«A BANDA NÃO TOCA PARA ESTE TIPO»
Mário Tomé
Assim falou o clarim para o general. Quando este lhe mandou dar o sinal
para a banda tocar o hino. Estava-se em 12 de Abril de 2002, quando a
reacção venezuelana e os EUA pensavam ter o petróleo na mão metendo
Chávez na prisão.
Era a tomada de posse do presidente por um dia, o oligarca
venezuelano Pedro Carmona Estanga, corrupto como todos os oligarcas.
Eis uma situação de desobediência qualificada ou um profundo apego à
democracia? Talvez nem uma coisa nem outra, mas apenas um soldados a
defender as conquistas dos pobres, a que pertence, numa situação
revolucionária.
De facto, pouco depois, um milhão de pobres desceu sobre o centro de
Caracas, e puseram tudo em pratos limpos. Os soldados venezuelanos em
serviço de segurança frente ao palácio do governo levantaram as armas
enquanto agitavam as boinas a favor do presidente deposto Hugo Chávez. O
golpe chegava ao fim. Durara três dias.
As Forças Armadas venezuelanas estavam à espera, ordeiramente, de
obedecer a quem mandasse.
As FA’s do Chile, constituídas como força exemplar, dedicadas à defesa
da Constituição desde os anos 80 do século XIX, em 11 de Setembro de 1973
agiram com base na obediência à hierarquia sob ao comando de Pinochet. A
definição de Pátria tinha saído em Ordem de Serviço.
Os militares brasileiros que durante a ditadura militar torturaram,
mataram, no quartel e na rua, têm grande diferença da tropa brasileira de hoje?
Os torturadores militares de Abu Grahib, estadounidenses (obedecendo
“indisciplinadamente” às orientações superiores), ou os britânicos e polacos
doutras cadeias dentro da grande cadeia em chamas que é hoje o Iraque,
pertencem às tropas democráticas da NATO ou foram inportados? Em
Guantanamo, o tratamento regulamentar dos prisioneiros, que nos chega pelos
media, tem a ver com a democracia particular das FA’s estadounidenses ou
apenas com a obediência democrática do exército ao governo
democraticamente eleito?
O exército francês na Indochina e na Argélia era um exército
democrático de um país democrático. Matou, chacinou, degolou, torturou.
Os massacres de Baixa do Cassange, Mueda, Pidjiguiti, Inhaminga ou
Wiriamu foram executados pelas FA’s ao serviço da Pátria. Se os dois últimos
podem ser assacados a acção irregular, os outros foram claramente em
louvável obediência. Trata-se do mesmo exército que enviou rapazes bem
comportados para a Bósnia? (é assim que a TV os mostra e nada nos leva a
supor o contrário)
As FA’s portuguesas nas vésperas do 25 de Abril combatiam o inimigo e
estavam a cumprir a sua missão às ordens da próxima futura brigada do
reumático que representava as FA’s, com toda a legitimidade. Na generalidade
mostravam incomodidade pelas acções brutais e arbitrárias. Mas nunca se
recusaram a cumpri-las mesmo que depois levassem às costas os miúdos
órfãos ainda com queimaduras de napalm.
Tropa e Democracia
A relação do exército e dos militares com a democracia – fala-se de
militares em situação regular, naturalmente – foi sempre conflitual. Mas,
curiosamente, em Portugal, a democracia muito deve aos militares que muitas
vezes tiveram que insubordinar-se e revoltar-se. Os exemplos de Gomes Freire
de Andrade, da revolta republicana dos sargentos em 31 de Janeiro, da
insubordinação de parte da guarnição de Lisboa e de muitos oficiais e praças
da marinha que assegurou a implantação da República, a revolta das praças
da Armada, o assalto ao quartel de Beja, e o 25 de Abril de 1974 deviam ser
dissecados nas escolas pelo que têm de relevante na história da luta pela
liberdade. Mas não são.
Quando se fala de exércitos democráticos apenas se quer dizer que se
subordinam regular e normalmente ao comando do poder político.
Mas isso faz deles um instrumento que nunca pode arvorar-se em referência,
até porque as armas e os barões assinalados sempre tiveram exclusivamente a
intencionalidade, ou seja o empenho e a vontade, dos chefes comprometidos
em cada época ou regime com o poder. A defesa da pátria foi sempre a defesa
dos interesses dos que tinham dinheiro para formar exércitos ou que estavam
em condições de os formar com o dinheiro dos outros, ou seja com funções de
Estado.
