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LIDIANE MARIANA DA SILVA GOMES
IRMANDADES NEGRAS
Educação, Música e Resistência nas Minas Gerais do século XVIII
UNISAL
AMERICANA, 31 DE AGOSTO DE 2010
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LIDIANE MARIANA DA SILVA GOMES
IRMANDADES NEGRAS
Educação, Música e Resistência nas Minas Gerais do século XVIII
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Mestrado em Educação do
Centro Universitário Salesiano de São
Paulo, Unidade de Americana sob a
orientação do Profº. Dr. Paulo de Tarso
Gomes.
UNISAL
AMERICANA, 31 DE AGOSTO DE 2010
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Gomes, Lidiane Mariana da Silva
G615i
Irmandades negras: educação, música e resistência
nas Minas Gerais do século XVIII / Lidiane Mariana da
Silva Gomes. – Americana: Centro Universitário
Salesiano de São Paulo, 2010.
135 f.
Dissertação (Mestrado em Educação). UNISAL – SP.
Orientador: Profº Drº Paulo de Tarso Gomes.
Inclui bibliografia.
1. Irmandades negras. 2. Resistência cultural.
3. Educação. 4. Integração racial. 5. Cultura afrobrasileira. I. Título.
CDD – 305.896081
Catalogação elaborada por Terezinha Aparecida Galassi
Antonio
Bibliotecária do Centro UNISAL – UE – Americana – CRB-8/2606
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RESUMO
Este trabalho tem por objetivo contribuir com a discussão em torno das
Irmandades Negras no Brasil e analisar como elas se transformaram em veículo de
manutenção da cultura africana praticada por meio da sua educação pautada na tradição
oral, que solidificou manifestações culturais na nossa história e que estão vivas em
nosso dia-a-dia. Para tal empreendimento houve a necessidade de dividir a pesquisa em
algumas frentes: o estudo da formação de Minas Gerais, o estudo das Irmandades
Negras e sua história com o território, o estudo da população africana que nela se
instalou e a educação e musicalidade – entendidas aqui como complementares –, bem
como o estudo das suas representações na África e no Brasil do século XVIII. Todas
essas características proporcionaram o surgimento de uma cultura afro-brasileira
moldada na convivência dos moradores de Minas Gerais, especificamente a cidade de
Ouro Preto. Proporcionaram também a expansão e a manutenção da cultura africana
criando laços intrínsecos com as práticas culturais dos antepassados e recriando laços
com as novas situações cotidianas coletavas e individuais favorecidas pela atividade
musical intensa do século XVIII.
Palavras - chave: Irmandades negras, educação, resistência cultural.
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ABSTRACT
This paper aims to contribute to the discussion around the Black Brotherhood in
Brazil and analyze how they became a vehicle for maintaining the African culture
practiced by their education based in the oral tradition that has built up cultural events in
our history and are alive in our day to day. For such an undertaking was necessary to
divide the research on some fronts: the study of the formation of Minas Gerais, the
study of Black Fraternities and its history with the territory, the study of Africans who
settled there and the education and musicality - understood here as complementary - and
study its representations in Africa and the eighteenth-century Brazil. All these features
made the emergence of an afro-Brazilian culture cast in the coexistence of the
inhabitants of Minas Gerais, specifically the city of Ouro Preto. They have allowed
expansion and maintenance of African culture by creating links with intrinsic cultural
practices of their ancestors and rebuilding ties with the new collective and individual
everyday situations favored by the intense musical activity of the eighteenth century.
Key – words: Black Brotherhood, education, cultural resistance
6
É uma vergonha para a ciência do Brasil que nada tenhamos consagrado de
nossos trabalhos ao estudo de línguas e das religiões africanas. Quando vemos
homens como Bleek, refugiar-se dezenas e dezenas de anos nos centros da
África somente para estudar uma língua e coligir uns mitos, nós que temos o
material em casa, que temos a África em nossas cozinhas, como a América em
nossas selvas e a Europa em nossos salões, nada havemos produzidos neste
sentido! (Romero, 1879, p.99).
7
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
1
CAPÍTULO I - MARCHA PARA MINAS GERAIS: O SÉCULO XVIII EM
DISCUSSÃO
16
1.1 A Constituição da População: o explorador que se viu explorado
27
1.1.1 Fluxos e refluxos: quando a população se move
34
1.1.2 A População em torno da mineração: culturas,
línguas e convivência
1.2 As Irmandades: estratégias de atuação
39
45
CAPÍTULO II - EDUCAÇÃO, MÚSICA E RESISTÊNCIA NAS
IRMANDADES NEGRAS
2.1 Tradição oral e manutenção da cultura
64
71
2.2 Estratégias da educação africana no Brasil: Dicionário de
Costa Peixoto
2.3 As Irmandades e a educação africana
75
96
CAPÍTULO III – IRMANDADES, MÚSICA E RESISTÊNCIA:
CAMINHOS PARA ALIBERDADE SOCIAL, ECONÔMICA
E CULTURAL
3.1 Atuação dos músicos mineiros: a hegemonia negra e mestiça.
103
110
3.2 A conquista da autonomia no mundo escravista: os africanos e
descendentes na movimentação cultural
120
CONSIDERAÇÕES FINAIS: NEM BRANCO NEM PRETO,
É MULTICOLORIDO
125
REFERÊNCIAS
131
8
INTRODUÇÃO
Nos últimos tempos, a historiografia sobre a escravidão na América Portuguesa
conheceu profundas mudanças e, alguns enfoques têm se mostrado particularmente
produtivos, principalmente aqueles que, partindo da consideração do escravo como
agente histórico, romperam com as visões tradicionais que insistiam na coisificação do
cativo e também em sua vitimização. Marcados por um esforço empírico redobrado,
capaz de documentar a vida do escravo em sua complexidade, foram estudos que
lançaram mão de tipos varados de fontes – inventários e testamentos, processos
criminais, autos cíveis e registros paroquiais –, ampliando os horizontes da pesquisa
histórica e reinterpretando aspectos da organização social e cultural não só dos escravos
como também dos grupos egressos da escravidão.
