“Entre o universal e o particular: o desafio da práxis pedagógica em
escolas de meios populares”.
Renata Salomone1
“As pessoas e os grupos humanos têm o
direito a serem iguais quando a diferença os
inferioriza, e o direito a serem diferentes
quando a igualdade os descaracteriza”.
Boaventura de Souza Santos
OS LIMITES DAS PROPOSTAS UNIVERSAIS: A POLISSEMIA DOS
ESPAÇOS ESCOLARES
Uma das questões centrais verificadas nas escolas diz respeito às dificuldades de
articular os modelos universais de educação com as experiências locais, portadoras de
dinâmicas que são, muitas vezes, estrangeiras à instituição escolar. Estas dificuldades –
que são inerentes à prática pedagógica em qualquer contexto social – tornam-se ainda
mais evidentes nos contextos desfavorecidos, visto que os alunos vivem uma realidade
marcada por adversidades cotidianas que tornam a capacidade de diálogo com a escola
ainda mais difícil. Com base em pesquisa realizada em escolas públicas do Rio de
Janeiro, os maiores problemas apontados estão relacionados aos seguintes aspectos:
linguagem, pobreza e baixo capital cultural, falta de estrutura familiar, violência e baixa
autoestima. Embora tais problemas não sejam exclusivamente ligados aos alunos
moradores de favelas, eles aparecem na fala dos entrevistados muitas vezes como
caudatários da ecologia deste espaço e como provenientes de uma condição social que é,
de uma forma geral, alheia à socialização na cultura escolar.
Diante desse contexto, o questionamento sobre o papel da escola como uma das
instituições responsáveis pela integração e mobilidade dos moradores de favelas toma
um caráter imprescindível, na medida em que a expansão da rede escolar não evidencia
seu caráter emancipatório, assim como não é garantia de inclusão e justiça. A
reivindicação pela ampliação das oportunidades educacionais e pela difusão de saberes
universais foi durante muito tempo pauta das principais discussões políticas dos setores
sociais comprometidos com o projeto de democratização da sociedade e que apostavam
na massificação da oferta educativa como um fator primordial para a justiça social. O
cenário almejado era, portanto, a superação de uma crise de insuficiência de oferta, que
garantiria a transformação desta instituição seletiva em uma instituição inclusiva, que
abrigaria em seu interior diferentes grupos sociais.
No entanto, a abertura dos portões e a subseqüente democratização do acesso da
população à rede escolar pública não somente favoreceram a entrada das classes
populares, como também aceleraram a saída das classes mais favorecidas, que migraram
de vez para o ensino privado. Dessa forma, o sistema escolar – que teria a possibilidade
de funcionar como um dos meios mais eficientes de integração social – passa a
experimentar um modelo segregador e segmentado.
1
Trechos do artigo publicado no livro “A escola e a favela”.
É sobre este aspecto que repousa um dos maiores dilemas referente a essas
escolas: de um lado, para obter êxito, os alunos precisam dominar categorias, códigos,
linguagens e símbolos distantes de suas realidades de origem; de outro, a escola
necessita estabelecer meios que permitam uma comunicação com esse público,
atentando para o fato de que essa aproximação pode ser perigosa, na medida em que
ela pode reproduzir um processo de exclusão, ou tornar-se refém de uma lógica
territorialista. Desse ponto de vista, podemos encontrar um paradoxo na base dessa
instituição: como estabelecer experiências escolares básicas ou comuns em um
contexto percebido como portador de dinâmicas e códigos tão particulares?
A QUESTÃO SIMBÓLICA DA LINGUAGEM: ENTRE CONHECER E
RECONHECER
A linguagem permeia todo o processo inscrito no ambiente escolar e se estabelece como
componente básico, como ponte instauradora da interação. As formas de relação na
escola dependem de intercâmbios lingüísticos que pressupõem minimamente a
compreensão e o reconhecimento das enunciações proferidas tanto pelos professores
quanto pelos alunos. A função da linguagem – como observa Bakhtin (1986) – não é a
simples expressão, mas a comunicação, sendo a palavra o território comum do locutor e
do interlocutor. No entanto, o que constatamos na fala dos professores entrevistados na
pesquisa é que as palavras estão longe de ser terrenos comuns para ambas as partes. Se
há uma tônica nas entrevistas realizadas, é justamente a percepção da dificuldade dos
alunos de decifrarem a linguagem escolar e, por sua vez, o desafio do professor de
interpretar palavras, códigos e símbolos próprios do local.
