ROBERTO SIMONSEN, WLADIMIR WOYTINSKY E O PERÍODO ENTREGUERRAS:
ELEMENTOS DE QUESTIONAMENTO À ORTODOXIA
Luiz Felipe Bruzzi Curi1
Resumo
O artigo procura contribuir para o aprofundamento da compreensão do pensamento econômico de Roberto
Simonsen, articulando-o com o quadro de questionamento da ortodoxia econômica do período entreguerras. Para
isso, são analisados textos do autor e de um contemporâneo seu, o economista russo, atuante na Alemanha da Grande
Depressão, Wladimir Woytinsky. Numa confluência de história do pensamento e história econômica, enfocam-se
dois momentos específicos da atuação desses pensadores, que permitem vê-los como questionadores da ortodoxia
vigente. No caso de Simonsen, aborda-se sua manifestação diante da visita ao Brasil da missão financeira inglesa de
1924 (missão Montagu). Para Woytinsky, o momento escolhido é a elaboração do plano de combate à crise de 193032, no âmbito do movimento sindical alemão. Por fim, mostra-se como esses dois autores abordaram a questão da
reconstrução europeia no pós-guerra, de forma a realçar as linhas de sintonia entre suas elaborações. Disso resulta a
percepção de que Roberto Simonsen é um pensador articulado a esse movimento de ruptura, ainda que ambivalente e
condicionada, da ortodoxia econômica, no período entreguerras.
1. Introdução/justificativas
Roberto Simonsen é reconhecidamente um autor da maior importância para as origens do desenvolvimentismo
no Brasil, entendendo-se desenvolvimentismo como uma ideologia de transformação social, baseada na
industrialização integral e na convicção de que seria impossível atingir essa industrialização somente pelas forças do
livre mercado.2 Nesse sentido, este trabalho pretende contribuir para a compreensão do pensamento econômico de
Roberto Simonsen, inserindo-o num movimento de ruptura com a ortodoxia econômica, que se desenrola no período
entreguerras. O termo ortodoxia econômica tem aqui um sentido amplo, mas historicamente determinado. Trata-se do
receituário de política econômica predominante, no mundo ocidental, de meados do século XIX até a consolidação da
Revolução Keynesiana, nos anos 1930-40. Tal receituário é baseado na defesa da moeda, na austeridade fiscal e na
crença no livre-mercado. Ressalte-se que a existência de um receituário predominante não implica que ele seja único:
neste período, as ideias marxistas, por exemplo, têm ampla difusão internacional. Mesmo o marxismo, todavia, por
vezes será refém de sua própria ortodoxia: como veremos, o apego à ideia de que a crise representa a derrocada final
do sistema capitalista impede que sejam sugeridas propostas inovadoras de política econômica, no sentido do
1
Mestrando em História Econômica (USP).
Esse sentido de desenvolvimentismo é delimitado por Bielschowsky (2000).
2
1
estímulo à demanda e do fomento ao crescimento. A ortodoxia, em sentido amplo, refere-se a esse quadro em que
prevalecem, por diversas razões, concepções ligadas à defesa da sound currency e do equilíbrio orçamentário.
O estudo desse período permite captar duas dimensões importantes da produção simonseniana. A primeira delas
é a sugestão de propostas inovadoras – fomento à indústria, diversificação produtiva – inserida ainda na lógica da
economia ortodoxa do início da década de 1920. Essa dimensão está presente na carta que Simonsen envia à missão
Montagu em 1924: ainda que tenha o objetivo explícito de mostrar aos credores que o Brasil é um país capaz de
honrar seus compromissos internacionais, Simonsen deixa claro que essa capacidade não pode ser mantida se o país
for apenas um exportador de café. Essa convivência de proposições inovadoras com uma lógica ortodoxa é
característica dessa fase da produção simonseniana, em que o projeto industrialista ainda não estava solidificado.
A segunda dimensão é a articulação da obra de Simonsen com discussões internacionais e com outros autores
que estavam inseridos no mesmo ambiente de produção de ideias econômicas. É com objetivo de captar esse tipo de
sintonia que se faz uma incursão por alguns escritos de Wladimir Woytinsky, economista russo citado por Simonsen
em texto de 1931. Woytinsky atua, neste momento, na Alemanha da República de Weimar e elabora, no âmbito do
movimento sindical, um plano de combate à crise econômica que não chega a ser implementado. Mostra-se que as
concepções de Simonsen e Woytinsky sobre a reconstrução europeia e sobre as formas de estímulo à economia são
convergentes.
O artigo segue uma organização temática, mais do que cronológica. Após esta introdução, são apresentados
aspectos metodológicos envolvidos na elaboração deste trabalho. A seção 3 refere-se ao contexto histórico de ruptura
com a ortodoxia no período entreguerras, com destaque para o esquema explicativo de Peter Gourevitch e os
relatórios da Liga das Nações. Na seção 4, o foco é a atuação de Wladimir Woytinsky junto ao movimento sindical
alemão e sua tentativa frustrada de que a social-democracia aceitasse um plano de estímulo à demanda, como forma
de contrarrestar a crise do início dos anos 1930. A seção 5 recua no tempo para mostrar como, atuando num contexto
periférico, Roberto Simonsen reage à visita da missão Montagu ao Brasil, em 1924. Por fim, na seção 6, faz-se uma
articulação das abordagens desses dois autores sobre o problema europeu no pós-Primeira Guerra. A seção 7 é
dedicada às considerações finais.
2. Aspectos metodológicos
A literatura distingue pelo menos duas linhagens básicas de trabalhos, no campo da história do pensamento
econômico. A distinção é entre uma pesquisa mais voltada para a história da análise econômica, no sentido
schumpeteriano do termo, e uma investigação mais ampla, voltada para o contexto histórico-social em que se dá a
formulação de ideias. Blaug3 propõe a denominação “absolutista” para a primeira abordagem e “relativista” para a
segunda, chamando a atenção para as virtudes e deficiências de cada uma delas. Na abordagem absolutista, o
procedimento é extrair o núcleo téorico relevante da obra de cada autor, percebendo a lógica interna de seus
3
Blaug (1962), ver especialmente a Introdução.
2
argumentos e suas articulações com teorias anteriores e posteriores. Na linhagem relativista, isto é, numa abordagem
mais ligada à história das ideias, o importante é reconstituir o contexto histórico da formulação do pensamento
econômico. Os dois procedimentos – extração do núcleo teórico e reconstituição histórica – não são mutuamente
excludentes: pelo contrário, são necessários ao historiador do pensamento econômico. A questão é a ênfase a se
adotar. Neste trabalho, a ênfase é claramente a reconstituição do momento histórico como forma de se aproximar do
pensamento econômico.
O motivo dessa escolha está relacionado ao tipo de produção em estudo e às fontes utilizadas na pesquisa.
Roberto Simonsen e Wladimir Woytinsky, mais do que acadêmicos, foram autores que atuaram politicamente:
formularam propostas de política econômica e elaboraram explicações para os problemas econômicos com os quais
se defrontavam e que estavam na ordem do dia. Nesse sentido, é necessária uma confluência de história do
pensamento com história econômica. Não se consegue entender, por exemplo, a atuação de Wladimir Woytinsky na
Alemanha da Grande Depressão somente analisando a validade teórica de sua ideia de estímulo à demanda por meio
de obras públicas.
Os textos originais utilizados neste trabalho são: a carta de Roberto Simonsen à missão Montagu, de 1924; a
conferência do mesmo autor, proferida no Mackenzie College de São Paulo, em 1931; o livro de Wladimir
Woytinsky, Estados Unidos da Europa, publicado em francês em 1927; e autobiografia deste último autor, publicada
postumamente em 1961. O uso das memórias de Woytinsky requer cautela, por ser uma fonte subjetiva e representar
o ponto de vista do autor sobre os debates de ideias que ele próprio travou. Ainda assim, trata-se de fonte muito rica
para a reconstrução de um debate econômico em que a tentativa de romper com a ortodoxia aparece de forma
exemplar. Como se vê, não se trata de compêndios teóricos, mas de textos ligados a eventos históricos sobre os quais
os autores eram chamados a se posicionar. Por tudo isso, justifica-se a escolha por uma abordagem mais ligada à
reconstituição histórica.