Esses novos estudos sobre os mais variados aspectos da vida cotidiana e política
da população negra no Brasil, como a formação da família escrava como fator de
manutenção cultural (Robert Slenes e Manolo Florentino), como a resistência
econômica (Théo Lobarinhas), que apresenta uma forte ação autônoma da postura do
homem trabalhador, romperam com barreiras historiográficas que há muito vinham
sendo interpretadas como verdades únicas acerca da escravidão e do escravo, como a
teoria da anomia das estruturas familiares e sociais existentes entre escravos e libertos, a
idéia da despersonalização diante do regime, a ênfase no desenraizamento que se supõe
em torno da adaptação do africano e a certeza de que estes eram desprovidos de cultura.
A história cultural africana tem características muito peculiares em relação à
construção cultural ocidental. Existe uma conexão muito intensa entre religiosidade,
música e sua forma de entender a natureza. Os rituais, os tambores, as caixas,
9
“reatualizam e recriam a memória ancestral a todo o momento” (LUCAS, 2002, p. 17).
Segundo Glaura Lucas a música é um “[...] dos códigos que traduzem simbolicamente
aspectos da visão de mundo daqueles que a vivenciam, e como um meio no qual
significados são gerados e transformados” (LUCAS, 2002,8).
Sem dúvida, na busca das fontes da escravidão, os pesquisadores tiveram que
lidar com uma série de dificuldades, decorrentes não só da escassez de documentos
sobre a vida escrava, mas também daquelas causadas pela incompatibilidade entre as
fontes oficiais e a história dos despossuídos ou “dominados”. Em linhas gerais, foi
necessário reconstruir a vida social e cultural dos africanos e seus descendentes a partir
da leitura de documentos comprometidos com a visão de mundo das classes
dominantes. Lançar mão de testemunhos que foram produzidos no esteio do controle
social, da disciplina e da repressão é, sem dúvida, uma tarefa árdua e minuciosa, pois,
sem a leitura das entrelinhas, corremos o risco de repetir os mesmos passos até então
percorridos.
Nos registros históricos da escravidão, foram raros os depoimentos diretos
deixados por essa população, mas ao nos depararmos com os existentes, novas
interpretações podem ser elaboradas e discutidas. É o caso do documento que Stuart
Schawtz encontrou no Arquivo Público da Bahia (SCHAWARTZ, 1977, p. 79), datado
do século XVIII, conhecido como Tratado de Paz. Nele encontram-se explicadas todas
as exigências que os escravos impuseram ao senhor para voltarem ao trabalho no
engenho Santana, Ilhéus. Queriam a reorganização das tarefas e das condições de
trabalho, a divisão sexual e étnica de determinados encargos, manter a posse de suas
ferramentas, a necessidade de dias de repouso, a preferência da supervisão de um feitor
de sua escolha; requeriam o reconhecimento de suas roças e de outras atividades
10
realizadas de maneira autônoma (a pesca, a roça, o corte de madeira); e reivindicavam o
direito a ganhos próprios obtidos nas vendas de seus produtos no mercado de Salvador.
Para o autor, essa postura indica o total conhecimento e controle do tempo de
trabalho. Ele ainda afirma que esses direitos costumeiros nada mais eram do que
acordos e práticas realizados por seu senhor e seus escravos necessários para a
sobrevivência dos plantéis e para viabilizar a teórica dominação escravista
(SCHAWARTZ, 1977, p. 81). Ao recorrerem a sua força de trabalho para impor certos
limites aos desmandos do senhor, as relações passam de senhor e escravos para a de
negociantes iguais em busca da melhor solução para ambas as partes. Em nenhum
momento as exigências giraram em torno da libertação, mas em torno de uma vivência
mais digna e humana de trabalho.
Com esse traçado e o entendimento de que mais uma vez é possível novas
interpretações, o trabalho apresentado não tem a intenção de dar por encerradas as
discussões sobre a escravidão da América Portuguesa. Essas discussões podem,
inclusive, nos apontar as diferenças que cada região do território desenvolveu em seu
processo de formação como sociedade, de acordo com a composição humana à qual foi
exposta.
Portanto, a intenção é revisar a história das Irmandades Negras em um espaço
geográfico específico que consiste na Capitania das Minas Gerais, especificamente na
cidade de Ouro Preto, em um século em que a produção de ouro na cidade atingiu o
auge e o declínio muito rapidamente: o VXIII. Outro viés é a análise da população que
lá se estabeleceu como moradora e como aventureira, suas culturas e formas de
entendimento de mundo que, consequentemente, ajudaram a formar outras formas de
expressões culturais, especialmente a cultura negra africana.
11
Essa população traz, em sua formação linguístico histórica, uma relação
profunda com a oralidade, forma única de educação que, ao longo dos séculos, se tornou
um meio importantíssimo para a manutenção e a reinvenção de sua cultura ligada
intrinsecamente às questões de expressão musical. Glaura Lucas, que estuda os rituais
do Reinado de Nossa Senhora do Rosário, Minas Gerais, início do século XX, indica
que a forte imposição da cultura baseada na memória ancestral, resultou na manutenção
de suas identidades até os dias atuais, apesar de terem sofrido um violento processo de
imposição cultural (LUCAS, 2002, p. 17). Os ritos dessa Irmandade de Negros, cuja
concepção inclui vários elementos, atos litúrgicos e cerimônias, remontam narrativas
que, “[...] na performance mitopoética, reinterpretam as travessias dos negros da África
às Américas” (MARTINS, 1997, p. 31).
