CULTURA POPULAR SUBURBANA e RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS:
diálogos identitários no bojo do funk e do pagode no Rio de Janeiro
MOUTINHO, Renan Ribeiro1
BORGES, Roberto Carlos da Silva2
RESUMO
O presente trabalho objetiva discorrer sobre a terceira fase do trabalho de pesquisa em
desenvolvimento no mestrado em Relações Étnico-Raciais, em andamento, sobre
cultura popular no Rio de Janeiro (com recorte para o subúrbio delimitado entre a Zona
Norte e Zona Oeste do Rio de Janeiro) e Educação. Neste momento do trabalho,
discutimos a caracterização daquela que é considerada a cultura popular do subúrbio
carioca ressaltando elementos como duas de suas principais manifestações musicais, o
seu público-alvo, os processos de construção de suas marcas identitárias bem como o
lugar que a mesma ocupa no vasto espectro cultural de manifestações musicais do Rio
de Janeiro. Os referenciais teóricos sobre cultura negra (GOMES, 2003; MUNANGA,
2000; HALL, 2003), racismo (PEREIRA, 2006; GUIMARÃES, 2009; MUNANGA,
2004) e identidade (BAUMAN, 2005; MUNANGA, 2002; NOVAES, 2003)
intermediam as discussões neste momento. Ademais, esta investigação compõe um dos
trabalhos em desenvolvimento na Linha de Pesquisa Mídia e Repertórios culturais na
construção de identidades etnicorraciais da mesma instituição.
Palavras-chave: Funk; Pagode; Relações Étnico-raciais; Educação.
I. Introdução
O presente trabalho se caracteriza por reflexões decorrentes de pesquisa, a nível
de mestrado, acerca de manifestações da cultura popular suburbana especificamente na
cidade do Rio de Janeiro. Por considerarmos a complexidade intrínseca à discussão da
temática da Cultura, da Cultura Popular e de suas articulações com as Relações ÉtnicoRaciais em práticas pedagógicas que se relacionem efetivamente com políticas públicas
como as Leis 10.639/2003, Lei 11.645/08 (as quais estabelecem a obrigatoriedade da
temática “História e Cultura Afro-brasileira e indígena) e Lei 11.769/08 (a qual
estabelece a obrigatoriedade do ensino da música na educação básica), procederemos a
breve discussão conceitual destas temáticas, seguiremos à um breve histórico das
manifestações musicais que objetivamos discorrer e finalizaremos com algumas
sugestões acerca da discussão destas no espectro cultural da cidade do Rio de Janeiro.
1
Estudante de mestrado do Programa de Pós-Graduação em Relações Étnico-Raciais do CEFET/RJ
Doutor em Estudos da Linguagem (UFF). Professor do Programa de Pós-Graduação em Relações
Étnico-Raciais do CEFET/RJ
2
II. Diálogo de conceitos
A partir do prisma das Ciências Sociais, consideramos a discussão no âmbito das
Relações Étnico-raciais de que o termo “negro” está diretamente relacionado a noção de
raça. Segundo BRASIL (2004: 5):
“Raça é a construção social forjada nas tensas relações
entre brancos e negros, muitas vezes simuladas como
harmoniosas, nada tendo a ver com o conceito biológico
de raça cunhado no século XVIII e hoje sobejamente
superado. Cabe esclarecer que o termo raça é utilizado
com frequência nas relações sociais brasileiras, para
informar como determinadas características físicas, como
cor de pele, tipo de cabelo, entre outras, influenciam,
interferem e até mesmo determinam o destino e o lugar
social dos sujeitos no interior da sociedade brasileira.
Contudo, o termo foi ressignificado pelo Movimento
Negro que, em várias situações, o utiliza com um sentido
político e de valorização do legado deixado pelos
africanos”.
Desta forma, “se os negros considerarem que as raças não existem, acabarão
também por achar que eles não existem integralmente como pessoas, posto que é assim
que são, em parte, percebidos e classificados por outros” (GUIMARÃES, 2009: 67). A
Cultura negra, por sua vez, estaria diretamente relacionada ao empoderamento do ser
negro promovido pela ênfase nas características que lhe atribuem especificidades:
“A cultura negra pode ser vista como uma particularidade
cultural construída historicamente por um grupo
étnico/racial específico, não de maneira isolada, mas no
contato com outros grupos e povos. Essa cultura faz-se
presente no modo de vida do brasileiro, seja qual for o seu
pertencimento étnico. Todavia, a sua predominância se dá
entre os descendentes de africanos escravizados no Brasil,
ou seja, o segmento negro da população” (GOMES, 2003,
p. 77).
