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O DEVIR-MULHER DE “ORLANDO” DE VIRGINIA WOOLF: UMA LEITURA
POR ESTILHAÇOS
BRITO, Maria dos Remédios de1
Resumo: O presente texto faz uma leitura em fragmento da obra Orlando de Virginia Woolf,
mostrando como a autora usa o devir-mulher por meio da transformação do personagem
principal, chamado Orlando. Sem alardes, ela lança reflexões interessantes sobre a sexualidade,
o que leva a pensar que a literatura pode ser fonte de inspiração e esclarecimento sobre o tema,
questão tão vigiada e controlada pelo sistema de julgamento que rege a sociedade. A inspiração
argumentativa vem da Filosofia da Diferença de Deleuze e Guattari, destacando o conceito de
devir-mulher. Sem pretensão conclusiva e sem apontar interpretações definidas, o convite é para
aqueles que enxergam na literatura uma possibilidade de alargamento do mundo e da vida para
se pensar existências possíveis.
Palavras-chave: Devir-mulher; Virginia Woolf; Deleuze; Guattari; Sexualidade
Ôu! Ôu!
Ser um homem feminino
Não fere o meu lado masculino
Se Deus é menina e menino
Sou Masculino e Feminino...
Olhei tudo que aprendi
E um belo dia eu vi...
Que ser um homem feminino
Não fere o meu lado masculino
Se Deus é menina e menino
Sou Masculino e Feminino...
Olhei tudo que aprendi
E um belo dia eu vi
Uh! Uh! Uh! Uh...
E vem de lá!
O meu sentimento de ser
E vem de lá!
O meu sentimento de ser
Meu coração!
Mensageiro vem me dizer
Meu coração!
Mensageiro vem me dizer...
Salve, salve a alegria
A pureza e a fantasia
Salve, salve a alegria
A pureza e a fantasia...
Olhei tudo que aprendi
E um belo dia eu vi
Uh! Uh! Uh! Uh...
Que ser um homem feminino
Não fere o meu lado masculino
Se Deus é menina e menino
Sou Masculino e Feminino...
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Licenciada em Pedagogia, Bacharel em Filosofia, pós-doutora em Filosofia da Educação pela Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP). Professora da Universidade Federal do Pará (UFPA), Instituto de Educação Matemática e Científica (IEMCI).
Coordenadora do Grupo “Transitar”, membro do Grupo de Estudos “Cultura, Subjetividade em Educação”/CNPq. Trabalha nas
intercessões da Filosofia e Educação, com a Filosofia da Diferença (Nietzsche, Foucault, Deleuze e Guattari). Email: [email protected];
[email protected]
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Vou assim todo o tempo
Vivendo e aprendendo
Ôu!...
E vem de lá!
O meu sentimento de ser
E vem de lá!
O meu sentimento de ser
Meu coração!
Mensageiro vem me dizer
Meu coração!
Mensageiro vem me dizer
Ôu! Ôu! Uh!...
(Pepeu Gomes)
A leitura de um texto, tal como sugere Deleuze (2004), deve percorrer o meio
do procedimento de pick up, “duplo roubo”. Um encontro entre dois, núpcias, que aos
poucos vai criando pequenos blocos de junções e de disjunções. Implica que se leia um
autor e acompanhe o processo de construção das ideias, sem querer ser o autor e seguir
os seus passos. É uma entrada por zonas que colocam em vibrações singularidades,
subjetividades, ou mesmo individuações.
Uma obra deve ser lida quando extrai potências de signos, quando cria linhas,
intimidades, sem ser íntima, margeando saídas e entradas, sendo sempre outra por mãos
dadas. Contudo, em uma leitura, há sempre linhas opacas, que se compõem por vácuos,
por vazios e por desertos, mas o que importa no fundo é a oscilação do pensamento.
A leitura da obra de Virginia Woolf, Orlando, foi assim: um encontro amoroso,
que desencadeou um movimento do pensar, sem querer fazer uma “boa leitura”, “uma
boa interpretação textual”, antes, é necessário borrar as linhas, fissurar as páginas,
caminhar por entre as zonas, para, então, compor em estilhaços uma gagueira da língua.