Essa encenação indica que as raízes não são esquecidas, apesar de muitas
tentativas do Estado, da Igreja e dos senhores terem sido concretizadas ma intenção de
descaracterizá-los para melhor dominá-los, e que as histórias só são possíveis graças a
um sistema educacional eficaz passado de geração para geração e praticado na África
antes de os negros serem trazidos ao trabalho forçado na América Portuguesa.
E como objetivo final, compreender quais os papéis político, econômico e social
das Irmandades que permitiram aos escravos e seus descendentes uma ascensão e
mobilidade social muito abrangente e que, ainda viabilizaram meios de luta social
contra o sistema escravista e proporcionaram a criação do sentido de comunidade, já
que as divisões étnicas não tinham o rigor da sua Terra Natal. A sociabilidade era tão
intensa que os laços de solidariedade desobedeceram às antigas rixas ou divisões
milenares entre reinados ou impérios.
12
Sabemos que todo o território brasileiro sofreu influência de índios, de
portugueses, de negros africanos e seus descendentes, de espanhóis, de franceses, de
holandeses, entre outros povos, ao longo de séculos de ocupação e exploração. Porém,
ainda estamos longe de desvendar o quanto esses povos contribuíram realmente para a
construção de nossa história.
Nesse sentido, ainda que muito se tenha discutido sobre a escravidão, sobre a
trajetória africana em terras portuguesas e sua forma de convivência, abordagens podem
ser feitas intencionando levantar traços da cultura negra africana que determinaram toda
forma de manifestação moral, religiosa, política e econômica registrada ao longo de
todos esses anos. Porém, o século XVIII, em especial, no qual este trabalho se detém,
pode nos indicar algumas possibilidades que fizeram dele um momento especial na
elaboração de formas de convivência que vão além do que foi antes imaginado.
O século XVIII, segundo Caio Prado Junior
[...] abre-se com a revolução demográfica que provoca a descoberta do ouro no
centro do continente, nas Minas Gerais [...] redistribuiu-se o povoamento da
colônia que tomará nova estrutura e feição [...] e nele se concentra uma das
maiores parcelas da população colonial. (PRADO JUNIOR, 1970, p. 71)
Com os descobrimentos das minas, o setor econômico ampliou-se com a
abertura de novas atividades; multiplicaram-se ofícios, o pequeno comércio e as
atividades dos tropeiros, de modo que, ao final do século, seu papel já era importante
em cidades como Recife, Salvador, Rio de Janeiro, Vila Rica, Mariana e São Paulo,
afirma Arno Wehling (1999, p. 236)
Em vários aspectos, a região mineradora foi importante para o desenvolvimento
da sociedade mineira. A questão política ganhou nova força com a tentativa de
estabelecer regras de conduta e punição mesmo que tenham sido “legislação de
13
circunstância” como afirma Sérgio Buarque de Holanda (2001, p. 46). Segundo o autor,
essas leis eram assim chamadas por serem elaboradas à medida que as situações iam
ocorrendo, sem levar em consideração a estrutura social ou as necessidades dos que
eram governados. As leis pareciam ser elaboradas mais aos desejos da sorte do que por
ações racionalizadas.
A questão econômica atraiu muitos homens e mulheres no intuito de conseguir
riqueza fácil. O Estado Monárquico Português almejou o mesmo. A questão social e
cultural ganhou campo fértil com a pluralidade de “culturas” que ali se estabeleceram.
Segundo Eduardo França Paiva, o
[...] setecentos na capitania sintetiza a complexidade desta centúria e das
anteriores, hospedando temporalidades diversas e gente oriunda de regiões
mais diferentes, que carregou consigo distintos comportamentos, heranças
culturais, crenças, conhecimentos técnicos, utensílios materiais visões e
representações de mundo. [PAIVA, 2001, p. 26)
Sabendo que cada região do território registrou e incorporou esses traços de
diferentes formas, respeitando as características regionais e culturais, o mesmo
movimento ocorreu em Minas Gerais desde os princípios de sua ocupação em finais do
século VXII e início do século XVIII. Nesse período, dentro das características que
Eduardo França Paiva apontou, uma quantidade imensa de negros africanos eram
provenientes da África Ocidental à qual pertencem os seguintes grupos étnicos: Cabo
Verde, Fula, Mina, Nagô e Subaru provenientes da Costa do Marfim, Guiné e Nação
Courana; da África Central Atlântica registram as seguintes etnias: Angola, Basa,
Bemba, Benguela, Cabinda, Cassange, Congo, Ganguela, Massangano, Monjolo,
Muhembé, Muterno, Quissama, Rebolo e Xamba que fazem parte de São Tomé; da
África Central da Costa do Índico temos Moçambique e de outras partes denominadas
14
indefinidas pelo autor vieram os Xara incluindo Nação Fam ou Fon, Cobú ou Kuvu,
Nação Ladano, Nação Cambudá, Bique e Moconco (PAIVA, 2001, p. 71).
Para os mais românticos ou desavisados, ao olharem o gigantesco quadro de
etnias, culturas e línguas existentes no continente africano, é possível relacionar
exatamente a distribuição deste contingente em terras americanas. Mas o fato é que ao
chegarem ao litoral brasileiro, os escravos eram classificados de acordo com o porto de
embarque africano Torna-se então muito difícil identificar os verdadeiros locais de
origens desses homens e mulheres. De uma forma mais geral, as regiões de Angola,
Nigéria, Congo e Guiné foram as maiores fornecedoras de escravos, assim como
Moçambique após o século XVIII. (PAIVA, 2005, p. 19)
Houve também um fluxo muito intenso de moradores de outros lugares da
colônia. Esses, tendo em sua posse escravos ou não, sem distinção de cor ou classe
social, vieram por vontade própria no que tangia à sua liberdade para engrossar o caldo
da mineração.