Os depoimentos dos professores demonstram com bastante clareza as
dificuldades atreladas às mediações discursivas que atravessam as relações cotidianas
com os alunos. Uma vez que – conforme nos mostra Bourdieu (2008) – o produto
linguístico só se realiza completamente como mensagem se for tratado como tal, ou
seja, se for decifrado, o sistema escolar tende a reproduzir a defasagem entre a
distribuição do conhecimento da língua considerada legítima e a distribuição do
reconhecimento desta língua. Isto é, por mais que os alunos tenham acesso à linguagem
escolar, o que eles precisam é dar sentido aos saberes transmitidos.
Questão semelhante é apresentada por Van Zanten (2001) em sua pesquisa em
escolas de periferias francesas, quando percebe que os alunos podem ter acesso à
linguagem e às normas que emanam dos agentes da escola, adaptando-se
pragmaticamente ao contexto da escolarização, sem necessariamente introjetá-las ou
transportá-las para a relação com seus pares e, menos ainda, ao exterior da escola. A
adesão às normas pode apresentar vantagens imediatas, pois contribui para evitar
conflitos e punições e para garantir as notas, no entanto, há uma dificuldade dos alunos
de passar da acomodação à reapropriação dos objetivos e meios que a escola propõe.
Um outro componente de diferenciação através da linguagem – que está para
além do acesso aos “saberes legítimos” – é a maneira de comunicá-los e o seu
reconhecimento. Saber utilizar as palavras em situações adequadas, fazendo uso dessa
competência de modo a tornar-se reconhecida e autorizada é o que estabelece a
diferença entre os indivíduos e os coloca em posição de legitimidade. Austin (1976)
lembrará que a eficácia simbólica do discurso depende da capacidade de agir através das
palavras sobre o contexto, ou seja, da competência linguística de quem emprega o
discurso e da habilitação para empregá-lo. Assim, segundo o autor, para que o sujeito
possa ser reconhecido através do ato da fala é necessário que as circunstâncias sejam
apropriadas, que o falante tenha autoridade para fazê-lo, e que realize determinadas
ações físicas ou mentais correspondentes ao que é proferido. Assim, para além da
autoridade do discurso é preciso que se tenha o que Bourdieu (2008a) chamará de “hexis
corporal” adequada, ou seja, a habilidade de expressão que está impressa também nas
disposições corporais e na forma de falar que comunicam toda a relação socialmente
instruída:
“(...) os processos retóricos, os efeitos expressivos, as nuanças da pronúncia, as
melodias da entonação, os registros do léxico ou as formas da fraseologia (...) todos
esses traços estilísticos trazem sempre, na própria linguagem, uma relação com a
linguagem que é comum a toda uma categoria de locutores porque é produto das
condições sociais de aquisição e de utilização da linguagem” (Bourdieu,
2008b:149)
Portanto, não basta que os alunos tenham acesso à linguagem considerada legítima, é
preciso que saibam utilizá-la de forma adequada e esse uso depende de fatores externos
à própria questão da linguagem. Depende da forma de incorporação dos indivíduos e de
construções que se estabelecem também fora do espaço escolar.
Portanto, percebe-se que da mesma forma como nenhuma prática pedagógica
consegue estar dissociada dos sistemas culturais locais, os valores locais não
permanecem imunes aos modelos dominantes, necessitando de um processo de
negociação que não se inscreve a partir de uma hierarquia rígida, mas se estabelece a
partir de um jogo assimétrico e não consensual, que faz com que determinados valores
e práticas sejam prevalentes e garantam suas posições de legitimidade. É aqui que
esbarramos em outra questão referente às dificuldades de adequação dos professores
aos padrões da cultura local. Se por um lado, para que consigam atingir os alunos e
estabelecer um diálogo com eles é preciso levar em conta as características da
realidade local; por outro, é preciso cautela nesse processo, pois ele pode gerar efeitos
perversos na medida em que a limitação aos aspectos locais não garante aos alunos a
possibilidade de mobilidade, pois não fornece a eles a linguagem e os bens simbólicos
que permitem o trânsito nas instituições citadinas e a entrada no mercado formal de
trabalho.