Para tanto, foi tomado como linhas de inspiração o pensamento da diferença de Deleuze
e Guattari.
1-Estilhaço
A obra Orlando mostra o quanto a autora, atualizada com o seu tempo e seus
problemas, põe em debate a questão da identidade sexual, ao mesmo tempo em que se
pode notar a extemporaneidade da grande literatura. Sem ruídos, não faz da questão
sexual um alarde, uma querela, aliás, não é esse o problema da literatura, pois como a
autora sugere, isso é questão para a Biologia, para a Psicologia, que são ciências que
procuram orientações, classificações, definições, verdades determinadas, como ela diz:
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Muita gente, à vista disso, e sustentando que a mudança de sexo é
contra a natureza, esforçou-se em provar, primeiro; que Orlando sempre
tinha sido mulher; segundo: que Orlando é, neste momento, homem.
Decidam-no biólogos e psicólogos. A nós, basta-nos expor o simples
fato; Orlando foi homem até os trinta anos; nessa ocasião, tornou-se
mulher, e assim ficou daí por diante.” (WOOLF, 1978, p. 77).
E ainda reforça: “Tratem outras penas de sexo e sexualidade; nós abandonamos
tão odioso assunto o mais depressa possível” (WOOLF, 1978. p.77). Sem jactância,
Woolf mostra, no terceiro capítulo da sua obra, a mudança do personagem Orlando, o
homem se torna mulher, ou melhor, faz um devir-mulher, conceito que será tratado
posteriormente no transcorrer do texto. Com naturalidade, a autora afirma que o
personagem não perdeu com a sua transmutação a memória e nem a história. Em sua
memória correm lembranças em buracos, em vagas imagens, como algo necessário; pois
o seria da vida regada somente pela memória? Antes, o fundamental será o exercício de
algum esquecimento para que a vida viva e pulse, uma espécie de força plástica, ao
modo de Nietzsche (2000). De alguma maneira a autora sabia dessa plasticidade para
deixar em vagas lembranças a memória de Orlando.
Orlando carrega em seu devir2 os seus lugares, suas viagens, com um certo
tempero do esquecimento. Ele carrega não uma história em si, mas blocos de memória,
pois “o devir é uma antimemória” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 92), a linha da
memória é liberada da linha reta, e pelo bloco de memória há zonas de vizinhanças,
blocos de vida, numa linha que desterritorializa e arrasta o corpo. Com isso, “Orlando já
não operava por lembranças, mas por blocos, blocos de idades, blocos de épocas, blocos
de reinos, blocos de sexos, formando igualmente devires entre as coisas, ou linhas de
desterritorialização” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 92).
Enquanto homem, Orlando já tinha consigo forças atravessadas por suas
andanças, tantos homens como tantas mulheres possíveis. Afinal, os processos
socioculturais estão por todas as maneiras, talhando e retalhando o corpo, pois não há
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Sobre a ideia de devir: “Um devir não é uma correspondência de relações. Mas tampouco é ele uma semelhança,
uma imitação e, em última instância, uma identificação. (...) Devir não é progredir nem regredir segundo uma série. E
sobretudo devir não se faz na imaginação, mesmo quando a imaginação atinge o cósmico ou dinâmica mais elevada.
(...) O devir não produz outra coisa senão ele próprio (...) devir não é evolução, ao menos uma evolução por
dependência e filiação. O devir nada produz por filiação (...) Ele é da ordem da aliança. (DELEUZE; GUATTARI,
1997, p. 19).
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como negar que a cultura vai a ferro e fogo impondo suas leis, suas normas, suas
condutas, mesmo que não se marque em definitivo, pois como seria o humano que não
pensasse em seus deslizamentos no interior dele mesmo? Orlando leva em seu corpo os
seus blocos de vidas e seus blocos de encontros...
Woolf mostra que a arte da literatura, junto com a filosofia (aqui se pontua
efetivamente a filosofia contemporânea, principalmente aquela defendida por Deleuze e
Guattari), percorre os terrenos das fragmentações, dos deslocamentos, do não idêntico,
das vibrações, das intensidades, dos intercanbiantes devires, pois como diz Deleuze “É
o devir que faz, do mínimo trajeto ou mesmo de uma imobilidade no mesmo lugar, uma
viagem” (1997, p. 77), pois o corpo que se apresenta simplesmente com o poder de
afetar e ser afetado diante de seus trajetos múltiplos.