Depois surgem os heróis em conformidade com as situações, os acasos, as
fraternidades, as lealdades, os azares, os desencontros e os encontros com a
morte ou com a vida.
As forças armadas que obedeceram ao poder fascista e colonialista,
eram exactamente as mesmas que obedecem hoje ao poder democrático. Por
isso são elas que, curiosamente, acham que asseguram a perenidade dos
valores pátrios, e até acham que fora delas mais ninguém.
A gente vai por aí a ler e lê o que dizem os grandes símbolos das FA’s.
A mais recente iconografia militar, a que apareceu no Carmo e na Pontinha a
dar orientações depois do fascismo estar estendido na calçada, até acha que
os militares devem dar lições à sociedade da forma como o pessoal se deve
comportar. Não, não querem uma sociedade militarizada. Só querem uma
sociedade devidamente hierarquizada e que cada um obedeça a quem tem de
obedecer, porque senão é a irresponsabilidade e a bagunça.
E, no fundo, têm razão. A burguesia, desculpe-se o uso do termo por
falta de sinónimo à altura, teve sempre nos exércitos o seu sustentáculo, mais
a sua referência de organização social e produtiva. A organização nas fábricas
da revolução industrial foi copiada da organização dos exércitos.
Durante tempo de mais os militares aceitaram ser cidadãos amputados. Ainda
o são mesmo que hoje tenham, ao fim de muita luta, associações corporativas.
Mas, na realidade, para os militares deixarem de ser cidadãos amputados, tem
de se cumprir uma de duas condições: ou estarem metidos activa e
conscientemente numa revolução ou deixam de ser militares.
Quando os militares exaltam a limitação dos seus direitos de cidadania,
devemos desconfiar. Estão prontos para tudo!
Mas a tropa pode mesmo ser democrática? Dentro da tropa pode haver
estruturas democráticas? Até onde pode a tropa aceitar a democracia, as
associações sindicais e as associações dos seus quadros e soldados?
Quantos generais, chefes militares, detentores do poder de decisão
propuseram, estimularam ou seq uer aceitaram, essas associações?
Elas, as que existem e como existem, tiveram sempre que ser impostas
sob o labéu de subversão e da indisciplinada.
A democracia na tropa, se fosse possível, teria de afirmar-se,
necessariamente, à revelia da hierarquia. Teria de ser ela a gerar hierarquia
compatível.
Finalmente, basta haver obediência estruturada na hierarquia e na
ausência de democracia, ao poder democrático, para se poder fala de exército
democrático?
Mais, pode um corpo antidemocrático defender a democracia, em
situação de crise ou de rotura, ou seja quando isso é realmente
necessário?
A legitimidade original
No princípio foi o fim do fascismo e da guerra.
De quem a legitimidade em 25 de Abril? Havia forças armadas ou,
liquidada a hierarquia, só havia o movimento revoltoso? Com que legitimidade?
Quem lha conferia? O PR posto pelos próprios revoltosos – Spínola?
Mas... outorgada por quem? Pelos capitães? E quem lha outorgara a eles? As
armas com que venceram na madrugada libertadora? As armas não dão
legitimidade a ninguém.
Era então o povo que, ao aceder à liberdade, continha em si, mesmo
quando estava amordaçado, toda a legitimidade.
Sendo assim, durante o PREC, onde residia a legitimidade? Onde
estava o povo? Na rua e nas tropas fora dos quartéis? Ou na Cova da Moura e
em Belém e nas tropas aquartelada à 28 de Maio, obedecendo àqueles muitos
quadros que, não fazendo o 25 de Abril se «gervasionaram» e, em muitos
casos, assumiram o comando mandando os capitães revolucionários cortar as
patilhas?
Onde estava a legitimidade durante o PREC? Nos generais sem patilhas
ou nos capitães com patilhas? Ou, como no caso do nosso amigo clarim de
Caracas, naqueles que olhavam para o horizonte sempre ali, sempre mais
longe, mas onde é preciso chegar?
Esses estavam fora da ordem e da disciplina e com que fundamentos?
Qual ordem, qual disciplina quando se estava a começar de novo?
A Constituinte eleita. E até lá? E depois, função da representação
proporcional?! Mas como funcionavam os representantes? Incólumes às
pressões? Fiéis ao programa sufragado? Com que amplitude? No essencial ou
no acessório? Ou sob a pressão dos novos donos do velho capital, dos testas
de ferro do antigo capital, da NATO ou dos que ocuparam as terras dos
latifúndios, a Torre Bela, as empresas sabotadas, para garantirem o pão e o
trabalho?