A mineração, que impressionava pela possibilidade de enriquecimento rápido,
inflamou desejos e cobiças que fez a população interna – moradores da colônia,
soldados, governadores, homens livres ou escravos, pobres - e externa – franceses,
holandeses, espanhóis, portugueses -, enfrentar muitos perigos e muitos desafios,
causando um remanejamento populacional da América Portuguesa fazendo dos
setecentos um “[...] marco especial para todo o império português” (PAIVA, 2005, p.
26).
Ali,
[...] a riqueza era acentuadamente concentrada em poucas mãos, a miséria fazia
parte da vida cotidiana dos núcleos urbanos e das áreas rurais, mas conformara-
15
se uma classe intermediária urbana que tornava aquela sociedade diferenciada.
(PAIVA, 2005, p. 26)
Os negros escravos, libertos, transitavam livres por essa sociedade em grande
quantidade e tinham como objetivo também o ganho de sua estabilidade econômica e
social já que, para Marcos Francisco Aguiar (1999, p. 2), existe por parte da população
negra um movimento que caracteriza uma ação coletiva. Essa ação é construída na
sociabilidade confrarial e corporificada através das Irmandades Negras, em um
ambiente de cobiça e enfrentamentos. Caio Cesar Boschi entende que as Irmandades
foram erguidas para melhor adaptação à vida escrava e à religião católica (BOSCHI,
1986). Essa é apenas uma das vertentes que discutem as Irmandades Negras assumindo
o papel de organizadoras plenas da vida social e religiosa.
É necessário, porém, definir os conceitos que giram em torno das Irmandades.
Em um conceito mais amplo retirado do Dicionário de Língua Portuguesa, Irmandades
são representações de religiosos que não recebem ordens sacras (FERREIRA, 2001, p.
402). Essa é uma definição mais simples que se refere às irmandades de uma forma
geral. Porém, em uma sociedade cujas características físicas, sociais e econômicas
distinguiam teoricamente aqueles que mandavam e aqueles que obedeciam, as
Irmandades tomaram caráter diferenciado. Elas foram divididas entre negros e brancos.
É necessário ressaltar que essa não era a única divisão a ser feita. Existiram Irmandades
que, apesar de invocarem um santo de devoção, eram constituídas por pessoas de um
mesmo ofício, ou seja, a força que os uniu também foi o trabalho e o ofício de cada
indivíduo, além de um santo de devoção comum.
Embora essas definições sejam de considerável importância, não foram muitos
autores que discutiram sua posição política, econômica, social e, principalmente, sua
posição de mantenedora de um núcleo cultural.
16
Caio Cesar Boschi discute o conceito político-econômico e inicia interpretando
as Irmandades como associações de expressão orgânica e local que representavam um
canal privilegiado de manifestação numa sociedade em que a livre formação de
entidades políticas era proibida “[...] como condição básica para a própria sobrevivência
do sistema colonial” (BOSCHI, 1986, p. 3). Em seu entendimento, as Irmandades eram
entidades coletivas e traziam em seu cerne um conceito individualista de seus membros
que as procuravam pelos mais variados problemas – medo da morte, participação social
e política. (BOSCHI, 1986, p. 14).
Boschi faz questão de diferenciar as Irmandades, das confrarias, das uniões pias
e das ordens terceiras. As confrarias são associações que têm como objetivo o
incremento do culto público. As uniões pias são associações de fiéis erigidas para
exercer funções de piedade e caridade. E as Ordens Terceiras assinalavam um grau de
prestígio em que a parcela enriquecida da população se concentrava. (BOSCHI, 1986, p.
19-21).
Na prática não nos parece que a diferença entre elas tivesse sido muito
discrepante em relação a princípios religiosos, porém, no que diz respeito à ordem
social e econômica, a diferença era altamente considerável. Ao que veremos mais
adiante, dificilmente membros não pertencentes a uma determinada divisão social
tinham oportunidade de participar de Irmandades diferentes da sua condição econômica.
Julita Scarano, embora não nos forneça uma definição clara, nos dá alguns
indícios sobre o que entende por Irmandade. Primeiramente o caráter associativo das
Irmandades era ponto fundamental, além de seu caráter religioso e caritativo
(SCARANO, 1978, p. 25).
17
Scarano lembra ainda, que o surgimento dessas associações se deu pelo fato de
que a administração e os representantes religiosos viviam com desconfianças mútuas.
Isso quer dizer que, não havia apoio por parte da Coroa ou mesmo da Igreja para a
construção de igrejas. Nem brancos, nem negros e pardos e nem associações de ofício
tinham ajuda financeira. A cobrança de impostos, inclusive dos padres, era a principal
causadora dessas discórdias (SCARANO, 1978, p. 16). A população em meio a essas
disputas de poder construiu seus templos de devoção à custa de seu próprio dinheiro, e,
por esse motivo, passaram a ser chamadas de Irmandades Leigas. A nomenclatura era a
mesma para todas: as de brancos, negros, mulatos, músicos ou de qualquer outro ofício.
Mariza de Soares Carvalho (2000, p. 166), que estuda as Irmandades Negras na
cidade do Rio de Janeiro, não aprofunda a discussão sobre o conceito, mas brevemente
indica que eram tradicionalmente organizadas para a devoção e caridade e, segundo a
visão da Igreja, para a propagação da doutrina. Ela também destaca o caráter
individualista das Irmandades, visto que ocorre uma séria disputa entre as irmandades
de forma geral.