Nos dois momentos da obra de Simonsen que se estudam neste trabalho – carta à missão Montagu e conferência
de 1931 – há uma dimensão de difusão internacional das ideias econômicas. O estudo desse processo é, no dizer de
José Luís Cardoso, “um poderoso instrumento que visa tanto melhor compreensão do processso de formação da
ciência econômica quanto uma tomada de consciência das suas implicações sobre o funcionamento e a mudança da
realidade econômica e social num contexto nacional determinado”4. No caso da missão financeira inglesa, o estudo da
reação de Simonsen mostra como o autor, embora aceite a validade da política econômica em vigor, que visava à
contratação de um empréstimo de consolidação em Londres, apresenta certas considerações ligadas ao contexto
nacional brasileiro, não contempladas no receituário dos banqueiros britânicos. No que se refere à convergência com
certos argumentos defendidos por Woytinsky, demonstra-se que Simonsen está inserido num ambiente de discussão
econômica que não se restringe ao Brasil. Esse contraponto com ideias, propostas e autores provenientes de outras
realidades nacionais permite perceber elementos da gestação de um pensamento econômico brasileiro, condicionada,
4
Ver Cardoso (2009).
3
pelas conjunturas econômicas, pelos interesses dos formuladores de ideias e de políticas, em suma, pelo contexto
histórico em questão. Dessa forma, estudar a difusão internacional das ideias é contribuir para a construção de uma
história nacional do pensamento econômico, no sentido dado por Cardoso.
Por fim, vale fazer uma observação sobre a estruturação do artigo. Primeiro, apresentam-se elementos para a
compreensão desse período histórico de ruptura com a ortodoxia econômica: o período entreguerras. Depois, passa-se
à reconstituição da atuação de Woytinsky em 1930-32 na Alemanha e recua-se no tempo para apresentar Roberto
Simonsen e sua manifestação diante da missão Montagu. O objetivo desse recuo é mostrar a atuação de dois autores,
em seus respectivos contextos, num ambiente de questionamento à ortodoxia com a qual se confrontavam. Os
contextos são distintos, é claro. Woytinsky atua na Alemanha, a essa altura uma potência industrial, a braços com uma
crise de proporções inéditas e uma esquerda ortodoxa que se recusa a aceitar medidas de estímulo à economia.
Simonsen se vê chamado a mostrar a uma missão financeira inglesa que a solidez financeira do Brasil não pode
depender apenas do café e da estabilização cambial: deve passar pela diversificação produtiva e pela substituição de
importações. Ambos estão, desse modo, questionando as concepções predominantes, cada um condicionado por seu
ambiente histórico. Por fim, escolhe-se um eixo temático – a reconstrução alemã/europeia – sobre o qual os dois
autores se debruçam (Simonsen na conferência de 1931 e Woytinsky no livro de 1927) para se captar a sintonia entre
esses dois pensadores, mostrando que fazem parte do mesmo ambiente de discussão econômica.
3. O questionamento da ortodoxia econômica nos anos entreguerras
No período que, grosso modo, vai da Primeira à Segunda Guerra houve um movimento, que se refletiu em
diversos países, de questionamento da ortodoxia econômica vigente. O receituário de política econômica à disposição
dos governos até os anos iniciais da década de 1930 pode ser descrito como ortodoxo: de um lado, as políticas
clássicas de austeridade fiscal e defesa do câmbio; de outro, as ideias marxistas de socialização da economia. Nesse
momento crítico entre a Primeira Grande Guerra e a Grande Depressão, no entanto, essas ortodoxias são
questionadas, abrindo-se a possibilidade para a formulação de ideias e de políticas econômicas inovadoras. Esse
processo de questionamento da ortodoxia econômica se dá de forma específica em cada país, condicionado por
fatores econômicos e políticos particulares. Aparecem, nesse contexto, autores que, de diversos pontos de vista,
questionam esse modelo, herdado do século XIX, de pensar a economia e agir sobre ela.
O pano de fundo geral para esse movimento é o que Hobsbawm chamou de “era da catástrofe”, isto é, 31 anos
de um processo entrecortado de guerras e revoluções que vai da eclosão da Primeira Guerra Mundial, em 1914, à
rendição incondicional do Japão em 1945.5 O envolvimento em conflitos bélicos pressupõe que nações se
transformem em economias de guerra e, dessa forma, surge o problema fiscal fundamental de como deveria ser
financiado o conflito. Nesse contexto, os Tesouros Nacionais e ministérios de Finanças eram vistos como
comandantes das economias de guerra: “se se tinha de travar a guerra em escala moderna, não só seus custos
5
Hobsbawm (1995).
4
precisavam ser levados em conta, mas sua produção – e no fim toda a economia – precisava ser administrada e
planejada.”6
Nos anos entreguerras, o cenário era propício à perda de confiança na ortodoxia do livre mercado, mesmo
porque a Grande Depressão, que acometeu todo o mundo ocidental, foi uma crise sem precedentes. O Estado que
emergiu na Rússia após a Revolução de 1917, a União Soviética, foi comparativamente menos atingido pela crise do
que os países capitalistas, o que contribuiu para a desconfiança do mundo ocidental com relação ao livre-mercado,
sendo evidenciadas as possibilidades que a planificação econômica representava. Nesse sentido, por mais que a
possibilidade de efetivação do receituário marxista envolvesse rupturas complexas, ele deixara de ser apenas
especulação teórica e constituía uma espécie de ameaça aos países capitalistas industrializados.
A questão da ruptura com a ortodoxia em alguns países industrializados foi analisada por Peter Gourevitch, por
meio de um esquema interpretativo que, embora simplificador, é elucidativo para o estudo desse contexto de
formulação de ideias econômicas. Com o colapso dos mercados acionários de 1929 e a crise subsequente, os países se
viram diante da tarefa de restaurar a ordem capitalista vigente antes do desastre. No entanto, as alternativas de política
econômica que se colocavam eram justamente aquelas já referidas: de um lado a ortodoxia livre-cambista e
deflacionista e, de outro, os marxistas. O argumento de Gourevitch é que estas alternativas implicavam num jogo de
soma zero, pois, nos dois casos, uma grande parcela da sociedade tomaria para si todas as vantagens, em detrimento
da outra. Na concepção deflacionista, o estímulo à economia deveria vir do lado da oferta, por meio da redução dos
custos de produção. Altos salários desencorajam o investimento e a produção: a solução para a crise passaria,
portanto, por uma transferência maciça de renda dos trabalhadores para a classe capitalista, deteriorando as condições
de vida, já pioradas pela crise, da classe trabalhadora. Por outro lado, ao adotar-se a solução coletivista, os capitalistas
seriam expropriados dos meios de produção. Em suma, eram alternativas muito pouco factíveis, do ponto de vista
político e social, na maioria dos países ocidentais.7
Duas alternativas colocavam-se, então, para o encaminhamento da crise. A primeira, chamada por Gourevitch de
“neo-ortodoxia” misturava elementos de protecionismo com um tipo de mercantilismo. Baseava-se na desvalorização
cambial, em tarifas e na regulação do mercado. A segunda alternativa consistia no estímulo à demanda, isto é, faziamse déficits públicos para gastar com obras e transferências de renda. Esta segunda alternativa representava uma ruptura
mais substancial com as ortodoxias vigentes. A Inglaterra teria seguido a primeira alternativa, inovando pouco em
termos de política econômica. Já a Alemanha nazista seria o país que mais fielmente perseguiu políticas de deliberado
estímulo à demanda. A realização dessas duas linhagens de política econômica foi muito mais complexa do que o
esquema deixa transparecer, como reconhece o próprio autor. A complexidade reside nas conexões entre economia,
política e sociedade. O tipo de política adotado por cada país dependerá do acordo possível entre capitalistas,
6
Idem, p. 53.
Gourevitch (1986), pp. 127-131.
7
5
trabalhadores e produtores rurais e em nenhum dos casos fez-se uma escolha por apenas uma dessas duas alternativas
“ideais” mencionadas por Gourevitch. O que houve foram combinações dessas alternativas.
