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CAMPINAS, 9 DE SETEMBRO DE 2014
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CORREIO POPULAR
Nunca te vi, sempre te amei
12/01/2014 - 05h00 |
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Dentro da cratera de um vulcão que se extinguiu há 500 milhões de anos, no alto de uma
montanha de Minas de onde se vê muito longe, eu plantava árvores para meus amigos mortos
e para meus amigos que iriam morrer. Para o meu amigo Ladon Sheats plantei uma árvore que
se chama “liquidambar”. A pequena muda cresceu muito e hoje é uma árvore com mais de dez
metros de altura.
Mas é preciso contar a estória.
***
Era agosto de 1976. Chega-me dos Estados Unidos um bilhete escrito numa folha de bloco
rasgada ao meio:
“Caro Rubem Alves: seus pensamentos no livro 'Tomorrow’s Child' têm tido uma profunda
influência sobre a minha vida. A sua capacidade de sintetizar... a clareza com que você se
exprime são dons muito bonitos. Por isso sou-lhe muito agradecido. Afetuosamente, Ladon
Sheats”.
O signatário não dizia quem era. Fiquei com o bilhete na mão, sem saber o que pensar. Alguns
dias depois recebi carta de um amigo com as explicações.
“Caro Rubem: esse bilhete que você recebeu foi escrito de uma prisão em Alexandria.Ladon
Sheats está cumprindo uma sentença por haver participado de uma demonstração contra as
armas nucleares acontecida no Pentágono.”
Pondo em ordem minhas velharias encontrei aquele bilhete numa pasta. O prisioneiro me
escrevia só para dizer “obrigado” por um livro que eu escrevera. Mas ao escrevê-lo jamais
poderia imaginar que ele, o livro, iria para a prisão. Ele, o prisioneiro, havia levado a sério o
que eu escrevera, mais do que eu mesmo.
Ladon Sheats era um cidadão norte-americano tradicional. Foi membro do SAC, Strategic Air
Command, a sinistra organização da força aérea norte-americana que controlava os
bombardeiros e mísseis atômicos a serem lançados contra a União Soviética, se preciso fosse.
Fora do SAC, chegou a ser vice-presidente de marketing da IBM.
Mas de repente seus olhos se abriram e ele tomou consciência da monstruosidade daquela
máquina de morte. Fez então aquilo que muitos místicos loucos já haviam feito — Buda,
Jesus, São Francisco. Deixou tudo, demitiu-se da IBM, vendeu o que possuía e juntou-se a um
grupo de pessoas que havia escolhido uma estranha forma para exprimir suas convicções
espirituais: invadia pacificamente as instalações nucleares onde se guardavam os mísseis com
bombas atômicas, sabendo que isso as levaria à prisão. Invadiam para serem presos. Era o seu
jeito de tornar pública a sua repulsa àquela loucura. Tivemos, então, uma longa
correspondência. Vou transcrever alguns trechos de suas cartas.
Eles haviam acabado de cumprir um mês de prisão por haverem invadido um lugar onde
estavam os silos atômicos, próximo da fronteira do Canadá. Saídos da prisão resolveram fazer
tudo de novo. A primeira pena fora muito branda... Aí ele me contou o que fizeram enquanto
se preparavam para a segunda invasão:
“Durante o fim de semana nós nos entregamos a uma farra — salada de aspargos e espinafres
frescos, pizza, cerveja etc. etc. e longas caminhadas na frescura da Primavera. A madrugada
do dia 27 foi fantástica. Estávamos tão agradecidos por poder voltar ao lugar dos mísseis...
localizado tão próximo a uma reserva de vida animal onde abundavam garças azuis, gansos
canadenses, veados e miríades de criaturas da terra e do céu.
Ficamos então de pé sobre as tampas de concreto que cobriam os mísseis ... cantando, lendo as
'Sagradas Escrituras' e textos do seu livro 'Creio na Ressurreição do Corpo' que um casal havia
descoberto durante seu último período de prisão. Os seus pensamentos alimentaram nossos
Gente
espíritos, Rubem. Você estava lá conosco. Pensando na sua imagem do corpo como uma pipa
e cantando um hino — foi assim que ‘pulamos o muro’, em comunhão com os ‘quero-quero’
que voavam livres entrando e saindo do lugar proibido onde se encontravam os mísseis. Os
seus pios soaram como se fossem ecos à nostalgia que havia em nossos corações...”
Por esta segunda transgressão receberam uma pena de seis meses. Ao final desses seis meses
ele me escreveu:
“20 de novembro, 1986: Rubem, numa questão de poucas horas minha jornada me levará para
além dessas grades... para uma noite de Inverno quando eu alegremente poderei sorrir para as
estrelas pela primeira vez desde maio. Irei de ônibus para o Texas para a celebração dos 78
anos de vida do meu pai. (...) Depois do Texas tudo é incerto. Pode ser que eu vá para
Pittsburg para ajudar num abrigo para os sem teto... ou para um mosteiro no alto das
Montanhas Rochosas para me alimentar de silêncio e solidão. Qualquer que seja o meu
caminho, a música é a mesma. Como disse o poeta russo Y. Yevtuschenko, ‘Não é possível
não dançar’. Rubem, você tem planos de vir a esse país em 1987? Eu dou risadas só de pensar
que os nossos caminhos poderão se encontrar...” (continua)
TAGS | rubem alves, escritor, colunista, correio popular
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