Questionamos os fundamentos da democracia. O Estado de Direito
democrático deve mais à rua do que a S. Bento. Conciliemos: deve a S. Bento
o que este foi obrigado a beber da rua.
Hoje percebe melhor quem não entendia, naquela época. Basta ver o
que se passa com toda esta nitidez assustadora, quando há trinta anos não
parecia tão claro. Mas os protagonistas são os mesmos. Os figurantes também.
E dos figurões nem se fala.
O mundo mudou, claro, mas por via de quê e de quem?
Só os exércitos revolucionários puderam reivindicar-se de democráticos.
Porque a hierarquia derivava da adesão explícita a um objectivo livremente
aceite, a uma ideologia constituinte livremente adoptada; porque a hierarquia
reivindicava a legitimação nessa base, e aceitava um processo de escolha não
exclusivamente normalizado por um poder exterior, mas sustentado por um
poder imanente e assumidamente assente na adesão geral e por ela definido e
regulado.
Essa a única democracia possível nos exércitos. Como foi no 25 de Abril e
durante o PREC em algumas unidades.
O 25 de Abril foi, mesmo que não o confessem, um engulho para os
«verdadeiros militares», aqueles que sanearam, melhor ou pior, os obreiros do
25 de Abril que, de acto, abriram a caixa de Pandora da democracia na tropa
ou seja, o que seria o fim da “tropa”.
Da tropa necessária para servir o novo poder democrático. A tropa dos
condecorados pela NATO, disponíveis para defender a pátria no conceito
natista do termo, mais perto de Bush que daqueles a quem foi recusada
credencial NATO nem que tenham feito o 25 de Abril.
Claro que há sempre contra argumentação razoável a contrariar “isto”.
Mas ela está inquinada pelo partis pris. Tanto quanto “isto” está. Ou seja, o
partido está tomado.
Os filhos da rua
Os capitães não tinham qualquer legitimidade, nem sequer a de salvar o
prestígio das FA’s – eles tinham que fazer a guerra colonial o melhor possível
porque era essa a sua missão.
Como já notei, a sua legitimidade só é adquirida a posteriori porque o
povo na rua, desobedecendo, aliás, às ordens dos revoltosos, lha conferiu.
Ainda que armada, os capitães só tiveram legitimidade civil, cívica,
revolucionária. Nunca, mas nunca, militar. E isto apesar da tentativa de
legitimação democrática das FA’s, feita por quase todos os agentes políticos e
sociais, a começar pelos próprios militares, através do MFA. Mas foi sol de
pouca dura. A democracia exige conflito, a tropa exige silêncio, passo
fantasma, continência a sete passos, desfeita a cinco ou vice-versa.
Surge então em cena, com fundamento na alteração da base social do
recrutamento para a Escola do Exército, logo depois Academia Militar, no fim
dos anos 50, na explicação do 25 de Abril, a nova base democrática das FA’s,
base essa que teria sido um factor determinante para que houvesse 25 Abril.
Eis então um exército de serviço militar obrigatório, com os quadros que
passaram a ter extracção pequeno burguesa, filhos da rua face à casta
tradicional com pretensões de elite militar, por via hereditária com componentes
socio-psicológicas semi-aristrocráticos.
Este o exército que durante 13 anos andou a combater nas colónias em
obediência à política colonial-fascista de Salazar e Caetano. Andou a defender,
com quase um milhão de soldados, a pátria, ou, por extenso, os interesses da
família Mello, da família Champallimaud, com associações de passagem ao
conde de Caria e ao visconde de Botelho; a família Quina, a família Espírito
Santo, as famílias Feteira-Bordalo, Vinhas, Albano Magalhães, Abecassis,
Sousa Lara, pelo Grupo Fonsecas e Burnay e mais o Banco Nacional
Ultramarino 1 .
Esse o exército, de quadros oriundos da pequena burguesia, que estaria
predisposto, portanto, para a democracia e para virar o fascismo do avesso.
Viva a Liberdade.
Permanece todavia uma zona obscura: foram cerca de 700 os capitães
que assinaram “o pedido de demissão” e muito menos os que se
comprometeram, cerca de 400, na preparação e execução do 25 de Abril, num
universo de 5 mil oficiais, a grande maioria de filhos da rua. Ou seja, sobraram
grosso modo 4.300 que, ou eram «gervásios» ou não quiseram, de início, claro,
ter a ver com o arraial!
