pichação na cidade de São Paulo ...................................75
Figura 3
Índice Global de Paz (Global Peace Index) de 2010 .........................158
Figura 4
Índice Global de Paz (Global Peace Index) de 2011 .........................158
Figura 5
Índice Global de Paz (Global Peace Index) de 2012 .........................160
Figura 6
Índice Global de Paz (Global Peace Index) de 2013 .........................160
16
Paulo afonso cavichioli Carmona
Figura 7
Área do Plano de Desenvolvimento Coordenado das Aglomerações
Urbanas no Delta do Rio Pérola, China .............................................164
Figuras 8 e 9
Fotografias de contrastes em Mumbai-Índia ......................................169
Figura 10
Diagrama do grau de periculosidade causado pela poluição atmosférica ......................................................................................................176
Figura 11
Fotografia de Bogotá vista do Monserrate, Bogotá ............................209
Figura 12
Fotografia de rua de Bogotá ...............................................................216
Figuras 13 e 14
Fotografias do sistema carcerário de Bogotá ......................................233
Figura 15
Gráfico das áreas de ação do Projeto Missão Bogotá .........................240
Figuras 16 e 17
Carrera 15 antes e depois da intervenção urbanística, Bogotá ...........244
Figuras 18 e 19
Exemplo de recuperação do espaço urbano, Bogotá ..........................245
Figuras 20 e 21
Fotografias do trecho da Avenida Jiménez, no centro de Bogotá,
antes e depois da intervenção urbanística ...........................................246
Figuras 22 e 23
Fotografias do sistema de transporte público antes e depois do
Transmilenio .......................................................................................247
Figura 24
Mapa da ilustração do sistema de ciclovias de Bogotá ......................249
Figura 25
Fotografia da fachada da Biblioteca Pública El Tintal, Bogotá .........252
ilustrações
17
Figura 26
Fotografia da praça da Biblioteca Pública El Tintal, Bogotá .............253
Figuras 27 e 28
Fotografia do interior da Biblioteca Pública El Tintal, Bogotá ..........254
Figuras 29 e 30
Fotografias do Bairro Santa Inês antes da intervenção urbanística ....255
Figura 31
Fotografia do Parque Terceiro Milênio após a intervenção na zona
de El Cartucho ...................................................................................256
Figura 32
Fotografia do Parque Metropolitano Simon Bolívar, Bogotá .............259
Figura 33
Fotografia da vista aérea de Medellín .................................................261
Figuras 34 e 35
Fotografias Los Pájaros de Fernando Botero, Praça San Antonio,
Medellín .............................................................................................263
Figura 36
Fotografia do campo de futebol sintético em Granizal, Comuna 2,
Medellín .............................................................................................266
Figuras 37 e 38
Fotografias do Programa Força Jovem, Comuna 13, Medellín ..........272
Figura 39
Fotografia do Parque Biblioteca Espanha, Santo Domingo, Medellín 274
Figuras 40 e 41
Fotografias do Metrocable, Medellín .................................................278
Figura 42
Fotografia do Córrego Juan Bobo depois da intervenção urbanística 279
Figuras 43 e 44
Fotografias da Consolidação Habitacional da Quebrada Juan Bobo,
Medellín .............................................................................................280
18
Paulo afonso cavichioli Carmona
Figuras 45 e 46
Fotografias do Passeio urbano da Rua 107 antes e depois da intervenção urbanística, Medellín ..............................................................281
Figura 47
Fotografia do Morro de Moravia, Medellín ........................................283
Figuras 48 e 49
Realocação de famílias do Morro Moravia e Edifício La Aurora ......285
Figuras 50 e 51
Fotografias de La Bermejala antes e depois da implantação do Parque Linear, Medellín ..........................................................................285
Figuras 52 e 53
Fotografias comparativas das cidades do Rio de Janeiro (esquerda)
e Medellín (direita) .............................................................................287
Figura 54
Tira de Laerte «Não cabe mais nenhum carro nesta cidade» .............326
SUMÁRIO
PREFÁCIO – Daniela Campos Libório Di Sarno ....................................25
APRESENTAÇÃO ....................................................................................27
INTRODUÇÃO .........................................................................................29
Capítulo I
NOÇÃO GERAL DE DIREITO URBANÍSTICO
1.1 Conceito de Direito Urbanístico, urbanismo, urbanização e urbanificação......................................................................................... 37
1.2 Identificação da ordem jurídico-urbanística .................................. 44
1.2.1 Princípio da função social da propriedade .......................... 45
1.2.2 Princípio da função social da cidade ................................... 52
1.2.3 Princípio da obrigatoriedade do planejamento participativo ......................................................................................... 54
1.2.4 Princípio da justa distribuição dos ônus decorrentes do
processo de urbanização ...................................................... 56
1.2.5 Princípio da coesão dinâmica .............................................. 57
1.2.6 Princípio da cooperação entre os setores público e privado ......................................................................................... 58
1.3 As funções urbanísticas e as Cartas de Atenas .............................. 61
1.3.1 A Carta de Atenas de 1933 ................................................. 61
1.3.2 A nova Carta de Atenas ...................................................... 62
1.3.3Habitação ............................................................................ 63
20
Paulo afonso cavichioli Carmona
1.3.4Trabalho .............................................................................. 68
1.3.5Circulação ........................................................................... 69
1.3.6Recreação ............................................................................ 74
Capítulo II
A VIOLÊNCIA
2.1 Considerações preliminares ........................................................... 79
2.2 Conceito e objeto de violência ...................................................... 83
2.3 Violência e poder na visão de Hannah Arendt .............................. 91
2.4 Violência urbana: uma construção contemporânea ....................... 95
2.5 Multicausalidade da violência urbana ........................................... 98
2.5.1 Homo sapiens ou homo violens? ......................................... 100
2.5.2 Complexidade das causas da violência ............................... 103
2.5.3 Causas sociais: a pobreza e a segregação do espaço urbano ......................................................................................... 104
2.5.4 Causas culturais: a cultura da violência e os meios de comunicação............................................................................ 110
2.5.5 Causas econômicas: a desigual distribuição de renda e a
questão da impunidade ........................................................ 115
2.5.6 Causas biopsicológicas: a desproporcionalidade das condutas violentas ..................................................................... 119
Capítulo III
TIPOS DE VIOLÊNCIA
3.1 Considerações preliminares ........................................................... 125
3.2 Espécies da violência .................................................................... 126
3.2.1 Espécies de violência de acordo com a OMS ..................... 126
3.2.2 Espécies de violência de acordo com a natureza ................ 127
3.2.3 Espécies de violência de acordo com Michaud .................. 127
3.3 Formas de expressão da violência ................................................. 131
3.3.1 Violência física ................................................................... 131
3.3.2 Violência sexual .................................................................. 132
sumário
21
3.3.3 Violência psíquica ............................................................... 133
3.3.4 Violência moral ................................................................... 135
3.3.5 Violência financeira ............................................................ 135
3.3.6 Violência institucional ........................................................ 136
3.3.7 Violência simbólica ............................................................. 136
3.4 Figuras extremadas da violência ................................................... 143
3.4.1Gênesis ................................................................................ 143
3.4.2 Extermínio (guerra, massacre e genocídio) ......................... 144
3.4.3Terrorismo ........................................................................... 147
Capítulo IV
A RELAÇÃO DA VIOLÊNCIA COM O CRESCIMENTO URBANO
4.1 A violência urbana no mundo ....................................................... 153
4.1.1 Análise da violência global ................................................. 153
4.1.2 Comparação do Brasil com outros países ........................... 161
4.1.3 A urbanização do mundo: metropolização dos países do
Sul ....................................................................................... 162
4.1.4 As melhores e as piores cidades do mundo ......................... 176
4.2 A violência urbana no Brasil ......................................................... 185
4.2.1Introdução ........................................................................... 185
4.2.2 Nas capitais e regiões metropolitanas ................................. 188
4.2.3 Nas pequenas e médias cidades: a interiorização da violência ........................................................................................ 191
Capítulo V
CONFLITO URBANO E VIOLÊNCIA NA COLÔMBIA:
EXEMPLO DE MEDELLÍN E BOGOTÁ
5.1 Considerações gerais sobre a Colômbia ........................................ 199
5.2 A presença marcante da violência na história da Colômbia .......... 201
5.3 Bogotá: anatomia de uma transformação ...................................... 209
5.3.1Introdução ........................................................................... 209
5.3.2 Análise da política de segurança e de convivência ............. 216
22
Paulo afonso cavichioli Carmona
5.3.3 Urbanismo com fins sociais e sua contribuição à melhoria
da segurança ........................................................................ 241
5.3.3.1Introdução ............................................................... 241
5.3.3.2 Recuperação do espaço público .............................. 243
5.3.3.3 Transmilenio: sistema de transporte em massa ...... 247
5.3.3.4 Promoção do uso da bicicleta ................................. 248
5.3.3.5 Investimento em educação e construção de bibliotecas públicas........................................................... 250
5.3.3.6 Recuperação do centro histórico ............................ 254
5.3.3.7 Construção e reabilitação de parques ..................... 258
5.4 A experiência de Medellín ............................................................ 261
5.4.1Introdução ........................................................................... 261
5.4.2 Da capital mundial dos homicídios ao urbanismo social .... 264
5.4.3 Programa de Paz e Reconciliação ....................................... 267
5.4.4 Projetos Urbanos Integrais .................................................. 272
5.4.4.1 Noções gerais .......................................................... 272
5.4.4.2 Programa de Melhoramento Integral de Bairros: o
caso de Juan Bobo .................................................. 277
5.4.4.3O macroprojeto de intervenção integral do bairro
Moravia ................................................................... 282
5.4.4.4 Transferibilidade da experiência ao Brasil.............. 287
Capítulo VI
O PAPEL DO DIREITO URBANÍSTICO E A VIOLÊNCIA URBANA
6.1 O Direito Urbanístico e o bem-estar dos habitantes ...................... 295
6.2 A desordem urbana como agressão às funções urbanísticas garantidoras de qualidade de vida na cidade ..................................... 296
6.3 Políticas públicas garantidoras das funções urbanísticas e minimizadoras dos delitos urbanos ....................................................... 298
6.3.1 O planejamento urbanístico e violência urbana: uma relação indissociável.................................................................. 298
6.3.2 O lazer e sua eficácia no combate à violência urbana sofrida e praticada por jovens ..................................................... 303
sumário
23
6.3.3 Garantia do trabalho e de moradia digna com políticas públicas sociais eficazes para o combate à violência urbana .. 309
6.3.4 A mobilidade urbana como direito de acesso universal à
cidade segura ....................................................................... 314
CONCLUSÃO ........................................................................................... 327
bibliografia ....................................................................................... 332
PREFÁCIO
O presente trabalho teve sua origem há anos. Ainda estudante de
mestrado, o autor, sempre curioso com o saber, procurava entender além das
linhas, além das palavras do professor. Despertou para o tema iniciado em
pequena parte de minha tese de doutorado: violência urbana.
O destino jogou-lhe no problema, pois, ao se tornar juiz em região periférica altamente adensada, conviveu e conheceu todo tipo de história, vivida
por uma população desassistida, hipossuficiente e vivendo com um padrão
de violência em seu cotidiano impossível de ser tolerado como algo normal e
aceitável.
Veio a reflexão: tal violência tem conexão com o espaço em que se
vive? A desordem, o caos urbano e a fragmentação na prestação dos serviços
públicos criam um espaço próprio para a produção de violência? Essa violência
existiria se o lugar fosse ordenado, eficiente e belo?
Sem se descuidar do fato de que o ser humano, por si só, é capaz de
produzir violência extrema e aparentemente sem motivo, reforçado pelo fato
de que o autor é juiz criminal e conhece bem tais meandros, foi procurar
resposta à sua reflexão. Iniciou, então, seu trabalho de doutorado.
Seu trabalho de campo foi brilhante. Foi a Bogotá e a Medellín checar de
perto as intervenções urbanísticas que foram realizadas nos bairros violentos,
pobres e desordenados dessas cidades. Conversou com pessoas, tirou fotos,
levantou dados comparativos. O autor não só reveste-se de coragem ao tratar
do assunto, mas mostra-se um incansável pesquisador. Buscou em fontes
diversas, nacionais e estrangeiras, dados que demonstrassem os elementos de
produção de violência e seus sintomas (os crimes). Obteve um volume tal de
dados e escritos que chegou perto do milhar.
26
Paulo afonso cavichioli Carmona
O ineditismo de seu trabalho está resumido neste livro. Responde sua
investigação ao comprovar, quantitativa e qualitativamente, que a profunda
desordem urbana é espaço propício para a produção e receptora singular de
violência sistemática e da prática de crimes.
A importância do trabalho deve ir além. Tal comprovação poderá subsidiar novos paradigmas no trato da violência urbana, multiplicando elementos
que combatam esse mal contemporâneo e que nos encarcera à própria casa,
com a elaboração de políticas públicas compatíveis com os fatos e sua origem.
Enfim, o autor cumpriu brilhantemente o objetivo a que se propôs e
contribui para um tema multidisciplinar por natureza, abordagem essa ainda
tão escassa no Direito pátrio.
São Paulo, outubro de 2013.
Daniela Campos Libório Di Sarno
Consultora Jurídica. Mestre e Doutora em Direito Urbanístico
(PUC-SP). Pós-doutorado na Universidad de Sevilla.
Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico (IBDU).
Professora da PUC-SP.
APRESENTAÇÃO
O presente livro originou-se de tese de doutoramento em Direito do
Estado, área de concentração em Direito Urbanístico, defendida em 25 de
outubro de 2012 no âmbito do programa de pós-graduação da Faculdade
de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, perante banca
examinadora integrada pelos ilustres professores doutores Daniela Campos
Libório Di Sarno (orientadora), Adilson Abreu Dallari, Nelson Saule Júnior,
Luis Manoel Fonseca Pires e Daniel Ferreira, tendo logrado aprovação com
nota máxima.
O tema desenvolvido «A Violência Urbana e o papel do Direito Urbanístico» foi fruto de diversas inquietações advindas da atividade profissional
e social. Explica-se: o autor, magistrado desde abril de 2000, passou, a partir
de fevereiro de 2005, a atuar na área criminal, de início como juiz titular da
3.ª Vara Criminal de Ceilândia – DF e posteriormente como titular da Vara
Criminal e Tribunal do Júri do Riacho Fundo – DF, onde está atualmente
lotado.
Ressalta-se que algumas modificações foram realizadas no texto original,
por sugestão da banca examinadora, a começar pelo subtítulo do trabalho, que
fora invertido para melhor expressar o conteúdo da tese. Essa proposta, aliás,
partiu do Prof. Adilson Abreu Dallari, genial como sempre.
Por fim, o leitor perceberá uma abordagem multidisciplinar, pois «o
sentido social do urbanismo moderno coloca-o como disciplina interdisciplinar», tal como assentado por Toshio Mukai.1 Ademais, o fenômeno
da violência urbana também possibilita diversas abordagens. Assim, foram
1
Mukai, Toshio. Direito e legislação urbanística no Brasil (História-Teoria-Prática). São
Paulo: Saraiva, 1988, p. 5.
28
Paulo afonso cavichioli Carmona
trazidas as contribuições de arquitetos, urbanistas, sociólogos, filósofos,
juristas, engenheiros, cientistas políticos, antropólogos, historiadores, psicólogos etc.
Com efeito, Nicolescu, autor do «Manifesto da Transdisciplinaridade»,
ensina que «a pluridisciplinaridade diz respeito ao estudo de um objeto de uma
mesma e única disciplina por várias disciplinas ao mesmo tempo. (...) Com
isso, o objeto sairá assim enriquecido pelo cruzamento de várias disciplinas».
O autor explica, ainda, que, enquanto a pluridisciplinaridade trata de diversas
perspectivas sobre um mesmo objeto, a interdisciplinaridade diz respeito à
transferência de métodos de uma disciplina para outra.1
Brasília-DF, abril de 2014.
Paulo Afonso Cavichioli Carmona
Juiz de Direito (TJDFT). Mestre e Doutor em Direito Urbanístico
(PUC-SP). Membro e atual coordenador do Centro-Oeste do Instituto
Brasileiro de Direito Urbanístico (IBDU). Membro do Conselho Deliberativo
da Funpresp-Jud (mandato 2012-2014). Professor de Direito Administrativo
e Urbanístico dos Cursos de Especialização da Fundação Escola Superior do
Ministério Público do Distrito Federal Territórios (FESMPDFT). Professor
de Direito Administrativo e Urbanístico do Mestrado, Especialização e
Graduação do Centro Universitário de Brasília (Uniceub).
1
Nicolescu, Basarab. Manifesto da transdisciplinaridade. Trad. Lucia Pereira de Souza. São
Paulo: Triom, 1999, p. 52-53.
INTRODUÇÃO
«A violência é o último estágio do humano», afirma com sabedoria o poeta
pernambucano Heron Moura: «A violência, quando deflagrada sem controle e
numa corrente, não é parte do humano – é o fim dos elos, não havendo partes
discerníveis. Portanto, é uma contradição intrínseca a articulação de uma estética da violência: o poema-revólver, o poema-Kalashnikov».2
A violência urbana, assunto do momento, está em toda parte, em todos os
noticiários, em uma centena de livros publicados todos os anos.
Inicia-se esta pesquisa científica com angustiantes questionamentos.
Mais recentemente, especialistas passaram a discutir sobre a relação entre
violência e urbanização. Tal relação é real? No momento em que irrompe a
violência em algum lugar da cidade, tem-se a noção exata do que ocorre?