O resultado desse processo de questionamento da ortodoxia será o consenso, que se estabelece nos anos 1940 e
dura até a crise dos 1970-80, em torno do Estado de bem-estar. Trata-se de um acordo entre capital e trabalho. O
capital mantém a propriedade privada dos meios de produção como instituto inquestionável, ao passo que os
trabalhadores recebem a garantia de salários razoáveis e de seguridade social. É nesse arranjo sócio-econômico,
gestado nesse movimento de questionamento das concepções econômicas ortodoxas herdadas do século XIX, que se
baseará a chamada “era de ouro” do capitalismo. Do ponto de vista das ideias econômicas, não é demais lembrar que
esse consenso a que nos referimos está muito relacionado com a adoção das propostas teóricas keynesianas, mas seria
algo anacrônico referir-se ao keynesianismo como política econômica colocada em prática nos anos entreguerras,
devido ao simples fato de que a teoria de Keynes estava, neste momento, em gestação. Não há dúvida, toadavia, que
esse contexto de ruptura com as políticas econômicas ortodoxas no entreguerras tem influência decisiva sobre o
pensamento do próprio Keynes.8
Esse processo de ruptura da ortodoxia econômica também esteve associado, no plano internacional, à
transferência de hegemonia da Grã-Bretanha para os Estados Unidos.9 Essa situação pode ser percebida quando se
leva em conta a política monetária no período entreguerras, ainda em momento anterior à crise de 1929. As
discussões monetárias desse período se davam muito em torno da questão da adesão ou não ao padrão-ouro, isto é, ao
câmbio fixo. Barry Eichengreen argumenta que o padrão-ouro clássico somente teria funcionado, para os países
industrializados, da década de 1870 até a Primeira Guerra, isto é, num período em que o sistema internacional estava
claramente organizado em torno da hegemonia britânica. A partir do momento em que esse sistema se abala, com o
conflito de 1914-18, não há mais a solidariedade internacional que garantiria a estabilidade do esquema de câmbio
fixo. Com a eclosão da Primeira Guerra e a imposição de controles às remessas de ouro, o sistema é rompido10. Existe
uma tentativa de retorno ao padrão-ouro, que se restabelece de forma pouco estável entre 1926 e 1931, mas o advento
da Grande Depressão desorganiza o sistema novamente. O primeiro país a desvalorizar sua moeda, pós-crise de 1929,
é a Áustria, em 1931, seguida pela Alemanha e pela Grã-Bretanha.11
A situação de recessão dos anos 1930 leva os países atingidos pela crise a utilizarem do expediente da
desvalorização cambial para estimular suas economias por meio de exportações mais competitivas do que as dos
países vizinhos: os países praticam, nesse período da década de 1930, aquilo que alguns autores chamam de
8
Davidson (2011, pp. 27-41)
A questão do declínio da hegemonia britânica é objeto de extensa literatura, que não será abordada aqui. Convém mencionar apenas alguns
marcos que balizam aquilo que chamamos de queda da hegemonia britânica. Hobsbawm (1995, pp. 101-102) argumenta que, já depois da
Primeira Guerra, os Estados Unidos já eram quase tão internacionalmente dominantes quanto se tornariam depois da Segunda Guerra, por dois
motivos básicos: já respondiam por em torno de um terço da produção industrial mundial e eram os credores do mundo. Numa perspectiva de
longo prazo, Arrighi (1996), situa a hegemonia britânica como em declínio a partir da Grande Depressão da década de 1870, tendo sua crise
terminal justamente em 1931.
10
Eichengreen (2000, pp. 76-77).
11
Idem, pp. 114-122.
9
6
desvalorização “empobreça-o-próximo” [beggar-thy-neighbour devaluation].12 Nesse sentido, percebe-se que a
desvalorização cambial e o abandono do padrão-ouro no período entreguerras têm um caráter de ruptura, no campo
da política econômica, com certa concepção de economia que vigorara durante o século XIX, isto é, durante o período
de hegemonia britânica. “Mesmo antes do desmantelamento do império, contudo, o colapso do padrão ouro no que se
refere à libra esterlina, em 1931, marcou a crise terminal da dominação britânica sobre o capital do mundo.” 13
Outro argumento para a desestruturação do padrão-ouro, defendido por Eichengreen e convergente com a ideia
de Gourevitch a respeito do “acordo” entre capital e trabalho, é a questão das prioridades a serem assumidas pelo
Estado. Já nas décadas de 1920-30, os trabalhadores (movimentos operários, partidos políticos trabalhistas, etc.) já
têm algum peso político nas sociedades desenvolvidas, de modo que os Estados nacionais não estão dispostos a
defender a moeda a qualquer preço: o custo político e social de medidas deflacionárias cujo objetivo único é a
estabilidade cambial é muito mais alto, neste momento, do que o fora no século XIX. A expansão econômica passa a
figurar, também, entre os objetivos a serem perseguidos pelas autoridades.14
Vale lembrar, todavia, que essas rupturas com a ortodoxia, embora tenham de fato ocorrido do ponto de vista das
políticas econômicas adotadas, convivem com um discurso de austeridade e de estabilidade monetária. Essa
ambivalência se reflete nos debates que se travaram no âmbito da Liga das Nações.15 Patricia Clavin identifica essa
convivência de uma realidade que exigia medidas mais ousadas com um discurso ortodoxo nos relatórios da Gold
Delegation, formada em 1928 na Liga, e que deveria debruçar-se sobre a questão da escassez nas reservas mundiais
de ouro e sobre o impacto negativo que isso teria sobre os preços mundiais16. Vale lembrar que este momento está
inserido no curto período de vigência do padrão-ouro no entreguerras (1926-31). Interessa aqui constatar, quanto aos
relatórios da Gold Delegation, que o Segundo Relatório Preliminar, publicado em janeiro de 1931 e escrito em meio
ao pânico da crise que se iniciara em 1929, não continha menção alguma à crise econômica: “para o Segundo
Relatório Preliminar, a Grande Depressão não existia”17.
Já no Relatório Final (1932), embora a Gold Delegation afirme que seu objetivo não é estudar a depressão
corrente, apresenta um diagnóstico ortodoxo da crise. Baseado em teorias de equilíbrio de preços, o Relatório
argumentava que a Depressão teria sido causada por fatores exógenos, tais como a inflação durante e após a Primeira
Guerra, a gastança governamental e as rigidezes de preço. Todavia, Paricia Clavin identifica posições divergentes,
colocadas em notas ao Relatório Final. A primeira nota é de Albert Janssen, Robert Mant e Henry Strakosch; a
segunda é de Gustav Cassel. A argumentação presente nessas notas – ou no “relatório da minoria”, como ficou
conhecido – era que fatores monetários, como a má distribuição das reservas mundiais de ouro, teriam, sim,
contribuído para a crise. A conclusão era que uma reforma monetária, juntamente com um programa de expansão
12
Idem, p. 127.
Arrighi, (1996, p. 179).
14
Eichengreen (2000, pp. 129-130).
15
A Liga das Nações, órgão de cooperação internacional criado após a Primeira Guerra, existiu, formalmente, de 1919 a 1946.
16
Clavin (XXXX, p. 224)
17
Idem, p. 225.
13
7
creditícia, seriam o remédio adequado para a depressão.18 Este é um exemplo claro de que, embora houvesse um
movimento de formulação de novas concepções econômicas, na esteira da transferência da hegemonia internacional e
da crise econômica, estas ideias e propostas de política econômica estavam longe de ser predominantes na cena
internacional.
O reflexo dessa conjuntura de ruptura ambivalente com a ortodoxia econômica se manifesta não só no centro do
capitalismo mundial, mas também em contextos periféricos, como a América Latina. Para os países periféricos, onde
o estabelecimento do padrão-ouro sempre foi problemático devido à vulnerabilidade externa e às diferenças
institucionais com relação ao centro do capitalismo, a manutenção da ortodoxia deflacionista frente a um cenário de
severa restrição externa, como foi a crise dos anos 1930, é quase impossível. A periferia, exportadora de gêneros
primários, é duplamente afetada em contextos de guerra e de crise econômica: retraem-se as exportações por causa do
arrefecimento da demanda no centro e reduzem-se as entradas de divisas via conta de capital.19
Para o caso brasileiro, essa articulação, específica do contexto periférico, entre ruptura com uma paridade fixa
(depreciação do câmbio) e preservação do nível interno de renda, por meio de políticas de estímulo à demanda, foi
feita por Furtado em seu trabalho clássico.20 Em última instância, essas rupturas no centro capitalista mundial se
refletem no Brasil, em termos da argumentação furtadiana e cepalina, na reconfiguração da dependência externa
brasileira, já que o Brasil muda seu tipo de inserção na divisão internacional do trabalho: o modelo primárioexportador dá lugar à industrialização por substituição de importações. Sem entrar nos pormenores dessa discussão,
vale frisar aqui a ideia de que essa ruptura ambivalente com a ortodoxia econômica, motivada por diversos fatores
associados – entre os quais a Primeira Guerra, o declínio do sistema britânico de organização econômica e a crise dos
anos 1930 – tem consequências específicas sobre a periferia. É sobre exemplos de interação entre esses eventos
históricos do entreguerras e a formulação e difusão de ideias econômicas que tratam as duas seções seguintes.
