UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO
INSTITUTO DE CIENCIA HUMANAS E SOCIAIS
COM TEXTOS REVISTA DO DEPARTAMENTO DE LETRAS - ICHS - UFOP
DEPARTAMENTO DE LETRAS
Reitor da UFOP
Renato Godinho Navarro
Diretor do ICHS
Heliana Maria Brina Brandão
Chefe do DELET
Rivânia Trotta
Coordenadora do LPL
Maria Magdalena Lana Gastelois
ESTUDOS DE TRADUÇÃO
EDITORIA EXECUTIVA
Leopoldo Comitti
Paulo Fernando da Motta de Oliveira
Solange Ribeiro de Oliveira
CONSELHO EDITORIAL
Else Ribeiro Pires Vieira
Mário Alberto Perini
Solange Ribeiro de Oliveira
REVISÃO
Oficina de Revisão de Texto/ DELET/ ICHS
EDITORAÇÃO
1995-1996- N°6
Capa: Guilherme Mansur
Digitação e diagramação: Leopoldo Comitti
Mariana - MG
Impressão: Imprensa Universitária da UFOP
ISSN 0103-670X
SUMÁRIO
Com Textos : revista do Departamento de
Letras - ICHS / UFOP, 1(1) - 1987 Mariana (MG) : Departamento de
Letras ICHS / UFOP, 1987-
Apresentação
Solange Ribeiro de Oliveira ......................................................... 7
Borges e a Tradução: "sobre o Vathek de William Beckford
Adriana Pagano ..........................................................................12
Periodicidade: Anual até 1992.
Interrompida de 1990 - 1991. Bienal de
1992-1996.
ISSN 0103 -670X
1. Letras - Periódicos I. Universidade
Federal de Ouro Preto. Departamento de
Letras do ICHS.
Tradução e Identidade: Sombra, Duplo ou Simulacro?
Lúcia Helena de Azevedo Vilela .................................................25
Simpático
Lawrence Venuti ........................................................................32
(In)visibilidades na Tradução: troca de olhares Teóricos e
Ficcionais
Else Ribeiro Pires Vieira .............................................................50
Reflexões sobre a Tradução de Poesia numa Perspectiva de
Literatura Comparada
Célia Maria Magalhães ...............................................................69
Tradução: da Semiótica à Cultura
Thais Flores Nogueira Diniz .......................................................76
Tradução: da Semiótica à Cultura
TRADUÇÃO: DA SEMIÓTICA À CULTURA*
Thais Flores Nogueira Diniz
Considerada como um efeito do contato entre línguas e culturas diferentes,
a tradução é uma necessidade, a partir do momento em que os povos precisam
comunicar-se. Antes da invenção e difusão da escrita, a tradução era oral e
imediata; nas comunidades literatas, passou a ser a conversão de um texto escrito
em uma língua para outra língua, embora o surgimento da tradução simultânea em
conferências internacionais tenha conservado a forma oral.
Como prática interlingüística, a tradução vem sendo feita desde os tempos
dos romanos, e foi avaliada, durante muito tempo, em termos muito rígidos, como
"certa" ou "errada", "fiel" ou "livre", "literal" ou "criativa". Isto acontecia porque as
instituições pretendiam que as traduções dos livros famosos, como a Bíblia e os
clássicos, pudessem ser consideradas confiáveis. Por outro lado, pouca atenção tor
dada, no passado, à tradução como processo através do qual a atuação real do
tradutor ocorre.1 Como produto, entretanto, a tradução continua sendo estudada
criticada, e até mesmo julgada, segundo os mesmos critérios de fidelidade que
guiaram sua prática até muito recentemente.