Assim, não é uma continuidade, mas um meio que atravessa o corpo devir de
Orlando e os “indefinidos” que reverberam a vida e suas intensidades não estão
preocupados com fixações regulares. Woolf já pontua, anteriormente, que não tem
preocupação com as fronteiras e as demarcações de sexo. Esses contornos são muito
mais interessantes para as estatísticas. Como dizem Deleuze e Guattari: “somos
heterossexuais estatisticamente ou molarmente, mas homossexuais pessoalmente, quer o
saibamos ou não, e, por fim, transsexuados elementarmente, molecularmente” (2010, p.
97).
Orlando homem/mulher não é um detalhe absurdo, anormal; o personagem entra
em um devir, em um entre-lugar. Ele não faz uma regressão e nem uma progressão,
ele/a é um corpo afetado por misturas, por sensações... intermezzo. Esse corpo, que
irrompe, originariamente, por meio da vida, mostra um poder incontrolável, inesperado,
que não pode dar para si um nome ligado ao sexo y ou x, pois comporta uma dobra que
brota no meio do seu corpo, que remete a um novo modo particular de existir e viver,
que não exclui, mas multiplica. Orlando não é homem ou mulher, ele/a é um
embaralhamento.
Por isso, olhando pelo campo da sexualidade como forças que exercitam
afecções outras, pode-se pensar a inocência das flores, como dizem Deleuze e Guattari,
a inocência das flores, nos traz ainda uma outra mensagem e um outro
código: cada um é bissexuado, cada um tem os dois sexos, mas
compartimentados, incomunicantes: o homem é apenas aquele em que a
parte masculina domina estatisticamente, e a mulher, aquela em que a
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parte feminina domina estatisticamente. E assim, no nível das
combinações elementares, é preciso fazer intervir pelo menos dois
homens e duas mulheres para constituir a multiplicidade na qual se
estabelecem comunicações transversais, conexões de objetos parciais e
de fluxos: a parte masculina de um homem pode comunicar com a parte
feminina de uma mulher, mas também com a parte masculina de uma
mulher, ou com a parte feminina de um outro homem, ou ainda com a
parte masculina de um outro homem, etc. E aí cessa toda culpabilidade,
porque ela não pode agarrar-se a essas flores. À alternativa das
exclusões “ou/ou” opõe-se o “ou” das combinações e permutações nas
quais as diferenças vêm a dar no mesmo sem deixarem de ser
diferenças. (2010, p. 97).
Quando Woolf fala da mudança de Orlando para mulher não faz nenhuma
questão de dizer que ocorreram apagamentos, antes, ligações, alianças que atravessam o
corpo de Lady Orlando (masculino/feminino).
2- Estilhaço
Orlando não forma uma representação inconsciente em devir-transmutação,
como não forma com qualquer tipo de objeto posto ao seu redor, uma representação; ele
é arrastado por um devir-mulher, que não suporta um sexo determinado, definido. Ele/a
é arrastado por forças, constelações intensivas, então, o que ele faz depois de sete dias
dormindo, quando acorda, não é só trajeto, mas um devir, as forças intensivas cavam
mundos fora de um porto originário e ele vai mapeando o meio, o entreposto, que não é
uma derivação de uma extensão, de um suplemento, mas um mapa dos afetos, que
fazem as linhas do corpo percorrem derivas transformáveis, por isso, um devir “é um
mapa intensivo” (DELEUZE, 1997, p. 77).
Orlando dorme para fazer seu devir molecular, suas vizinhanças, e não é por
imitação de uma mulher que ele transmuta, nem mesmo por uma proporcionalidade que
remete à forma. Quando dorme, seu corpo encontra-se com as partículas do sono, sua
pele, seu sexo, entram em uma relação de repouso, assim, encontra as partículas da
mulher e se lança em uma linha de fuga, para fazer devir-mulher. Nada disso remete
efetivamente a uma forma objectal, gira o corpo em composições singulares, uma
impessoalidade o atravessa, o que ele reconhece é uma experiência, nada se parecendo
com a mulher em si, como uma categoria.