A «base democrática» não funcionou, ficou nas encolhas, era afinal a
base da brigada do reumático. Ou seja, era a base legítima das FA’s legítimas
A realidade, portanto: 13 anos de guerra, já “fora da História”,
transformaram um objectivo imperial heróico, por todos assumido ou, pelo
menos, aceite, numa derrota iminente se não praticamente consumada.
Foi aí que a democracia passou a pertencer à agenda dos capitães que
nunca à agenda das FA’s. Para derrubar o regime e acabar com a guerra,
anseio maior do povo depois que começou a sentir os mortos, feridos,
amputados, alienados, desertores e emigrados e percebeu que andava a servir
de carne para canhão das famílias mais distintas do país, os capitães tiveram
que desarticular o pilar fundamental do regime: a hierarquia militar. E foi aí que
a brigada do reumático deixou de ser a respeitável e heróica garantia da
1
Interesses dos vários Grupos/Famílias:
Mellos Banca:Totta Standard, de Angola (Ang) e Moçambique (Moç), associado ao Standard
da Grã-Bretanha. Têxteis: Siga, (Ang), Pungué e Cicomo (Moç). Minas: Empresa do Cobre de
Angola, associada a capitais japoneses, Sociedade Portuguesa de Lapidação de Diamantes.
Ind alimenytares: Induve e Comfabril (Ang), Socaju (Moç) e Companhia da Ilha do Príncipe,
Casa Gouveia (Guiné) Sociedade Agrícola do Cassequel (Ang) Tabacos: Tabaqueira (Moç)
com o Grupo Rembrandt, da África do Sul. Participação na Zamco. Champallimaud etc.
Banca: B Pinto e Sotto Mayor, (Ang e Moç). Seguros: Mundial e Confiança (Ang e Moç) Minas:
Mineira do Lobito, associado ao trust Krupp da RFA, à Bethlehem Steel e à GE dos
EUA.Siderurgia e metalurgia: Sid (Ang), Cifel (Moç). Cimentos: Compª Cim (Ang) e Compª Cim
(Moç). Química Geral (Moç) com trusts franceses e sul-africanos. Ind Alim: Compª da Matola
(Moç) Interesses no Banco do Malawi. Cimentos e papel na Suazilâdia. Quina: Banco
Comercial e Industrial (Ang) com participação em numerosas empresas. Mabor (Ang) Sogere
(cervejas e refrigerantes (Moç). C/ a Sacor na Petrangol e Angol, assoc. a Petrofina, Texaco
Compagnie Française des Petroles, General Mining e Anglo-American Corporation da RAS. C/
Sonap e Sonarep (Moç) associado à Petroquímica de Angola. Espírito Santo Compª de
Açucar de Ang. e, com o Grupo CUF, Sociedade Agr. do Cassequel. Soc. Agr. do Incomati
(Moç), Compª agr. Ang (café), Nocal (Ang) Banco Interunido de Ang c/ First National City Bank,
Petrangol e Purfina (Ang) com capitais belgas. Grupo BNU Açucareira de Moç, com Sena
Sugar, Diamang c/ capitais EUA e RAS, Compª Celulose do , Ultramar, Socaju (Moç) c/ Cuf,
Cotonang (algodão) Ang, c/ belgas e Fonsecas e Burnay. Seguros: Fidelidade e Atlãntico de
Ang e Lusitana e nauticus, Moç. Banco emissor em Moç e Guné. Cimentos Cecil, Moç c/
capitais Dinamarca. Grupo Fonsecas e Burnay Cotonang, c/ BNU, Diamang c/ De Beeers
RAS e Societá General de Belgique, Compª de Pesquisas Minerais Ang. Grupo Português do
Atlântico Banco Comercial Ang, Sociedade de carnes Ang, Compª Azotos Ang, Soc. Agr.
Cassequel c/ Cuf e Espírito santo, Compª Açucar Ang, c/ Espírito Santo, Hidroeléctrica do
Revué, Moç, Sonefe (energia) Ang, Cuva (cerveajs) Ang, c/ Manuel Vinhas, Vidula (vidradria
Ang, Cimentos Ang, Lusalikte, Ang, c/ Abecassis e Textang, Moç. (Fonte: João Paulo Guerra«Os flechas atacam de novo»)
integridade do império, como fora sempre por definição e por boa prestação
dos capitães.
SMO e mercenários
Com o 25 de Abril impõe-se, então, o novo mito para juntar ao
insubstituível e velhinho de que as Forças Armadas defendem a pátria acima
de todas as coisas.