Nos bairros pobres – a periferia, a favela, o cortiço – onde nasceram
verdadeiras cidades informais e reside parte considerável da população
mundial, certamente a violência encontra seu espaço.3
2
Moura, Heron. Poesia e violência. Disponível em: <http://www.heronmoura.com/
blog/?p=29>. Acesso em: 17.01.2011. O fuzil Kalashnikov, assim denominado em homenagem
ao seu criador, o comunista russo Mikhail Kalashnikov, também é chamado de AK-47, é a arma
de fogo mais usada no mundo.
3
Dados do Censo 2010 realizado pelo IBGE mostram que 11,4 milhões de brasileiros (6% da
população) viviam nos chamados aglomerados subnormais, ou seja, assentamentos irregulares,
conhecidos como favelas, invasões, baixadas, ressacas, mocambos e palafitas, com mais de 50
habitantes e com falta de serviços públicos e de urbanização. O estudo também indica que havia
6.329 desses aglomerados espalhados por 323 dos 5.565 municípios do país. Disponível em:
<http://www.censo2010.ibge.gov.br>. Acesso em: 15.01.2012. Esses números, no entanto, não
correspondem à realidade, pois estão subestimados, haja vista o critério adotado pelo IBGE,
que exige mais de 50 habitantes para considerar aglomerado como subnormal. A ONU-Habitat,
30
Paulo afonso cavichioli Carmona
Mas os problemas envolvendo a violência urbana são de natureza
complexa ou a questão é simples, porém com respostas complexas?
Não é de se questionar como os homens apreciam tanto as grandes
cidades, se as metrópoles são tão cruéis com seus habitantes? Por que o ser
humano é cada vez mais obstinado a viver nas cidades, se elas estão tão
violentas?
Ademais, por que há tanta violência em nossas sociedades, mesmo sob o
regime democrático? Quem são os responsáveis por tamanha insegurança em
nossas cidades? Como é possível torná-las menos violentas e mais seguras?
E o que é violência de uma cidade? É a do meio construído ou de seus
habitantes? Se for dos habitantes, por que apenas uma parcela é violenta?
Aliás, todo ser humano é capaz de atos violentos ou é possível separar os
habitantes violentos dos pacíficos?
A violência é um fenômeno atual ou sempre existiu? Deve-se falar em
«violência urbana» ou em «violências urbanas»? Há uma espetacularização
da violência urbana pela mídia? Se a resposta é positiva, o que dificulta a
implantação de uma cultura da paz?
A visão dos excluídos sociais – aqueles a quem comumente se atribui
a autoria da violência urbana, mas que são, ao mesmo tempo, vítimas do
fenômeno – deve ser levada em conta ou o problema é técnico, devendo ser
resolvido pelos especialistas?
O objetivo desta obra é estabelecer a possível relação entre o morar nas
cidades e a produção da violência social, bem como apontar a possibilidade de
contribuição do Direito Urbanístico nesse tema.
É certo que se deve reconhecer que a violência segue intrinsecamente
ligada a inúmeros atos humanos ao longo da história e que não é um fenômeno recente, da modernidade. Mas certamente a violência urbana é fruto da
nossa época, da nossa nova condição urbana, de homo urbanus. Ou seria homo
violens?
A cidade não é um câncer, mas está doente. É preciso reconhecer.
Além disso, a acelerada e caótica urbanização dos países latino-americanos, africanos e asiáticos criou bolsões de miséria nas cidades do chamado
«Terceiro Mundo» e, portanto, de certa espécie de violência urbana, ou
porque não foi feito planejamento nenhum ou porque ele foi absolutamente
insuficiente ou ineficaz.
por exemplo, estimou que a população brasileira vivendo em favelas é da ordem de 45,09
milhões de pessoas.
introdução
31
A saída não está na produção de cidades fragmentárias e desiguais, com
muros altos, condomínios fechados e propriedades protegidas pelo aparato
tecnológico.
«Nenhuma cidade deveria ser habitável se não oferece a seus habitantes uma certa segurança física, psicológica e social», exorta um trecho
de conclusão da Assembleia Mundial dos Habitantes, denominada Ciudad
Segura, realizada no México em outubro de 2000.
É evidente que a segurança de uma cidade não deve restringir-se a uma
parcela de seus habitantes e tampouco concentrar-se nas mãos da polícia, mas
deve ser dividida entre todos e assumida por todos, sem nenhuma forma de
discriminação.
Na verdade, cabe repensar a violência das cidades de forma alternativa,
indo além da questão penal ou penitenciária, sob pena de ver a gestão de
segurança pública levada ao fracasso.
De outra parte, a miséria é em si uma violência da sociedade globalizada
e «civilizada». No entanto, muitos países atribuem a culpa da violência aos
pobres e traduzem isso por meio de operações como «tolerância zero», medida
implantada originalmente pelo prefeito de Nova York, Rudolph Giuliani, na
década de 90, e isso causou elevado custo aos direitos humanos. Com a criminalização da miséria, abriu-se espaço para o preconceito racial e a brutalidade
policial.4 É que a violência urbana não pode ser vista e considerada como um
fenômeno isolado, longe da urbanização caótica, da privatização dos espaços
públicos ou da segregação social e racial.
Assim, nesta obra, de início será analisada a ordem urbanística constitucional, sua identificação e o papel que a Magna Carta reservou ao Direito
Urbanístico e sua autonomia. Avaliam-se, ainda, os princípios informadores
do Direito Urbanístico e as funções urbanísticas elementares.
Em seguida, faz-se análise dos diversos aspectos da violência, tais como
conceito, objeto, causas e tipologia.
Analisar-se-á, ainda, a relação da violência com o crescimento urbano,
apontando, dentro da análise da patologia das cidades, os índices de criminalidade em diversos níveis: mundial, latino-americano e brasileiro.
4
Os dados sobre quem são os prisioneiros nos Estados Unidos corroboram essa argumentação:
o relatório da Agência de Justiça Criminal da Cidade de Nova York para o ano de 2003 mostra
que negros e latinos representaram 78% do total de pessoas presas, número que cresceu para
81% em 2004. Em ambos os anos, mais de 80% do total dos casos foram crimes leves ou
contravenções, o que pode tornar Nova York uma cidade mais segura, mas também mais
intolerante.
32
Paulo afonso cavichioli Carmona
A seguir, será feita uma abordagem sobre a experiência colombiana no
conflito urbano, procurando ressaltar pontos importantes na atuação de Bogotá
e Medellín, que possam servir de exemplo para as cidades brasileiras.
Passadas essas etapas, será feita uma abordagem acerca do ponto central
da presente obra, a partir da análise do pensamento de autores que têm estreita
conexão com o tema proposto, como Hannah Arendt e a banalização da
violência, Jan Gehl e sua proposta de humanização do espaço urbano e Jane
Jacobs e a morte e vida das grandes cidades. Em seguida, esboçam-se políticas públicas protetivas das funções urbanísticas e minimizadoras dos delitos
urbanos.
A par disso, como método de interpretação, adotar-se-á essencialmente
o sistemático, que se completa com o teleológico, sem se desgarrar de outras
diretrizes hermenêuticas acessórias, por ser este cientificamente mais seguro.5
O sistema adotado, ou seja, o método de análise, será a tópica jurídica
ou argumentação tópica, proposta por Theodor Viehweg, que a define como
«uma técnica de pensar por problemas, desenvolvida pela retórica».6 Vale
dizer, parte-se do problema para a norma e não desta para o problema, pois a
tópica consiste na arte de pensar por meio de problemas (a violência urbana e
urbanização) para ensinar.7
5
Nesse sentido, ensina o nosso maior mestre da exegese, Carlos Maximiliano, que «o processo
sistemático encontra fundamento na lei de solidariedade entre os fenômenos coexistentes. Não
se encontra um princípio isolado, em ciência alguma; acha-se cada um em conexão íntima com
outros. O Direito objetivo não é um conglomerado caótico de preceitos; constitui vasta unidade,
organismo regular, sistema, conjunto harmônico de normas coordenadas, em interdependência
metódica, embora fixada cada uma no seu lugar próprio. De princípios jurídicos mais ou menos
gerais deduzem corolários; uns e outros se condicionam restringem reciprocamente, embora
se desenvolvam de modo que constituem elementos autônomos operando em capôs diversos.
Cada preceito, portanto, é membro de um grande todo; por isso do exame em conjunto resulta
bastante luz para o caso em apreço». No tocante ao elemento teleológico, explica o jurista,
«considera-se o Direito como uma ciência primariamente normativa ou finalística; por isso
mesmo a sua interpretação há de ser, na essência, teleológica. O hermeneuta sempre terá em
vista o fim da lei, o resultado que a mesma precisa atingir em sua atuação prática. A norma
enfeixa um conjunto de providências, protetoras, julgadas necessárias para satisfazer a certas
exigências econômicas e sociais; será interpretada de modo que melhor corresponda àquela
finalidade e assegure plenamente a tutela de interesse para a qual foi regida». In: Maximiliano,
Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 105 e
124-125.
6
Viehweg, Theodor. Tópica e jurisprudência. Trad. Tércio Sampaio Ferraz Junior. Brasília:
UnB, 1979, p. 17.
7
A tópica realmente tem um nítido caráter pragmático e concretista, pois, no dizer de Karl
Larenz, «em tal discussão são considerados relevantes diversos pontos de vista (topoi) que se
mostrem aptos a servir de argumentação pró ou contra a solução ponderada. De entre eles, o
argumento sobre as consequências (“o que ocorreria se fosse adotada esta ou aquela solução”)
introdução
33
Desse modo, não é possível descrever o direito de forma estática, como
Kelsen, pois «uma consideração cega aos fins, ou cega aos valores, é pois aqui
inadmissível, e assim também a respeito do direito ou de qualquer fenômeno
jurídico» (Radbruch).8
Por fim, há uma humilde homenagem aos cem anos de nascimento do
genial Adoniran Barbosa, ocorridos em 06 de agosto de 2010, relatando o
conteúdo social e urbanístico de seus sambas, os quais estão imbricados de
traços de uma cultura do cotidiano da cidade, em uma São Paulo sob o impacto
da modernização industrial.9
desempenha um papel de particular importância». In: Larenz, Karl. Metodologia da ciência do
direito. Trad. de José Lamego. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 170.
8
Radbruch, Gustav. Filosofia do direito. Trad. de Luís Cabral de Moncada. 6. ed. Coimbra:
Armênio Amado, 1997, p. 44. Radbruch (1878/1949), jusfilósofo alemão, catedrático da
Universidade de Heidelberg, foi perseguido pelo regime nazista e desenvolveu teoria jusnaturalista de proteção aos direitos fundamentais, embasados por uma filosofia dos valores de
origem neokantiana. Sua teoria teve influência decisiva em vários autores, com destaque para
Miguel Reale e Robert Alexy.
9
«Adoniran, como narrador da metrópole, traduz a modernidade a partir de uma percepção
que se alimenta de um sentido de cotidiano, negado pela racionalidade que move a transmutação
do espaço da cidade – valor de uso – em metrópole – valor de troca. Em sua obra, inscrita no
universo da cultura popular, apropria-se do urbano, inventando uma narrativa do moderno à
margem das imposições da ordem dominante». In: Rocha, Francisco. Adoniran Barbosa, o
poeta da cidade. Cotia-SP: Ateliê Editorial, 2002, p. 20.
Aguenta a Mão, João
Adoniran Barbosa
Composição: Adoniran Barbosa / Hervé Clodovil
Não reclama
Contra o temporal
Que derrubou teu barracão
Não reclama
Guenta a mão João
Com o Cibide
Aconteceu coisa pior
Não reclama
Pois a chuva
Só levou a tua cama
Não reclama
Guenta a mão João
Que amanhã tu levanta
Um barracão muito melhor
C’o Cibide coitado
Não te contei?
Tinha muita coisa
A mais no barracão
A enxurrada levou seus
Tamanco e o lampião
E um par de meia que era
De muita estimação
O Cibide tá que tá dando
Dó na gente
Anda por aí
Com uma mão atrás
E outra na frente
Capítulo I
NOÇÃO GERAL DE DIREITO URBANÍSTICO
Sumário: 1.1 Conceito de Direito Urbanístico, urbanismo, urbanização e urbanificação – 1.2 Identificação da ordem jurídico-urbanística; 1.2.1 Princípio da
função social da propriedade; 1.2.2 Princípio da função social da cidade; 1.2.3
Princípio da obrigatoriedade do planejamento participativo; 1.2.4 Princípio
da justa distribuição dos ônus decorrentes do processo de urbanização; 1.2.5
Princípio da coesão dinâmica; 1.2.6 Princípio da cooperação entre os setores
público e privado – 1.3 As funções urbanísticas e as Cartas de Atenas; 1.3.1 A
Carta de Atenas de 1933; 1.3.2 A Nova Carta de Atenas; 1.3.3 Habitação; 1.3.4
Trabalho; 1.3.5 Circulação; 1.3.6 Recreação.
1.1 Conceito de Direito Urbanístico, Urbanismo,
Urbanização e Urbanificação
O Direito Urbanístico, uma disciplina jurídica relativamente nova, é
fruto das transformações sociais que vêm ocorrendo nos últimos tempos em
decorrência do processo de forte crescimento urbano.
O termo «urbanístico» vem de urbanismo, palavra que vem do latim
«urbs», que, por sua vez, significa cidade. O conceito de urbanismo1 é,
1
«O urbanismo é entendido hoje como uma ciência, uma técnica e uma arte ao mesmo tempo,
cujo objeto é a organização do espaço urbano, visando ao bem-estar coletivo, realizado por
legislação, planejamento e execução de obras públicas que permitam o desempenho harmônico
38
Paulo afonso cavichioli Carmona
portanto, estreitamente ligado à cidade e, mais do que isso, às necessidades do
ser humano nas cidades. O que é, então, a cidade? Todo núcleo habitacional
pode receber o título de urbano?
Existem diversas concepções que tratam do conceito de cidade:
a) critério demográfico-quantitativo – é o mais utilizado e difundido. Por
ele se valoriza o número de habitantes e/ou a densidade populacional – como
exemplo, no Canadá e Escócia, o critério é de 100 moradores, enquanto para
a Holanda, 5 mil habitantes caracterizam uma cidade, para a ONU, 20 mil
habitantes, para os EUA, 50 mil;
b) critério econômico – apoia-se na doutrina de Max Weber –, em que
se considera cidade uma «localidade de mercado», onde exista um mínimo de
comércio, artesanato, negócios, manufaturas, indústrias, fomento de cultura
e exercício do poder público – leva em conta a existência de uma camada
urbana com produção e consumo;
c) critério funcional – valoriza a influência exercida pela cidade sobre
as áreas envolvidas e o tipo de atividades a que a população se dedica, que
devem ser, majoritariamente, do setor secundário e terciário;2
d) critério de subsistemas – considera a cidade como um conjunto de
subsistemas administrativos (sede de organizações públicas), comerciais
(centro de relações comerciais), industriais (centro de produção de manufaturas), socioculturais (produção educacional, recreativa, cultural, religiosa
etc.);
e progressivo das funções urbanas elementares: habitação, trabalho, recreação e circulação
no espaço urbano». In: Di Sarno, Daniela Campos Libório. Elementos de direito urbanístico.
Barueri-SP: Manole, 2004, p. 7. A palavra urbanismo – que etimologicamente quer dizer
ciência do planejamento das cidades – apareceu pela primeira vez em 1910 em um artigo de
Paul Clerget no Boletim da Sociedade Geográfica de Neufchâtel. Aliás, naquele ano ocorreu
o Congresso de Higiene de Londres, em que se encontraram reunidos os grandes pioneiros do
urbanismo: o berlinense J. Stübben (autor do primeiro tratado de planejamento das cidades), o
escocês Patrick Geddes (biólogo e sociólogo), Louis Bonnier, Thomas Adam, Eugène Hénard
(inventor da rotatória e das vias suspensas), Ebenezer Howard (autor da teoria Garden-City),
Raymond Unwin, Daniel Burnham, dentre outros. In: Bardet, Gaston. Trad. Flávia Cristina S.
Nascimento. O urbanismo. 2. ed. Série Ofício de Arte e Forma. Campinas-SP: Papirus, 2001,
p. 23-24.
2
De acordo com o Dicionário Aurélio, setor primário é o conjunto de atividades (agricultura,
atividades extrativas) voltadas à produção de mercadorias não transformadas; setor secundário
é o conjunto de atividades produtivas (indústria de transformação, construção civil) voltadas
à transformação de matérias-primas em produtos acabados; setor terciário é o conjunto de
atividades produtivas (serviços em geral) de que não resultam bens tangíveis. In: Ferreira,
Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa. 5. ed. Curitiba: Positivo,
2010, p. 1.925.
noção geral de direito urbanístico
39
e) critério jurídico-administrativo – aplica-se às cidades definidas por
decisão legislativa, como forma de incentivar o povoamento, de recompensar
os serviços prestados ou de garantir a defesa de regiões de fronteira.
Assim, em Portugal, por exemplo, conjugam-se os critérios demográfico,
funcional e jurídico-administrativo, admitindo-se uma ponderação diferente
em casos que, por razões históricas, culturais e arquitetônicas, possam justificar a elevação do centro urbano em cidade.