4. Wladimir Woytinsky e a Grande Depressão na Alemanha
A reconstrução da Europa no pós-Primeira Guerra e a recuperação econômica dos países ocidentais no contexto
da Grande Depressão foram questões que ocuparam os economistas em boa parte do mundo. Foram oportunidades de
reflexão que motivaram elaborações inovadoras, no sentido de ruptura com a ortodoxia discutido até aqui. Roberto
Simonsen e Wladimir Woytinsky foram autores, inseridos nesse movimento, que se posicionaram, cada um em seu
contexto, sobre essas questões. Haja vista que suas elaborações apresentam considerável afinidade, a incursão pelos
escritos de Woytinsky pode ajudar a compreender melhor a produção de Simonsen, como parte desse movimento
questionador da ortodoxia.
Wladimir Woytinsky (1885-1960) foi um economista russo, membro do Partido Social-Democrata Russo e
editor da revista Izvetsia. Exilou-se na Geórgia, após a Revolução de 1917, fugindo da perseguição política que
18
Idem, pp. 225-226.
Idem, p. 80.
20
Furtado (2006).
19
8
acossou aqueles que, por diversas razões, não aderiam ao governo bolchevique liderado por Lênin. Trabalhou como o
representante diplomático da Geórgia até o país ser encampado pela URSS, em 1922. Woytinsky se instalou, então,
na Alemanha da República de Weimar, onde permaneceu até a ascensão do nazismo, em 1933, quando partiu para a
Suíça e para os Estados Unidos, onde viveu até 1960. Suas obras mais influentes e conhecidas nos EUA são World
Population and Production (1953) e World Commerce and Governments (1955)21. São grandes coleções de dados
econômicos e políticos, que Woytinsky compilou e interpretou, em co-autoria com sua esposa, Emma Woytinsky.
Woytinsky é um exemplo claro de autor que esteve diretamente inserido no movimento de questionamento à
ortodoxia no período entreguerras. Em seu período na Alemanha, esteve envolvido, no âmbito da Confederação Geral
Sindical Alemã (ADGB, na sigla original),22 com a elaboração de um programa para debelar os reflexos da Grande
Depressão na Alemanha, em 1929-30. Bem nos termos de Gourevitch discutidos anteriormente, Woytinsky tinha
uma proposta de estímulo à demanda para salvar a economia alemã, e essa proposta esbarrou na ortodoxia vigente –
no caso de Woytinsky, a discussão não era com a ortodoxia neoclássica, mas com o marxismo dominante na socialdemocracia alemã. O plano baseava-se em gastos públicos com obras e inflação controlada, com o objetivo de
aquecer a economia. Em sua autobiografia, Woytinsky tenta explicar as propostas daquilo que ficou conhecido como
“política econômica ativa”:
[A política econômica ativa] era construída em torno de duas ideias – obras públicas e o suporte dos preços
através de créditos bancários para financiar essas obras. A segunda proposta implicava gasto público e
desequilíbrio orçamentário não somente como meio de financiar obras públicas, mas também como veículo para
se injetar poder de compra no sistema econômico anêmico e reverter a espiral deflacionária.23
A ideia de usar o desequilíbrio orçamentário como forma de conscientemente estimular a demanda é certamente
inovadora para o contexto de 1929-30. Woytinsky tenta esclarecer, algumas linhas adiante, as ideias que o teriam
influenciado na elaboração deste plano:
Naquele momento, eu ainda não era familiarizado com os trabalhos iniciais de Keynes, que teriam me ajudado
no desenvolvimento de meus argumentos. Mas nos relatórios sobre política do ouro da Seção Financeira da Liga
das Nações, encontrei a resposta para o problema. Um aumento moderado no poder de compra ou na moeda em
circulação elevaria o nível de preço ou interromperia o seu declínio, encorajando a expansão da produção, sem o
perigo de uma depreciação descontrolada da moeda. Em parte sob a influência desses relatórios, decidi
apresentar meu plano em termos de uma política internacional contra a crise mundial.24
Mais uma vez, aparece a convivência de concepções ortodoxas com ideias inovadoras. Segundo o próprio autor,
não teriam sido as propostas keynesianas que o teriam influenciado, mas, sim, os relatórios da Liga das Nações, que,
como vimos, a essa altura ainda são marcados por concepções ortodoxas, influenciadas pelo Reino Unido. De fato, a
ideia de que o aumento na moeda em circulação “elevaria o nível de preço ou interromperia seu declínio” está ligada à
21
Não há espaço aqui para uma biografia mais extensa de Wladimir Woytinsky. Sua autobiografia Stormy Passage, Woytinsky (1961), fornece
grande riqueza de dados sobre sua trajetória e sobre os agitados momentos históricos que viveu de perto.
22
Esta instituição – o Allgemeiner Deutscher Gewerkschaftsbund – foi a confederação sindical alemã durante a República de Weimar. Fundado
em 1919, o ADGB existiu até 1933, com a proibição dos sindicatos pelo regime de Hitler.
23
Woytinsky (1961), p. 464. Os trechos de obras de Woytinsky aqui citados são traduções livres dos trechos originais em inglês, no caso do livro
Stormy Passage (1961), e em francês, no caso de Les États Unis de l’Europe (1927).
24
Idem, p. 464.
9
concepção, convencional na economia até hoje, de que um aumento de numerário circulante se reflete em preços. O
aspecto não usual do argumento consiste em propor que o Estado adote deliberadamente esse tipo de política
inflacionária, fazendo déficit orçamentário financiado por emissões, com vistas à construção de obras públicas. O
Estado deveria gerar inflação para combater a espiral deflacionária. A ousadia da proposta fica ainda mais clara
quando se tem em conta que se trata da Alemanha, que vivera uma hiperinflação no início dos anos 1920.
De fato, a proposta era muito ousada para ser aceita, até nos círculos da esquerda. Embora houvesse alguma
simpatia pela ideia das obras públicas entre as lideranças do Partido Social-Democrata Alemão (SPD), a memória da
hiperinflação ainda era viva e a liderança intelectual de Hilferding, que se opunha ao plano, era inquestionável. Ainda
seguindo as memórias de Woytinsky, o conflito de ideias entre W. Woytinsky, que elaborara seu plano no âmbito do
ADGB, e Hilferding, se agravou quando da desvalorização da libra pelo Reino Unido, em julho de 1931. Nessa
ocasião, o conselho do ADGB se reuniu para ouvir Hilferding sobre a desvalorização britânica. Nas palavras de
Woytinsky:
Perguntei a Hilferding: “Como a desvalorização da libra vai afetar o desemprego na Inglaterra?”
“O desemprego vai aumentar”, ele respondeu sem hesitar. (...)
Então eu disse a Leipart [líder do ADGB] “(...) Hilferding fez sua previsão. Eu arriscarei a minha: a GrãBretanha atravessou um marco. Seu crédito será reforçado, outros países seguirão seu exemplo e depreciarão
suas moedas. As exportações britânicas crescerão, sua produção se expandirá e seu desemprego declinará. A
Grã-Bretanha está saindo da crise!”.25
Com o cuidado que se tem de ter com uma fonte que representa o ponto de vista de apenas um dos
interlocutores no debate, a passagem é interessante por mostrar o impacto, sobre os formuladores de ideias
econômicas, de um evento de ruptura como foi a desvalorização britânica de 1931, que significou, como já foi
discutido, a desagregação do padrão-ouro, no bojo do processo de declínio da predominância mundial britânica. De
fato, a previsão de Woytinsky se verificou e a economia do Reino Unido se recuperou, como de resto várias
economias se recuperaram após soltarem as amarras do padrão-ouro.
Com a crise se agravando na Alemanha, Woytinsky continua a campanha pelo programa de obras públicas e
busca o apoio de Fritz Baade, economista do SPD e membro do Reichstag, e Fritz Tarnow, presidente do Sindicato
dos Madeireiros, para a elaboração de um plano prático, que ficou conhecido como Plano WTB, as iniciais dos três
formuladores. Nas eleições de 1932, os nazistas haviam conquistado 230 das 568 cadeiras do Reichstag e a maioria
parlamentar era formada por nazistas e comunistas, correntes pouco simpáticas à autoridade da República de Weimar.