Marcos Francisco Aguiar (1993, p. 7), que estudou as Irmandades e sua
abrangência cultural, define as Irmandades como associações leigas de caráter religioso,
com fins de culto a um santo ou devoção particular.
Nesse ambiente, as Irmandades construídas pela população negra – não
exclusivamente escrava – se tornaram ponto importante para a manutenção de uma
identidade. Para melhor entendimento dessa dinâmica, foi necessário optar
pontualmente por algumas delas. Cada Irmandade tem sua particularidade, não podendo
assim ser estudadas como um bloco único e imutável em suas manifestações culturais,
18
pois cada região apresentou características diferentes de acordo com suas próprias
possibilidades e em seu próprio tempo.
Para uma análise mais cuidadosa, analisam-se aqui as Irmandades de Santa
Efigênia, Nossa Senhora do Rosário dos Pretos e a Irmandade de São José, todas em
Ouro Preto, antiga Vila Rica. Uma delimitação temporal foi necessária para estabelecer
em quais momentos as Irmandades estabeleceram maior ou menor possibilidade de
mobilidade social: o século XVIII.
Lembrando que a população africana quando trazida para as possessões
portuguesas não era recém-nascida, pretende-se compreender o processo pelo qual
passou na busca da permanência de uma identidade e também de apropriação de outras
culturas ou adaptando-se umas às outras. O resultado desses contatos foi a criação de
uma cultura afro-brasileira cheia de valores e princípios que não feriram sua concepção
de apreensão do mundo que trouxeram da cultura original praticada por meio da
tradição oral.
Busca-se, com isso, compreender como as inter-relações entre negros escravos,
livres, forros, libertos, africanos e brasileiros, homens brancos livres - ricos e pobres -,
mulheres nas mesmas condições, estabelecidas em Vila Rica do século XVIII, sob a
proteção dessas irmandades, propiciaram ao negro africano e seus descendentes
expandirem sua posição de agente histórico, difundindo e perpetuando sua cultura,
através de lutas diárias que obrigaram a sociedade mineira a fazer concessões em busca
de acordos que agradassem ambas as partes. Segundo o conceito de Théo Lobarinhas
(2002, p. 25), “[...] os cativos são agentes históricos no momento em que lutam para
inserir sua participação na transformação social, com base na verificação de que a luta
social é um obstáculo à reprodução escravista”.
19
Seguindo a trajetória histórica no continente africano, levanta-se a hipótese de
que foi sua concepção de educação pautada pela tradição oral e pela autonomia do ser
social preparado para viver em comunidade (BÂ, 2003, p. 70) que os fez dominar o
cenário cultural em toda região constituída das cidades históricas de Ouro Preto,
Mariana, Sabará, São João Del Rei e Arraial do Tejuco (Diamantina). No nosso caso,
esse domínio cultural é representado pela música que foi produzida e divulgada nesse
período.
Por isso, para esse trabalho foi muito valiosa a análise dos livros de
Compromisso das Irmandades de Santa Efigênia que “[...] foi construída pelos negros
no bairro do Alto da Cruz do Padre Faria na parte antiga da cidade entre 1717 e 1719
em contraposição à primeira capela construída em Antônio Dias “(LANGE, 1979, p. 17,
grifo do autor), Nossa Senhora do Rosário dos Pretos e de São José dos Homens
Pardos ou Bem Casados, fundada entre 1720 e 1728.
As três irmandades eram diferentes em suas composições e por isso devem ser
estudadas separadamente, para compreender seus detalhes.
Esses livros apresentam boa parte da contabilidade das irmandades referentes à
movimentação musical da época contendo nomes dos músicos, procedência – se eram
escravos, se eram forros1, se eram libertos ou de ganho2 -, contém instrumentos que
tocavam, para qual igreja ou evento eram contratados, quais deles participavam das
mesas de decisão das Irmandades, se tinham outras profissões e se eram casados ou
solteiros .
1
Os escravos Foros são aqueles que, de alguma forma, ao longo de sua vida de trabalho, conseguem obter
dinheiro suficiente à compra de sua libertação – alforria.
2
Os escravos de ganho eram escravos que praticavam alguma forma de trabalho extra que lhe
proporcionava dinheiro e lucro ao senhor. Por exemplo, um escravo mineiro que trabalha de segunda a
sábado, no domingo pode explorar por conta própria. Uma parte do dinheiro era de seu senhor, mas o que
restava ele poderia guardar e comprar sua alforria.
20
Essa movimentação nos permite acompanhar os períodos nos quais esses
músicos mais se agitaram e permite alcançar a dimensão cultural que se alçou nos anos
de atuação das irmandades e, principalmente, nos ajudam a dimensionar a importância
social e econômica que representaram na construção social de Vila Rica e de toda
região.
Outro documento que nos ajudou a formular a hipótese da importância da
vivência escrava em torno da sociabilidade mineira foi o dicionário de Costa Peixoto
que no século XVIII recolheu palavras, frases, ditados da população que tem como
linguagem “mina-jêje”, favorecendo algumas análises a respeito de como sobreviviam e
conviviam nesse cenário (CASTRO, 2002).
Segundo Nina Rodrigues (1933, p. 161-163), minas “eram os negros de língua
gá e tshi na Costa do Ouro” que se estende a todos aqueles provenientes da Costa da
Mina. Castro (2002, p. 14) ressalta que há uma crioulização por absorção de traços
lexicais e gramaticais do grupo gbe que dá início ao modo de falar mina-jeje - um falar
afro-brasileiro que teria emergido nas Minas Gerais do século XVIII em razão da
grande quantidade de negros originários do antigo Daomé
Por último, tentamos pormenorizar as relações entre senhores e escravos que,
longe da dicotomia, culminou na manutenção da escravidão durante séculos, não apenas
pelo autoritarismo e pela força. A escravidão não pode ser vista como um processo
tranquilo entre senhores e escravos e, muito menos, como uma submissão do escravo
em relação a seus senhores. Não se pode também recorrer ao extremo entendendo que
as vivências da escravidão foram somente acordos pacíficos ou relação de compadrio ou
camaradagem. O grau de tensão é que direciona as resoluções das contendas.