Segundo o Dicionário Aurélio, o termo tradução, do latim traductiore
significa "o ato de conduzir além, de transferir, ... o processo de converter uma
linguagem em outra". Significa ainda, segundo a Encvclopedia Britannica
"transmissão do que é expresso numa língua ou conjunto de símbolos, em outro
língua ou conjunto de símbolos". O que há de comum entre essas definição
tradicionais é a pressuposição da existência de algo inerente ao texto, o sentido, que
*Este artigo faz pane da tese de doutorado em Literatura Comparada (FALE/UFMG. 1994). intitulada
e n l e i o s d e L e a r : d a s e m i ót i c a à t r a d u ç ã o c u l t u r a l " . A t e s e. p o r su a v e z s e i n se r e n o P r o j e t o d e In t e g r a ç ã o
Pe s q u i s a s e m T r a d uç ã o , r e a l i z a d o n o DE L E T , I C H S. U FO P. f i n a n c i a d o p e l a FA PE M I G c p e l o C NPQ
**Protessora-assistente de Língua Inglesa e Literatura Comparada no Departamento de Letras do Instituto
C i ê n c i a s H um a n a s e S o c i a i s d a U ni v e rs i d a d e F e d e r a l d e Ou r o P r e t o .
1 Esse estudo, muito recente, tenta anaJisar a performance lingüística do tradutor e reconstruir estratégias de
tradução que a ela e stão subjacentes e q ue operam dentro d e um processo de tr adução mental.
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vai ser transportado para outro texto. Este é o conceito tradicional que vem
dominando a prática da tradução. As noções tradicionalmente subjacentes são as de
fidelidade e originalidade. A fidelidade tem sido priorizada. na prática comum da
tradução, até em detrimento da qualidade, quando se trata de textos centrais ou
autoritários, aos quais se quer que o público tenha acesso.2 A outros, menos
centrais e menos autoritários, concede-se a tolerância de uma tradução menos fiel.
Na última década, porém, os critérios mudaram e hoje a tradução é vista
como uma transformação, e seu estudo abrange os fatores que ocasionaram tal
mudança. De acordo com as modernas teorias sobre leitura, vemos que é impossível
haver um texto pronto, cheio de significados que vamos descobrir e, em seguida,
transportar para o texto em outra língua.3 Por não existir como pronto e acabado,
este se transforma num produto que contém, implícita, toda a história de sua leitura
e, sendo assim considerado, é formado de tudo que o circunda, ou seja, de todas as
suas ativações. Podemos definir tradução como uma dessas ativações e a tarefa do
tradutor como uma atividade de leitura e construção do sentido.4 A partir dessa
idéia de que a tradução envolve tudo que circunda o texto, inclusive o contexto de
sua produção, e de que o sentido é criado pela leitura, abandona-se a noção de
tradução como cópia, mimese ou até transposição, em favor da noção de
transformação.
Segundo André Lefevère, o essencial no estudo dessa transformação é
analisar o poder que a ideologia e a poética 5têm sobre a produção do texto
traduzido/transformado, o papel deste numa determinada cultura, as regras que
determinaram tal transformação e a atitude, dos tradutores em relação a essas
regras. Embora a noção de fidelidade ao original como obra única, sagrada e
imutável ainda perturbe o tradutor de hoje, as traduções, não como produtos
derivados do original mas resultantes das diversas leituras do texto, se apresentam
como signos icônicos umas das outras, tornam-se o resultado de uma atividade
semiótica. Como produto resultante dela, a tradução passa a ser um texto que se
refere a outro(s) texto(s), que tem com ele(s) uma determinada relação ou que ainda
o(s) representa de algum modo. Esse tipo de relação existente entre os textos vem a
constituir-se o objeto dos estudos da tradução chamada intersemiótica.
Nos últimos dez anos, entretanto, a semiótica vem se preocupando também
com o funcionamento dos signos e com o papel do espectador/leitor em relação ao
2 O termo "texto central" é usado por André Lefevère para definir aquele lexto que incorpora os valores
essenciais de uma cultura.(Lefevère. 1992a: 120)
3 Essa noção levanta problemas como o do leitor como construtor do texto e o da existência do texto somente
na medida em que é lido.