É nesse espírito que o SPD se reúne para discutir o plano WTB, em 1932. Mais uma vez, não se chega a um
consenso. Woytinsky reproduz da seguinte forma a posição de Hilferding:
“Colm e Woytinsky”, [Hilferding] disse, “estão questionando os fundamentos de nosso programa [do SPD], a
teoria de Marx do valor-trabalho. Nosso programa se baseia na convicção de que o trabalho, e só o trabalho, cria
valor. Os preços se desviam do valor-trabalho sob o impacto da interação de oferta e demanda. Depressões
resultam da anarquia do sistema capitalista. Ou elas chegam a um fim, ou têm de levar ao colapso do sistema. Se
25
Woytinsky (1961), pp. 467-468.
10
Colm e Woytinsky pensam que podem mitigar uma depressão com obras públicas, estão apenas mostrando que
não são marxistas.”26
Mais uma vez, trata-se da fala de Woytinsky relatando Hilferding, mas, dentro do raciocínio marxista daquele
momento, de fato não parece haver possibilidade de conceber um programa de obras públicas. A depressão era vista
como sintoma da derrocada do sistema. Como se sabe, o plano WTB não foi adotado e, ao longo dos anos 1930, a
esquerda alemã se desarticulou, com a ascensão do regime autoritário nazista. O que vale reter desse relato da atuação
de Woytinsky no meio político-partidário alemão é a presença, nesse contexto do período entreguerras, de um embate
de ideias econômicas: novas propostas eram elaboradas, mas esbarravam em concepções já estabelecidas, por vezes
institucionalmente arraigadas.
5. Roberto Simonsen e a missão Montagu: elementos de questionamento no Brasil
Nos países latino-americanos, a ideia de convivência entre um receituário ortodoxo de política econômica com
uma situação que acabou por exigir a adoção de medidas que rompiam com a tradição clássica é exemplificada pelas
missões dos chamados money doctors, que visitaram a América Latina para recomendar medidas de política
econômica e firmar acordos financeiros, com vistas à estabilidade econômica dos países devedores. No caso dos
money doctors ingleses, o objetivo mais claro das visitas era garantir que os países mantivessem o pagamento de suas
dívidas externas, defendendo assim os interesses financeiros da City de Londres na América do Sul. Destaca-se aqui
um money doctor em especial: Edwin Montagu27. Montagu era britânico e esteve em missão no Brasil, em 1923-24.
Não se deve esquecer que, dentro do referido quadro de transferência de hegemonia mundial, a participação do Reino
Unido no comércio externo latino-americano estava em declínio, com os Estados Unidos ganhando espaço; todavia, o
país ainda representava o maior capital nominal investido na América do Sul, em forma de financiamentos e de
empréstimos.28 As missões financeiras devem ser entendidas, dessa forma, como partindo de uma potência cuja
hegemonia econômica já está em declínio, mas cuja predominância financeira, nas praças latino-americanas, ainda é
inquestionável.
Antes de entrar na discussão sobre a visita de Montagu e a reação de Simonsen, vale recapitular as articulações
entre a política monetária brasileira e o padrão-ouro, durante a República Velha. No período de “plena vigência” do
padrão-ouro (1870-1914) o Brasil adotou a conversibilidade após o ajuste feito com o Convênio de Taubaté e a
criação da Caixa de Conversão, em 1906. O câmbio fixo perdura até 1914, quando, com a eclosão da Primeira
Guerra, a Caixa é fechada. Segue-se um período de câmbio flexível até 1926, quando o governo implanta uma
reforma monetária e cria a Caixa de Estabilização, nos mesmos moldes da Caixa de Conversão, cujo objetivo era a
26
Idem, p. 471. Gehrard Colm era um reputado acadêmico, que foi escolhido por Woytinsky para ser o porta-voz do ADGB – e do plano WTB
– na reunião com os representantes do Partido Social-Democrata.
27
Edwin Montagu (1879-1924) foi um político liberal inglês, que se notabilizou pelas funções que desempenhou, junto ao governo britânico,
como Secretário de Estado para a Índia (1917-1922). Destituído de seu posto por questões político-partidárias, teve vários empregos na City
londrina, de 1922 a 1924. Ver Packer (2012).
28
Saes (2008), pp 47-48.
11
emissão de notas conversíveis em ouro. Vale lembrar que, ao eclodir a crise de 1929, a primeira reação do governo
Washington Luís é aferrar-se à ortodoxia, intensificando os efeitos da recessão. Como se sabe, essa situação mostrouse insustentável, contribuindo para a derrocada do regime político da República Velha.29
Marcelo de Paiva Abreu e Pedro Loureiro de Souza argumentam que a missão Montagu aconteceu devido à
pretensão do governo brasileiro de levantar um empréstimo de 25 milhões de libras junto à casa Rotschild para sanar
o déficit público, que em 1923 atingira dois terços dos gastos totais. A casa bancária londrina não se dispôs a
recomendar o empréstimo ao governo federal sem maiores conhecimentos da situação financeira brasileira: enviouse, então, ao Brasil uma missão financeira, chefiada por Edwin Montagu, com o objetivo de verificar se o Brasil tinha
condições assumir o compromisso financeiro que o empréstimo acarretaria.
O relatório privado da missão continha a recomendação de que se levantasse um novo empréstimo, dado que se
cumprissem as propostas feitas ao governo brasileiro. Essas medidas recomendadas incluíam: equilíbrio
orçamentário, melhora na gestão do orçamento, reformas tributárias e limites ao gasto governamental. Os projetos de
envolvimento do governo no setor siderúrgico deveriam ser congelados. O governo deveria considerar a venda de
ativos como ferrovias e empresas de transporte para cumprir compromissos financeiros, em caso de necessidade.
Uma comissão mista público-privada deveria tratar da questão das tarifas ferroviárias, ponto de atrito entre interesses
britânicos e brasileiros. O programa de valorização do café foi criticado. O empréstimo, afinal, não foi levantado,
devido a um embargo a empréstimos externos que se implantou em Londres em meados de 1924.30
É neste contexto que Roberto Simonsen escreve o texto chamado “Necessidade de estabilização cambial”, na
verdade uma carta enviada à missão Montagu em 8 de fevereiro de 1924, que Simonsen também remeteu a
Washington Luís, à época presidente do estado de São Paulo e a Carlos de Campos, líder da bancada paulista na
Câmara Federal. Simonsen é enfático no início de seu texto: “Sustento que o nosso problema fundamental é o da
estabilização cambial.”31 Passa, em seguida, a uma explicação do fato de ser o café a principal fonte de crédito do
Brasil, em sua balança comercial.
Sendo o café um produto de que o Brasil tem praticamente o monopolio, as oscillações cambiaes não
desorganizam a sua producção. De facto, o cambio subindo muito rapidamente, é sempre possivel promover
uma valorização do producto pela sua simples retenção nas mãos dos vendedores, dada a impossibilidade dos
mercados irem se suprir sufficientemente de outros fornecedores. O mesmo não acontece, porém, com o
algodão, a carne, o fumo e outros productos agricolas e materias primas dos quaes não temos privilegio
ou monopolio da producção.32 (grifo meu).
Ou seja, o café era nossa principal fonte de recursos pela posição monopolista ocupada pelo Brasil no mercado
internacional. Essa posição dava ao Brasil, neste momento, certa independência das oscilações cambiais. No caso de
outros produtos de exportação, porém, o comportamento da taxa de câmbio, mais especificamente a possibilidade de
valorização repentina da moeda nacional, tem papel importante, chegando a determinar a oferta ou não de tais
29
Fritsch (1990) pp. 41-52.
Abreu e Souza (2011), pp. 10-12; Fritsch (1990), pp. 53-54.
31
Simonsen (1924), p. 144.
32
Idem.
30
12
produtos pelo Brasil. Vale lembrar que este é um momento em que o Brasil adotava um regime de câmbio flexível,
estando em curso um processo de depreciação do mil-réis (final de 1923 e 1924)33. “A taxa cambial ao nivel baixo
em que actualmente se encontra constitue, certamente, por algum tempo, um forte premio para a exportação.”34 As
exportações brasileiras, todavia, não necessariamente se deveriam restringir ao café: “é incontestavel que o Brasil
offerece, neste momento, uma grande opportunidade para o desenvolvimento e exportação de outros produtos.”35
Simonsen propõe, então, um esquema de política econômico-financeira baseado no desenvolvimento do plantio
do algodão, por considerar que o Brasil tem grande potencial para produzir este gênero, aproveitando que possui um
custo mais baixo do que o norte-americano, o que tornaria a cotonicultura nacional mais competitiva que a dos EUA.