Para além do objetivo de concluir o que vem a ser cultura com este trabalho,
pretendemos dialogar com reflexões sobre este conceito e o seu caráter híbrido3.
3
Um termo que tem sido cada vez mais usado para caracterizar as culturas cada vez mais mistas e
diaspóricas dessas comunidades é “hibridismo”. Contudo, seu sentido tem sido comumente malinterpretado. Hibridismo não é uma referência à composição racial mista de uma população. É realmente
outro termo para a lógica cultural da tradução. Essa lógica se torna cada vez mais evidente nas diásporas
Instigados pela premissa de Marilena Chauí de que “(...) todos os indivíduos e grupos
são seres e sujeitos culturais” (1995: 81), consideramos a transversalidade do conceito
de cultura dentre as muitas áreas do saber, sua pluralidade semântica, assim como sua
relação direta com a atividade social humana.
Nosso objetivo em conceber uma concepção não restritiva para cultura almeja
permitir um diálogo para a valorização desta em consonância com o que fez Paulo
Freire (1921-1997), o qual buscou:
“desenvolver
uma
perspectiva
curricular
que,
antecipando-se à influência posterior dos Estudos
Culturais, apaga as fronteiras entre a cultura erudita e a
cultura popular. Essa ampliação do que constitui cultura
permite que se veja a chamada “cultura popular” como
um conhecimento que legitimamente deve fazer parte do
currículo. (SILVA, 2011: 137)
Neste ponto, consideramos a necessidade de ratificar a articulação entre o “ser
negro” com o conceito de identidade, especificamente com o de identidade negra. Isto
se deve ao fato de coadunarmos com a premissa de Silvia Novaes (1993) de:
“(...) perceber que o conceito de identidade deve ser
investigado e analisado não porque os antropólogos
decretaram sua importância (diferentemente do conceito
de classe social, por exemplo), mas porque ele é um
conceito vital para os grupos sociais contemporâneos que
o reivindicam” (IBID: 24).
A promulgação da lei 10.639/03, como supracitado, trata especificamente de
uma reivindicação afirmativa de direitos de um grupo social que teve sua cultura e sua
presença renegados e inferiorizados. A discussão sobre identidade, neste contexto,
também pode desenvolver-se quando “um grupo reivindica uma maior visibilidade
social face ao apagamento a que foi, historicamente, submetido” (NOVAES,1993: 25).
De acordo com Philip Gleason (1980), partimos da premissa de não existir uma resposta
completa e definitiva sobre o que viria a ser identidade, apesar da extensão dos
trabalhos feitos sobre o tema. Porém, destacamos a concepção de Kabengele Munanga:
multiculturais e em outras comunidades minoritárias e mistas do mundo pós-colonial. [...] Ela define a
lógica cultural composta e irregular pela qual a chamada “modernidade” ocidental tem afetado o resto do
mundo desde o início do projeto globalizante da Europa (HALL, 2003: 71).
“A identidade é uma realidade sempre presente em todas
as sociedades humanas. Qualquer grupo humano, através
do seu sistema axiológico sempre selecionou alguns
aspectos pertinentes de sua cultura para definir-se em
contraposição ao alheio. A definição de si (autodefinição)
e a definição dos outros (identidade atribuída) têm
funções conhecidas: a defesa da unidade do grupo, a
proteção do território contra inimigos externos, as
manipulações ideológicas por interesses econômicos,
políticos, psicológicos, etc.” (MUNANGA, 1994: 177178).
Desta forma, pode ser representativo sublinhar os processos pelos quais os
sujeitos sociais definem suas respectivas identidades sociais, apresentadas sob um
“caráter fragmentado, instável, histórico e plural”. (LOURO, 2000: 72) Ao ampliar esta
concepção para o processo de construção de uma identidade negra, entendemos que esta
pode ser compreendida como “uma construção social, histórica, cultural e plural.
Implica a construção do olhar de um grupo étnico/racial ou de sujeitos que pertencem a
um mesmo grupo étnico/racial, sobre si mesmos, a partir da relação com o outro”
(GOMES, 2005: 43).