4 O termo ativação foi usado por Tony Bennett e. de cena lorma. é sinônimo de re -escrita ou
retração, segundo Lefevère.
5 Para Lefevère. ideologia é o modo como o mundo visto pela maioria_ deve ser e a poelologia (poética)
refere-se à idéia de como a literatura deve ser.
Tradução: da Semiótica à Cultura
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texto. Este passa, então, a constituir-se em um campo de batalha onde se debatem
as teorias que dão maior ou menor prioridade ao social, ao psicanalítico, ou ao
descritivo. Atualmente, em toda descrição de textos de linguagem, o papel social e
as predisposições do emissor e do receptor devem ser enfatizados. Ao usarmos a
linguagem, produzimos sentido. Mas podemos significar também através de outros
atos, como os movimentos que fazemos com o corpo, ou quando acenamos
bandeiras, ou colocamos sinais nas estradas, quando construímos edifícios, ou
fazemos filmes, escrevemos romances, poemas ou peças, quando pintamos,
esculpimos, modelamos ou bordamos. Cada uma dessas atividades semióticas tem
seu próprio sistema de sentido. Não se apresentam apenas "como linguagens" em
seu meio de expressão, mas constituem procedimentos que permitem especificar
seus processos e práticas semióticas distintivas.
O teatro e o cinema também representam atividades semióticas, pois
existem para significar. Para entender a natureza artística de cada uma delas -teatro ou cinema— precisamos conhecer os aspectos específicos de cada abordagem,
isto é, que tipo de signo usam e como esses signos são organizados. Diante de dois
textos, um teatral e outro fílmico, que se apresentam como signos icônicos um do
outro, isto é, como signos numa mesma cadeia semiótica, cada um pode ser
considerado uma transformação, ou tradução do outro. Traduzir do teatro para o
cinema significa, portanto, passar de um sistema semiótico para outro.
O século XX mostra-se rico em manifestações que procuram maior
integração entre as artes. Uma mostra dessa riqueza subjaz ao interesse no estudo
das interrelações entre elas.6 Neste contexto, a tradução intersemiótica, cm
qualquer situação À do texto para o palco ou do teatro para o cinema, por exemplo A
consistiria na procura de equivalências entre os sistemas. Isto quer dizer que um
elemento A que ocupa um determinado lugar no sistema de signos do teatro, por
exemplo, seria substituído, na tradução, por um outro elemento x' que ocupasse o
mesmo lugar, porém no sistema de signos do cinema. A idéia de eqüivalencia
provém do fato de que toda linguagem tem uma ordenação básica, isto é, os signos
não se amontoam, mas existem como sistemas, semântica e sintaticamente
organizados.
Como a tradução se define como um processo de transformação de um
texto, construído através de um determinado sistema semiótico, em um outro texto de
outro sistema semiótico, isso implica que. ao decodificar uma informação dada em
uma "linguagem" e codificá-la através de um outro sistema semiótico, torna-se
necessário modificá-la, nem que seja ligeiramente, pois todo sistema semiótico
caracterizado por qualidades e restrições próprias, e nenhum conteúdo
existe
6 Na Universidade Federal de Ouro Preto desenvolve-se atualmente um "Projeto integrado em tradução
coordenado p ela pro fessora Solan ge Rib eiro de Oliveira. U m a das subdi visões desse projeto trata d a traduç ão
intersemiótica. onde este trabalho se ins ere.
'9
independentemente do meio que o incorpora. Esse conteúdo não pode, por isso, ser
transmitido, ou traduzido, ou transposto, independentemente de seu sistema
semiótico. Torna-se necessário, então, estudar as condições que possibilitaram a
transformação de um texto em outro, isto é, as condições que permitiram a
tradução. Portanto, os textos considerados como tradução um do outro, um filme e
uma peça de teatro, por exemplo, são obras inteiramente independentes, sui
generis, mas, ao mesmo tempo, intimamente relacionadas.7 Como resultado do
processo transformacional, uma estrutura totalmente nova surge. E o texto tem de
ser visto como uma obra autônoma que não pode ser adequadamente compreendida
e julgada se tomada apenas como uma transformação da outra. Mas, por outro lado,
não se pode negar que está intimamente ligada ao outro, pois funciona como seu
"interpretante".