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É a mulher enquanto tomada numa máquina dual que a opõe ao
homem, enquanto determinada por sua forma, provida de
órgãos e de funções, e marcada como sujeito. Ora, devir-mulher
não é imitar essa entidade, nem mesmo transformar-se nela.
Não se trata de negligenciar, no entanto, a importância da
imitação, ou de momentos de imitação, em alguns
homossexuais masculinos; menos ainda a prodigiosa tentativa
de transformação real em alguns travestis. Queremos apenas
dizer que esses aspectos inseparáveis do devir-mulher devem
primeiro ser compreendidos em função de outra coisa: nem
imitar, nem tomar forma feminina, mas emitir partículas que
entrem na relação de movimento e repouso, ou na zona de
vizinhança de uma microfeminilidade, isto é, produzir em nós
mesmos uma mulher molecular, criar a mulher molecular. Não
queremos dizer que tal criação seja o apanágio do homem, mas,
ao contrário, que a mulher como entidade molar tem que devirmulher, para que o homem também se torne mulher ou possa
torna-se (...). É preciso, portanto, conceber uma política
feminina molecular, que insinua-se nos afrontamentos molares
e passa por baixo, ou através. (DELEUZE; GUATTARI, 1995,
p. 68, grifo meu).
O devir-mulher de Orlando é a linha do seu trajeto impessoal, de sua potência
emergida por sua singularidade, não é uma imitação, mas um tornar-se “devir-mulher
do homem como da mulher” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 70), que faz com que
Orlando faça uma espécie de zona de vizinhança na qual não se pode determinar
classificatoriamente o lugar, ou que o ele se tornou efetivamente.
O devir-mulher não é uma identidade que se encerra, embora o personagem
Orlando tenha, depois de seus 30 anos, permanecido imagem de mulher, pois não existe
a mulher em si, tal como seja possível observar na implicação sociocultural. O que se
encontra em Woolf, na obra Orlando, é uma espécie de resistência aos
enclausuramentos identitários, ou essencializações. A autora abre margens para
experimentações, passagens, rotas, viagens a multiplicidades, que se deixam atravessar
por forças do homem em um corpo de mulher, por forças da mulher em um corpo de
homem, sem no entanto ser um ou outro. Orlando é um devir-mulher.
Segundo Guattari (1987), um corpo social e cultural está atravessado por toda
uma composição binária: homem/mulher, macho/fêmea, masculino/feminino, além de
outros binarismos, porém um devir-mulher permite que o corpo limitado seja
atravessado por todas as forças estranhas, esse devir é um campo intensivo de passagem
para todas as formas de sexo e sexualidade (transexual, heterossexual, homossexual,
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travestis, etc.), para figurações marginais (prostitutas, artistas, revolucionários, loucos,
vagabundos de todas as ordens) e para devires (animal, vegetal, criança). O devirmulher oferece um trajeto louco de devir, que sendo esburacado pelas intensidadesfluxos abre fissuras, linhas por todos os lados do padrão edificante de uma cultura
falocêntrica.
Se antes a mulher foi sempre representada pela figura do homem e nele
enclausurada, Guattari (1987) dispõe tal figura como um corpo do trajeto devir, que
promove embaralhamento de lugares, traçados, deslocamentos, transversalidades,
multiplicidades, que fazem qualquer corpo rodopiar pela diferença e na diferença.
O devir-mulher passa pelos devires de resistências e revolucionários, forças
possíveis para pensar outros modos de existências. Por isso o corpo de Orlando tornase passagens para a experiência que não toma ligações representacionais, ao contrário,
diz não ao sistema de culpabilidade do binarismo reinante. O devir-mulher é uma
quebra, um rompimento da norma estabelecida em padrões regulares.