Em busca de um maior aprofundamento sobre estes processos, segundo os quais
a cultura se confunde com o campo social, recorremos a dinamicidade da cultura, a
partir de lógica própria, ressaltada por Roque de Barros Laraia (1986). A cultura não só
condiciona a forma como os indivíduos enxergam as práticas de outros indivíduos como
estas próprias práticas estão em constante mudança e interação:
“Podemos agora afirmar que existem dois tipos de
mudança cultural: uma que é interna, resultante da
dinâmica do próprio sistema cultural, e uma segunda que
é o resultado do contato de um sistema cultural com um
outro. (LARAIA, 1986: 98)”.
O conceito de cultura popular que utilizamos neste trabalho é, portanto, aquele
relacionado aos Estudos Culturais em uma perspectiva de questionamento do
estabelecimento de “hierarquias entre formas e práticas culturais, estabelecidas a partir
de oposições como cultura “alta” ou “superior” e “baixa” ou “inferior”. A cultura
popular, proveniente do povo concebido em toda a sua multiplicidade, deve ser
analisada tendo em vista as articulações destas práticas culturais com o seu meio social.
Assim como foi dito, o recorte geográfico escolhido para esta pesquisa é o
subúrbio carioca. A categoria subúrbio pode ser confundida como sinônimo de periferia.
VIANNA (1987), por exemplo, refere-se ao funk como “música produzida na periferia
dos grandes centros urbanos e consumida também por jovens urbanos” (ibid. p. 33); já
BATISTA (2005) refere-se a mesma manifestação como “uma realidade no cotidiano
dos subúrbios cariocas” (ibid, p.23). Neste trabalho, porém, partimos da seguinte
concepção de subúrbio:
“(...) o subúrbio (ou a hinterlândia, num sentido mais histórico
e mais amplo) é, na atualidade, apenas um espaço que, pela
dificuldade de transportes públicos e pela não conservação das
vias, torna-se distante do grande centro econômico e do circuito
cultural. E que, por isso, e por também não contar com
infraestrutura de serviços públicos eficientes, é desprezada,
como opção residencial, pelos mais abastados, e abandonada
pelos que ascendem socialmente. Como lembra Vasconcellos
(1991, p. 24), até 1937, quando a eletrificação dos trens da
Central provocou o primeiro surto de explosão demográfica, a
zona suburbana não era habitada exclusivamente por gente
humilde, grosseira e inculta. Moravam na região também
intelectuais, artistas, magistrados, militares e políticos, como
podemos ver ao longo desta obra. E isso vem de encontro ao
destaque dado por Lima Barreto, em sua obra, a alguns
subúrbios reputados, em sua época, como chiques e elegantes,
como a Boca do Mato e Jacarepaguá” (LOPES, 2012, p. 324).
Dentre este contexto geográfico, seguiremos à análise de manifestações culturais
que se caracterizam enquanto presentes neste espaço.
III. “Não dá pra fugir dessa coisa de pele”: o pagode carioca
“Podemos sorrir, nada mais nos impede
Não dá pra fugir dessa coisa de pele
Sentida por nós, desatando os nós
Sabemos agora, nem tudo que é bom vem de fora
É a nossa canção pelas ruas e bares
Nos traz a razão, relembrando palmares
Foi bom insistir, compor e ouvir
Resiste quem pode à força dos nossos pagodes”
(Jorge Aragão. Coisa de Pele)
Nos dias de hoje, arriscamos a dizer que, no senso comum, a concepção do
termo pagode restringe-se ao gênero musical conhecido e apreciado especificamente no
subúrbio ou nas áreas de baixa renda de metrópoles como o Rio de Janeiro e São Paulo.
Porém, no âmbito da História da Música, o termo pagode possui uma longa trajetória de
ressignificação e ampliação de seu sentido de origem. No Dicionário da Hinterlândia
Carioca, de autoria de Nei Lopes (2012), o autor se debruça sobre a História do
Subúrbio do Rio de Janeiro desde os primórdios de nossa colonização, adentrando em
histórias suplantadas pelo progresso, revelando a história deste e de muitos outros
termos utilizados corriqueiramente no linguajar suburbano. Especificamente sobre o
conceito de pagode, o autor nos aponta para:
“Termo que, originariamente designando divertimento,
patuscada, ganhou, no Rio de Janeiro, a acepção de “reunião
de sambistas” e, a partir da década de 1980, passou a
denominar um estilo de interpretação do SAMBA, gênero de
canção popular”. Como reunião musical festiva, o pagode está
na história musical da cidade desde tempos imemoriais.” (ibid,
p. 265).