Há, ainda, uma outra questão referente às dificuldades encontradas pelos
professores no que se refere à questão da linguagem: o domínio da linguagem escolar
e, conseqüentemente, o sucesso mediante a experiência na escola se deve não somente
à estrutura pedagógica interna, mas também, como sugere Bourdieu (1998), é fruto da
influência da herança cultural apreendida nas relações extraescolares, principalmente
no ambiente familiar. Segundo essa visão, a dimensão do ethos de classe, ou seja, as
expectativas em relação ao futuro e à ascensão social, aliada ao capital cultural são
determinantes para a construção da conduta escolar e, conseqüentemente, para a
exclusão daqueles que não se adequem a ela.
O CAPITAL CULTURAL E O SUCESSO NO INTERIOR DA ESCOLA
Bourdieu (1998) chama atenção para o fato de que a escola, na atual
conjuntura, conserva em seu espaço indivíduos aos quais antes não se permitia o
acesso, mas, provoca um processo de exclusão muito maior em seu interior e durante
todos os níveis do cursus. Assim, segundo o autor, uma vez que as atitudes diante da
escola são expressões de um sistema de valores ligados ao domínio de símbolos,
linguagens e categorias que se estruturam a partir de disposições inscritas no sujeito,
provenientes de sua posição de classe e de sua herança cultural, os indivíduos
provenientes de espaços segregados e de classes desprivilegiadas teriam menores
chances de sucesso, na medida em que os valores da cultura escolar são distantes dos
seus.
A igualdade formal que pauta a prática pedagógica serve como máscara e
justificação para a indiferença no que diz respeito às desigualdades reais
diante do ensino e da cultura transmitida, ou, melhor dizendo, exigida (...)
Mas o fato é que a tradição pedagógica só se dirige, por trás das idéias
inquestionáveis de igualdade e de universalidade, aos educandos que estão no
caso particular de deter uma herança cultural, de acordo com as exigências
culturais da escola (Bourdieu, 1998:53)
Partindo desse enfoque, a análise do processo de construção das segregações
escolares exige também uma reflexão pautada na interdependência entre a realidade
subjetiva dos alunos e a realidade exterior a qual estão expostos em seu cotidiano. De
acordo com esse ponto de vista, as escolhas, comportamentos e ações dos sujeitos não
partem de estratégias calculadas, mas, são produtos da interpenetração entre o habitus2
e as pressões de uma dada conjuntura, ou seja, cada indivíduo herda de seu meio
práticas de conduta e esquemas de percepção que os levam a agir em sociedade e
garantem a perpetuação do grupo.
Para compreender de maneira mais profunda o processo de desigualdade de êxito
escolar entre crianças provenientes de diferentes classes sociais, Bourdieu utiliza o
conceito de capital cultural, referindo-se à posse de conhecimentos ou competências
educacionais, que podem se manifestar sob a forma de disposições incorporadas
(duráveis no organismo: gostos, domínio da língua culta, etc.), de bens culturais
objetivados (livros, pinturas, dicionários e outros tipos de bens que exigem não somente
a posse de capital econômico, como os códigos necessários para decifrá-los) ou ainda
sob a forma institucionalizada (consolidada pela concessão de títulos escolares). O
capital cultural, sob este ponto de vista, seria um dos principais responsáveis pelas
diferenças nas taxas de êxito escolar.
“Habitus representa a inércia do grupo, depositada em cada organismo sob a forma de esquemas de percepção,
apreciação e ação que tendem, com mais firmeza do que todas as normas explícitas a assegurar a conformidade
das práticas para além das gerações. O habitus (...) funciona como o suporte material da memória coletiva:
instrumento de um grupo, tende a reproduzir nos sucessores o que foi adquirido pelos predecessores, ou
simplesmente os predecessores nos sucessores. A hereditariedade social dos caracteres adquiridos, assegurada por
ele, oferece ao grupo um dos meios mais eficazes para perpetuar-se enquanto grupo e transcender os limites da
finitude biológica no sentido de salvaguardar sua maneira distinta de existir”. (BOURDIEU, 1998: 112-113)
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