De acordo com José Afonso da Silva:
«Os conceitos demográfico e econômico não servem para definir as
cidades brasileiras, que são conceitos jurídico-políticos, que se aproximam da
concepção das cidades como conjuntos de sistemas. O centro urbano no Brasil
só adquire a categoria de cidade quando seu território se transforma em Município. Cidade, no Brasil, é um núcleo urbano qualificado por um conjunto de
sistemas político-administrativo, econômico não-agrícola, familiar, e simbólico como sede do governo municipal, qualquer que seja sua população. A
característica marcante da cidade no Brasil consiste no fato de ser um núcleo
urbano, sede do governo municipal.3
Enfim, do ponto de vista urbanístico, um centro populacional assume característica de cidade quando possui dois elementos essenciais: (a) as unidades
edilícias – ou seja, o conjunto de edificações em que os membros de uma
comunidade moram ou desenvolvem suas atividades produtivas, comerciais,
industriais ou intelectuais; (b) os equipamentos públicos – ou seja, os bens
públicos e sociais criados para servir às unidades edilícias e destinados a satisfazer as necessidades de que os habitantes não podem prover-se diretamente
e por sua própria conta (estradas, ruas, praças, parques, jardins, canalização
subterrânea, escolas, igrejas, hospitais, mercados, praça de esportes etc.).»4
Assim, não é nada fácil conceituar cidade, porque admitem-se diversos
enfoques. Henri Lefebvre, por exemplo, assenta que «a cidade é a projeção
da sociedade sobre um local»;5 para Sjoberg Gideon, «é uma comunidade de
dimensões e densidade populacional consideráveis, abrangendo uma variedade de especialistas não-agrícolas, nela incluída a elite culta»;6 já Philippe
3
Ousa-se discordar de tal entendimento, pois no Brasil existem vários núcleos urbanos que
não foram elevados à categoria de Municípios, na forma do § 4.º do art. 18 da CF/1988, e nem
por isso deixam de ser objeto do Direito Urbanístico, conforme esclarecido adiante.
4
Silva, José Afonso. Direito urbanístico brasileiro. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p.
25-26.
5
Lefebvre, Henri. O direito à cidade. São Paulo: Documentos, 1969, p. 56.
6
Sjoberg, Gideon. Origem e evolução das cidades. Cidades, a urbanização da humanidade.
2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1972, p. 38. Anote-se que boa parte dos doutrinadores destaca,
tal como o autor citado, o aspecto da concentração populacional como uma consequência
natural do sistema de produção capitalista. Citem-se: Castells, Manuel. A questão urbana.
Trad. Arlene Caetano. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000; e Singer, Paul. Economia política da
urbanização. São Paulo: Brasiliense, 1973.
40
Paulo afonso cavichioli Carmona
Panerai destaca que faz mais sentido utilizar a metáfora tecido urbano, constituído pela superposição ou imbricação de três conjuntos: a rede de vias, os
parcelamentos fundiários e as edificações.7
Desse modo, a cidade é mais do que uma aglomeração de pessoas (habitantes ou visitantes) e de objetos (edifícios, residências, ruas, praças etc.).
Ela deve ser entendida em seu aspecto dinâmico. Por isso, Lewis Mumford
a concebe como um organismo vivo, palco de vivências humanas complexas
(econômicas, políticas, religiosas e culturais).8 Nesse sentido, Hermes Ferraz
pontifica que «a cidade é, assim, um organismo vivo em perene transformação,
porque o homem, enquanto ser social, transforma-se constantemente».9
Direito Urbanístico, portanto, é conceituado como «um ramo do
Direito Público que tem por objeto normas e atos que visam à harmonização
das funções do meio ambiente urbano, na busca pela qualidade de vida da
coletividade»,10 ou como o «conjunto de normas que têm por objeto organizar
os espaços habitáveis, de modo a propiciar melhores condições de vida ao
homem na comunidade»,11 ou ainda o «conjunto de técnicas, regras e instrumentos jurídicos, sistematizados e informados por princípios apropriados, que
tenha por fim a disciplina do comportamento humano relacionada aos espaços
habitáveis».12
Dessa forma, há que superar, como objeto do Direito Urbanístico, as
dicotomias «urbano X rural» e «cidade X campo».
Com efeito, tudo que é relativo à fixação do homem em espaços habitáveis e que está ligado à geografia, planificação e construção nas cidades
deve ser estudado pelo Direito Urbanístico. Essa visão integrada da cidade foi
acolhida pelo Estatuto da Cidade, que determina que o plano diretor deverá
englobar o território do Município como um todo (art. 40, § 2.º), tendo em
vista a integração e a complementaridade entre as atividades urbanas e rurais
(art. 2.º, VII).
Nesse sentido, Gastón Bardet assevera que «(...) no presente, portanto,
o urbanismo designa o planejamento do solo em todas as escalas, o estudo de
Panerai, Philippe. Análise urbana. Trad. Francisco Leitão. Coleção Arquitetura e Urbanismo.
Brasília: Ed. UnB, 2006, p. 77-78.
8
Mumford, Lewis. Trad. Neil. R. da Silva. A cidade na história. Suas origens, transformações e perspectivas. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
9
Ferraz, Hermes. Filosofia urbana. Tomo I. São Paulo: João Scortecci, 1997, p. 51.
10
Di Sarno, Daniela Campos Libório. Op. cit., p. 32.
11
Silva, José Afonso da. Op. cit., p. 49.
12
Moreira Neto, Diogo de Figueiredo. Introdução ao direito ecológico e ao direito urbanístico
(instrumentos jurídicos para um futuro melhor). 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1977, p. 56.
Aliás, essa foi a primeira obra geral sobre o tema, publicada no Brasil e cuja primeira edição
data de 1975.
7
noção geral de direito urbanístico
41
todas as formas de localização humana sobre a terra. Partindo da organização
de grupos densos, ele teve que se estender a toda a “economia territorial”
(G. Sébille), não tendo outro limite a não ser o oceano. Pode-se dizer que o
Urbanismo tornou-se um Orbanismo».13
Assim, a legislação urbanística cuidará da política de expansão urbana
(passagem de área da zona rural para urbana – art. 182, § 1.º, CF/1988), da
proteção dos recursos naturais necessários ao desenvolvimento da cidade
como um todo, da promoção de condições adequadas de saneamento básico
para população rural (arts. 48, VII, e 49, IV, Lei 11.445/2007), da proteção
das áreas rurais de interesse turístico etc. O limite é o Direito Agrário, cujo
objeto é a política agrária e a reforma agrária, disciplinadas nos arts. 184/191
da CF/1988, de competência privativa federal (art. 22, I, CF/1988).
A par disso, a recente urbanização brasileira – como fenômeno de
concentração populacional urbana – fez nascer uma série de problemas socioeconômicos, como a carência de habitação e educação, desemprego, degradação ambiental, ausência de segurança pública e saneamento básico.
A palavra urbanização tem sido utilizada com diversos significados.
Urbanização significa processo de criação ou de desenvolvimento de organismos urbanos, segundo os princípios do urbanismo; conjunto dos trabalhos necessários para dotar uma área de infraestrutura (por exemplo, água,
esgoto, gás, eletricidade); e/ou de serviços urbanos (por exemplo, transporte,
educação, saúde); fenômeno caracterizado pela concentração cada vez mais
densa, de população em aglomerações de caráter urbano.14
José Afonso da Silva emprega-a para designar o processo pelo qual a
população urbana cresce em proporção superior à população rural, esclarecendo que não se trata de mero crescimento das cidades, mas de um fenômeno
de concentração urbana. Assim, a sociedade de determinado país reputa-se
urbanizada quando a população urbana ultrapassa 50%.15
Conforme ensina o doutrinador português Luís Filipe Colaço Antunes,
o termo foi utilizado pela primeira vez pelo engenheiro Ildefonso Cerdà,
na sua Teoría General de La Urbanización y Aplicación de sus Principios
y Doctrinas a La Reforma y Ensanche de Barcelona, Madrid (1867), para
denominar a ciência da organização espacial da cidade, tarefa do urbanista.
Op. cit., p. 33.
Ferreira, Aurélio Buarque de Holanda. Op. cit., p. 2.118. Neste último sentido, Gaston
Bardet ensina que o fenômeno da urbanização é conhecido como fenômeno do «repleto»,
em que «Tudo está repleto. Nada é suficientemente grande para conter as multidões: nem as
cidades, nem os edifícios, nem os lugares. É a época das massas, trazendo com ela a época do
colossal (...)». Op. cit., p. 7-8.
15
Op. cit., p. 26.
13
14
42
Paulo afonso cavichioli Carmona
Na atualidade, urbanização ainda pode significar a organização de um terreno
para habitar.16
Com efeito, urbanização, usualmente, é um fenômeno associado ao
desenvolvimento das cidades. Assim, a concepção de urbanizar não deveria
se desvincular da noção de cidadania, que é um dos fundamentos do Estado
Democrático de Direito (CF/1988, art. 1.º, II), aspecto enfatizado pela geógrafa
Elza Maria Alves Canuto:
«Adotando-se o conceito demográfico de urbanização – aumento do
percentual da população urbana em relação ao total – ou seja, o crescimento
da população urbana em relação à rural, percebe-se a inconsistência da realidade, em face do significado de urbanização, correlacionado ao habitante da
cidade. O seu sentido, como implantação de equipamentos e benfeitorias para
urbanizar o espaço, usualmente utilizado pelos arquitetos e urbanistas, também
destoa do significado da palavra, em relação ao cidadão. A Geografia utiliza os
dois conceitos de urbanização, mas, em qualquer deles, constata-se, o sentido
da palavra está diminuído, está lacerado, pois não é possível pensar em urbanizar sem que se pense o cidadão, sem que se pense no cidadão. Não se pode
entender o processo de urbanização de favelas como civilizar. Tornar urbano é
tornar o indivíduo civil, polido, dando-lhe conhecimento e condições de viver
e conviver dignamente em sociedade.»17
No presente estudo, adotam-se as duas concepções do termo, a demográfica – para a qual se prefere a palavra urbanização – e a técnica, no sentido de
processo de implantação de infraestrutura urbana a fim de atender à cidadania
e à dignidade da pessoa humana – para a qual se utiliza o vocábulo urbanificação.18
16
Antunes, Luís Filipe Colaço. Direito urbanístico. Um outro paradigma: a planificação
modesto-situacional. Coimbra: Almedina, 2002, p. 59-60.
17
Canuto, Elza Maria Alves. Direito à moradia urbana. Aspectos da dignidade da pessoa
humana. Belo Horizonte: Fórum, 2010, p. 200.
18
José Afonso da Silva ensina que a «urbanificação assume várias formas, que se agrupam
numa espécie de urbanificação comum e numa espécie de urbanificação especial. A primeira
realiza-se pelo parcelamento urbanístico do solo, que se aperfeiçoa mediante as chamadas
urbanificação primária e urbanificação secundária. A segunda realiza-se por meio da
renovação urbana, da urbanificação prioritária, da urbanificação compulsória, e outras (...), sob a
denominação geral de ordenação de áreas de interesse urbanístico especial (...). São de urbanificação prioritária as obras de arruamento, de espaços para estacionamento, de escoamento
de águas pluviais, de coleta, tratamento e despejo de águas servidas e suas respectivas redes,
de alimentação e distribuição de água potável e respectiva rede, de distribuição de energia
elétrica e de gás, de colocação de guias e sarjetas, de iluminação pública, e semelhantes. São
de urbanificação secundária todas as obras que servem para obter o beneficiamento completo
do território, como as de ligação da zona com os serviços públicos, a instalação de escolas,
mercados, praças de esporte, centros sociais, culturais, igrejas e outros edifícios para serviços
religiosos, áreas verdes, parques etc.» (op. cit., p. 325).
noção geral de direito urbanístico
43
O Brasil passou por um veloz crescimento urbano no século passado,
a ponto de ter, de acordo com as estatísticas oficiais, cerca de 85% de sua
população de quase 200 milhões de habitantes vivendo no espaço urbano de
5.565 municípios, segundo dados do Censo realizado pelo Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística (IBGE) no ano de 2010.19
Ademais, as desigualdades sociais e regionais são assustadoras. A região
Sudeste concentra 42% da população nacional e, juntamente com a região
Nordeste, responde por 75% do deficit habitacional brasileiro. Enquanto na
região Sudeste mais de 80% dos domicílios são servidos pela rede geral de
esgoto sanitário, no Nordeste esse índice não chega a 40%. No Maranhão, um
dos Estados mais pobres da Federação, 55% das famílias têm renda mensal
inferior a um salário mínimo.
Um em cada vinte brasileiros vive em São Paulo, a cidade mais populosa
do país, na qual a mais absoluta pobreza contrasta com o território de «ilhas»
urbanas de luxo e riqueza. As outras regiões metropolitanas brasileiras não
discrepam do abismo social, econômico e urbanístico que atinge a capital
paulistana.
Além disso, dados de 2003 divulgados pelo IBGE20 comprovam que
36,8% dos municípios brasileiros têm loteamentos irregulares ou ilegais e 23%
possuem favelas. Não bastasse isso, todas as cidades brasileiras com mais de
500 mil habitantes possuem tanto favelas quanto loteamentos irregulares ou
ilegais, sendo certo que 70% de todas as favelas estão nessas cidades. Nas
regiões metropolitanas a situação é pior ainda, já que 79% das cidades têm
favelas. Ademais, 47% das prefeituras declararam não ter qualquer programa
ou ação habitacional.
Os índices de urbanização e de desigualdades sociais também são alarmantes na América Latina, visto que, de cada 10 latino-americanos, 4 são
favelados ou residem em moradias precárias.21 Aliás, a ONU, em seu «Relatório Global sobre Aglomerações Urbanas» (resumo do encontro Conferência
Habitat II, realizada em Istambul, Turquia, em 1996), revela que, de 1995
19
Disponível em: <http://www.censo2010.ibge.gov.br/>. Acesso em 15.01.2012. Ainda de
acordo com o IBGE, em 2010, a população brasileira residente em área urbana era de 84,36%
dos 196.655.014 habitantes. O mesmo estudo aponta Burindi, na África Oriental, como país
com a menor percentual da população urbana (11%), enquanto Cingapura, Mônaco, Vaticano e
Nauru (na Micronésia) possuem os maiores índices (100%). Disponível em: <http://www.ibge.
gov.br/paisesat/>. Acesso em: 15.01.2012.
20
Trata-se da pesquisa Perfil dos municípios brasileiros/2001, divulgada em 13.11.2003.
Disponível em: <http://www.ibge.gov.br>. Acesso em 15.11.2009.
21
Para uma consulta mais detalhada, confira-se em Alfonsim, Betânia & Fernandes, Edésio
(Orgs.). Direito à moradia e segurança da posse no Estatuto da Cidade. Belo Horizonte:
Fórum, 2004, p. 23-25.
44
Paulo afonso cavichioli Carmona
a 2015, a população urbana nos países subdesenvolvidos deve crescer 52%,
enquanto nos industrializados esse índice poderá atingir até 7%.22
que:
Daí o porquê de o estudioso do tema José Carlos Freitas ter salientado
«Nesse contexto de cidades despreparadas para acolher o imenso contingente humano e absorver as demandas sociais, era de se esperar algumas
consequências negativas, como o colapso do sistema de transportes, os congestionamentos no trânsito, o aumento de processos erosivos, os assoreamentos
dos rios e a impermeabilização do solo como fatores desencadeantes das
inundações, a proliferação de habitações subnormais, a ocupação de áreas de
proteção ambiental, a precariedade do saneamento básico, a “favelização”, o
desemprego e a violência.»23
A solução desses problemas advém da intervenção do Poder Público,
especialmente o municipal, ao procurar transformar o meio urbano, corrigindo
as mazelas trazidas pela urbanização (cuja designação, cunhada por Gastón
Bardet,24 deve ser urbanificação), consistente na aplicação dos princípios do
urbanismo, advertindo que esta é o remédio para aquela, que é o mal.
1.2 Identificação da ordem jurídico-urbanística
Para Carlos Ari Sundfeld, a ordem urbanística é um conceito caro ao
Estatuto da Cidade e possui dois sentidos diferentes: o primeiro é o de ordenamento: a ordem urbanística é o conjunto orgânico de imposições vinculantes
(são as normas de ordem pública a que alude o art. 1.º, parágrafo único) que
condicionam positiva e negativamente a ação individual na cidade; o segundo
sentido é o de estado: a ordem urbanística é um estado de equilíbrio, que o
conjunto de agentes envolvidos é obrigado a buscar e preservar.25
Não se pode olvidar que, no Brasil, o Direito Urbanístico é a expressão
jurídica dos conflitos existentes no meio ambiente urbano e seus pressupostos
devem estar obrigatoriamente relacionados à dignidade da pessoa humana
(art. 1.º, III, da CF/1988), que é um dos fundamentos da República Federativa
do Brasil, bem como à erradicação da pobreza e à redução das desigualdades
sociais e regionais (art. 3.º, III, da Carta Magna), objetivos fundamentais do
Estado brasileiro.
Onu. As situações das cidades no mundo. Relatório Global sobre as Aglomerações
Humanas. Nações Unidas, 1996.
23
Freitas, José Carlos. O Estatuto da Cidade e o equilíbrio do espaço urbano. Temas de
Direito Urbanístico 3. Centro de Apoio das Promotorias de Justiças da Habitação e Urbanismo
– CAOHURB. São Paulo: Ministério Público do Estado de São Paulo/Imprensa Oficial, 2001,
p. 441.
24
Op. cit., p. 7, nota 2.
25
Op. cit., p. 54.
22
noção geral de direito urbanístico
45
A existência de uma ordem urbanística tem sua afirmação nos seguintes
princípios, em uma visão ampla: função social da propriedade, função social
da cidade, obrigatoriedade do planejamento participativo, justa distribuição
do ônus decorrente do processo de urbanização, coesão dinâmica e cooperação entre os setores público e privado.