O corpo feminino de Orlando não é visto como categoria mulher, tudo que
rompe a norma, tal como mostra Woolf em seu livro, faz haver devires: mulher,
revolucionário, pontuando que “toda semiotização em ruptura implica numa
sexualização em ruptura” (GUATTARI, 1987, p. 37). Daí a tentativa de Woolf em
oferecer uma amplitude do olhar para as identidades fixas e reguladoras do sexo e do
corpo.
Woolf introduz o devir-mulher na obra Orlando, mesmo sem ter como objetivos
qualificações conceituais, pois a autora faz um mapa em bloco com o corpo do
personagem, não temendo apontar suas intensidades. Orlando só aceita definições por
seus trajetos e afetos no limite do seu devir.
3- Estilhaço
Diz Nietzsche : “e hoje toda espécie de dogmatismo está de braços cruzados,
triste e sem ânimo. Se é que ainda está de pé!” (NIETZSCHE,1992, p. 07). Ora, não há
como negar que se têm boas razões para a crítica ao pensamento dogmático. Este
inimigo imponente fomentou comportamentos tão infantis, supertição popular, jogos de
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linguagem, sedução da língua e da gramática, generalizações, verdades absolutas, moral
extra-humana (NIETZSCHE, 1992), que só sufocou a produção humana.
O pensamento dogmático gerou infinitas promessas, pois como diz Nietzsche:
“todas as coisas grandes, para se inscrever no coração da humanidade com suas eternas
exigências, tiveram primeiro que vagar pela terra como figuras monstruosas e
apavorantes” (NIETZSCHE, 1992, p.8).
Isso tudo percorre como uma espécie de fio vermelho, como vontade de verdade,
que impele o homem a não querer correr riscos, do mesmo modo que coloca a
humanidade em volta de infinitas questões, debates e reflexões. Mas a pergunta de
Nietzsche (1992, p. 9) é: “o que, em nós, aspira realmente à verdade?” Mas, por que
também não se quer a inverdade? Qual é o valor da verdade? Quem se apresentou a
quem, o valor da verdade à humanidade ou a humanidade ao valor da verdade.
(NIETZSCHE, 1992).
Nietzsche vai levantando uma série de questões no seu texto “Dos preconceitos
dos filósofos” em sua obra Além do bem e o do mal, procurando mostrar como um
modo de julgar, de valorar por exclusão, verdadeiro/falso/errado ou certo, produz
preconceitos (NIETSZCHE, 1992).
O valor da verdade imprime todo um processo de negação, de oposição, de
construção lógica, que impõe total desinteresse para tudo aquilo que está fora do padrão
de valor dominante. Mas, será que a vida pode ser em si valorada? O que é a verdade
em si? Essa pergunta não cabe no texto de Woolf, antes, ela sugere a reflexão sobre
quais seriam os efeitos da verdade.
Não sendo um problema para a literatura, nenhuma preocupação deve ser
atravessada para esse intento, e sem piedade, ou compaixão cristã, Woolf faz da virtude,
da boa vontade, um riso.
O leitor exercita gargalhadas e ironia quando ela põe a piedade, a castidade e a
pureza como as três irmãs portadoras da honra, da limpeza, da moral dos bons
costumes, da verdade, para vigiar e convencionar o corpo de Orlando prestes ao seu
devir-mulher.
Woolf ri da verdade, zomba da norma, da identidade tão regular ainda nos dias
atuais, quando coloca na boca das três personagens (Pureza, Castidade e Modéstia) um
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grito de desespero. É insuportável para elas saber que pode vir à tona a diferença, por
isso, pedem: oculta-te!
verdade, não saias da tua honrosa caverna! Oculta-te mais
profundamente, medonha verdade! Pois tu ostentas à claridade brutal do
sol coisas que mais valeria não terem sido vistas nem feitas; tu
descobres o vergonhoso; esclarece o obscuro. Oculta-te! Oculta-te!