21
Há uma crise da escravidão - afirmada por autores como Théo Lobarinhas (2002,
p. 29)- que faz com que acabe por deixar de existir no final do século XIX, graças à
força coletiva dos escravos em atingir a economia das grandes lavouras
(LOBARINHAS,. A moeda de troca nesse caso era o trabalho. Ao cogitar a
possibilidade de não trabalhar, os escravos garantiriam que a economia agricultora
sofresse perdas incalculáveis.
É possível afirmar, ao analisar a grande força de mobilidade que os negros
escravos e libertos tiveram também no século XVIII, que o regime escravocrata
manteve-se em constante crise e que, não pode ser entendido como fixo e intransigente.
Para tentarmos esclarecer ainda mais esse processo de adaptação e tomada de
poder da população negra, na primeira parte discutimos a bibliografia e o conceito
acerca das Irmandades e sua atuação ao longo do século XVIII, quais seus objetivos, e
ações em torno de uma população escrava e livre, qual a importância para a
sociabilidade e como foram utilizadas para a conquista de posicionamento jurídico
dessas populações; na segunda parte, falamos sobre a constituição da população mineira
como premissa a todos os desencadeamentos culturais que tomaram grandes
proporções. Esse movimento e o contato multicultural são de fundamental importância
para que possamos dimensionar a quantidade de contatos que possibilitaram a
convivência e a sobrevivência de todos os moradores de Vila Rica.
No segundo capítulo iniciamos uma discussão sobre o conceito de educação
africana, que tem seus próprios ciclos e especificidades, tratando da memória
tradicionalista que os ajudou a manter sua história viva e que foi inteiramente praticada
através da oralidade. Esse processo educacional permitiu a manutenção de sua cultura e,
ao mesmo tempo, permitiu novas adaptações em solo desconhecido.
22
Para este trabalho, utilizamos estudiosos sobre educação africana e o Dicionário
Costa Peixoto que nos traz um vasto vocabulário com dialetos africanos falados no
século XVIII em Vila Rica do Ouro Preto e, por fim, analisamos a atuação da educação
africana no interior das Irmandades em busca de uma autonomia cultural sem limites
praticada através da música setecentista erudita e popular.
No terceiro capítulo, o objetivo é demonstrar como as Irmandades abriram o
caminho para a liberdade social e econômica através da ação cultural, dando aos
músicos mineiros negros e seus descendentes, grande visibilidade. Esse processo
contribuiu para um movimento de resistência cultural totalmente novo em sua execução
sem jamais esquecer sua ancestralidade.
23
CAPÍTULO I
MARCHA PARA MINAS GERAIS NO SÉCULO XVIII
Sérgio Buarque de Holanda, na primeira edição do segundo volume de A época
colonial em 1963, destacou a importância da história eclesiástica para a compreensão de
inúmeras questões da história do Brasil e assinalou a influência das instituições
religiosas em vários setores da vida brasileira, lamentando a carência de estudos sobre o
tema (CARRATO, 1963, p. 4), fato que fica visível quando pesquisamos as questões
culturais das Irmandades de forma geral e, em especial, as de negros.
Ao mesmo tempo em que emanam as manifestações culturais, as Irmandades
expressam também o processo pelo qual foram mantidas, sabendo que, longe de uma
convivência pacífica, enfrentaram muitos problemas tanto com a população civil de
homens importantes econômica e socialmente – irmãos de mesa, párocos, membros de
outras irmandades, homens e mulheres da aristocracia, pequenos comerciantes - quanto
com o Estado, na figura de seus representantes, pela falta de pagamentos de suas dívidas
ou por contendas judiciais (SCARANO, 1975, p. 21).
Os negros africanos trouxeram consigo toda constituição social que lhes foi
ensinada e reforçada por uma educação muito diferente da educação jesuítica aplicada
em primórdios do povoamento que além do ensino obrigatório da língua portuguesa e
latim, se ministrava ensinamentos do catolicismo (SAVIANI, 2005).
A educação africana, segundo Hampâtè Bâ, de origem futa-tucolor proveniente
da região da atual Nigéria, afirma que, de forma geral, prima pela constituição do ser
social, antes do ser econômico e político. Nela a aprendizagem de costumes e ideais
24
perpassa pela presença inerente dos mais velhos detentores de todos os saberes, dando à
tradição oral importância fundamental nesse processo (BÂ, 2003, p. 151).
Essa
generalização feita pelo autor revela que, apesar de muitas diferenças como, por
exemplo, nas regiões em que a religião muçulmana é predominante, existe uma unidade
nas intenções que se tem ao ensinar os mais novos.
Esse processo de educação, nos termos atuais, poderia ser chamado de educação
não-formal. Embora seja caracterizada por seu caráter não-institucional e não
sistemática, tem objetivos intencionais, ou seja, tem um propósito (PARK, 2005) que,
no caso africano, é a formação do ser social e comunitário. É imprescindível, no âmbito
religioso, que haja um conhecimento aprofundado do funcionamento das Irmandades
para compreender como o negro as utilizou para suas formas de instrução e como
conseguiram, em maior ou menor escala, promover a permanência de sua cultura.
Cultura que se transformou, se moldou, se adaptou, rejeitou ou foi rejeitada,
desconsiderou traços, renascendo conforme sua necessidade no ambiente novo, que,
embora semelhante, não é mais o lugar de onde vieram. Apenas foi recriada da melhor
forma que se pode para torná-la reconhecível aos africanos e seus descendentes.