1.2.1 Princípio da função social da propriedade
A propriedade pode ser conceituada como um vínculo jurídico que
une uma pessoa (sujeito ativo) a uma coisa, de tal forma que todas as outras
pessoas (sujeito passivo) têm o dever de respeitá-la (erga omnes), não podendo
violá-la. Essa é uma visão civilista, muito limitada e ultrapassada, prevista no
Código Civil de 1916, que estabelece, no art. 524, que ao proprietário cabe
o direito de usar, gozar e dispor de seus bens, podendo reavê-los de quem
quer que injustamente os possua. O art. 1.228, caput, do NCC repetiu referido
dispositivo, porém seu § 1.º deixou claro que o direito de propriedade deve ser
exercido em consonância com suas finalidades econômicas e sociais.26
Vale lembrar que essa concepção do direito de propriedade, marcadamente individual, também prevaleceu na Antiguidade (Roma).
Durante a Idade Média, entretanto, o Regime Feudal fragmentou os
poderes inerentes à propriedade (domínio eminente para a nobreza e domínio
útil para os servos), o que foi um importante fator para manter o poder da
realeza.
Todavia, com a Revolução Francesa, que repudiou o sistema feudal e
tentou abolir as diferenciações sociais (liberdade, fraternidade e igualdade),
foi revivido o sistema anterior (período romano), ou seja, uma concepção
individualista da propriedade. A Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão, de 1789, proclamada pela Assembleia Constitucional da Revolução
Francesa, consagrava a proteção aos direitos naturais, entre eles a propriedade,
considerada inviolável e sagrada.
Os graves problemas sociais, que envolveram o Ocidente em consequência da I Guerra Mundial, alteraram a estrutura conservadora dos governos.
26
Convém salientar que não se confundem os conceitos de propriedade e direito de propriedade,
assim como são distintos os de liberdade e direito de liberdade, pois o direito de propriedade
é expressão da propriedade tal como admitido no sistema jurídico (o modo como o Direito
brasileiro abriga a propriedade). «Por isso, rigorosamente falando, não há limitações administrativas ao direito de liberdade e ao direito de propriedade – é brilhante a observação de Alessi
–, uma vez que estas simplesmente integram o desenho do próprio perfil do direito. São elas,
na verdade, a fisionomia normativa dele». In: Alessi, Renato. Sistema Instituzionale del Diritto
Administrativo Italiano. 3. ed. Milão: Giuffrè, 1960, p. 533, apud Bandeira De Mello, Celso
Antônio. Curso de direito administrativo. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 693.
46
Paulo afonso cavichioli Carmona
Passaram a ser acatados os direitos sociais e o Estado, cada vez mais, passou
a intervir na sociedade, de tal forma que os direitos individuais não foram
abolidos, mas comprimidos, alterados. O que antes era só direito transforma-se em direito-dever, pois há de cumprir sua função social, razão pela qual,
atualmente, fala-se em propriedade-função social.27
Não poderia ser diferente, já que o direito se transforma continuamente
no ritmo da história cuja evolução ele segue, refreia ou incentiva, de maneira
que traduz as condições de seu tempo e traz os estigmas da época em que se
formou.28 Nesse sentido, tem-se a conhecida crítica que Julius Von Kirchmann fez à ciência jurídica, em 1847: «o sol, a lua, as estrelas brilham hoje
da mesma forma que há milhares de anos; a rosa desabrocha ainda hoje
tal como no paraíso; o Direito, porém, tornou-se desde então diferente. O
casamento, a família, o Estado, a propriedade passaram pelas mais diversas
configurações».29
No Brasil, antes de aparecer expressamente mencionado na Constituição
Federal de 1967, o princípio da função social da propriedade já serviu de
inspiração para a inclusão de nova modalidade de desapropriação (por interesse social – Lei 4.132/1962), durante a vigência da CF/1946.30
A referida Carta de 1967 incluiu a função social da propriedade como um
dos princípios da ordem econômica e social (art. 160, III), que coexistia com
o direito de propriedade individual (art. 153, § 22). Tais prescrições tiveram
inspiração na doutrina social da Igreja Católica, expostas nas Encíclicas
Rerum Novarum31 (1891), do Papa Leão XIII, Mater et Magistra (1961), do
Ver, a propósito, Rabahie, Marina Mariani de Macedo. Função social da propriedade. In:
Dallari, Adilson Abreu & Figueiredo, Lúcia Valle (Coords.). Temas de Direito Urbanístico 2.
São Paulo: RT, 1991, p. 213 e ss.
28
Bergel, Jean-Louis. Teoria geral do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 135.
29
O Promotor de Justiça prussiano Julius Hermann Von Kirchmann utilizou as transcritas
palavras em uma conferência pronunciada em Berlim em 1847. In: Kirchmann, Julius Hermann
Von. Die Wertlosigkeit der Jurisprudenz als Wissenschaft – Vortrag gehalten in der Juristischen
Gesellschaft zur Berlin, 1848.
30
A CF de 1946 incluiu o princípio da função social da propriedade no Título da Ordem
Econômica e Social, nos seguintes termos: «O uso da propriedade será condicionado ao
bem-estar social. A lei poderá, com observância do disposto no art. 141, § 16, promover a
justa distribuição da propriedade, com igual oportunidade para todos» (art. 147). De modo
semelhante, a CF/1934 prescreve que «É garantido o direito de propriedade, que não poderá ser
exercido contra o interesse social ou coletivo, na forma que a lei determinar» (art. 113, n. 17).
As Constituições de 1824, 1891 e 1937 não contemplaram o princípio.
31
«A propriedade particular, já o dissemos mais acima, é de direito natural para o homem: o
exercício deste direito é coisa não só permitida, sobretudo a quem vive em sociedade, mas ainda
absolutamente necessária» (santo Tomás, Sum. Teol., II-II, q. 66, a. 2). Agora, se se pergunta
em que é necessário fazer consistir o uso dos bens, a Igreja responderá sem hesitação: «A esse
respeito o homem não deve ter as coisas exteriores por particulares, mas sim por comuns,
27
noção geral de direito urbanístico
47
Papa João XXIII, e Centesimus Annus (1991), do Papa João Paulo II, que
tratou, de perto, a questão urbana.
A moderna doutrina passa, então, a desenvolver o tema, salientando que
a propriedade deve cumprir sua função social, mas que esse princípio não
autoriza esvaziar o conteúdo mínimo do direito de propriedade (usar, gozar e
dispor). Daí por que acuradamente assevera Celso Antônio Bandeira de Mello
que:
«O direito de propriedade – ou seja, o reconhecimento que a organização
jurídica da Sociedade (Estado) dispensa aos poderes de alguém sobre coisas –
encarta-se, a nosso ver, no Direito Público e não no Direito Privado. É evidente
que tal Direito comporta relações tanto de Direito Público quanto de Direito
Privado. Entretanto, o direito de propriedade, como aliás sempre sustentou o
prof. Oswaldo Aranha Bandeira de Mello é, essencialmente, um direito configurado no Direito Público e – desde logo – no Direito Constitucional.»32
A Carta Magna de 1988, imbuída da melhor doutrina, dá tratamento
especial ao tema, já que pela primeira vez na história de nossas Constituições
dedica capítulo específico à Política Urbana.
O Texto Constitucional, ao mesmo tempo em que garante o direito da
propriedade (art. 5.º, XXII), determina que esta deve cumprir sua função
social (XXIII), que também é incluída como princípio da ordem econômica
(art. 170, III). Prevê ainda o princípio, no tocante à propriedade urbana, no art.
182, §§ 2.º e 4.º, e para propriedade rural, no art. 186, sob pena de desapropriação para fins de reforma agrária (art. 184).
O princípio em tela é importantíssimo para a disciplina urbanística, de tal
monta que se pode afirmar, sem qualquer excesso, que falar de função social
da propriedade é falar de Direito Urbanístico. Por outras palavras, o Direito
Urbanístico tem como núcleo central a função social da propriedade.
Conforme salientado, a CF/1988 trouxe importantes avanços ao tratamento conferido ao direito de propriedade e à sua função social, pois tratou
de definir o seu conteúdo e de instituir formas de sanção para garantir seu
cumprimento. Fixado o princípio de que a propriedade deve atender à sua
função social, questiona-se o que vem a ser tal função.
Ensina, mais uma vez, Bandeira de Mello:
de tal sorte que facilmente dê parte delas aos outros nas suas necessidades. É por isso que o
Apóstolo disse: Ordena aos ricos do século (...) dar facilmente, comunicar as suas riquezas»
(Santo Tomás, Sum. Teol., q. 65, a. 2). LEÃO XIII (1891: 14).
32
Bandeira de Mello, Celso Antônio. Novos aspectos da função social da propriedade no
direito público. Revista de Direito Público, São Paulo, vol. 84, out.-dez. de 1987, p. 39-45.
48
Paulo afonso cavichioli Carmona
«Existe função quando alguém está investido no dever de satisfazer determinadas finalidades em prol do interesse de outrem, necessitando, para tanto,
manejar os poderes requeridos para supri-las. Logo, tais poderes são instrumentais ao alcance das sobreditas finalidades. Sem eles, o sujeito investido na
função não teria como se desincumbir do dever posto a seu cargo. Donde, quem
os titulariza maneja, na verdade, “deveres-poderes”, no interesse alheio.»33
Sem sombra de dúvida, a grande novidade está em atribuir «função» ao
proprietário particular, já que na atividade dos particulares prevalece a sua
vontade, pois lhe são permitidos todos os comportamentos não proibidos pela
lei (decorrência do princípio da legalidade – art. 5.º, II, CF/1988).
Discorrendo acerca do tema, Carlos Ari Sundfeld certifica que a CF/1988,
ao acolher o princípio da função social da propriedade, pretendeu imprimir-lhe uma significação pública, isto é, pretendeu trazer ao Direito Privado algo
até então tido por exclusivo do Direito Público – o condicionamento do poder
a uma finalidade. Esclarece ainda que não se trata de extinguir a propriedade privada, mas de vinculá-la a interesses outros que não os exclusivos do
proprietário.34
Tal evolução histórica do conceito do direito de propriedade encerra suas
origens na construção jurídica de Léon Duguit, que, em sua célebre obra Les
Transformations Générales du Droit Privé depuis le Code Napoleón (1911),
propôs o conceito de propriedade-função social, demonstrando-a da seguinte
forma:
«Todo indivíduo tem a obrigação de cumprir na sociedade uma certa
função, na razão direta do lugar que nela ocupa. Ora, o detentor da riqueza, pelo
próprio fato de deter a riqueza, pode cumprir uma certa missão que só ele pode
cumprir. Somente ele pode aumentar a riqueza geral, assegurar a satisfação das
necessidades gerais, fazendo valer o capital que detém. Está, em consequência,
socialmente obrigado a cumprir esta missão e só será socialmente protegido
se cumpri-la e na medida em que o fizer. A propriedade não é mais o direito
subjetivo do proprietário; é a função social do detentor da riqueza.»35
33
Op. cit., p. 43. Aliás, a Administração Pública exerce função (denominada função administrativa) porque está atrelada ao cumprimento de certas finalidades (como garantir o bem-estar
dos habitantes da cidade), sendo-lhe obrigatória objetivá-las no interesse de outrem: a coletividade. Na irrepreensível lição de Ruy Cirne Lima, «na administração o dever e a finalidade são
predominantes; no domínio, a vontade», ou ainda, «Administração é a atividade do que não é
senhor absoluto» (Lima, Ruy Cirne. Princípios de Direito Administrativo. 3. ed. São Paulo: RT,
1982, p. 45 e 21).
34
Sundfeld, Carlos Ari. Função social da propriedade. In: Dallari, Adilson Abreu &
Figueiredo, Lúica Valle (Coords.). Temas de Direito Urbanístico 1. São Paulo: RT, 1987, p. 5.
35
Duguit, Léon. Les Transformations Générales du Droit Privé depuis le Code Napoleón. 19.
ed. Paris: Librairie Félix Alcan, 1920, p. 158.
noção geral de direito urbanístico
49
Donde se pode concluir que o particular-proprietário possui, na realidade, um dever-poder, e não um simples direito de propriedade marcado pelo
jus utendi, fluendi et abutendi, já que tais poderes são instrumentos dispostos
ao alcance das finalidades sociais.
Das afirmações feitas decorre, logicamente, outra indagação: quando
uma propriedade está atendendo à sua função social?
Teoricamente, a questão é de difícil trato, mas certamente não estará
atendendo à sua função social a propriedade que estiver sendo utilizada para
fins de especulação imobiliária, a qual não pode ser considerada mais mero
exercício do direito de propriedade, mas sim um violento atentado cometido
contra a coletividade. Pode-se atestar que, embora não seja a única causa que
leva ao não atendimento da função social, seguramente é a mais importante.
Por essa razão asseverou Adilson Abreu Dallari:
«A ideia de propriedade como função social, encampada pela Constituição,
abre imensas possibilidades de uma atuação urbanística eficiente por parte do
Poder Público. Pelo menos, de imediato, já revela que a detenção da terra
urbana com propósitos puramente especulativos, para auferir as plusvalias
decorrentes do trabalho da coletividade não tem e não pode ter amparo legal.»36
Cabe, então, ao Poder Público, tomar as medidas para solucionar
problemas de índole urbanística, tentando ao menos diminuir essa tendência
– que parece ser natural, mas não é – de o particular proprietário utilizar-se do
bem para fim especulativo.
Para tanto, a CF/1988 inova, fixando o conteúdo da função social da
propriedade (§ 2.º, art. 182), nos exatos termos: «a propriedade urbana cumpre
sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação das
cidades expressas no plano diretor», regra esta reiterada no art. 39, caput, do
Estatuto da Cidade.
O Plano Diretor, por sua vez, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana (§ 1.º do art. 182 da CF/1988 e art. 40, caput,
da Lei 10.257/2001), ou seja, o mais importante instrumento de planejamento
urbano municipal. Deve ser aprovado por lei, ser parte integrante do processo
de planejamento municipal, ser revisto, pelo menos, a cada dez anos, ser
elaborado de maneira participativa e englobar todo o território do Município
(§§ 1.º a 4.º do art. 40 do Estatuto da Cidade). Enfim, o plano urbanístico
diretor é instrumento pelo qual a Administração Pública local poderá determinar quando, como e onde edificar e/ou utilizar o imóvel pelo proprietário,
tendo em vista o atendimento das necessidades dos cidadãos quanto à quali Dallari, Adilson Abreu. Direito à habitação. Revista da Secretaria de Assuntos Jurídicos,
Prefeitura da Cidade do Recife, Ano V, n. 5, p. 127.
36
50
Paulo afonso cavichioli Carmona
dade de vida, à justiça social e ao desenvolvimento das atividades econômicas
(art. 39, in fine, Estatuto citado).
Nesse sentir, os princípios – ensina Celso Antônio Bandeira de Mello
– são as vigas mestras do edifício jurídico, ou seja, são as regras básicas,
implícitas ou explícitas que, por sua grande generalidade, ocupam posição de
destaque no mundo jurídico e, por isso, vinculam o entendimento e a aplicação,
desde os simples atos normativos, até os próprios mandamentos constitucionais. Daí se pode afirmar que a desobediência a um princípio é mais danosa
ao sistema jurídico, porque gera consequências mais graves. Transcrevem-se
as suas refletidas palavras:
«Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma qualquer. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico
mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave
forma de ilegalidade, ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão
de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico
e corrosão de sua estrutura mestra.»37
Ressaltada a importância dos princípios, cumpre, agora, inquirir qual a
sanção prevista constitucionalmente para o descumprimento do princípio da
função social da propriedade, outra inovação importante trazida pela CF/1988,
em seu art. 182, § 4.º.
Verifica-se que do dispositivo mencionado extraem-se diversas ideias
importantes:
(1) dever-poder do poder público local e não uma mera faculdade
como parece estar contido na dicção constitucional («é facultado»), dando
ensejo à interpretação equivocada de que o Poder Público não está obrigado
a exigir dos proprietários de bens imóveis inseridos em seu território urbano
que promovam seu adequado aproveitamento, o que ensejaria a possibilidade
de descumprimento do princípio da função social da propriedade, em total
desrespeito ao preceito constitucional inserido no inciso XXIII do art. 5.º;38
Op. cit., p. 808.
Advirta-se, no entanto, que, a nosso ver, fere o princípio da razoabilidade um plano diretor
que estenda a toda cidade a obrigação de parcelar, edificar ou utilizar compulsoriamente a
propriedade, pois isso não redunda em um planejamento sério, mas sim uma forma indireta de
aumento de arrecadação pela cobrança de IPTU progressivo no tempo, em flagrante desvio de
finalidade.
37
38
noção geral de direito urbanístico
51
(2) ao fazer a exigência que se acabou de mencionar, deverá fazê-lo do
proprietário do imóvel39 (particular ou público?),40 que deve necessariamente
ser localizado em área urbana41 e que descumpre sua função social, ou seja,
que esteja não edificado ou esteja subutilizado ou não utilizado;
(3) tendo essa exigência como conteúdo a ordem para que promova seu
adequado aproveitamento, isto é, para que, nos termos do plano diretor da
cidade, promova-se sua utilização, edificação ou parcelamento;
(4) sob pena de se ver o proprietário sujeito a penalidades previstas
nos incisos do § 4.º do dispositivo (utilização, edificação ou parcelamento
compulsórios, IPTU progressivo no tempo e desapropriação com títulos da
dívida pública);
(5) e que são penas sucessivas, nos termos da lei (Estatuto da Cidade),
devendo ser aplicadas na ordem disposta, sendo certo que somente será
possível a aplicação da penalidade seguinte quando a penalidade anterior, já
aplicada, não tiver sido suficiente para gerar o pretendido efeito de forçar o
proprietário a dar à sua propriedade a função que dela a sociedade espera;
(6) tudo mediante lei específica para a área incluída no plano diretor,
que se trata de uma lei municipal ou distrital.