Oculta-te! (WOOLF, 1978, p. 75)
O que se pode notar é que as três personagens querem a todo custo, pelos efeitos
morais e culturais abafar a voz das trombetas. Aspiram abafar o devir-mulher de
Orlando, contudo, o devir é também uma resistência, uma luta contra o mesmo. Diz
Woolf, agora todas as trombetas ressoam em coro: “Horríveis irmãs, parti!” (WOOLF,
1978, p. 75), e as três personagem dizem...
vamos embora; vamos embora. “Eu”, diz a pureza, para o poleiro das
galinhas. “Eu”, diz a castidade, para qualquer recanto aconchegado,
onde haja hera e cortinas em abundância (...). Pois lá, e não aqui, todas
falam ao mesmo tempo, de mãos dadas, e fazendo gestos de despedidas
e desespero, na direção do leito onde jaz Orlando adormecido.
(WOOLF, 1978, p. 75).
O tema da verdade criticada por Woolf mostra que o sistema de julgamento e
punição arrasta o corpo para a docilidade, à sujeição, à castração e à vergonha. Um
corpo gestado pelo sistema do julgamento é aterrorizado por todas as experimentações
de culpa, o que leva o homem para uma eterna infantilização, deixando-se emoldurar,
“por uma organização sombria: quero julgar, preciso julgar” (DELEUZE, 1997, p. 144).
Esse sistema inventa signos terríveis “que laboram os corpos e os colorem, traços e
pigmentos, revelando em plena carne o que cada um deve e o que lhe é devido: todo um
sistema da crueldade” (DELEUZE, 1997, p. 145), e este é produzido pela ordem do
pensamento verdadeiro, que tende a negar toda e qualquer invasão da diferença. Esse
sistema atravessa um campo cultural que permite o enclausuramento do corpo em todos
os sentidos, como diz Woolf...
moram ainda em ninhos e boudoirs, escritórios e cortes de justiça,
aqueles que nos amam, aqueles que nos honram; virgens e homens de
negócios; advogados e doutores; os que proíbem, os que negam; os que
respeitam sem saber por quê, os que negam; os que respeitam sem saber
por quê; os que louvam sem entender; a ainda muito numerosa (louvado
seja Deus) tribo dos dignos, que preferem não ver; desejam não saber;
amam a escuridão; os que ainda nos adoram, e com justiça; porque nós
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lhes demos poder, prosperidade, conforto, bem-estar. Vamos com eles,
e te deixamos. Vinde, irmãs, vinde! Isto aqui não é lugar para nós
(WOOLF, 1978, p. 76).
O sistema da crueldade se arrasta em todas as instâncias sociais que constroem
uma muralha do terror por meio das leis, das normas, dos sistemas burocráticos, dos
negócios, das profissões, que induzem o corpo a petrificar, construir raízes e solicitar a
vida sedentária, sem mobilidade e movimento, mas “(...) enquanto as trombetas rugiam:
Verdade! Verdade! Verdade! E não podemos deixar de confessar: era mulher”
(WOOLF, p. 76), o corpo de Orlando fazia seu nomadismo, sua linha de fuga, pois
“Sobre as linhas de fuga, só pode haver uma coisa, a experimentação. Nada se sabe
antecipadamente, porque não há futuro nem passado. “Eu, eis como sou”, tudo isso
acabou. Já não há fantasmas, mas apenas programas de vida que se modificam à medida
que se fazem, traídos à medida que se aprofundam” (DELEUZE, 2004, p. 63). O corpo
multiplicava a diferença, pois “sua forma reunia, ao mesmo tempo, a força do homem e
a graça da mulher” (WOOLF, 1978, p. 76). O devir-mulher violentou a norma, a lei e o
padrão identitário por meio de sua molecularidade.
Com isso, o corpo se mostrava aí apenas como textura, como um estranho modo
de ser/estar, de maneira que ele fomentou uma experiência, uma força com o afeto, que
acontece (FOGEL, G. prefácio, In: CORDEIRO, 2012), o corpo, então, “fazendo-se,
tornando-se experiência (afeto) ou, o que é a mesma coisa (...) corpo nem como é, mas
um acontecimento, o humano, o da vida” (FOGEL, G. prefácio, In: CORDEIRO,2012,
p. 15). Nesse acontecimento, o corpo de Orlando “mirou-se de alto a baixo num grande
espelho, sem mostrar nenhum sinal de perturbação, e dirigiu-se provavelmente para o
quarto de banho” (WOOLF, 1978, p. 76). Sem alarde, o corpo homem “transformou-se
em uma mulher – não há que negar. Mas, em tudo o mais, continuava precisamente o
que tinha sido” (WOOLF, 1978, p. 76).