Os peritos financeiros e technicos, determinariam o custo médio da producção do algodão nos Estados Unidos e
no Brasil; e estabeleceriam, algebricamente, uma taxa de cambio a vigorar para o Brasil, calculada de tal fórma
que o custo da producção do algodão no paiz, transformado em ouro, ficasse 10% inferior ao custo de producção
do algodão nos Estados Unidos.36
O Brasil deveria, portanto, adotar uma taxa cambial que fosse favorável ao aproveitamento dessa oportunidade
identificada no setor algodoeiro. Há dois aspectos a se notar nessa proposta de Simonsen. O primeiro é bem evidente.
Simonsen pretende mostrar aos financistas ingleses que o Brasil tem condições de, com as divisas obtidas, não só pela
venda de café, mas pela exportação de outros gêneros, fazer frente aos seus compromissos externos. O que estava em
jogo era um empréstimo de 25 milhões de libras, por meio do qual o governo brasileiro pretendia regularizar sua
situação financeira. Nesse sentido, Simonsen pretende mostrar aos credores que o Brasil conta com fontes potenciais
de divisas que não somente a lavoura cafeeira. Um segundo aspecto, talvez menos perceptível, é que Roberto
Simonsen atrela a possibilidade de o Brasil ser um país com finanças sólidas, capaz de fazer frente aos seus
compromissos, à diversificação produtiva. Somente a lavoura cafeeira não seria suficiente para isso.
Não se trata aqui de uma defesa aberta da industrialização planejada, nem do protecionismo, como Simonsen
fará em momentos posteriores de sua obra. O documento analisado é a carta de um industrial a uma missão financeira
estrangeira: uma peça de convencimento, para que o Brasil consiga levantar um empréstimo para regularizar suas
finanças. Aparecem, no entanto, argumentos que, embora inseridos no vocabulário e na lógica ortodoxa da política
econômica do momento, apontam na direção da diversificação da economia brasileira. O raciocínio seria: o câmbio
fixo (nos termos do padrão-ouro) seria importante não só para garantir a inserção do Brasil nos fluxos de capitais
internacionais, mas também para que se permitisse, por meio da eliminação da incerteza cambial, a diversificação de
nosso parque produtivo, por meio, por exemplo, da cotonicultura de exportação.
O argumento fica mais claro quando Simonsen se refere aos “outros problemas”, para além do cambial.
“Debatemo-nos em forte crise de transportes, em deficiencia de organização e de credito e na falta da regularização da
33
Fritsch (1989), p. 53
Simonsen (1924), p. 145.
35
Idem.
36
Idem, p. 146.
34
13
importação.”37. O problema dos transportes deveria ser resolvido com a atração de capitais externos, sobretudo
ingleses, visando ao fornecimento de material ferroviário. O encaminhamento da questão do crédito passaria pela
establização do câmbio, que, aliada a uma “politica bancaria convicente” traria para o Brasil correntes de numerário,
organização da produção e, como corolário, facilidades creditícias. Quanto à questão da pauta de importações,
Simonsen é mais enfático:
Impõe-se, a meu vêr, uma politica do Governo, facilitando a importação de machinas, ferro, aço, carvão
e productos medicinaes e tornando verdadeiramente prohibitivas as importações de productos de luxo.
Do contrario, correremos sempre os riscos de orgias na importação em certos Estados do Brasil, em momentos
de grande abundancia de recursos regionaes, prejudicando toda a nação. Essa medida em nada virá affectar a
Inglaterra que é, para orgulho de seus filhos, productora principalmente de artigos de primeira necessidade.38
(grifo meu).
Há aqui novamente dois eixos. Por um lado, Simonsen pretende mostrar aos ingleses que o Brasil não
desperdiçará divisas com importações de produtos de consumo conspícuo, de modo a priorizar compromissos
financeiros, como o empréstimo que se desejava levantar em Londres. Por outro, as importações deveriam ser
controladas por meio de uma política consciente do governo, de modo a garantir o fornecimento dos insumos
necessários à indústria nacional em vias de se implantar: “machinas, ferro, aço, carvão”. Mais uma vez, a solidez
brasileira passa não só por uma política de “economia de divisas” para fazer frente aos compromissos externos, mas
pela diversificação produtiva. No caso do trecho acima, passa pelo fomento à indústria que se instalava, por meio de
uma política deliberada de substituição de importações.
A reivindicação por uma política de discriminação de importações faz sentido ao se notar que a década de 1920 é
um momento de diversificação da indústria de transformação brasileira. Wilson Suzigan argumenta que é neste
momento que o investimento na indústria brasileira passa a não se concentrar primordialmente em ramos
complementares à economia exportadora: diversifica-se para os setores de bens intermediários, como cimento, ferro e
aço, produtos químicos, fertilizantes, papel e celulose e para o setor de bens de capital. Todavia, este ainda é um
período em que a formação de capital industrial ainda depende do desempenho da economia exportadora, devido ao
grau de dependência externa para fornecimento de insumos e bens de capital. Nesse sentido, Simonsen está fazendo a
reivindicação de uma indústria que estava em plena expansão e diversificação da capacidade produtiva (o
investimento industrial se mantém elevado para praticamente toda a década de 1920, segundo Suzigan), mas que
ainda depende fortemente de importações.39
Seria demais dizer que Roberto Simonsen usa a carta à missão Montagu para promover a industrialização. O que
se pretende frisar é que, dentro do contexto aludido de ruptura – ambivalente e condicionada – com um modelo
ortodoxo de pensar a economia e de fazer política econômica, Simonsen traz, em sua carta, elementos questionadores,
associados às necessidade de um setor industrial em diversificação. Não há dúvida de que a linguagem usada é a da
37
Simonsen (1924, p. 146).
Idem, p. 147.
39
Suzigan (2000), pp. 90-93 e pp. 261-264.
38
14
ortodoxia dos money doctors. Simonsen mostra à missão Montagu que o Brasil tem capacidade de pagamento para
contrair um empréstimo externo. Mas, para tal, a economia brasileira deveria passar por certas reformulações, na
direção da diversificação produtiva. A sugestão de que o governo deveria, conscientemente, discriminar importações
em favor dos insumos industriais, mesmo que atrelada a uma ideia de estabilização, não é algo que se inclui no
receituário professado pelos money doctors.
O argumento simonseniano, neste momento de início dos anos 1920, ainda não incorpora questões como a
superação do atraso ou a industrialização programada, que Simonsen abordará posteriormente: o que fica claro é que,
para se enquadrar na lógica ortodoxa da solidez financeira, o Brasil deveria adotar certas prioridades, na direção da
diversificação da sua pauta de exportações e do fomento à indústria. Dentro dos termos do questionamento à
ortodoxia no período entreguerras, neste caso ainda anterior à crise dos anos 1930, o que se tem é uma argumentação,
relativa aos problemas brasileiros, que incorpora sugestões inovadoras, embora ainda não esteja calcada num sólido
projeto industrialista. A construção desse projeto – e da consciência nacional a respeito da industrialização – é um
processo longo, que ganha força considerável a partir de 1930, no governo Vargas.40 O tipo de argumentação adotado
por Simonsen posteriormente reflete essa solidificação do projeto industrialista, como ficariá claro na sua análise das
questões europeias, que será articulada às elaborações de Woytinsky na próxima seção.