39
Discorda-se daqueles que defendem que a única pessoa que pode sofrer a sanção é
proprietário, pois considera-se que o titular do domínio útil ou o possuidor a qualquer título
também possam ser obrigados a dar adequado aproveitamento ao seu imóvel; a matéria, porém,
é controversa na doutrina.
40
Acerca do princípio da função social da propriedade pública, confiram-se dois destacados
trabalhos: Di Pietro, Maria Sylvia Zanella. Função social da propriedade pública. In: Wagner
Junior, Luiz Guilherme da Costa (Coord.). Direito público. Estudos em homenagem ao
Professor Adilson Abreu Dallari. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 561-572; e Rocha, Sílvio
Luis Ferreira da. Função social da propriedade pública. São Paulo: Malheiros, 2005.
41
Algumas das referências legislativas existentes no sistema jurídico nacional para que determinado local possa ser considerado área urbana encontram-se no art. 32, §§ 1.º e 2.º, do CTN
e no art. 4.º, I, do Estatuto da Terra (este último, em verdade, define «imóvel rural», mas,
desta definição, retira-se, por interpretação a «contrario sensu», uma noção de imóvel urbano).
Entretanto, parece-nos que, acertadamente, para fins urbanísticos, «o solo qualifica-se como
urbano quando ordenado para cumprir destino urbanístico, especialmente a edificabilidade
e o assentamento de sistema viário (...)» (Silva, José Afonso. Op. cit., p. 71). Por sua vez,
a Lei 11.977/2009 (Lei de Regularização Fundiária) prescreve, em seu art. 47, que, «para
efeitos da regularização fundiária de assentamentos urbanos, consideram-se: I – área urbana:
parcela do território, contínua ou não, incluída no perímetro urbano pelo Plano Diretor ou por
lei municipal específica; II – área urbana consolidada: parcela da área urbana com densidade
demográfica superior a 50 (cinqüenta) habitantes por hectare e malha viária implantada e que
tenha, no mínimo, 2 (dois) dos seguintes equipamentos de infraestrutura urbana implantados: a)
drenagem de águas pluviais urbanas; b) esgotamento sanitário; c) abastecimento de água
potável; d) distribuição de energia elétrica; e) limpeza urbana, coleta e manejo de resíduos
sólidos».
52
Paulo afonso cavichioli Carmona
Por fim, salienta-se que a solução constitucional, esmiuçada pelo Estatuto da Cidade (arts. 5.º e 6.º), implica a imposição de verdadeira obrigação de
fazer aos proprietários de imóveis urbanos. Essa ideia – de que a propriedade
obriga – resulta do conceito de função social da propriedade, inserta em constituições modernas pós-II Guerra Mundial, sendo as mais assinaladas delas as
Constituições Mexicana de 1917 e de Weimar de 1919 (Alemanha).
1.2.2Princípio da função social da cidade
Cabe relembrar que os espaços urbanos são delimitados pelo exercício
das funções tidas como elementares para uma cidade, as quais, conforme prescrevem os Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna (CIAM), desde
a famosa Carta de Atenas de 1933, encerram as atividades de habitar, trabalhar,
recrear e circular. A propósito, a função social da cidade, princípio consagrado
no Texto Constitucional (art. 182, caput), traduz a ideia fundamental de que a
cidade é de todos, ou seja, que essas funções básicas devem ser possibilitadas
a cada um dos cidadãos com a finalidade de construir uma sociedade justa,
erradicar a pobreza e a marginalização, reduzir as desigualdades sociais e
regionais, enfim promover o bem de todos (art. 3.º da CF/1988).
Desse modo, o princípio da função social da cidade dá respaldo e sustenta
o princípio da função social da propriedade, posto que, mais que a propriedade, a cidade deve existir e servir a seus habitantes. Não se pode olvidar que
a Carta Magna, em seu capítulo «da Política Urbana», relaciona de forma
inconteste as funções sociais da propriedade urbana e da cidade.
Nesse ponto, o art. 182, caput, prescreve que «a política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes
gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das
funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes».
Em seguida, o seu § 2.º determina que «a propriedade urbana cumpre
sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação
da cidade expressas no plano diretor», o que resulta na interdependência de
ambos os institutos.
Além disso, esses dispositivos têm papel fundamental no direcionamento da atuação tanto dos proprietários, como dos representantes do Poder
Público, porque determinam os parâmetros a serem observados no atendimento da função social da propriedade em relação à cidade e da cidade em
relação à propriedade, seus proprietários e habitantes, não ao acaso denominados cidadãos.
Ademais, pela simples análise do § 4.º do mesmo art. 182, já se pode
concluir em qual rumo deverão seguir as diretrizes gerais que serão fixadas
pela lei federal, pelo Estatuto da Cidade e pelo plano diretor.
noção geral de direito urbanístico
53
Nesse sentir, o proprietário de imóvel urbano será penalizado se o bem
não for edificado, for subutilizado ou não utilizado, desde que haja essa
previsão no plano diretor, o instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana, visto que, no contexto de uma cidade, as condições
para a habitação, trabalho, lazer e até mesmo para a circulação dependem da
disponibilidade de área urbana. Não é possível, então, que terrenos, casas,
prédios ou até espaços vazios sejam não utilizados e deixem de colaborar com
o bem-estar de todos os cidadãos.
Assim, caso a propriedade não atenda à sua função social de ser bem
aproveitada dentro de uma cidade, colaborando para seu bom funcionamento,
as sanções previstas buscarão, primeiro, compelir os proprietários a providenciarem sua utilização satisfatória e, em seguida, se não o fizerem, exigir o
ressarcimento social – pelo pagamento de imposto progressivo e, por fim, pela
desapropriação sanção, levando o proprietário à perda de seu bem para que o
próprio Poder Público solucione a questão em prol da coletividade.
A par disso, o art. 183 da CF/1988 prescreve que «aquele que possui,
como sua, área urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados, por
cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia
ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de
outro imóvel urbano ou rural». Note-se, no entanto, que a usucapião especial
urbana não atinge as áreas públicas, nos exatos termos do § 3.º do referido
dispositivo constitucional («os imóveis públicos não serão adquiridos por
usucapião»).42
Percebe-se que a Constituição não só penaliza aqueles que não dão
função social à sua propriedade, como também garante o direito à moradia
àqueles que mantêm imóveis antes abandonados, hoje cumpridores de sua
função social.
Dito de outra forma, tanto a sanção aos proprietários de imóveis não
edificados, subutilizados ou não utilizados, quanto a garantia de moradia aos
que mantêm propriedades como suas são caminhos indicados pela Constituição Federal para o atendimento das funções sociais das cidades.
Além desses parâmetros básicos apresentados pela Magna Carta, ela
determina que cada um dos planos deverá estabelecer as exigências fundamentais de cada cidade, com base nas diretrizes gerais fixadas em lei federal:
o Estatuto da Cidade.
42
A mesma ressalva se estende para os imóveis públicos rurais (parágrafo único do art. 191 da
CF/1988).
54
Paulo afonso cavichioli Carmona
1.2.3Princípio da obrigatoriedade do planejamento participativo
A Constituição alberga a concepção de que o planejamento é obrigatório
para o Estado e indicativo para o setor privado (art. 174), tendo o art. 182
definido qual é a principal ferramenta de planejamento das cidades: o plano
diretor, que passa a ser o instrumento básico da política de desenvolvimento
e expansão urbana.
O planejamento é, como salienta Carlos Ari Sundfeld,43 o verdadeiro
pressuposto da ordem urbanística, advertindo, porém, que, «se é verdade
que a própria existência do direito urbanístico é uma reação ao crescimento
urbano sem ordem e aos caos gerado pelas atuações individuais, ele não pode
traduzir-se na substituição do caos privado pelo caos estatal».
A finalidade do planejamento local é o adequado ordenamento do
território municipal com o objetivo de disciplinar o uso, o parcelamento e
a ocupação do solo urbano (art. 30, VIII, CF/1988). Em vista disso, a Lei
da Política Nacional da Mobilidade Urbana determinou que, em Municípios
acima de 20 mil habitantes e em todos os demais obrigados, na forma da lei,
à elaboração do plano diretor, deverá ser elaborado o Plano de Mobilidade
Urbana, integrado e compatível com os respectivos planos diretores ou neles
inseridos (Lei 12.587/2012, art. 24, § 1.º).
Questiona-se, então: em que consiste o planejamento urbano? A Carta
dos Andes, fruto do Seminário Internacional de Técnicos e Funcionários de
Planejamento Urbano, realizado em 1958 em Bogotá, Colômbia, já assentava
que planejamento:
«É o processo de ordenamento e previsão para conseguir, mediante a
fixação de objetivos e por meio de uma ação racional, a utilização ótima dos
recursos de uma sociedade em uma época determinada. O planejamento é,
portanto, um processo de pensamento, um método de trabalho e um meio para
propiciar o melhor uso da inteligência e das capacidades potenciais do homem
para benefício próprio e comum.»44
De mais a mais, não basta o planejamento pura e simplesmente. Ele há de
ser participativo, por expressa determinação constitucional (art. 29, XII), que
estabelece a obrigatoriedade da cooperação das associações representativas
no planejamento municipal. Não é por outra razão, aliás, que os arts. 2.º, II,
e 40, § 4.º, ambos do Estatuto da Cidade, prescrevem, respectivamente, que
a gestão democrática por meio da participação da população e de associa Op. cit., p. 56.
Centro Interamericano de Vivenda e Planejamento (Cinva). Seminário de técnicos e funcionários em planejamento urbano. Carta dos Andes. Trad. Gustavo Neves da Rocha Filho. São
Paulo: Bem-Estar, 1960, p. 9.
43
44
noção geral de direito urbanístico
55
ções representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação,
execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano, bem como os Poderes Legislativo e Executivo municipais
devem garantir no processo de elaboração do plano diretor e na fiscalização
de sua implementação, I – a promoção de audiências públicas e debates
com a participação da população e de associações representativas dos vários
segmentos da comunidade; II – a publicidade quanto aos documentos e informações produzidos; III – o acesso de qualquer interessado aos documentos e
informações produzidos.
Acerca do tema, bem coloca a questão Victor Carvalho Pinto:
«Embora os princípios do urbanismo sejam de fácil compreensão, a sua
aplicação concreta exige conhecimento técnico específico. Por esta razão, os
planos e projetos têm que ser elaborados por profissionais qualificados. Isto
não significa que os projetos urbanísticos não devam ser amplamente discutidos por toda a sociedade. Pelo contrário é preciso que a legislação garanta a
possibilidade de participação da comunidade, já que é sua qualidade de vida
que será diretamente afetada. Entretanto, não é possível uma discussão séria
dos projetos urbanísticos pela sociedade na ausência de estudos técnicos a
respeito de seus possíveis impactos.»45
Nesse sentido, o Plano Diretor Estratégico do Município de São Paulo,
Lei 13.430/2002, dispõe acerca da gestão democrática do sistema de planejamento urbano, verbis: «a elaboração, a revisão, o aperfeiçoamento, a implementação e o acompanhamento do Plano Diretor Estratégico e de planos,
programas e projetos setoriais, regionais, locais e específicos serão efetuados
mediante processo de planejamento, implementação e controle, de caráter
permanente, descentralizado e participativo, como parte do modo de gestão
democrática da Cidade para a concretização das suas funções sociais» (art.
260).46
45
Pinto, Victor Carvalho. Notas introdutórias ao direito urbanístico. CAOHURB – Centro de
Apoio das Promotorias de Justiças da Habitação e Urbanismo. Temas de Direito Urbanístico.
São Paulo: Ministério Público do Estado de São Paulo/Imprensa Oficial, 1999, p. 155.
46
Dispõem, ainda, normas sobre a participação popular na gestão da política urbana da
cidade, estipulando quais as instâncias de participação: «é assegurada a participação direta da
população em todas as fases do processo de gestão democrática da Política Urbana da Cidade
mediante as seguintes instâncias de participação: I – Conferência Municipal de Desenvolvimento Urbano; II – Assembleias Regionais de Política Urbana; III – Conselho Municipal de
Política Urbana; IV – audiências públicas; V – iniciativa popular de projetos de lei, de planos,
programas e projetos de desenvolvimento urbano; VI – conselhos reconhecidos pelo Poder
Executivo Municipal; VII – assembleias e reuniões de elaboração do Orçamento Municipal;
VIII – programas e projetos com gestão popular; IX – Comissão de Legislação Participativa
da Câmara Municipal de São Paulo» (art. 279), assim como a forma de participação popular:
«A participação dos munícipes em todo processo de planejamento e gestão da Cidade deverá
basear-se na plena informação, disponibilizada pelo Executivo com antecedência» (art. 280).
56
Paulo afonso cavichioli Carmona
Por fim, cabe salientar que, na realidade, o «planejamento» urbano até
aqui desenvolvido pelas cidades brasileiras é, via de regra, deficiente, improvisado e mantém um padrão tradicionalmente perverso, que leva a um processo
de urbanização excludente e ofensor ao meio ambiente. Exatamente por isso,
Edésio Fernandes e Betânia Alfonsin pontificam:
«De modo geral, as tentativas de regulação via planejamento urbano,
contudo, e em alguma medida inclusive a atual leva de planos diretores,
ainda não conseguiu estabelecer uma relação clara e proativa com as forças
do mercado, com freqüência gerando forte aumento dos preços de terrenos
e novas formas de segregação socioespacial. Um aspecto fundamental desse
debate tem a ver com o fato de que, embora esse seja um princípio estrutural
da política urbana tal como indicado pelo Estatuto da Cidade (e como tal não
se trata de faculdade do poder público, mas sim de uma obrigação legal), o
planejamento urbano que se tem praticado na maioria das cidades brasileiras
não tem envolvido a gestão pela comunidade da valorização imobiliária gerada
pela ação do poder público, seja através de obras e serviços que valorizam os
bens de particulares, seja através da própria legislação urbanística.»47
1.2.4 Princípio da justa distribuição dos ônus decorrentes do processo
de urbanização
O princípio da justa distribuição do ônus decorrente da urbanização, por
sua vez, advém do princípio da isonomia e implica distribuir de forma equânime as mais-valias do solo urbano, levando o princípio da capacidade contributiva à organização do solo urbano. Encontra fundamento constitucional
no disposto no art. 3.º, notadamente no inciso III (erradicação da pobreza e
redução das desigualdades regionais e sociais).
Nesse sentido, o Estatuto da Cidade tem como diretrizes: justa distribuição dos benefícios e dos ônus decorrentes do processo de urbanização e
recuperação dos investimentos do Poder Público de que tenha resultado a
valorização de imóveis urbanos (art. 2.º, IX e XI, Lei 10.257/2001).
Uma aplicação concreta desse princípio é o instituto da contribuição de
melhoria, previsto no inciso III do art. 145 da CF/1988 e com disciplina nos
arts. 81 e 82 do CTN.48
Fernandes, Edésio; Alfonsin, Betânia. Coletânea de legislação urbanística: normas
internacionais, constitucionais e legislação ordinária. Belo Horizonte: Fórum, 2010, p. 22.
48
Ensina Roque Antônio Carrazza que «a contribuição de melhoria é um tipo de tributo que
tem por hipótese de incidência uma atuação estatal indiretamente referida ao contribuinte
(Geraldo Ataliba). Esta atuação estatal – porque assim o exige o art. 145, III, da Constituição
da República – só pode consistir numa obra pública que causa valorização imobiliária, isto é,
que aumenta o valor de mercado dos imóveis localizados em suas imediações». In: Carrazza,
Roque Antônio. Curso de direito constitucional tributário. 19. ed. São Paulo: Malheiros, 2004,
p. 494-495.
47
noção geral de direito urbanístico
57
Liana Portilho Mattos esclarece o alcance do referido princípio:
«As diretrizes dos incisos IX, X e XI do artigo 2.º do Estatuto da Cidade
têm um traço comum que as caracteriza que é o escopo de frear, de minimizar
a segregação social no território urbano. Mais que as distâncias que quase
sempre separam – e distinguem – os pobres dos mais favorecidos, no espaço
da cidade, a exclusão social exterioriza marcas e padrões urbanos nítidos e
bem definidos, em que o processo de urbanização privilegia infinitamente mais
os “incluídos”.
O princípio da justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do
processo de urbanização pretende estabelecer um equilíbrio na distribuição
das vantagens e dos prejuízos característicos a esse processo, em obediência
estrita ao princípio da isonomia consagrado na Constituição da República.
Não é justo que um bairro ou uma região comporte sozinho e sem nenhuma
compensação determinada atividade não desejada pelas áreas centrais e mais
valorizadas da cidade. Por outro lado, o Poder Público municipal não pode
destinar uma parcela maciça do seu orçamento para as áreas já dotadas de
melhor infraestrutura, enquanto as áreas periféricas permanecem desprovidas
das condições mínimas para a vida humana digna.»49
1.2.5Princípio da coesão dinâmica
Trata-se de princípio implícito no Direito Urbanístico e peculiar a ele,
refletindo sua dinamicidade.
Coesão é a qualidade de um todo cujas partes estão todas interligadas, ou
seja, aquilo que tem harmonia ou associação íntima. Dinâmico é algo ativo,
que está sempre em movimento, que se modifica continuamente.50 Assim, em
termos semânticos, coesão dinâmica significa que existe harmonia naquilo
que está em transformação.