Numa análise de tradução, porém, não podemos restringir-nos apenas aos
sistemas como produtores de signos e à sua equivalência. É preciso levar em conta
também os aspectos que, em ambos os sistemas, moldam sua equivalência e a
experiência do espectador. Este, como parte efetiva no processo de significação,
"para quem" algo está no lugar de "outra coisa", vai adicionar ao que vê, sente,
percebe e ouve, o que ele próprio sabe: idéias socialmente controladas e
estabelecidas sobre um mundo objetivo, seus objetos e procedimentos neutros.
Colocamos a tradução intersemiótica como "via de acesso mais interior ao próprio
miolo da tradição", tradução como prática crítico-criativa na historicidade dos
meios de produção e re-produção, como leitura, como meta-criação, como ação
sobre estruturas, eventos, como diálogo de signos, como síntese e reescritura da
história (Barbosa, 1979:90). Quer dizer: como pensamento em signos, como
trânsito dos sentidos, como transcriação de formas na historicidade (Plaza,
1987:14). Tudo isso se aplica ao tradutor. Se ele tem em vista o espectador com
todos os seus condicionadores sociais, ele, o criador do interpretante, sofre,
também, a influência desses mesmos condicionantes. O que se pode observar
também, na tradução, situa-se, pois, na intersecção, no entrecruzar desse social
partilhado pelo emissor e pelo receptor do novo signo constituído pela tradução.
Os estudos na área não podem, portanto, limitar-se à descrição de
semelhanças e diferenças entre texto-fonte e texto-alvo. Precisam tentar mostrar
quais os mecanismos de canonização, integração, exclusão e manipulação que,
subjacentes à produção do texto traduzido, operam nele continuamente em vários
níveis. Para cumprir esse objetivo, esses mecanismos tornam-se muito mais
7
A adaptação fílmica pode ser considerada como uma espécie de tradução porque tanto os .estudos de
tradução como os de adaptação fílmica se preocupam com as transformações dos textos sob condições de
”invariance", isto é, condições em que o núcleo é retido enquanto se estabelece uma relação entre as
entidades inicial e resultante. O invariante representa esse núcleo que fica retido durante o processo de
transformação de uma entidade semiótica em outra entidade funcional e que se constitui em um elemento
potencial de outro sistema cultural secundário (Cattrysse, 1992:54)
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Tradução: da Semiótica à Cultura
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abrangentes do que meros estudos lingüísticos e não mais se desassociam dos
estudos literários e culturais. Nesse aspecto, o conceito de interpretante se apresenta
como uma noção muito útil. Significa uma representação mental retirada pelo
signo, ou uma representação mediada8 e, nesse sentido, distingue-se de significado.
O interpretante é um signo que. de alguma maneira, traduz, explica ou desenvolve
um signo prévio e assim continuamente num processo de semiose infinita.9 Não é
nem uma entidade platônica nem um construto metalingüístico e sim um produto
testável da atividade semiótica da cultura humana. Pode ser associado às noções
igualmente semióticas de umwelt, que é o mundo objetivo; de innenwelt, que é o
mapa cognitivo que o indivíduo desenvolve e de lebenswelt, o mundo da cultura
Destacamos esse último como um dos determinantes do que se chama sistema
modelador. em semiótica, ou seja, aquele que modela a "realidade". utilizando-se
das ferramentas redutoras da cultura.