Tal pesquisa teve início em março de 2000 quando em uma aula de História do
Brasil, no Curso de Graduação em História, o tema “Irmandades Negras de Minas
Gerais” veio ao meu conhecimento pela primeira vez. Logo depois, iniciei uma busca
bibliográfica em torno do assunto quando me deparei com duas obras fundamentais a
este estudo, incorporando elementos da composição física, institucional, social e
econômica das Igrejas.
Comecemos pela estrutura física e institucional, ainda que o dois autores
encontrados tenham feito apontamentos sobre a utilização das Irmandades como foco de
25
manifestações culturais. Julita Scarano (1975) e Caio César Boschi (1986) fizeram um
belíssimo trabalho sobre o funcionamento administrativo e eclesiástico delas.
Depois de estudar as duas obras, parecia insuficiente o número de indícios para
compreender como as irmandades negras chegaram a ter tanto poder econômico em
uma sociedade escravista. Assim, a primeira visita à cidade de Ouro Preto foi inevitável.
A busca inicial ainda era muito insípida, pois não sabíamos o que iríamos encontrar.
A pesquisa pela internet é fundamental. Em uma dessas ocasiões, no sistema
virtual de bibliotecas encontrei mais um autor que trabalhou em dissertação de Mestrado
com as irmandades negras e com sua tese de Doutorado com a idéia de diáspora negra.
O autor Marcos Magalhães Aguiar trouxe em seu corpus documental uma série de
processos de autos de infração referente ao século XVIII. Lá encontramos uma
infinidade de situações nas quais os personagens são os mais variados e com posições
sociais mais diversas. Quase todos continham um negro ora indiciando alguém ora
sendo indiciado por outro negro. Essa documentação nos revela como eram intensas as
trocas e relações culturais, sociais, econômicas e políticas do período setecentista.
Outros caminhos se apresentam e um deles foi vasculhar os arquivos
microfilmados do Arquivo da Casa dos Contos. Lá encontramos os Livros de
Compromisso das Irmandades. Os manuscritos estão em ótima conservação e a
reprodução é fácil. Mas nas obras e nos compromissos não apareciam respostas
suficientes
que
explicassem
as
questões
formuladas.
Como
se
tornaram
economicamente auto suficientes? Como os escravos poderiam ser assíduos
freqüentadores já que a escravidão teoricamente impedia a livre circulação? Quem
representava a lei? Que lei era realmente seguida? Como a igreja exercia seu poder se os
padres eram proibidos de estabelecer residência fixa? O que eram as irmandades leigas?
26
As questões eram muitas e a pesquisa às vezes proporciona boas surpresas.
Indicaram-me uma pessoa que sabia muito sobre a história da cidade. Era o guia
turístico mais procurado e mais ocupado: o Manteiga. Consegui conversar com ele na
Câmara Municipal, ao lado da Praça Tiradentes. Quando expliquei o que estava
procurando, ele não hesitou em dizer que seria muito interessante procurar um terreiro
de Candomblé situado próximo à antiga estação ferroviária.
Chegando lá, me apresentei como pesquisadora da cultura afro-brasileira. Fui
muito bem recebida por Mãe Maria e Pai José, responsável espiritual da casa. Assisti a
uma sessão de benção e fui convidada a participar. Ao sentar-me frente a uma entidade
chamada Pai Joaquim, pedi a benção (obrigatória) como pedíamos tempos atrás para os
mais velhos como sinal de profundo respeito. Consegui uma espécie de entrevista com
uma entidade muito antiga e que contou um pouco de suas lembranças. Pai José me
entregou um material que continha ladainhas e pontos musicais escritos em dialetos
africanos que os praticantes de candomblé não tinham acesso à tradução. Disse-me que
eram pontos de entidades milenares e que foram transmitidas diretamente quando
encarnaram em pais de santo. Nesse material encontrei também pontos em português
que eram cantados como ladainhas nas missas de séculos passados.
A informação chamou a atenção por serem músicas feitas por negros cantadas
em missas de uma forma geral. Muitas vezes escolhemos com o que vamos trabalhar,
mas o objeto de estudo me encontrou novamente: a música.
Iniciei uma procura por elementos que indicassem a existência de uma música
popular. Perguntas daqui e dali me levaram ao Arquivo da Casa do Pilar. Lá conheci
uma pesquisadora da música de Minas. Ela me mostrou a coleção “Curt Lange”,
insistindo que os músicos eram mulatos. Com essa informação, os elementos foram
27
sendo agrupados. Primeiro a necessidade de estudar Minas colonial para compreender
como a constituição da população interfere na criação de uma cultura local própria.
Depois, foi preciso conhecer a história das irmandades em Portugal e no Brasil
reconhecendo diferenças profundas entre umas e outras e qual a atuação das irmandades
negras na Colônia.
Em seguida, resgatar quais as origens da população africana, seus conceitos
sobre educação, música e religião para indicar possíveis relações com a atuação da
Igreja e do Estado, e por fim, como se utilizaram da instituição para construir seu
próprio mundo dentro de um sistema escravista. Mas uma grande documentação ainda
seria altamente utilizada por nosso estudo. Na última visita em julho de 2009, ao
caminhar na ladeira que dá acesso à feira de materiais de pedra em frente da Igreja de
São Francisco de Assis, olhei para uma livraria de Editora UFMG, e vi de longe um
livro que me chamou a atenção. Ao chegar mais perto li “A língua mina-jêje no Brasil:
um falar africano em Ouro Preto do século XVIII” de Yeda de Castro. Nele encontrei
um dos maiores indícios da atuação autônoma e intensa dos negros na sociedade
vilariquense do século XVIII. Os dialetos africanos, que sofreram uma transformação
em terras mineiras, tinham sido coletados e se tornaram um dicionário.