É o mito que devemos a liberdade às FA’s – caso único na história
universal como foi assinalado orgulhosamente - e que tal foi possível porque os
seus quadros tinham uma origem humilde, portanto acessível a sentir os
problemas do povo e à endoutrinação mais ou menos libertária. Claro que
ninguém pode retirar importância a esse facto. Mas ele é apenas colateral.
As alegações a favor do serviço militar obrigatório – não falando da
ortodoxia estado-novista dos que vêem no exército o exemplo, o símbolo e a
referência das virtudes humanas, formador único (mesmo antes da família e da
igreja) da personalidade dos verdadeiros portugueses, sendo não só o espelho
da nação, mas o espelho em que a nação deve ir buscar a sua imagem –
baseiam-se noutro mito criado com o 25 de Abril: “os soldados sempre ao lado
do povo”. Essa a garantia dada pelo serviço militar obrigatório, dever cívico
republicano inalienável, que nunca as armas se virariam contra o povo! O
afluxo permanente às fileiras dos “filhos do povo” impediria, ainda, a formação
de uma qualquer guarda pretoriana.
Os “soldados ao lado do povo” reflectiram uma situação objectivamente
revolucionária, mas o exército regular de SMO não mais representou isso. Os
soldados, como sempre fizeram e continuariam a fazer, não fossem os capitães
darem o sinal de insubordinação, continuariam a disparar para o lado que lhes
era indicado. Os «soldados ao lado do povo» só foram possíveis com o povo
na rua e com a hierarquia militar anulada.
O serviço militar obrigatório como estrutura base da organização militar
dos Estados surge com a revolução francesa, para garantir a defesa da nação
revolucionária burguesa. A burguesia mobiliza o povo em nome da pátria, em
contraste com os exércitos anteriores, na idade média, de profissionais e
militares a soldo, independentemente mesmo da nacionalidade, a que hoje
chamaríamos mercenários.
A participação popular nesses exércitos cedo passa a ser uma obrigação
excessiva e muitas vezes rejeitada, face à alienação sistemática dos interesses
populares pelo governo burguês. Ou seja, com o desenvolvimento da luta de
classes ao longo do tempo, a burguesia revolucionária francesa, a burguesia
revolucionária americana (guerra da independência), a burguesia
revolucionária inglesa (Cromwell), cedo se transformam e assumem como
classe reaccionária, opressora e, finalmente, imperialista.
Durante Comuna de Paris, a primeira revolução proletária, surge pela
primeira vez na história o exército proletário, assente na Guarda Nacional, com
ampla participação popular. Seguiu-se a repressão sangrenta e brutal pelo
exército de serviço militar obrigatório, às ordens do senhor Thiers.
A revolução de Outubro na Rússia deu conteúdo, forma e eficácia ao
exército revolucionário. Venceu a guerra civil contra a reacção interna e a
intervenção de todas as potências ocidentais, incluindo os EUA. O Exército
Vermelho Soviético, o Exército Vermelho de Mao-Tsé-Tung, têm características
revolucionárias, ligadas à luta em defesa do socialismo e são referência para
os exércitos que surgem nas lutas de libertação nacional contra o colonialismo,
desde a Indochina depois Vietname com o Vietcong de Ho Chi Min, à Argélia,
Guiné-Bissau, Angola, Moçambique, Camboja, Laos, Eritreia, Timor (FALINTIL)
etc. O carácter revolucionário desses exércitos era-lhes conferido pela sua
ligação radical aos interesses populares, pela sua composição popular, pelos
seus objectivos anticolonialistas e anti-imperialistas. Normalmente, ou durante
a maior parte do tempo, assumiam-se como forças irregulares mas puderam, a
partir de certa fase da luta, assumir o carácter de forças regulares: Vietname na
luta contra os EUA ou Polisário contra Marrocos - forças armadas
assumidamente políticas, como haviam sido, aliás, os exércitos burgueses
revolucionários já referidos.
Estes últimos organizavam-se, passada a fase aguda revolucionária, de
forma a impedir que a conflitualidade social e política, a luta de classes, se
insinuasse nas suas fileiras: à democracia inicial, impuseram uma forte
disciplina hierarquizada pela burguesia. Também os exércitos decorrentes das
revoluções modernas, nascidas na Comuna de Paris, mais cedo ou mais tarde,
de acordo ainda com as vicissitudes da história, se foram transformando em
exércitos tipo burguês, adequados às alterações de classe no poder.