Neste contexto, PINTO (2013) aponta e reafirma a “enorme semelhança entre o
caráter social do pagode e do samba antes de suas gêneses enquanto expressões ou
gêneros musicais” (ibid, p. 8). TROTTA (2011), por sua vez, amplia este significado ao
ressaltar que “aos poucos, o termo pagode passou a designar não apenas uma reunião
informal, mas um jeito específico de fazer samba e, mais do que isso, a classificar um
determinado grupo de sambistas no universo comercial” (ibid, p.126). Dada as
históricas proximidades entre estes dois termos, existe certo consenso em afirmá-los
enquanto fenômenos de produção coletiva, embora tenham adquirido particularidades e
caminhos díspares com o tempo:
“Os termos “samba” e “pagode são utilizados historicamente
para fazer referência ao evento da roda. É somente a partir dos
anos 1980 que o segundo passou a significar um determinado
movimento musical. Na última década do século XX, como
veremos, o termo “pagode” ficou associado pejorativamente à
prática musical de alguns grupos de samba que obtiveram
grande sucesso no mercado de música (ibid, p. 103)”.
A origem do imbróglio acerca do “mito originário do samba” provém da
dificuldade em classificar o samba enquanto “gênero puro”, com características
absolutamente diferentes de gêneros que lhe eram contemporâneos, como o maxixe e a
marcha. Segundo afirma MENEZES BASTOS (1996), “a discussão sobre a origem do
samba é um clássico dos estudos musicais no Brasil e uma verdadeira paixão da
sociedade”. De todo modo, TROTTA (2011), por sua vez, afirma:
“É indiscutível, por exemplo, que o gênero samba esteve durante
todo o século passado e até os dias de hoje estreitamente
identificado como uma prática cultivada majoritariamente por
negros. Neste caso, a identificação diz respeito às origens do
gênero, aparecendo de maneira variada de acordo com a época,
os autores e o pensamento de cada momento (ibid, p. 75)”.
Dito isto, nos interessa neste trabalho destacar alguns fatos que contribuíram
para a promoção da manifestação musical pagode como a conhecemos hoje. TROTTA
(2011) especifica, dentre outras discussões, dois momentos centrais para o pagode que
conhecemos hoje: a década de 1980 e a década de 1990. O primeiro parte de uma
articulação do samba com outros gêneros à época, como foi dito, assim como em sua
expansão estrutural para uma produção “mercadológica”. Esta expansão promoveu uma
das maiores críticas que observamos empiricamente a partir da resistência de alguns
segmentos de artistas ligados ao universo do samba em reivindicar uma suposta
identidade “de raiz” para a sua prática cultural (TROTA, 2011).
Os grupos de pagode do início da década de 1980 reúnem artistas ligados à rodas
de samba que aconteciam no subúrbio carioca, como é o caso daquela ligada ao bloco
Carnavalesco Cacique de Ramos. Destes, podemos destacar o grupo Fundo de Quintal,
Agepê, Zeca Pagodinho, Almir Guineto e Jovelina Pérola Negra (TROTTA, 2011).
O final da década de 1980 e início da década de 1990 assistem ao boom do
denominado pagode romântico com grupos de projeção nacional, como Raça Negra,
Negritude Júnior e Só Pra Contrariar. O seu público-alvo, majoritariamente composto
pela juventude negra da época pertencente às classes menos abastadas da época,
promoveria uma caracterização de roupas, acessórios e indumentários diversos que
passarão a conferir uma identidade particular aos agora denominados por “pagodeiros”.
Como veremos a seguir, este público possuirá uma articulação com os “funqueiros” no
que se refere à preferência musical do subúrbio carioca.