Em matéria urbanística, a questão é bem explicada por Daniela Campos
Libório Di Sarno:
«O princípio da coesão dinâmica surge justamente para que as modificações feitas pelas interferências urbanísticas sejam continuadas por ações que
tenham pertinência e nexo com o contexto. As mesmas prioridades, o mesmo
enfoque deverá ser dado para as ações urbanísticas de um certo local em certo
tempo. A dinâmica do planejamento é fundamental para a eficácia deste princípio. Na medida em que certo plano seja aplicado, ele vai se desatualizando
com relação ao seu objeto, justamente por transformá-lo. Assim, o plano
deverá prever mecanismo de revisão e atualização de seu conteúdo.»51
Mattos, Liana Portilho (Org. e Autora). Estatuto da Cidade comentado. Belo Horizonte:
Mandamentos, 2002, p. 93.
50
Ferreira, Aurélio Buarque de Holanda. Op. cit., p. 524 e 718.
51
Op. cit., p. 51.
49
58
Paulo afonso cavichioli Carmona
Analisando as características das normas de Direito Urbanístico, José
Afonso da Silva, citando o doutrinador italiano Pierandrea Mazzoni, afirma
que as normas urbanísticas possuem uma característica própria, que não se
encontra em outras normas jurídicas, denominada coesão dinâmica, a fim
de denotar que sua eficácia somente (ou especialmente) decorre de grupos
complexos e coerentes de normas e tem seu sentido transformacionista da
realidade:
«É isso porque a norma urbanística é, por sua natureza, uma disciplina, um
modo, um método de transformação da realidade, de superposição daquilo que
será a realidade do futuro àquilo que é a realidade atual.
Poder-se-ia objetar que toda norma que, de qualquer modo, atribui uma
faculdade, ou estabelece um procedimento, disciplina uma transformação da
realidade jurídica e estabelece os modos, os procedimentos e as consequências
da transformação.
Mas a objeção não colhe nesse ponto por dois motivos distintos.
O primeiro consiste no fato de que também as normas que disciplinam uma
faculdade não podem ser examinadas na sua característica estática, mas os
valores que delas emergem podem colher-se só se se adota uma perspectiva de
estudo prevalecentemente dinâmica.
O segundo, mais relevante, consiste no fato de que a normatividade urbanística impõe uma visão dinâmica dirigida ao complexo das normas e dos
instrumentos urbanísticos e não, como no caso da faculdade jurídica, à norma
singular e à consequência que a mesma produz.»52
1.2.6Princípio da cooperação entre os setores público e privado
Em busca de um equilíbrio entre os interesses em jogo, o Estatuto da
Cidade estabeleceu como diretrizes: cooperação entre os governos, a iniciativa privada e os demais setores da sociedade no processo de urbanização, em
atendimento ao interesse social, bem como isonomia de condições para os
agentes públicos e privados na promoção de empreendimentos e atividades
relativos ao processo de urbanização, atendido o interesse social (art. 2.º,
incisos III e XVI).53 Note-se que, em ambas as hipóteses, a lei preocupou-
Op. cit., p. 62-63.
Note-se que a norma do inc. XVI «não deve ser interpretada casuística e isoladamente, de
forma a servir de amparo às pretensões de privatização das funções tipicamente estatais em
prol do interesse privado. O fim a que essa norma se destina, ao que se chega com a leitura
sistemática das demais que compõem o Estatuto da Cidade, é a realização do bem comum, a
justa distribuição dos ônus e benefícios decorrentes do processo de urbanização, a democratização do acesso à terra e a promoção da garantia do direito à moradia, sendo que o Estatuto
prevê, para isso, o papel ativo e empreendedor também do agente privado». In: Mattos, Liana
Portilho (Org. e Autora). Op. cit., p. 98-99.
52
53
noção geral de direito urbanístico
59
-se em ressaltar a necessidade de atendimento ao «interesse social», o que
aproxima o presente princípio da cooperação aos princípios da função social
da propriedade e da cidade.
Uma forma de cooperação entre os setores público e privado aparece
expressamente na CF/1988 e consiste na cooperação das associações representativas no planejamento municipal (art. 29, XII).
Houve, nesse sentido, a partir da década de 90, notável crescimento de
instrumentos de parceria do setor público com o setor privado. Citem-se, como
exemplos, consórcios e convênios administrativos (Lei 8.666/1993, art. 116),
concessões e permissões comuns (Lei 8.987/1995), contratos de gestão com
as Organizações Sociais (Lei 9.637/1998), termo de parceria com as OSCIPs
(Lei 9.790/1999), operações urbanas consorciadas e consórcio imobiliário
urbanístico (Lei 10.257/2001, arts. 32-34 e 46), parcerias público-privadas
(Lei 11.079/2004) e concessões florestais (Lei 11.284/2006, art. 3.º, VII).
Convém assinalar, porém, que alguns autores preferem falar em subsidiariedade, e não em cooperação entre os setores público e privado.
O princípio da subsidiariedade foi formulado pela doutrina social da
Igreja Católica, principalmente nas Encíclicas Rerum Novarum (1891),
do Papa Leão XIII, Quadragesimo Anno (1931), do Papa Pio XI, Mater et
Magistra (1961), do Papa João XXIII, e reafirmado, mais recentemente, na
Centesimus Annus (1991), do Papa João Paulo II.
Tal princípio importa a abstenção da intervenção estatal onde a iniciativa
privada é suficiente para atender adequadamente às necessidades públicas,
observando a proporcionalidade dessa intervenção, especialmente quando o
particular toma a iniciativa de propor ao Poder Público ações urbanísticas e
assume a responsabilização pelos custos da operação de acordo com os parâmetros legais.
Acerca da subsidiariedade, pontifica Regina Helena Costa, ancorada
na doutrina do espanhol Jesus Gonzalez Perez, que «o princípio comporta a
abstenção de toda intervenção dos entes públicos onde o livre jogo da iniciativa privada é suficiente para atender adequadamente as necessidades públicas,
observada, sempre, a proporcionalidade dessa mesma intervenção».54
Assim, há quem encontre fundamento constitucional do princípio da
subsidiariedade no art. 173, caput, que, embora diga respeito à excepcio-
Costa, Regina Helena. Princípios de direito urbanístico na Constituição de 1988. In:
Dallari, Adilson Abreu & Figueiredo, Lúcia Valle (Coords.). Temas de Direito Urbanístico 2.
São Paulo: RT, 1991, p. 117.
54
60
Paulo afonso cavichioli Carmona
nalidade da intervenção direta do Estado no domínio econômico, abarcaria,
também, a política urbana e, portanto, o Direito Urbanístico.55
Note-se, entretanto, que eventual delegação de ações urbanísticas ao
particular não exime o Poder Público de exercer a necessária e indispensável
supervisão e fiscalização da atividade urbanística. Por isso mesmo, esclarece
Daniela Campos Libório Di Sarno:
«Para o Direito Urbanístico, este princípio sustenta suas normas e ações,
tendo em vista que a tradição brasileira de visão privatista da propriedade dificulta a eficácia de suas normas. Assim a existência de tal mandamento respalda
o legislador e o administrador público na perseguição dos atos que busquem
harmonia e qualidade de vida para a coletividade, mesmo que, para isso, tenha
de restringir certos interesses individuais.»56
Como princípio do Direito Urbanístico, prefere-se a cooperação à subsidiariedade, pois este, ao contrário daquele, apresenta, ao mesmo tempo, uma
contradição e uma insuficiência.
Na medida em que a subsidiariedade impõe limites à atuação do Estado
e, simultaneamente, torna indispensáveis a ajuda e o estímulo estatal quando
ineficiente ou insatisfatória a ação do particular para realizar suas próprias
necessidades, o princípio em tela cria um paradoxo entre um dever de não
ingerência e de ingerência.57
A insuficiência, por sua vez, decorre do papel determinante e preponderante que o Estado desempenha no urbanismo, que é uma função pública e que
municia o Direito Urbanístico de instrumentos pelos quais o Poder Público
atua no domínio privado para ordenar a realidade ao pleno desenvolvimento
das funções sociais da cidade e da propriedade urbana. Assim, diante do caos
urbanístico que atinge as cidades brasileiras, não há que esperar que a atuação
estatal seja meramente subsidiária.
O próprio Estatuto da Cidade corrobora esse entendimento na medida
em que estabelece que suas normas são de ordem pública e de interesse social
(art. 1.º, parágrafo único, Lei 10.257/2001). Da mesma forma, a CF/1988
determina aos Municípios (e ao DF) que promovam o adequado ordenamento
territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da
ocupação do solo urbano (art. 30, VIII).
55
Nesse sentido: Sant’anna, Mariana Senna. Planejamento urbano e qualidade de vida – Da
Constituição Federal ao plano diretor. In: Dallari, Adilson Abreu; Di Sarno, Daniela Campos
Libório (Coords.). Direito urbanístico e ambiental. Belo Horizonte: Fórum, 2007, p. 147.
56
Op. cit., p. 53.
57
Nesse sentido: Torres, Silvia Faber. O princípio da subsidiariedade no direito público
contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 7.
noção geral de direito urbanístico
61
Com isso, não se quer, evidentemente, a substituição do caos privado pelo
caos estatal. É importante o Estado não virar as costas para a economia urbana
e o capital privado, que tem participação inevitável na dinâmica imobiliária
urbana. O Estado, na função urbanística, cumpre papel de gestor, pactuador,
coordenador e fiscalizador, estabelecendo permanentes mecanismos de contrapartida, indução ou até mesmo de proibição, quando necessária para garantia
do bem-estar dos habitantes. Assim, é fundamental inserir o setor privado e a
sociedade nos mecanismos de pactuação da regulação e do sistema decisório
em matéria urbanística, sob pena de continuar a fissura entre a cidade real e a
idealizada pelos técnicos do Poder Público.
1.3 As funções urbanísticas e as Cartas de Atenas
1.3.1 A Carta de Atenas de 1933
Dentre as várias concepções de urbanismo existentes, a que desperta
atenção é aquela extraída do 4.º Congresso Internacional da Arquitetura
Moderna (CIAM), realizado na Grécia em 1933, palco da edição da chamada
Carta de Atenas.
Naquela oportunidade, o urbanismo restou caracterizado como responsável por quatro funções básicas para o cidadão e a sociedade, quais sejam: a
habitação, o trabalho, a circulação no espaço urbano e a recreação do corpo
e do espírito, sob a inspiração dos trabalhos do arquiteto suíço Le Corbusier
(1887-1965).58
Para o urbanista francês Gastón Bardet, no entanto, a primeira Carta do
Urbanismo foi a Lei Cornudet, promulgada na França em 14 de março de
1919, fruto do trabalho do Museu Social, entidade fundada em 1908, e sua
Comissão de Higiene Urbana e Rural, presidida por Georges Risler (18531941). Segundo essa lei:
«Todas as cidades de mais de 10 mil habitantes; as comunidades do
departamento do Sena; as comunidades em vias de crescimento cuja lista seria
58
Registre-se que «Le Corbusier» era, na verdade, o pseudônimo do arquiteto suíço Charles
Edouard Jeanneret. Considerado um dos pais da arquitetura moderna e criador do movimento
conhecido como Purismo, foi ainda escritor e sua contribuição pode ser notada em todo o
mundo, como no Brasil, onde influenciou nossos principais arquitetos. Esteve três vezes no
Brasil e foi amigo dos principais arquitetos do país, como Oscar Neimeyer, Lúcio Costa e
Pietro Maria Bardi. Sua influência sobre eles pode ser sentida em diversas construções, como
no edifício do MEC, no Rio de Janeiro, na concepção do MASP e da Cidade Universitária,
em São Paulo, e na construção de Brasília, da qual lamentou não participar. Na arquitetura,
projetou edifícios que se tornaram monumentos da arte moderna, como a capela de Ronchamp e
os edifícios públicos de Chandigard, na Índia, com suas formas puras, blocos concretos e frios,
que ele chamava de «caixas de morar».
62
Paulo afonso cavichioli Carmona
estabelecida de acordo com uma proposição da Comissão Departamental de
Planejamento, Embelezamento e Extensão das cidades e aldeias; as estações
balneáreas, marítimas, hidrominerais, climáticas, esportivas e outras; as aglomerações de qualquer importância, apresentando um caráter pitoresco, artístico ou histórico inscritas numa lista estabelecida pela Comissão de Terrenos
e Monumentos Naturais; os grupos de habitações e loteamentos, enfim, as
comunidades total ou parcialmente destruídas em consequência de acidentes
de guerra, tremores de terra ou outro cataclisma, seriam obrigadas a ter um
projeto de planejamento, embelezamento e extensão.»59
1.3.2 A nova Carta de Atenas
Note-se que, em fevereiro 1998, foi editada pelo Conselho Europeu de
Urbanistas a «Nova Carta de Atenas», subscrita pelas associações nacionais
e institutos de urbanistas de onze países da União Europeia (Bélgica, Dinamarca, Alemanha, Grécia, França, Irlanda, Itália, Países Baixos, Espanha,
Portugal e Reino Unido).60
Tal documento, ao mesmo tempo em que reconhece a grande influência
da Carta de 1933, ressalta as deficiências dos tipos de estruturas e planos urbanísticos resultantes de sua aplicação, razão pela qual se prepara uma Carta
mais adequada à geração atual e às futuras, que coloca o cidadão em destaque
no momento de tomar decisões de planejamento. Destaca, ainda, os temas
relacionados com as novas necessidades urbanas, em particular em quatro
áreas fundamentais: promover o desenvolvimento econômico e o emprego,
favorecer a coesão econômica e social, melhorar o transporte e as redes transeuropeias, além de promover um desenvolvimento sustentável e uma boa
qualidade de vida.
Em seguida, destaca dez grupos de recomendações para um desenvolvimento sustentável como parte integrante do processo de planejamento: 1)
garantir uma cidade para todos; 2) promover a participação efetiva; 3) valorizar o contato humano como forma de evitar a erosão das estruturas sociais;
4) garantir a continuidade na vocação das cidades; 5) destacar os benefícios
das novas tecnologias; 6) estimular a sustentabilidade do meio-ambiente; 7)
combinar os aspectos físicos com os sociais e econômicos; 8) contemplar
uma gestão do tráfego de forma a garantir a mobilidade e acessibilidade; 9)
promover variedade e diversidade com o abandono das grandes zonas de usos
monofuncionais; e 10) tutelar as questões envolvendo saúde e segurança,
incorporando medidas de proteção contra as catástrofes naturais, criminalidade e conflitos sociais.
Op. cit., p. 24-25.
Disponível em: <www.urbanismo-portugal.com/principal.html>. Acesso em 10.10.2009.
59
60
noção geral de direito urbanístico
63
Diante das novas funções da cidade contemporânea e a partir das diretrizes da Nova Carta de Atenas, podem-se apontar as novas funções da cidade
no século XXI: cidade para todos, cidade participativa, cidade refúgio, cidade
saudável, cidade produtiva, cidade inovadora, cidade do movimento racional
e da acessibilidade, cidade do meio ambiente (ecológica/sustentável), cidade
da cultura, cidade e a continuidade de caráter (histórica).
Jorge Luiz Bernardi propõe interessante divisão das funções sociais da
cidade em três grupos, cada um com quatro funções, todos inter-relacionados.61
FUNÇÕES SOCIAIS DA CIDADE
FUNÇÕES
URBANÍSTICAS
FUNÇÕES DE
CIDADANIA
FUNÇÕES DE GESTÃO
Habitação
Educação
Prestação de Serviços
Trabalho
Saúde
Planejamento
Lazer
Segurança
Preservação do Patrimônio Cultural e
Natural
Mobilidade
Proteção
Sustentabilidade Urbana
1.3.3Habitação
Não se pode olvidar que a habitação é parte integrante dos direitos fundamentais do cidadão, razão pela qual o Estado tem a obrigação e a responsabilidade de protegê-la. Habitar é uma necessidade intrínseca à existência do ser
humano, razão pela qual o direito à habitação é inerente à vida. Daí o conceito
de Le Corbusier62 de que a moradia é o local onde o homem ou a família «vive,
dorme, anda, ouve, vê e pensa».
A moradia, aliás, por conta da Emenda Constitucional n. 26 de 2000,
passou a integrar o rol dos direitos sociais positivados na Carta Constitucional
(art. 6.º, caput).
Além disso, a Carta Magna revela a importância da habitação quando
reconhece a casa como asilo inviolável do indivíduo (art. 5.º, XI); elege a
moradia como necessidade vital básica do trabalhador e de sua família para
justificar o percebimento do salário mínimo (art. 7.º, IV); atribui à União,
Estados e Municípios competência comum para legislar sobre programas de
Bernardi, Jorge Luiz. Funções sociais da cidade: conceitos e instrumentos. Dissertação de
Mestrado. Curitiba: Pontifícia Universidade Católica do Paraná, 2006, p. 59.
62
Le Corbusier. Planejamento urbano. Trad. Lúcio Gomes Machado. São Paulo: Perspectiva,
2000, p. 67.
61
64
Paulo afonso cavichioli Carmona
construção de moradias e melhoria das condições habitacionais (art. 23, IX);
confere à moradia condição imprescindível para a aquisição da propriedade
urbana por usucapião (art. 183).