Mas, até à queda do muro de Berlim, mantiveram sempre a fachada de
exércitos democráticos, política e ideologicamente empenhados.
As forças armadas dos Estados burgueses actuais são definidas como
apolíticas: trata-se de incorporar os trabalhadores e mobilizá-los como carne
para canhão para a defesa dos interesses das burguesias dominantes. Logo,
devem obedecer a normas restritivas que violam nomeadamente os direitos
fundamentais dos cidadãos que os integram.
Uma das questões cruciais que levaram ao 25 de Novembro foi
exactamente o facto de, depois dos tropeções do PREC e, nomeadamente, do
verão quente de 1975, as FA’s caminharem, por força da desagregação do
exército colonial e por pressão do movimento popular e do movimento
democrático dos soldados, em sentido oposto ao do movimento de
consolidação do poder político burguês.
Se o SMO, no PREC, ajudava o movimento revolucionário, hoje significa
apenas carne para canhão da agressividade imperialista materializada na
NATO a na cumplicidade com os crimes de guerra dos EUA e Grã-Bretanha ou
outros quando tal nos for imposto se não mudar a feição dos governos nem a
feição da UE.
Há a acrescentar que, para um exército credível, em termos de
capacidade técnica necessária para dizer que existe, mesmo que não sirva
para nada, o SMO apenas produziria faxinas e básicos elementares, pois o
grau de aperfeiçoamento tecnológico exigido não é compatível com uma
duração de serviço militar obrigatório aceitável pela própria sociedade.
Numa sociedade em que os “valores nacionais” se vão dissolvendo
irresistivelmente na enxurrada da globalização financeira, o SMO não tem
lugar. Esgotada a base real da mitologia nacionalista, a missão ou missões das
FA’s só podem ser cumpridas por mercenários. Por razões técnicas e por
razões políticas. Chamem -lhes voluntários ou profissionais. Eles não passam
e, se não já, é assim que serão chamados no futuro próximo, de mercenários,
ainda que de baixa intensidade.
A globalização avassaladora submetida ao império dos EUA, e às suas
políticas de terror, só tem uma resposta aceitável e credível. E ela não está na
guerra, nem sequer enquanto conceito teórico e abstracto. Está na resistência
à guerra. Porque a guerra hoje é terrorismo.
Os jovens, mesmo que não tenham consciência disto, não querem ir
para o serviço militar. E, como estamos em democracia, por enquanto, isso
reflecte-se no sistema político, nos partidos, da direita à esquerda. E nas leis
que organizam a sociedade.
É bom de ver que, se os jovens se empenharam entusiasticamente no
25 de Abril, foi porque há muito resistiam ao serviço militar e a ir para a guerra
colonial. E tinham razão. Como têm hoje razão em não quererem integrar umas
forças armadas que não defendem soberania nenhuma, pelo contrário, não
passam de um pau mandado – e outra coisa não podem ser – de políticas
imperiais e criminosas que impõem a guerra e o terror ao mundo.
Mesmo que não pensem assim, os jovens sentem assim. As coisas não
surgem por acaso.
Os jovens continuam a ter o sentido do futuro e a ter que se defrontar,
como sempre foi, mas não é obrigatório que seja, com as classificações mais
torpes dos que querem que o mundo não mude. Mas, quando menos dão por
isso, já ele mudou.
Conclusão
A guerra, na era da globalização sob controlo único dos EUA, é igual a
terror, também do ponto de vista político.
Hoje, os exércitos nacionais tendem a ser ou inúteis ou instrumento de
terror, parafraseando uma frase célebre de Lenine sobre a Europa.
Não há, nunca houve, não pode haver exércitos democráticos, a não ser
como excepção.
O que permite as excepções são situações revolucionárias em que os
exércitos se envolvem por osmose com os interesses da revolução invertendo,
naturalmente, o sentido da hierarquia. Mas raramente tal acontece aos
exércitos enquanto todo.
As características técnicas e políticas dos exércitos nos dias de hoje só
comportam voluntários e profissionais que são mercenários de baixa
intensidade.
Na era da globalização financeira chegou ao fim a missão dos exércitos
como garantia celebrada da defesa nacional, ou seja das burguesias nacionais;
entraram inapelavelmente na fase final da perversão: são exclusivamente
instrumentos da política imperialista na era da globalização. Ou seja,
transformaram-se no seu contrário.
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Mário Tomé - Associação 25 de Abril