IV. Funk Carioca
O funk, enquanto manifestação musical estritamente ligada ao cotidiano da
cidade do Rio de Janeiro possui características que lhe conferem particularidades face
ao funk norte-americano mundialmente conhecido (PALOMBINI, 2009; VIANNA,
1987) por personagens como James Brown e George Clinton. PAULA (2006) nos
apresenta uma definição para este termo baseando-se em seu desenvolvimento histórico:
“(...) tipo muito específico de música, que descende dos
lamentos negros e rurais do blues, do posterior rhythm ‘n blues
(quando o blues chega aos grandes centros e ganha marcação
rítmica mais vigorosa) e da evolução do rhythm ‘n blues, o soul
(quando o estilo ganha apuro melódico, emprestado das igrejas
batistas, e esmero instrumental, tornando-se um lucrativo
negócio para as gravadoras. Do soul, estilo representado por
cantores como Sam Cooke, Otis Redding, Smokey Robinson,
Marvin Gaye e Aretha Franklin, chegamos ao funk, redução do
soul à sua percussividade mais básica” (ibid, p. 4)
LOPES (2012), por sua vez, sublinha uma concepção de funk articulando-a com
o Rio de Janeiro. O autor, notável pesquisador da hinterlândia carioca, ressalta aspectos
técnico-musicais desta manifestação musical:
“Denominação de uma modalidade musical variante do funk,
surgida no Rio de Janeiro, na região focalizada nesta obra, e
popularizada a partir da década de 1990, principalmente nas
favelas de toda a cidade. A base rítmica de suas gravações – ao
que consta, oriunda do estilo drum & bass (bateria e baixo) dos
músicos latinos da Florida, e por isso também conhecida como
“batidão” – situa a modalidade mais próxima da antiga
marchinha carnavalesca do que propriamente do funk ou do
rap” (LOPES, 2012, p. 321).
Assim como o pagode, observamos empiricamente que o funk carioca é
comumente relacionado a uma suposta “baixa cultura”, em detrimento à “alta cultura”
ou “cultura das elites” especialmente nos espaços acadêmicos e historicamente
ocupados por uma elite letrada. Desta forma, apesar do funk carioca ser considerado
patrimônio cultural da cidade do Rio de Janeiro desde 2009, este convive com
associações baseadas meramente em um senso comum, como ressalta FORNACIARI
(2011):
“seja por alegação de apologia ao crime ou pela proibição de
realização de bailes; pela criminalização da atividade do
profissional funqueiro ou pela inexistência de proteção legal
adequada; pela difícil inserção no mercado fonográfico por
determinados estilos de funk e a constante evidência, por parte
da mídia, de uma ligação entre funk e criminalidade nas favelas,
tudo indica que o funk inevitavelmente ocupa, de uma forma ou
de outra, um lugar estritamente relacionado com o “excluído”,
o “marginal” e o “ilícito” na cultura brasileira” (ibid, p. 67).
Apesar de toda a sorte de preconceitos que aquelas e aqueles “colocados à
margem” precisam conviver cotidianamente, o universo funk conseguiu organizar-se
dentre uma complexa estrutura que compreende artistas, produtores e o seu grande
público, comumente denominados por funqueiros (PALOMBINI, 2009).
As origens do funk carioca estão estritamente ligadas a manifestações musicais
surgidas nos Estados Unidos assim como na articulação deste gênero com o cotidiano
do Rio de Janeiro. Porém, é preciso diferenciar o funk carioca do funk norte-americano
pois, segundo CÁCERES (et all, 2014), o primeiro:
(...) começa a tomar corpo nos anos 1990 quando as faixas
instrumentais desses discos passam a ser usadas como base
para raps ou melôs locais nos chamados festivais ou concursos
de galera. Boa parte dessas criações, entre elas algumas das
mais conhecidas – os Raps “do Silva” (MC Bob Rum), “da
felicidade” (MCs Cidinho e Doca), “do Salgueiro” (MCs
Claudinho e Buchecha), “das armas” (MCs Cidinho e Doca)–,
utiliza como base a faixa “808 Beatapella Mix”, do single 8
Volt Mix79. Esse disco, talvez a gravação mais influente da fase
de formação do novo gênero, não vem da Flórida, mas de Los
Angeles” (ibid, p. 182)
As marcas identitárias que caracterizam o funqueiro variam de acordo com a
localidade que o baile ou o conjunto de determinados artistas desenvolvem sua Arte. De
forma a não finalizar a questão, reconhecemos empiricamente que a música funk
carioca no Rio de Janeiro está associada à um público negro, jovem e ligado às classes
menos abastadas assim como o pagode. Apesar das tentativas de tornar o funk mais
palatável para outros públicos a partir de novas roupagens que tendem à “música pop”,
uma simples volta pelo subúrbio nos finais-de-semana pode descrever a importância que
estas manifestações ocupam no espectro cultural de manifestações musicais do Rio de
Janeiro bem como na presença cotidiana desta na memória coletiva e afetiva de seus
moradores.