Ainda com relação aos diversos aspectos da habitação José Carlos de
Freitas bem coloca a questão, citando Nelson Hungria:
«A casa, numa visão egoística, é “um dos redutos da liberdade individual”
que se relaciona com o “interesse da tranquilidade e segurança de vida íntima
ou privada do indivíduo” e com as “condições indeclináveis à livre expansão
da personalidade humana”. Mas além de sua acepção individualista, a casa
contém um significado urbanístico. Ela é a célula de um bairro e, portanto,
deve conformar-se com as imposições relativas à taxa de ocupação, ao índice
de aproveitamento, ao gabarito, aos recuos, ao seu uso, enfim, com as regras
estruturais e funcionais de edificação urbana coletivamente considerada, que
impõem restrições padronizadas voltadas ao bem-estar de todos. O desajuste
com os modelos urbanísticos pode afetar a vizinhança ou comprometer difusamente a região. Edificações excessivamente altas projetam sombras nas
residências vizinhas, privando-as de insolação e aeração; o maior adensamento
ou o desvirtuamento do uso de uma casa residencial para o comércio, por
exemplo, acarreta maior volume de tráfego, movimentação de veículos para
carga e descarga de mercadorias, emissão de gases e poeira, ruídos desmedidos,
e também a diminuição dos espaços na via pública para estacionamento.»63
O deficit habitacional no Brasil é imenso. Era estimado, para o ano
de 2005, em 7,9 milhões de residências, sendo que 96,3% dessa demanda
se concentrava na faixa de renda de até cinco salários mínimos, bem como
existiam cerca de 1,96 milhão de domicílios em aglomerados subnormais no
Brasil.64
Os dados mais recentes demonstram que, em 2008, o deficit habitacional
era estimado em 5,546 milhões de domicílios, dos quais 4,629 milhões, ou
83,5%, estão localizados nas áreas urbanas. As famílias com renda até 5
salários mínimos totalizam 96,6% do deficit habitacional urbano (89,6% se
considerado até 3 salários mínimos), ou seja, houve um acréscimo de 0,3% em
3 anos. Do total do deficit habitacional, 36,9% localiza-se na região Sudeste,
conforme se pode observar no mapa abaixo. Na comparação entre 2008 e a
Op. cit., p. 294.
Fonte: IBGE, PNAD 2005 (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios). Disponível em:
<http://www.ibge.gov.br>. Acesso em 15.10.2011. Segundo definição do IBGE, aglomerado
subnormal é conceito que se aproxima de favela, pois se trata do «conjunto constituído por
no mínimo 51 unidades habitacionais (casas, barracos etc.) ocupando ou tendo ocupado, até
período recente, terreno de propriedade alheia (pública ou particular), dispostas, em geral, de
forma desordenada e densa. Em sua maioria são carentes de serviços públicos essenciais».
63
64
noção geral de direito urbanístico
65
estimativa recalculada de 2007 houve queda de 442.754 unidades habitacionais no montante considerado como deficit habitacional no Brasil.65
FIGURA 1 – Mapa do deficit habitacional total, segundo
Unidades da Federação – 2008
Déficit Habitacional
(n. de domicílios)
Até 100 mil
De 100 a 200 mil
De 200 a 500 mil
Mais de 500 mil
N
0
200
400
800 Km
Projeção Latitude/Longitude
Datum SAD69
Fonte: Dados básicos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), 2008. Elaboração:
Centro de Estatística e Informações/Fundação João Pinheiro.
Para enfrentar esse enorme desafio, a Lei 11.124/2005 criou o Sistema
Nacional de Habitação de Interesse Social (SNHIS), com o objetivo de: I
– viabilizar para a população de menor renda o acesso à terra urbanizada e
à habitação digna e sustentável; II – implementar políticas e programas de
investimentos e subsídios, promovendo e viabilizando o acesso à habitação
65
Ministério das Cidades. Deficit habitacional no Brasil 2008. Secretaria Nacional de
Habitação. Elaboração: Fundação João Pinheiro, Centro de Estatística e Informações. Brasília:
Ministério das Cidades, 2011, p. 29 e 35.
66
Paulo afonso cavichioli Carmona
voltada à população de menor renda; e III – articular, compatibilizar, acompanhar e apoiar a atuação das instituições e órgãos que desempenham funções
no setor da habitação (art. 2.º).
Dentre vários recursos que compõem o SNHIS (art. 6.º da citada Lei),
destaca-se o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS), criado
pela mesma Lei 11.124/2005 (arts. 7.º a 13), com o objetivo de centralizar e
gerenciar recursos orçamentários para os programas estruturados no âmbito
do SNHIS, destinados a implementar políticas habitacionais direcionadas à
população de menor renda.66
Por sua vez, a Lei 11.977/2009 criou o Programa Minha Casa, Minha
Vida (PMCMV), com a finalidade de criar mecanismos de incentivo à
produção e à aquisição de novas unidades habitacionais ou requalificação de
imóveis urbanos e produção ou reforma de habitações rurais, para famílias
com renda mensal de até R$ 4.650,00 (art. 1.º, caput, com redação dada pela
Lei 12.424/2011).
Tal programa habitacional compreende (art. 1.º): I – o Programa Nacional de Habitação Urbana (PNHU), que tem por
objetivo promover a produção ou a aquisição de novas unidades habitacionais
ou a requalificação de imóveis urbanos (art. 4.º, com redação dada pela Lei
12.424/2011). Assim, fica a União autorizada a conceder subvenção econômica ao programa para facilitar a aquisição, a produção e a requalificação
do imóvel residencial, ou complementar o valor necessário para assegurar o
equilíbrio econômico-financeiro das operações de financiamento realizadas
pelas entidades integrantes do Sistema Financeiro da Habitação (SFH) – art.
6.º;
II – o Programa Nacional de Habitação Rural (PNHR), que tem como
finalidade subsidiar a produção ou reforma de imóveis aos agricultores
familiares e trabalhadores rurais, por intermédio de operações de repasse
de recursos do orçamento geral da União ou de financiamento habitacional
66
Os recursos do FNHIS – que serão aplicados de forma descentralizada por intermédio
dos Estados, Distrito Federal e Municípios ou por meio de repasse a entidades privadas sem
fins lucrativos (art. 12) – serão destinados a ações vinculadas aos programas de habitação
de interesse social que contemplem (art. 11): a) aquisição, construção, conclusão, melhoria,
reforma, locação social e arrendamento de unidades habitacionais em áreas urbanas e rurais;
b) produção de lotes urbanizados para fins habitacionais; c) urbanização, produção de
equipamentos comunitários, regularização fundiária e urbanística de áreas caracterizadas de
interesse social; d) implantação de saneamento básico, infraestrutura e equipamentos urbanos,
complementares aos programas habitacionais de interesse social; e) aquisição de materiais para
construção, ampliação e reforma de moradias; f) recuperação ou produção de imóveis em áreas
encortiçadas ou deterioradas, centrais ou periféricas, para fins habitacionais de interesse social;
g) outros programas e intervenções na forma aprovada pelo Conselho Gestor do FNHIS.
noção geral de direito urbanístico
67
com recursos do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) (art. 11,
redação da Lei 12.424/2011). Nessa hipótese, a União também está autorizada
a conceder subvenção econômica ao programa para facilitar a produção ou
reforma do imóvel residencial, complementar o valor necessário a assegurar
o equilíbrio econômico-financeiro das operações de financiamento realizadas
pelos agentes financeiros, ou, ainda, complementar a remuneração do agente
financeiro, nos casos em que o subsídio não esteja vinculado a financiamento
(art. 13, redação da Lei 12.424/2011);
III – a autorização, prevista no art. 18, para a União transferir recursos ao
Fundo de Arrendamento Residencial (FAR) e ao Fundo de Desenvolvimento
Social (FDS).67 O FAR financia o Programa de Arrendamento Residencial,
instituído pela Lei 10.188/2001, para atendimento da necessidade de moradia
da população de baixa renda, sob a forma de arrendamento residencial com
opção de compra, programa cuja gestão cabe ao Ministério das Cidades e
sua operacionalização à Caixa Econômica Federal (CEF). O FDS, criado pelo
Decreto 103/1991 e disciplinado pela Lei 8.677/1993, também é gerido pela
CEF e destina-se ao financiamento de projetos de investimentos de relevante
interesse social nas áreas de habitação popular, saneamento básico, infraestrutura urbana e equipamentos comunitários (art. 2.º, Lei 8.677/1993);
IV – a autorização para a União participar do Fundo Garantidor da
Habitação Popular (FGHab), que tem natureza privada e patrimônio próprio,
separado do patrimônio dos cotistas, bem como visa garantir o pagamento
aos agentes financeiros de prestação mensal de financiamento habitacional,
no âmbito do SFH, devida por mutuário final, em caso de desemprego e
redução temporária da capacidade de pagamento, ou assumir o saldo devedor
do financiamento imobiliário, em caso de morte e invalidez permanente, e
as despesas de recuperação relativas a danos físicos ao imóvel; em ambos
os casos para mutuários com renda familiar mensal de até R$ 4.650,00 (art.
20, redação da Lei 12.424/2011). O FGHab concederá garantia para até
1.400.000 financiamentos imobiliários contratados exclusivamente no âmbito
do PMCMV (art. 29, redação da Lei 12.424/2011), bem como as coberturas
do FGHab, descritas no art. 20, serão prestadas às operações de financiamento
habitacional para produção ou aquisição de imóveis novos em áreas urbanas,
requalificação de imóveis já existentes em áreas consolidadas no âmbito do
PNHU, ou para produção de moradia no âmbito do mesmo Programa (art. 30,
redação da Lei 12.424/2011); e 67
As operações realizadas com recursos advindos da integralização de cotas no FAR e recursos
transferidos ao FDS são limitadas a famílias com renda mensal de até R$ 1.395,00, conforme
estabelece o art. 6.º-A da Lei 11.977/2009 (incluído pela Lei 12.693/2012).
68
Paulo afonso cavichioli Carmona
V – a autorização para a União conceder subvenção econômica ao Banco
Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) especificamente
nas operações de financiamento de linha especial para infraestrutura em
projetos de habitação popular (art. 33).
1.3.4Trabalho
O trabalho é um direito fundamental e vários comandos constitucionais
asseguram tal direito. Conforme o art. 1.º, inciso III, a República Federativa do
Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamento
a dignidade da pessoa humana; no inciso IV estão assegurados os valores
sociais do trabalho. No art. 6.º, o trabalho é consagrado um direito social. O
art. 170 estatui que a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho
humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos uma existência
digna, conforme os ditames da justiça social, observando vários princípios,
entre eles, a busca do pleno emprego. O art. 193 dispõe que a ordem social tem
como base o primado do trabalho.
Tudo isso tem a finalidade de reconhecer que o direito social ao trabalho
efetiva a dignidade do indivíduo. Deve-se aprofundar a reflexão sobre o
trabalho e o diagnóstico do flagelo do desemprego para esclarecer e denunciar
o negativo e denso impacto social da política que traz instabilidade ao trabalhador, apontando para o caminho infausto da violência. O desemprego é um
dos dilemas cruciais dos tempos hodiernos, que impossibilita um mundo mais
justo e igualitário.
Pela leitura da CF/1988 nos seus dispositivos relativos à dignidade da
pessoa humana, direitos do trabalhador e meio ambiente, conclui-se que o
legislador constituinte garantiu a proteção do meio ambiente do trabalho e,
por conseguinte, a saúde do trabalhador, como se pode inferir do disposto no
art. 200, incisos II e VIII.68
O trabalho, como função urbanística, revela que determinadas atividades
exigem, para seu sucesso, condições mínimas de sossego e tranquilidade.
É que, conforme ensina José Carlos Freitas:
«O trabalho realiza-se, de ordinário, em locais fechados, o que reclama a
observância das condições mínimas de higiene, segurança, sossego e salubridade física e mental em favor dos que labutam, quer as ditadas pela legislação
68
CF/1988, art. 200: Ao sistema único de saúde compete, além de outras atribuições, nos
termos da lei: I – controlar e fiscalizar procedimentos, produtos e substâncias de interesse para
a saúde e participar da produção de medicamentos, equipamentos, imunobiológicos, hemoderivados e outros insumos; VIII – colaborar na proteção do meio ambiente, nele compreendido
o do trabalho.
noção geral de direito urbanístico
69
da infortunística, quer pelas normas técnicas de engenharia sobre insolação,
aeração, estabilidade, solidez e funcionalidade das edificações.»69
Efetivamente, é difícil de imaginar a convivência harmônica entre uma
barulhenta ferraria e um prédio de escritórios, disputando o mesmo espaço na
urbe, o que demonstra a importância que o zoneamento70 desenvolverá nesse
tema.
Ressalte-se, ainda, que, doutrinariamente, Fernando Célio de Brito
Nogueira observou que:
«Os ruídos urbanos que atormentam a população na forma de poluição
sonora podem ser tutelados pela ACP (ação civil pública), em face do interesse
difuso que encerram, pois o repouso, o sossego e mesmo o trabalho em condições auditivas salubres são direitos assegurados a todos, tanto que a perturbação do trabalho ou do sossego alheio constitui contravenção penal com
objetividade jurídica de interesse público. A ação é pública é incondicionada.
O ruído provoca a diminuição da capacidade de concentração do indivíduo,
dispersa sua atenção, incomoda os nervos e provoca irritabilidade, podendo
chegar até a perturbações mentais.»71
Ademais, é por meio do trabalho que a pessoa garante a sobrevivência de
sua família e o crescimento do país.
Os locais de trabalho, nas grandes cidades, não estão dispostos de forma
racional no complexo urbano, pois geralmente as pessoas residem em áreas
distantes deles, tornando a circulação um pesadelo permanente para o cidadão.
1.3.5Circulação
A atenção ao sistema viário urbano surge como a terceira função
urbanística, visto que a adequada circulação das pessoas que convivem em
um território é elemento necessário para seu equilíbrio e desenvolvimento,
merecendo, aqui, alusão ao inciso XV do art. 5.º da Constituição Federal, que
garante ao cidadão o direito de liberdade de locomoção, além do disposto no
§ 2.º do art. 230, que assegura a gratuidade para pessoas maiores de sessenta
e cinco anos nos transportes coletivos.
Freitas, José Carlos de. Dos interesses metaindividuais urbanísticos. In: Caohurb – Centro
de Apoio das Promotorias de Justiças da Habitação e Urbanismo. Temas de Direito Urbanístico.
São Paulo: Ministério Público do Estado de São Paulo/Imprensa Oficial, 1999, p. 295.
70
Conforme Hely Lopes Meirelles, o zoneamento urbano consiste na repartição da cidade e
das áreas urbanizáveis segundo a sua precípua destinação de uso e ocupação do solo, como,
por exemplo, residenciais, comerciais, industriais e institucionais. Direito de construir. 9. ed.
atualizada por Eurico de Andrade Azevedo; Adilson Abreu Dallari e Daniela Libório Di Sarno.
São Paulo: Malheiros, 2005, p. 127.
71
Nogueira, Fernando Célio de Brito. Ação civil pública por poluição sonora, cabimento e
legitimidade do MP. RJ 239, set. 97, p. 21-25.
69
70
Paulo afonso cavichioli Carmona
Anotem-se ainda os seguintes dispositivos constitucionais relacionados
ao tema: art. 7.º, inciso IV (transporte como uma das necessidades básicas
vitais que o salário mínimo deverá abarcar), art. 21, incisos XII, alíneas d e
e, XX (competência material da União em transportes), art. 22, incisos IX e
XI (competência legislativa privativa da União sobre trânsito e transporte),
art. 30, inciso V (competência dos Municípios e Distrito Federal acerca do
transporte coletivo), e art. 208, inciso VII (ensino público fundamental com
programas suplementares de transporte, entre outros).
O sistema viário é composto por vias extraurbanas (fora do perímetro da
cidade ou de áreas urbanizadas, tais como ferrovias, rodovias, estradas e caminhos) e vias urbanas, que são os logradouros (compreendem ruas, avenidas,
alamedas, praças, largos, travessas, becos, jardins, ladeiras, parques, viadutos,
pontes, galerias, rodovias, todos de uso comum do povo). É por essas vias de
circulação que se desenvolvem o trânsito e o tráfego, que, para Hely Lopes
Meirelles,72 significam o deslocamento de pessoas e coisas pelas vias públicas,
ainda que o trânsito tenha por objeto a circulação, e o tráfego, o transporte;
assim, se um caminhão circula vazio por uma rodovia está em trânsito; se
carrega mercadoria, está em tráfego.
A par disso, resta evidente que o planejamento urbanístico deve também
levar em conta a circulação de pessoas e semoventes em condições adequadas,
ou seja, o sistema viário deve ser ordenado de modo a dar cumprimento às
funções urbanas.73
José Afonso da Silva destaca as funções estética e psicológica do traçado
urbano, esclarecendo, quanto à primeira, que «elementos de destaque do
traçado urbano, como pontes, viadutos, arcos, passeios devem merecer toda a
atenção do urbanista, porque distinguem a imagem da cidade»; já no tocante
à segunda, aduz que «a multiplicidade e diversidade de formas não devem ser
exageradas, para não dificultar a orientação».74
Meirelles, Hely Lopes. Direito municipal brasileiro. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 1985, p.
319. Ressalta-se que esta obra praticamente inaugurou o Direito Urbanístico no Brasil.
73
«A cidade é palco de permanentes contradições econômicas, sociais e políticas. Essas
contradições podem ser vistas nos espaços de circulação da cidade, onde há permanente
disputa entre seus diferentes atores, que se apresentam como pedestres, condutores e usuários
de veículos motorizados particulares ou coletivos. A necessidade de movimento dos cidadãos
depende de como a cidade está organizada territorialmente e vinculada funcionalmente com as
atividades que se desenvolvem no espaço urbano. Essas duas esferas, organizacional e física,
e suas contradições, atingem primeiramente as populações mais pobres e menos protegidas,
onde a circulação e a acessibilidade ao espaço urbano são intensamente reduzidas». In: Duarte,
Fábio, Libardi, Rafaela e Sánchez, Karina. Introdução à mobilidade urbana. Curitiba: Juruá,
2007, p. 11.