Cultura, para Lotman e Uspensky, pode ser definida como um sistema de
signos que organiza estruturalmente a vida social do homem, em termos de uma
memória hereditária da comunidade, e que se expressa num sistema de restrições e
prescrições. Este conceito inclui os interesses dos leitores/tradutores nas leituras
existentes e também nas novas leituras que irão ocorrer. Para Sebeok, cultura inclui
conhecimento, crenças, arte, leis, moral e costumes adquiridos pelo homem na
sociedade.... que ajudam a manter a coesão de um grupo humano. Para Geertz..
cultura denota um modelo de significados historicamente transmitidos, que são
concretizados em símbolos, através dos quais os homens se comunicam. Para Boas.
a cultura segue seus próprios caminhos em função dos diferentes eventos históricos
que enfrentou e se define como um processo cumulativo, resultante da experiência
histórica das gerações anteriores, que governa a ação criativa do indivíduo.
Dentro dessas concepções de cultura, aspectos relacionados ao fenômeno
da tradução, outrora negligenciados, são agora levados em conta. Se a tradução e
um interpretante. ela engloba o cultural, não levado em consideração nas
abordagens tradicionais. A tradução, portanto, nunca acontece num vácuo, onde se
pressupõe que as línguas se encontram, mas no contexto da tradição de todas as
literaturas, no ponto de encontro entre os tradutores e os escritores, que é cultural
Os tradutores se apresentam, pois, como os mediadores das tradições literárias,
entre culturas, não com o intuito de trazer o original à tona de maneira neutra e
objetiva, mas para torná-lo acessível em seus próprios termos. Os termos do
tradutor, por outro lado, são limitados pelo contexto em que ele vive e podem até
8
8 Um signo substitui algo pela idéia que ele produz ou modifica. Aquilo que ele substitui é o objeto: o que eu
transmite é o significado e a idéia que ele faz nascer, o interpretante.
9 O interpretante pode ser um sinônimo na mesma língua, uma definição expressa numa língua formal o.
numa natural, um signo correspondente num outro sistema semiótico. a exibição do objeto ao qual o termo se
aplica, um hábito de comportamento adquirido pela aproximação com o signo ou a série inteira de inferências
suscitadas pelo signo.
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não se constituírem em algo intrinsecamente seu. A tradução, pois. não é produzida
em perfeitas condições de laboratório, esterilizado e neutro, e sim no entrelugar de
várias tradições, culturas e normas. Toda tradução é. portanto, uma tradução
cultural.
Uma teoria de tradução deve, pois, preocupar-se com as exigências de um
mundo em constante mudança, onde não só a linguagem, mas também a cultura, a
história, c a ideologia se misturam, passam de um texto para outro. De fato, os
estudos recentes focalizam o interrelacionamento entre os textos, suas re-escritas, e
o contexto de suas produções. Enfatizam também o que se considera um fenômeno
cultural, isto é, o texto como entidade concreta em frente ao leitor, porém
acrescentado da história acumulada de suas leituras. Como diz Tony Bennett, "não
existe texto atrás ou além das formas em que é produzido, das relações sociais em
que é escrito, dos horizontes interpretativos aos quais está incorporado" (131).
Qualquer texto é uma força que sugere, contrapõe ou regula as opções
interpretativas e analíticas a serem adotadas pelo leitor. Na sua história, entram,
além de outros fatores, a maneira como esse texto foi anunciado para consumo, e
como atingiu sua audiência. Em resumo, os estudos de tradução, dentro da
perspectiva cultural, não negligenciam a análise textual, com sua intervenção na
política da leitura e a ativação do texto, visando a inscrevê-lo dentro das relações
ideológicas e sociais. Nem descartam a crítica contextual, com a re-inserção do
texto nas condições originárias de produção e consumo. Porém, ultrapassam a
ambas, e preconizam, como objeto de estudo, a "história viva do texto", ou seja, a
história real de sua ativação10.