4-Estilhaço
Lady Orlando deixa Constantinopla... sai do local em cima de um burro de um
cigano, como se o seu corpo entrasse em um outro devir, devir animal, tema que não
será abordado no momento.
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Os devires proliferam, mas o que faz Woolf lançar mão dessas figuras? A figura
do cigano e a do animal? Por que exatamente Orlando sai de um lugar para viver em
outro onde vive uma tribo cigana? Será por que tal “povo” pode ser considerado
nômade?
Orlando fazia seu nomadismo, sua desterritorialidade, para usar conceitos de
Deleuze e Guattari (1997). Chega nas terras altas, para além de Brussa, que seria o
principal acampamento da tribo cigana, onde Orlando permaneceu por algum tempo
(WOOLF, 1978). Orlando declara que: “muitas vezes, da sua janela da Embaixada,
tinha olhado para aquelas montanhas; muitas vezes desejara estar ali...” (WOOLF, 1978,
p.78). Como se já existisse um desejo de fuga, percorrer outras moradas, sair do lugar,
de se retirar da fixidez, deslocar experimentos vitais para além dos moldes burocráticos
e edificantes.
O corpo de Orlando agora é dono da superfície, das coisas simples, da
ingenuidade, da exposição, da expressão, do afeto, da irrupção, que pertencem nada
mais e nada menos à vida humana, pois é num corpo humano que a vida sempre se dá.
Orlando, carregado pelo repentino, pelo imediato e abissal movimento de
inserção no mundo, foge da formulação pelo devir, para pertencer ao humano-corpohumano, que nega uma programação para fomentar o escape de sua exploração.
Como um nômade, que se deixa partir para outras terras, vai... vai... sem muitas
vezes saber o que lhe espera. O acontecimento no corpo de Orlando, o devir-mulher,
que não implica um é assim, caminha pelo entre-lugar, e, como num salto, dá-se em
circuito.
Woolf implica seu leitor em um feixe de interpretação deslocada, fora do lugar
comum, para pontuar o acontecimento que sempre envolve a vida humana, e que essa
vida abrolha-se numa rede, sem interpretação, racionalidade, esquemas explicativos.
Como,
Fato de Alequim, patch-work, feito de preenchimentos e de
vazios, de blocos e de rupturas, de atrações e de distrações, de
matizes e de asperezas, de conjunções e de disjunções, de
alternâncias e de entrelaçamentos, de adições cujo total nunca
está calculado. (DELEUZE, 204, P. 73).
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Viver, vivendo, dando-se ao afeto, às forças do mundo, aos encontros, pois tudo
isso faz com que a vida seja possível. Por isso, para a autora, é demasiadamente
enfadonho falar de sexo, de sexualidade, de gênero. Quando a vida se dá, se dá por meio
de um corpo que se lança sempre em uma vida, vida humana. Deste modo, a obra de
Woolf grita: vida! Vida humana, sem nomes, sem definições... O corpo vaza pelos
buracos do sistema da crueldade... ele vai fazendo suas linhas de fuga... seus
movimentos...
Sem intenções conclusivas, só resta um convite à leitura dessa obra inspiradora.
Leiam! Leiam e façam seus próprios devires, suas próprias agitações corporais.
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Referências bibliográficas
DELEUZE, G. Crítica e Clinica. Tradução de Peter Pál belbart. São Paulo: Ed. 34,
1997.
___________. Diálogos.Tradução de José Gabriel Cunha. Lisboa: Relógi D`´agua,
2004.
GUATTARI, F. Revolução molecular: Pulsões políticas do desejo. Seleção, prefácio e
tradução de Suely Rolnik. São Paulo: Brasiliense, 1985.
DELEUZE, G. GUATTARI, F. O anti-édipo: Capitalismo e esquizofrenia. Tradução de
Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Ed.34, 2010.
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ALEGRAR - nº14 - Dez/2014 - ISSN 18085148
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O DEVIR-MULHER DE “ORLANDO” DE VIRGINIA WOOLF: UMA