74
Op. cit., p. 309-310.
72
noção geral de direito urbanístico
71
Para Le Corbusier, as circulações eram como o próprio sangue das
cidades, ligando as unidades de habitação, trabalho, cultura do espírito e do
corpo, e agrárias.75 Todavia, o intenso e muitas vezes caótico trânsito nas
grandes cidades brasileiras degrada a qualidade de vida do cidadão, demonstrando que as veias da urbe estão entupidas, prontas para um verdadeiro
infarto.
Os carros são, na maioria das grandes cidades, os principais responsáveis
por congestionamentos e ocupação de ruas e praças, originando dificuldades
de mobilidade que atrasam o normal desenrolar da vida das urbes, causando
enormes prejuízos econômicos e psicológicos.76 São também os principais
responsáveis pela ineficiência ambiental e pelo descumprimento das metas do
Protocolo de Kyoto.77
Esse terrível quadro do cotidiano só demonstra a imediata necessidade
de se adotarem soluções inteligentes, que já resolveram em muitos países,
grandes problemas de tráfego, congestionamento e poluição sonora. O uso
da bicicleta como transporte urbano é sem dúvida a solução de maior êxito,
moderna e inteligente que se pode ter de exemplo.
A bicicleta foi eleita pela Organização das Nações Unidas (ONU) como
símbolo de transporte sustentável do planeta, já que reúne várias qualidades
como: baixo custo de aquisição;78 excelente exercício físico para todas as
idades; simplicidade de funcionamento; ausência de poluição química ou
sonora; diminui o congestionamento da cidade; importante instrumento de
inclusão social.
75
«As capitais não têm artérias, têm apenas capilares; o crescimento marca-lhes a doença e
a morte. Para sobreviverem, sua existência está há muito tempo nas mãos de cirurgiões que
retalham sem cessar». In: Le Corbusier. Urbanismo. Trad. Maria Ermantina Galvão. São
Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 07.
76
Como exemplo, na véspera do feriado de Corpus Christi em São Paulo, dia 10.06.2009,
houve novo recorde nacional de congestionamento: 293 km. Na capital paulista são 6,4 milhões
de veículos (mais de um para cada dois habitantes), dos quais 500 mil são motos, que poluem,
no mínimo, seis vezes mais do que os veículos; 100 mil são motoboys, dos quais dois perdem a
vida por cada dia.
77
O Protocolo de Kyoto é um instrumento internacional, ratificado em 15 de março de 1998,
que visa reduzir as emissões de gases poluentes. Estes são responsáveis pelo efeito estufa e o
aquecimento global. O Protocolo de Kyoto entrou oficialmente em vigor no dia 16 de fevereiro
de 2005, após ter sido discutido e negociado em 1997, na cidade de Kyoto (Japão).
78
A conta é simples: se uma empresa adquirir para seus empregados 100 bicicletas a um custo
unitário de R$ 200,00, gastaria R$ 20.000,00, enquanto, com vales-transportes para os mesmos
100 trabalhadores, a empresa gastaria R$ 129.600,00 por ano. A economia seria, portanto,
de R$ 109.600,00 em um ano, isso se considerado que todas as bicicletas tivessem apenas a
durabilidade anual, o que não corresponde à realidade. Programa da Sportv «Sportv Repórter»
de 08.04.2012. Disponível em <http://sportv.globo.com>. Acesso em: 20.04.2012.
72
Paulo afonso cavichioli Carmona
O Brasil é o terceiro maior fabricante e possui a quinta maior frota de
bicicletas do mundo (a primeira é a China), porém tem uma baixa quantidade
de ciclovias, que normalmente se confundem com áreas de lazer.79 A criação
de ciclovias ou ciclofaixas80 bem projetadas e sinalizadas aumentaria consideravelmente a segurança no trânsito, diminuiria drasticamente acidentes com
ciclistas e aumentaria o incentivo do uso desse meio alternativo de transporte
em nosso país.
Nessa área, a cidade mais lembrada é Amsterdã, que possui mais bicicletas do que habitantes.81 Aliás, na Holanda existem 16,2 milhões de pessoas
e quase 16,2 milhões de bicicletas. Uma brincadeira que o povo de lá usa é:
«se a sua bicicleta vale mais que o cadeado dela, ela será roubada».
TABELA 1 – Gráfico da extensão de vias adequadas ao trânsito de
bicicletas em relação à extensão do sistema viário
em cidades do Brasil, 2008
300
250
240
200
150
118
100
70
50
47
35,7
19
18
14,5
7,8
Cuiabá
Porto
Alegre
0
Rio de
Janeiro
Curitiba
Sorocaba Brasília
São Paulo
Salvador
Belo
Horizonte
Fonte: Mobilize Brasil – Mobilidade Urbana Sustentável.
Disponível em: <http://www.mobilize.org.br/estatisticas>.
A investigação indica que as cidades que investem em planejamento e
desenho urbano adequados para o uso da bicicleta têm alcançado resultados
79
Hamburgo é campeã mundial: 1.850 km de ciclovias, seguida Berlin (650), Nova York
(675), Paris e Bogotá – ambas com 350 km.
80
As ciclovias são pistas exclusivas com separações físicas de outros elementos viários,
como nos interiores dos parques ou na cidade de Bogotá; já as ciclofaixas são áreas partilhadas
com outros sistemas de transporte, em geral a beirada das ruas, como ocorrem em Toronto,
Washington ou Paris, e, por isso, dependem de uma sinalização adequada para a separação de
outros sistemas de transporte.
81
A cidade de Sapiranga, na região metropolitana de Porto Alegre, destaca-se no tema, pois
tem cerca de 77.000 habitantes, 40.000 bicicletas e 35.000 carros, sendo considerada, no
Brasil, «a cidade da bicicleta». Disponível em: <http://www.sapiranga.rs.gov.br/index.php/
municipio_hoje>. Acesso em: 15.02.2012.
noção geral de direito urbanístico
73
positivos quanto à mobilidade urbana em geral, com notável diminuição do
uso de transportes automotores, valorização do uso de sistemas coletivos,
diminuição dos níveis de poluição aérea e sonora, resultando em melhor qualidade de vida para todos.
Pode ser observado que, embora a maioria dos casos referenciais esteja
em países fora dos limites sul-americanos, um dos principais destaques é o
caso de Bogotá, na Colômbia, a quarta cidade mais populosa da América do
Sul, atrás apenas de São Paulo, Rio de Janeiro e Buenos Aires. A cada dia,
mais de 350 mil colombianos usam a bicicleta em Bogotá, o que representa
5% dos deslocamentos. Isso a converte na cidade latino-americana que mais
utiliza a bicicleta de forma cotidiana, graças aos seus muitos quilômetros de
ciclovias bem sinalizadas e distribuídas por todas as regiões da cidade.
Paris também passou por uma experiência recente no assunto. Nas palavras do ex-prefeito Bertrand Delanoé, «em termos de locomoção, o século
XXI tem que ser ecológico antes de tudo. E para que as pessoas não queiram
usar o carro, que é muito poluente, é preciso que elas tenham várias opções:
metrô ou ônibus, aluguel de carros menos poluentes, bonde elétrico, barcas
e, agora, bicicletas públicas». Trata-se do projeto público VELIB (mistura
das palavras velocípede e liberté, bicicleta e liberdade), com uma estação
de aluguel e devolução de bicicletas a cada 300 metros (são cerca de 750
na cidade, com 20 mil bicicletas), o que aumenta a disposição de utilizar o
sistema, cujo aluguel é feito por meio de cabines usando o cartão de crédito,
e é exatamente essa combinação de meios de transporte livres e não poluentes
que compõe uma cidade moderna.82
A recente Lei 12.587/2012 instituiu a Política Nacional de Mobilidade
Urbana, que tem por objetivo contribuir para o acesso universal à cidade, o
fomento e a concretização das condições que contribuam para a efetivação
dos princípios, objetivos e diretrizes da política de desenvolvimento urbano,
por meio do planejamento e da gestão democrática do Sistema Nacional de
Mobilidade Urbana (art. 2.º). Tal política de desenvolvimento urbano (art.
21, XX, CF/1988) tem fundamento nos seguintes princípios: I – acessibilidade universal; II – desenvolvimento sustentável das cidades, nas dimensões
socioeconômicas e ambientais; III – equidade no acesso dos cidadãos ao
transporte público coletivo; IV – eficiência, eficácia e efetividade na prestação
dos serviços de transporte urbano; V – gestão democrática e controle social
do planejamento e avaliação da Política Nacional de Mobilidade Urbana;
82
Programa da TV Globo News «Cidades e Soluções» de 14.05.2008. Disponível em <http://
g1.globo.com>. A cidade do Rio de Janeiro adotou sistema de compartilhamento de bicicletas
semelhante ao de Paris, com o programa Bike Rio, iniciado em outubro de 2011, que contém
60 estações de locação espalhadas pela cidade.
74
Paulo afonso cavichioli Carmona
VI – segurança nos deslocamentos das pessoas; VII – justa distribuição dos
benefícios e ônus decorrentes do uso dos diferentes modos e serviços; VIII
– equidade no uso do espaço público de circulação, vias e logradouros; e IX –
eficiência, eficácia e efetividade na circulação urbana (art. 5.º).83
1.3.6Recreação
Por fim, destaca-se, de forma complementar à vida urbana, a questão
da recreação, uma vez que é necessário também que o cidadão tenha como
refazer suas forças após o trabalho, o que está consagrado no texto constitucional, no citado art. 6o, que prevê expressamente o lazer entre os direitos
sociais. Além disso, deverá ser incentivado como forma de promoção social
(art. 217, § 3.º, Carta da República).
Segundo José Afonso da Silva, há de se distinguir lazer e recreação:
enquanto esta é a entrega ao divertimento, ao esporte, ao brinquedo, aquele é
a entrega à ociosidade repousante; porém ambos possuem a mesma finalidade,
qual seja, «refazer as forças depois da labuta diária e semanal», bem como
«requerem lugares apropriados, tranquilos, repletos de folguedos e alegrias em
outro», que são os jardins, parques, praças de esporte, praias e áreas verdes.84
Uma atividade que não pode ser considerada lazer ou recreação e que,
normalmente desenvolvida por jovens das grandes cidades, degrada a urbe e
deteriora o espaço público é a pichação.
Rodolfo de Camargo Mancuso defende raciocínio no sentido de que «há
um interesse difuso a que seja preservada a estética urbana, e não há dúvida
de que esse valor jurídico vem sendo diuturnamente ameaçado em alguns e
afrontado em outros, em razão das pichações prometidas ou concretizadas»,
citando como exemplo a pichação em edifícios de grande interesse estético,
histórico e artístico, como o Teatro Municipal e o Museu de Arte, constantes
alvos dos pichadores, recordando a realizada no Cristo Redentor, no Rio de
83
Referida lei prescreve, no art. 24, § 2.º, que, nos Municípios sem sistema de transporte
público coletivo ou individual, o Plano de Mobilidade Urbana deverá ter o foco no transporte
não motorizado e no planejamento da infraestrutura urbana destinada aos deslocamentos a
pé e por bicicleta. Estabelece ainda que o Plano de Mobilidade Urbana é o instrumento de
efetivação da Política Nacional de Mobilidade Urbana, obrigatório para Municípios acima de
20.000 habitantes e em todos os demais obrigados, na forma da lei, à elaboração do plano
diretor. Tais cidades terão o prazo máximo de três anos a contar da promulgação da referida lei
para elaborá-lo, findo os quais, ficarão impedidas de receber recursos orçamentários federais
destinados à mobilidade urbana até que atendam à mencionada exigência.
84
Op. cit., p. 279.
noção geral de direito urbanístico
75
Janeiro, quase sempre feitas por gangues que disputam pichações mais acrobáticas e arriscadas.85
Assim, tem proeminência, no meio ambiente artificial,86 a degradação do
patrimônio urbano histórico e cultural, notadamente por meio de pichações.
As diversas construções da grande São Paulo são vítimas da ação dos
grupos de pichadores, que utilizam um estilo único com letras, denominado
Tag Reto.87
FIGURA 2 – Exemplo de pichação com Tag Reto
na cidade de São Paulo
Fonte: Pichação.com.
Disponível em: <http://www.pichacao.com/adrenalina.htm>. S/d.
Mancuso, Rodolfo de Camargo. Aspectos jurídicos da chamada «pichação» e sobre a
utilização da ação civil pública para tutela do interesse difuso à proteção da estética urbana. RT
679/62.
86
«Meio ambiente artificial abrange o meio ou os elementos que sofreram intervenção do ser
humano, transformando seu aspecto ou essência, dando-lhes utilidade ante as necessidades do
ser humano» (In: Di Sarno, Daniela Campos Libório. Op. cit., p. 91).
87
Tag é um termo que deriva da denominação utilizada pelos grafiteiros e tem origem em
Nova York e quer dizer assinatura. O tag reto foi difundido pelos pichadores de São Paulo e é
mais que uma assinatura, já se tornou um estilo de letra. Surgiu como elemento diferenciador
dos grupos de pichadores que foram buscando desenhos próprios para as letras. Esse estilo de
letra é caracterizado por letras retas, alongadas e pontiagudas, que procuram ocupar o maior
espaço possível no suporte e o surgimento desse estilo de letras típico de São Paulo é único no
mundo. Disponível em: <http://www.pichacao.com/adrenalina.htm>. Acesso em: 22.11.2011.
Acerca do tema: Lassala, Gustavo. Os tipos gráficos da pichação: desdobramentos visuais.
Dissertação de mestrado em educação, arte e história da cultura. Universidade Mackenzie,
2007.
85
76
Paulo afonso cavichioli Carmona
A Lei 9.605/1998 estabelece crimes contra o ordenamento urbano e o
patrimônio cultural (arts. 62/65) e, entre eles, tipificou como crime a atividade
de pichação no seu art. 65, cuja nova redação, dada pela Lei 12.408/2011
descriminalizou o ato de grafitar, assim entendido o grafite realizado com o
objetivo de valorizar o patrimônio público ou privado mediante manifestação
artística.
Despejo na Favela
Adoniran Barbosa
Quando o oficial de justiça chegou
Lá na favela
E, contra seu desejo entregou pra seu Narciso um
aviso pra uma ordem de despejo
Assinada seu doutor
Assim dizia a petição: dentro de dez dias quero a
favela vazia e os barracos todos no chão
É uma ordem superior,
Ô meu senhor, é uma ordem superior
Não tem nada não, seu doutor, não tem nada não
Amanhã mesmo vou deixar meu barracão
Não tem nada não seu doutor, vou sair daqui pra não
ouvir o ronco do trator
Pra mim não tem problema, em qualquer canto me
arrumo, de qualquer jeito me ajeito
Depois, o que eu tenho é tão pouco, minha mudança
é tão pequena que cabe no bolso de trás
Mas essa gente ai hein, como é que faz?
Capítulo II
A VIOLÊNCIA
Sumário: 2.1 Considerações preliminares – 2.2 Conceito e objeto de violência
– 2.3 Violência e poder na visão de Hannah Arendt – 2.4 Violência urbana:
uma construção contemporânea – 2.5 Multicausalidade da violência urbana;
2.5.1 Homo sapiens ou homo violens?; 2.5.2 Complexidade das causas da
violência; 2.5.3 Multicausalidade da violência; 2.5.4 Causas sociais: a pobreza
e a segregação do espaço urbano; 2.5.5 Causas culturais: a cultura da violência
e os meios de comunicação; 2.5.6 Causas econômicas: a desigual distribuição
de renda e a questão da impunidade; 2.5.7 causas biopsicológicas: a desproporcionalidade das condutas violentas.
2.1 Considerações preliminares
Ceilândia-DF.1 Era um dia comum na Panificadora e Confeitaria Dupão,
localizada na QNP 14. Dona Lola, a proprietária, abriu o estabelecimento por
volta das 6 horas da manhã, como normalmente fazia. Enquanto o padeiro
João estava nos fundos da padaria, na produção, a proprietária estava mais
à frente, varrendo o chão. Era o último dia do mês de julho de 2005. O dia
amanhecia com sol.
1
Ceilândia, situada a 26 km do Plano Piloto de Brasília, é Região Administrativa do Distrito
Federal e a cidade-satélite mais populosa, marcada pela exclusão social, pobreza e violência
urbana, surgiu a partir da Campanha de Erradicação de Invasões (CEI – daí seu nome
CEI-lândia), que aconteceu em 27 de março de 1971 pelo governo local.
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Sobre
o Autor
bibliografia
1
Paulo Afonso Cavichioli Carmona
é mestre e doutor em Direito
Urbanístico (Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo). Professor de
Direito Administrativo e Urbanístico
dos cursos de pós-graduação
da Fundação Escola Superior do
Ministério Público do Distrito
Federal e Territórios (FESMPDFT).
Professor de Direito Administrativo e
Urbanístico da graduação, especialização e mestrado do Centro Universitário
de Brasília (Uniceub). Líder do Grupo de Pesquisa em Direito Público e Política
Urbana (GPDPPU – Uniceub). Membro e atual coordenador do Centro-Oeste
do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico (IBDU). Membro do Conselho
Deliberativo da Funpresp-JUD. Juiz de Direito (TJDFT).
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