6. Roberto Simonsen, W. Woytinsky e a renconstrução europeia
A primeira afinidade entre Simonsen e Woytinsky se dá no campo do projeto intelectual engajado e no aporte
histórico que ambos trazem à economia. O projeto intelectual de Simonsen, da forma expressa por ele próprio em seu
livro clássico de 1937, História econômica do Brasil, se relaciona com o estudo da história econômica, com vistas à
superação dos entraves brasileiros.41
Procuraremos determinar, pela evolução comparativa entre os povos, a razão do atraso de nossas atividades
econômicas em determinadas épocas e para determinadas regiões. (...). Esforçar-nos-emos, enfim, por indagar a
origem dos muitos entraves que dificultaram e dificultam, a nossa evolução progressista.42
Em seu livro Estados Unidos da Europa,43 publicado em alemão em 1926 e em francês em 1927, Wladimir
Woytinsky, expõe seu projeto de reconstrução da Europa no pós-Primeira Guerra. Esse processo deveria passar pela
unificação política e econômica do continente, de modo a permitir uma integração que evitasse uma escalada de
autoritarismo e violência, que fatalmente levaria a novos conflitos bélicos. A ideia fundamental é que o principal
40
A questão da construção da ideologia industrialista e desenvolvimentista no Brasil é objeto de discussão de uma extensa literatura, que não será
discutida aqui, dado o limitado escopo do trabalho. A ideia de que o projeto industrialista é conscientemente apoiado pelo poder público a partir
do governo Vargas é defendida por Fonseca (2003), que se contrapõe ao argumento furtadiano da industrialização como resultado das políticas
de preservação da renda do setor cafeicultor.
41
A discussão mais geral do projeto ideológico e intelectual de Roberto Simonsen é feita por Cepêda (2003). Aqui nos referimos ao fato de que
um elemento importante desse projeto intelectual era o estudo da história econômica, para subsidiar a elaboração de propostas de superação do
atraso.
42
Simonsen (1937), p. 24.
43
O livro a que tivemos acesso, na Biblioteca da FFLCH/USP, é a edição francesa de 1927, intitulada Les États Unis d’Europe.
15
objetivo a ser atingido deveria ser a estabilidade econômica. “Eis o caminho que conduz à segurança da Europa: ele
passa pela economia e, antes de tudo, pelo estudo da evolução econômica”44. Ambos os autores estão envolvidos com
estudos de história econômica, cujo objetivo é a compreensão da realidade com a qual se defrontam, tendo em vista a
possibilidade de agir sobre ela, de forma a modificá-la.
Um dos principais aportes intelectuais de Simonsen é justamente introduzir, para o caso brasileiro, um enfoque
histórico sobre as questões econômicas. Isso abre a possibilidade do planejamento e da intervenção sobre a economia,
com vistas a induzir o desenvolvimento.45 O fato de Simonsen estar em contato com um autor que também estuda a
evolução econômica com vistas a superar certos entraves reforça a ideia de que estava envolvido num ambiente
amplo de formulação de ideias econômicasm que passava pelo estudo da história e das especificidades da evolução e
do atraso de cada economia nacional.
Roberto Simonsen se manifesta sobre as questões europeias em texto publicado sob o título “As finanças e a
indústria”, na verdade uma conferência proferida no Mackenzie College de São Paulo, em 8 de abril de 1931.46 Essa
palestra já está inserida num momento mais maduro da produção simonseniana, em que o projeto industrialista do
autor já está mais sólido. Para Vera Cepêda, o momento que inaugura a chamada “segunda fase” da produção de
Simonsen é a fundação do Centro das Indústrias do Estado de São Paulo, que teria significado a ruptura com os
interesses do comércio, marcando a autonomização do projeto industrialista.47 A Associação Comercial de São Paulo,
entidade que antes congregara os interesses de todos os ramos de negócios no estado de São Paulo, quando de fato era
o capital comercial o eixo da vida econômica paulista, fora cindida entre os interesses dos comerciantes ligados à
importação e à indústria nacional, culminando com os industriais fundando a sua própria associação, o CIESP, que
tinha como presidente Fransico Matarazzo e como vice Roberto Simonsen.48
É nesse texto de 1931, já num momento de defesa clara do projeto industrialista, que Simonsen faz referência
explícita a dados de W. Woytinsky, para reforçar a importância da revolução industrial e destacar que é a indústria o
setor que teria levado os países ricos a se desenvolverem. “De acordo com Woytinski o rendimento liquido da
industria, excluindo mesmo a mineração, é mais forte que o rendimento liquido da agricultura na Inglaterra, Estados
Unidos, Suissa, Hollanda e Australia, isto é, nos mais ricos paizes do mundo.”49 O texto está dividido em três seções:
introdução, “A racionalização Allemã” e “A Politica Industrial no Brasil”.
Vale lembrar que Simonsen discute a industrialização alemã de forma geral e a capacidade que o país teria tido
de se recuperar da Primeira Guerra e da espiral inflacionária dos anos 1920. Embora tenha algum contato com a obra
de Woytinsky (uma possibilidade é que tenha tido acesso à edição francesa do livro de 1927), Simonsen está
44
Woytinsky (1927), p. 09.
Ver Bruzzi Curi e Cunha (2011).
46
Simonsen (1931).
47
Saes et al. (2008), pp. 3-4 e pp. 11-12.
48
Cepêda (2003), pp. 226-227.
49
Simonsen (1931), p. 224. Ver também Fanganiello (1970), pp. 135-136. A autora faz um panorama dos principais argumentos defendidos por
Simonsen neste texto, destacando os autores citados pelo autor.
45
16
discutindo a industrialização de forma mais geral e nem tanto a conjuntura europeia, como faz Woytinsky. Isso não
impede que suas propostas se aproximem das defendidas por Woytinsky, tanto em seu livro de 1927, quanto em seu
plano contra a crise alemã.
O argumento central de Simonsen, na seção referente à “racionalização allemã”, é que a Alemanha,
profundamente atingida pela guerra e pela inflação de 1923-24, teria conseguido se reintegrar à economia mundial
como uma potência por meio da inteligência e do trabalho. É esse esforço que orienta a racionalização, cujos objetivos
seriam o abaixamento do custo e aumento da qualidade na produção industrial.50 Simonsen ressalta que as duas
grandes manifestações exteriores da racionalização allemã seriam a “fabricação contínua” (o fliessende Arbeit) e a
concentração das empresas.
A fabricação continua, fliessende arbeit, comprehende o systema de producção que, tendo o trabalho em
transportador como base, abrange a padronização dos typos e a especialização das usinas sob a formula geral de
produzir accelerando o escoamento do capital circulante.51
Trata-se aqui de uma evolução do sistema fordista, o qual Simonsen elogia nesta mesma conferência, que
compreenderia também uma padronização dos estabelecimentos produtivos, cujo objetivo principal seria a redução
do custo de produção por meio da diminuição daquilo que Simonsen chama de “valor do produto em curso de
fabricação”, que é parte do capital circulante. O fliessende Arbeit teria como objetivo principal acelerar a rotação do
capital circulante, de forma a diminuir a necessidade de seu emprego, favorecendo assim uma redução de custo.52
Sobre esse aspecto, Simonsen conclui que “os dispositivos de Ford soffreram alterações apreciaveis na Allemanha,
onde a sciencia ao serviço do espirito meticuloso da raça conseguiu combinações e modalidades
interessantissimas”.53 O outro aspecto da racionalização se refere à concentração das empresas em Konzerne, que
ocorreria por motivos, acima de tudo, financeiros: sendo o capital para investimento escasso num país devastado pela
guerra, era necessário que as firmas economizassem recursos, por meio da eficiência produtiva e do usufruto de
economias de escala. Como se vê, Simonsen estava claramente preocupado com a questão alemã, o que justifica ter
incluído, em sua conferência de 1931, uma seção sobre as questões relativas ao desenvolvimento industrial
germânico.
Vale destacar aqui duas questões, relativas à industrialização alemã, que mostram que Simonsen e Woytinsky
estavam num mesmo campo de discussão, tentando pensar em formas de intervenção sobre a economia, que
levassem ao desenvolvimento industrial e à superação de entraves: a primeira questão é se refere à forma de se
estimular a economia alemã/europeia e a segunda, à unificação europeia.
Num povo que perdeu pela guerra e pela inflação seus capitaes e rendas, é na massa dos salarios que reside
quase que unicamente a criação do poder aquisitivo do mercado consumidor interno. Dahi a justificação da
50
Simonsen (1931), p. 234.
Idem, p.. 237.
52
Idem, p. 238.
53
Idem, p. 240-241.
51
17
politica de altos salarios conjuntamente com a baixa do preço de custo, com o duplo intuito de criar maior poder
aquisitivo e intensificar o consumo incrementando o escoamento dos productos industriaes.54
As duas formas de atacar o problema alemão, para Simonsen, são a diminuição do custo de produção, por meio
da referida racionalização produtiva, e o incremento do poder aquisitivo dos trabalhadores, por meio de uma política
de altos salários, do lado da demanda. Alguns anos antes, Woytinsky discutira as saídas para a Europa pós-Primeira
Guerra, no referido livro sobre a unificação europeia, de 1927. A terceira parte do livro, intitulada “À procura de uma
saída”, discute propostas para dinamizar a economia do velho continente. As duas primeiras seções dessa parte, que é
uma coletânea de propostas para reaquecer a economia são: “A diminuição dos custos de produção” e “O aumento do
poder de compra da população”. São justamente as duas estratégias defendidas por Simonsen para o caso alemão.