O funk é definido atualmente como “um movimento cultural e musical de
caráter popular” por força de lei a partir de iniciativa dos parlamentares Marcelo Freixo
e Wagner Montes. O projeto de lei nº 1671/2009 foi aprovado e promulgado como a lei
nº 5.543 em 22 de setembro de 2009 no governo de Sérgio Cabral; o que acabaria por
revogar a Lei 5.265/2008. Na defesa pela proposição desta lei, o relator valeu-se de
elementos do manifesto “Funk é cultura”, redigido pela APAFUNK (FORNACIARI,
2011), o qual reproduzimos em seguida em virtude de seu valor histórico:
“Funk é Cultura. O funk é hoje uma das maiores manifestações
culturais de massa do nosso país e está diretamente relacionado
aos estilos de vida e experiências da juventude de periferias e
favelas. Para esta, além de diversão, o funk é também
perspectiva de vida, pois assegura empregos direta e
indiretamente, assim como o sonho de se ter um trabalho
significativo e prazeroso. Além disso, o funk promove algo raro
em nossa sociedade, atualmente, que é a aproximação entre
classes sociais diferentes, entre asfalto e favela, estabelecendo
vínculos culturais muito importantes, sobretudo em tempos de
criminalização da pobreza.
No entanto, apesar da indústria do funk movimentar grandes
cifras e atingir milhões de pessoas, seus artistas e trabalhadores
passam por uma série de dificuldades para reivindicarem seus
direitos, são superexplorados, submetidos a contratos abusivos
e, muitas vezes, roubados. O mais grave é que, sob o comando
monopolizado de poucos empresários, a indústria funkeira tem
uma dinâmica que suprime a diversidade das composições,
estabelecendo uma espécie de censura no que diz respeito aos
temas das músicas. Assim, no lugar da crítica social, a mesmice
da chamada “putaria”, letras que têm como temática quase
exclusiva a pornografia. Essa espécie de censura velada
também vem de fora do movimento, com leis que criminalizam
os bailes e impedimentos de realização de shows por ordens
judiciais ou por vontade dos donos das casas de espetáculos.
A despeito disso, MCs e DJs continuam a compor a poesia da
favela – uma produção ampla e diversificada que hoje, por não
ter espaço na grande mídia e nem nos bailes, vê seu potencial
como meio de comunicação popular muito reduzido”
(APAFUNK, 2008 apud FORNACIARI, 2011).
O manifesto “Funk é Cultura” representa a voz de um grupo incontável de
pessoas que convive diariamente com a manifestação do funk em suas vidas. No
sentido de conceber que “a educação como direito e sua efetivação em práticas sociais
se convertem em instrumento de redução das desigualdades” (CURY, 2002, p. 261),
discorreremos brevemente sobre algumas possibilidades da presença do funk e do
pagode em práticas pedagógicas.
V. Possibilidades de articulação: novas perspectivas
“(...) compreendo como currículos de gênero, sexualidades,
masculinidades, raça e classe social, os espaços/ tempos onde
sujeitos interagem, as ações escolares, as ações culturais e as
tecnologias (arquitetura, livros didáticos, vestimentas, músicas,
meios midiáticos etc.), significadas na cultura, ensinam e
regulam o corpo produzindo subjetividades e arquitetando
formas e configurações de viver em sociedade. Nesse contexto, o
currículo é o espaço onde se concentram e se desdobram lutas
em torno de diferentes significados sobre o social e o político”
(SILVA JÚNIOR, 2014, p.79).
A empiria nos leva a afirmar que o descompasso entre o que os alunos trazem de
conhecimento musical e a realidade das práticas pedagógicas que são desenvolvidos na
sala-de-aula deixa escapar importante canal de diálogo entre as temáticas das canções de
seu dia-a-dia. PENNA (2008) afirma que “o fato é que a música da mídia está presente
no cotidiano de praticamente todos os cidadãos brasileiros, de modo que é mais
produtivo trabalhar a partir da realidade de vida dos nossos alunos, procurando
desenvolver o seu senso crítico (ibid, p. 89). Portanto, JUNQUEIRA (2011) sublinha:
“O aporte da escola, com suas rotinas, regras, práticas e
valores, a esse processo de normalização e ajustamento
heterorreguladores e de marginalização de sujeitos, saberes e
práticas dissidentes em relação à matriz heterossexual é crucial.