Esse objetivo está relacionado às idéias de Walter Benjamin sobre as
técnicas de reprodução de massa11 derivadas da politização da consciência artística,
as quais, segundo ele, não matarão a criação, mas, ao contrário, refarão os "modosde-formar", de onde sairão fisionomias novas, desafiadoras. Segundo o filósofo
alemão, esse desenvolvimento distanciou a obra de arte da aura antes a ela
atribuída, em virtude de sua existência única, e alterou radicalmente sua condição
de existência, conferindo-lhe uma repetição, uma reduplicação, de modo que seu
10
A ativação do texto, conceito descrito por Tony Bennett. consiste de tudo que se relaciona ao fenômeno
cultural, e que tem a ver com o texto, desde filmes adaptados, entrevistas com autores e atores, propaganda
feita durante o lançamento e outras "ativações" marginais e dominantes. Esse conceito contém a mesma idéia
do conceito de re-escrita. criado por André Lefevère. A tradução ê uma forma de re-escrita e. portanto, uma
forma de ativação do texto.
11 Benjamin reflete sobre as alterações acontecidas na superestrutura artística, impostas pelo modo
capitalista de produção No passado, as obras possuíam uma aura e uma autoridade, e exerciam uma função
ritual, contemplada a distância. Porém a unicidade da obra foi superada pela massa contemporânea, que
passou a aceitar uma reprodução mecânica como seu equivalente, a obra não mais venerada como objeto
de culto, mas considerada como bem de consumo, vendida no mercado Essa obra. em vez de absorver seu
dono. é absorvida por ele Reações a esses ob|etos são completamente determinadas pela audiência à qual o
indivíduo é subordinado.
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significado não pode ser especificado "a priori", antes que se conheça, o que é
impossível, os contextos em que a obra será inserida futuramente. A conseqüência,
diz Bennett, é uma harmonização entre a obra e suas ativações (re-escritas,
traduções, comentários, críticas, etc) num sistema móvel de significantes
circulantes. Não se vai conhecer, ou produzir, o texto em si, mas o texto ativado,
única entidade social concreta (139).
André Lefevère, uma das figuras de ponta nos estudos recentes de
tradução, também abraça o conceito de tradução como transformação. Além de
inverter a visão unidirecional do papel da tradução como força modeladora, salienta
"o papel do contexto receptor na criação de imagens de textos, escritores e culturas
estrangeiras e o papel da tradução na criação de um cânone translingüístico e
transcultural". Explica ainda sua natureza bi-direcional, isto é, "as traduções
produzidas dentro dos limites poetológicos e ideológicos da cultura receptora criam
imagens da fonte mas têm também um efeito transcultural de retroversão na criação
de cânones, daí sua bi-direcionalidade" (Vieira, 1992:128-130).
Os procedimentos, ou decisões, para traduzir elementos de culturas
derivam todos das condições culturais, pois, segundo Casagrande(1954), o que se
traduz não é a linguagem, mas a cultura, e a facilidade ou a dificuldade na tradução
depende do grau de proximidade (similaridade mútua) das culturas em questão. A
tradução, como vista recentemente, deixa portanto de ser apenas, como se defini:
tradicionalmente, o transportar, seja de uma língua ou de um sistema para outro(a).
para tornar-se um procedimento muito mais complexo que envolve não apenas as
linguagens, as culturas e os artistas, mas também os contextos, os
leitores/espectadores, as tradições, a ideologia, o passado e o futuro.
A tradução, como vimos, é um signo, aquilo que está no lugar de algo
para alguém... num determinado momento ou corte da cadeia semiótica. Deixa de
ser apenas, como se define tradicionalmente, o transportar, seja de uma língua ou
de um sistema, para outro(a). Torna-se um procedimento complexo que envolve
também as culturas, os artistas, seus contextos histórico/sociais, os
leitores/espectadores, as tradições, a ideologia, a experiência do passado e as
expectativas quanto ao futuro. Envolve ainda o uso de convenções, de técnicas
anteriores ou contemporâneas, de estilos e de gêneros. Traduzir significa ainda
perpetuar ou contestar, aceitar ou desafiar. Do mesmo ponto de vista, envolve
sobretudo, uma leitura transcultural. Nas palavras de Alfredo Bosi, traduzir e
também aculturar.
Tradução: da Semiótica à Cultura
83
Bibliografia:
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