Em seu livro, Woytinsky começa por recusar a redução de salários como forma de se reduzir custos. “O
abaixamento do preço de custo a expensas dos trabalhadores enfraquece o poder de compra interior do país. Essa
política contribui para retração dos mercados internos e reduz o significado de um país como mercado exterior para
outros países.”55 O autor propõe que se reduzam os custos de produção por meio de quatro medidas que deveriam
melhorar as condições da indústria europeia, a qual, segundo ele, desperdiçava considável quantidade de trabalho. As
medidas sugeridas para diminuir custos são: aumento da qualidade do trabalho, por meio da formação profissional;
política racional de habitação, visando à redução dos aluguéis; política alfandegária visando a diminuição dos direitos
de entrada de itens básicos e de matérias-primas industriais; e política de unificação europeia.56
A política de altos salários, que Woytinsky considera como amplamente difundida nos Estados Unidos, mas
ainda pouco empregada na Europa, se justifica pelo aumento do poder de compra da população e consequente
restabelecimento do dinamismo da economia.
Nesse caso [uma crise de subconsumo], uma elevação metódica dos salários conduz, no final das contas, não ao
incremento, mas à diminuição dos preços por unidades das mercadorias, pois que esse incremento aumenta e
garante a demanda dos produtos industriais e permite, por conseguinte, o restabelecimento da produção, na
amplitude do poder produtivo da indústria.57
Woytinsky volta seu olhar para o lado da demanda e, diagnosticando o problema europeu como de demanda,
propõe uma política de altos salários como forma não só de aquecer a economia, mas, também, de diminuir os custos
de produção, já que uma demanda aquecida favoreceria o restabelecimento da indústria em suas condições normais,
isto é, usufruindo de economias de escala e de uma demanda garantida, apoiada no alto poder de compra dos salários.
Nesse ponto, Simonsen faz uma conexão interessante entre economias de escala, planejamento e a questão da
unificação europeia. Referindo-se aos Konzerne alemães, salienta:
Essas concentrações da produção formadas dentro do systema da racionalização, em que a produção em grande
massa, os baixos preços de custo e os altos salários são directrizes a serem observadas, têm o efeito de evitar
perturbações no mercado productor e impedir superproduções geradas pelas concorrências que muitas
54
Idem, p. 240.
Woytinsky (1927), p. 95.
56
Idem, p. 99.
57
Idem, p. 103.
55
18
vezes occasionam crises. Trazem ainda o aproveitamento mais eficiente da mão de obra, o estudo dos
verdadeiros interesses dos mercados, supprimindo produções inuteis e trabalhos em pura perda. A
racionalização comprehende, portanto, idéas motrizes que formam como que uma “economia dirigida”.
(...) É natural que uma industrialização levada a um grande desenvolvimento procure uma expansão além de
suas fronteiras e dahi os carteis internacionaes de que a Allemanha tem tido a iniciativa no continente europeu e
que evoluem para a formação de grandes “trusts” internacionaes que só podem concorrer para a
approximação dos povos e para a formação do bloco econômico europeu.58 (grifos meus)
A concentração das indústrias seria, então, parte do processo de racionalização, que envolve baixo custo de
produção aliado a altos salários. O resultado disso seria uma forma de produção que pode usufruir de economias de
escala e de demanda garantida. No fundo, todo esse esforço que Simonsen chama de racionalização é uma estratégia
de planejamento, isto é, uma forma de se reduzir as incertezas inerentes à produção capitalista, por meio da
organização/padronização de processos e da criação de uma demanda pujante e garantida. Na medida em que esse
tipo de planejamento se alastrasse pelo continente europeu, a consequência seria uma “aproximação dos povos”, isto
é, uma coordenação, em nível supranacional, dessa “economia dirigida”. É para essa direção que apontam as
propostas de Woytinsky para a Europa do pós-Primeira Guerra. Seu livro de 1927 é, a bem da verdade, um chamado
aos países europeus para que adotem políticas de unificação econômica.
O que os dois autores pretendem é elevar a produtividade por meio da racionalização produtiva, da coordenação:
se efetuado por cada país isoladamente, esse processo não funcionaria, pois a exportação é parte da demanda e as
importações são parte da oferta de uma economia nacional. Se não houvesse um esforço conjunto de coordenação, a
garantia de que a indústria teria sua produção demandada ficaria enfraquecida, a ideia de uma “economia dirigida”,
capaz de garantir uma estabilidade ao capitalismo industrial, não seria possível. Nesse sentido, Woytinsky e Simonsen
convergem na questão da importância de um esforço maior de coordenação para se resolver a questão
alemã/europeia, que culminaria com um processo de unificação econômica (e política, para Woytinsky). É claro que
Simonsen estuda o caso alemão para chegar, ao final de sua conferência, à industrialização brasileira, mas essas
convergências com W. Woytinsky dão mostra de que a elaboração simonseniana está inserida nesse ambiente de
história das ideias, em que se buscam medidas não-ortodoxas para a superação dos problemas econômicos.
7. Considerações finais
O período do século XX que medeia entre as duas guerras mundiais foi marcado por embates políticos e de
ideiais, nos mais diversos níveis. No campo da história do pensamento econômico, houve um movimento de
questionamento às ortodoxias vigentes, herdadas do século XIX, que ganhou sua expressão teórica mais bem-acabada
com as elaborações de Keynes nos anos 1930. Todavia, mesmo antes de que se difundissem essas formulações
teóricas, já estava em curso um movimento de questionamento ao receituário vigente de política econômica, uma
série de rupturas, ambivalentes e condicionadas pelas conjunturas, com a forma estabelecida de se pensar a economia
e de se fazer política econômica.
58
Simonsen (1931), p. 243.
19
É nesse sentido que se relatou, neste artigo, a atuação de Wladimir Wyotinsky e de Roberto Simonsen, que,
ambos inseridos nas conjunturas em que atuavam, elaboraram propostas que apresentavam traços inovadores.
Woytinsky, sempre preocupado com a questão europeia, escreve um livro em que defende a unificação do continente
e a coordenação de esforços de racionalização produtiva como forma de superação dos problemas colocados pela
Primeira Guerra. No contexto da Grande Depressão, chega a propor um programa de obras públicas à socialdemocracia alemã, que não o adota. Já Simonsen, diretamente envolvido com as questões brasileiras, inclui, em sua
carta à missão financeira de 1924, ideias relativas a uma política de substituição de importações, num momento em
que a indústria brasileira se diversificava, com um sério problema de dependência externa. Mostrou-se que os dois
autores convergem no que se refere à adoção de políticas de estímulo à demanda, por meio de altos salários, como
forma fundamental de se estimular uma economia fraca. Os custos deveriam ser reduzidos por esforços de
racionalização e por economias de escala, isto é, por meio do planejamento da produção, mais do que pela diminuição
dos salários.
Com isso, procurou-se evidenciar a existência de um ambiente internacional de questionamento à ortodoxia
econômica, no qual circulavam ideias e informações, que os autores utilizavam na construção de suas argumentações
relativas aos contextos nos quais estavam inseridos. Nesse sentido, Simonsen não está em contato com Woytinsky
por acaso: trata-se de um ambiente de discussão econômica que apresenta certa coerência. Têm presença marcante a
ideia de que o estímulo à economia deveria necessariamente passar pela demanda, com o aumento do poder
aquisitivo dos salários e a concepção de que o estudo da evolução histórica é fundamental para que se compreenda a
realidade econômica e se possa agir sobre ela.
A partir desse estudo colocam-se algumas questões relevantes para a pesquisa sobre o pensamento econômico
desse momento de ruptura com a ortodoxia no entreguerras. São questões relativas à dimensão
ambivalente/conjuntural desse movimento de questionamento, no qual Roberto Simonsen se insere, às articulações
entre os autores que estavam lendo as obras uns dos outros neste momento, às implicações de política econômica nos
diversos contextos nacionais dessas ideias questionadoras e, por fim, à relação entre a trajetória político-institucional
de Roberto Simonsen e a aproximação com autores que defendiam propostas mais ousadas no campo da política
econômica.
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