Ali, o heterossexismo e a homofobia podem agir, de maneira
sorrateira ou ostensiva, em todos os seus espaços”
(JUNQUEIRA et all, 2011, p. 78).
A afirmação supracitada pode dialogar com o que assinala a antropóloga e
militante negra Nilma Bentes (1993) sobre como “a discriminação “cultural” vem a
reboque do físico, pois os racistas acham que “tudo que vem de negro, de Preto” ou é
inferior ou é maléfico (religião, ritmos, hábitos, etc)” (BENTES, 1993: 16). De todo
modo, estas questões podem estar presentes na prática dos educadores:
“Ao enfrentar tal questão, os educadores se deparam com um
grande desafio que decorre da necessidade de se desfazer os
equívocos que deturparam as culturas de origem africana nas
áreas onde se desenvolveram relações de trabalho escravo. O
desafio decorre, ainda, da urgência de se analisar os esquemas
de violência que perpassam as relações entre os diferentes
grupos da sociedade brasileira, de se estudar e de se vivenciar
as culturas africanas e afro-descendentes como realidades
dialéticas, dispostas no jogo social, permeadas por contradições
e em constante processo de reinterpretação de si mesmas”.
(PEREIRA, 2008: 10)
A motivação para a escolha de conteúdos ligados à cultura afro-brasileira na
Educação, pode dialogar com o que dizem Moreira e Candau (2003: 24), de que “a
instituição escolar representa um microuniverso social, que se caracteriza pela
diversidade social e cultural e por, muitas vezes, reproduz padrões de conduta que
permeiam as relações sociais fora da escola”.
“(...) significativas experiências têm sido desenvolvidas,
tanto no âmbito das escolas como de outros espaços de
educação não formal, propondo-se a transcender o
pluralismo “benigno” de visões correntes de
multiculturalismo e a afirmar as vozes e os pontos de vista
de minorias étnicas e raciais marginalizadas e de homens
e mulheres das camadas populares. Todavia, a despeito
das conquistas e das contribuições dessas experiências,
ainda não podemos considerar que uma orientação
multicultural numa perspectiva emancipatória (Sousa
Santos, 2003) costume nortear as práticas curriculares
das escolas e esteja presente, de modo significativo, nos
cursos que formam os docentes que nelas ensinam (ibid, p.
23-24)”.
O presente trabalho, em virtude de seu caráter preliminar, buscou apresentar
reflexões sobre três eixos principais. O primeiro, como foi dito, refere-se ao debate de
conceitos que julgamos fundamentais para uma prática pedagógica assim como uma
postura política e social que discuta efetivamente as manifestações culturais
provenientes de seu povo.
O segundo eixo se refere a um breve histórico e discussão sobre as
manifestações culturais que estão alocadas no universo simbólico do Rio de Janeiro.
Acreditamos que ressaltar esta cultura, por vezes posta à margem, é empoderar seus
principais atores e personagens.
O terceiro eixo, por sua vez, indica possíveis possibilidades de aproximação
entre este tipo de conteúdo com práticas pedagógicas que possam ser utilizadas em salade-aula com ênfase para as possíveis invisibilizadas que o próprio universo escolar pode
disseminar.
Desta forma, acreditamos que este trabalho possa sugerir discussões, a partir de
uma perspectiva multidisciplinar, de utilização de temáticas inerentes ao cotidiano dos
alunos e de suas vivências sociais a partir das manifestações musicais que foram
discutidas e evidenciadas neste trabalho.
VI. Referências
BATISTA, Rachel de Aguiar. Funk, cultura e Juventude carioca: Um estudo no morro
da Mangueira. 2005. Dissertação de Mestrado. (Mestrado em Serviço Social) - UFF,
Niterói, 2005.
BENTES, R.N.M (1993). Negritando. Belém: Graphitte.
BRASIL (2003). Lei nº 10639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei no 9.394, de 20 de
dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para
incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e
Cultura Afro-Brasileira”, e dá outras providências.
_______ (2004). Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Conselho
Pleno. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e
para o Ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Parecer nº 03/04, de 10
de março de 2004.
CACERES, Guillermo; FERRARI, Lucas; PALOMBINI, Carlos. A Era
Lula/Tamborzão política e sonoridade. Rev. Inst. Estud. Bras., São Paulo , n. 58, p.
157-207, June
2014
.
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