Com esses materiais, iniciamos a análise e começamos a construir as bases de
nossa tese. Vejamos o que a documentação nos apresenta.
Julita Scarano escreve em 1975 “Devoção e Escravidão: a Irmandade de Nossa
Senhora do Rosário dos Pretos do Distrito de Diamantina no Século XVIII”
objetivando entender o processo de congregação do homem de cor fazendo com que
este se estabeleça em uma situação diferente da que lhe é autorizada através de suas
relações de trabalho (SCARANO, p. 1).
28
Ao levantar informações advindas de documentos e discursos oficiais consegue
abranger toda a dimensão legislativa (constituição da mesa de irmãos, membros
participantes, festas encomendadas etc.), administrativa (contratação de irmãos, controle
do dinheiro, pagamento de serviços) e secular (quais párocos eram contratados,
organização das missas e outras questões), das Irmandades. Isso nos possibilita entender
qual era a função principal da Irmandade: aumentar o campo de ação da população
negra (SCARANO, 1975, p. 2).
A autora dá início a uma análise cultural quando inicia seu diálogo sobre o
funcionamento interno e particular da Irmandade do Rosário dos Pretos do Distrito
Diamantino, composta em sua grande maioria por negros escravos. De 1789 a 1800
eram 314 escravos para 139 forros, totalizando 453 irmãos, oferecendo-nos uma
projeção para tempos mais antigos (SCARANO, 1975, p. 115).
Isso quer dizer que o número de irmãos escravos era esmagadoramente superior
ao de irmãos forros – que já tinham comprado sua alforria – mesmo no final do século,
período em que as Irmandades não tinham tanto poder econômico e prestígio como
libertadoras e assistencialistas. O que nos leva a pensar que o número de escravos no
início da extração de diamantes, quando o dinheiro era mais circulante, poderia ser
ainda mais expressivo.
Por meio das fontes, Scarano (1975, p. 80).fornece informações sobre as origens
dos irmãos – como eram chamados os membros de qualquer irmandade - e até que
ponto se preocupavam com a vida destes, em praticar a caridade, em levar comida aos
presos. A sociabilidade caritativa é alcançada no dia-a-dia dessas associações.
Para Scarano, as irmandades se constituíam em uma sociedade de nações:
29
[...] elementos de origem, costumes, tradições tão diversas, sem contar os
brancos, os cabras, os pardos e outros, faziam da Irmandade uma verdadeira
sociedade de nações - pois, ao estabelecerem moradia como pessoas livres,
libertas ou escravas a mistura de origens foi inevitável - com predomínio
marcante dos de cor negra. Cada grupo deu sua contribuição peculiar à vida e
cultura mineira [...] (SCARANO, 1975, p. 97).
Apesar de achar que a cultura mineira é fruto dessa “gente de cor”, Scarano
completa dizendo que a
[...] mistura de diversas raças, elaboradas conscientemente pela política
portuguesa, enfraquecia os vários grupos étnicos, no sentido de que não lhes
dava ocasião de manter uma só e única tradição, mas favorecia a mescla de
usos diversos e às vezes antagônicos o que facilitava a fiscalização e permitia
entre outras coisas que as inimizades levassem a denúncias de revoltas e ao
auxílio de pretos na perseguição de escravos fugidos (SCARANO, 1975, 108).
Ao mesmo tempo em que Scarano entende que a repressão exercida pela Igreja é
eficaz, considera que a Irmandade desempenha uma função cultural, e ainda indica que
a cultura africana é idealizada e praticada através da miscelânea religiosa, e que suas
manifestações só são realizadas porque os brancos - dirigentes, ordem religiosa e Estado
- assim as permitiam. Pensando assim, para ela não nasce outra forma de expressão
cultural dos negros, mas sim a cultura praticada e, com sucesso, imposta pelos brancos
(SCARANO, 1975, p. 170).
Retira-se aqui a autonomia que sabemos que a cultura tem. A cultura não
obedece às regras tampouco tem caminhos específicos a trilhar. Ela se modifica, agrega,
dissolve, reagrupa e quase sempre quebra paradigmas de idéias fixas a seu respeito
dando indícios de liberdade criativa. A cultura é fruto de um jogo de forças feito no
mundo real, fruto da ação dos agentes históricos.
Caio César Boschi em 1986 escreveu Os leigos e o poder: Irmandades leigas e
política colonizadora em Minas Gerais e trabalhou a idéia de que o objetivo da Igreja
30
como instituição era captar formas de ação que tomassem corpo através das Irmandades
leigas (BOSCHI, 1986, p. 3).
Para Boschi, as Irmandades eram “[...] ao mesmo tempo força auxiliar
complementar e substituto da Igreja nessa ação; elas se propunham a facilitar a vida
social, desenvolvendo inúmeras tarefas que, pelo menos em princípio, seriam da alçada
do poder público” (BOSCHI, 1986, p. 3).
Ou seja, as Irmandades intermediaram o contato Estado - Igreja, porque nesse
momento, o Estado Absolutista Português não via mais uma função primordial da
atuação da Igreja como forma de estabelecer domínio como fora na Idade Média.
Boschi (1986) as considera canal privilegiado de expressão numa sociedade em
que a constituição de livres entidades políticas (partidos políticos, associações,
agremiações) era proibida, pois essa era a condição básica para a manutenção da ordem
e sobrevivência do próprio sistema colonial. Ao organizar e subvencionar a construção
das Irmandades, o Estado colonizador intencionou impor todo seu aparato, embora não
se possa dizer que há aí algo tão regrado que não pudesse escapar de seu controle.
Embora Boschi tenha a visão de que a tentativa de controle legislativo que o
Estado impõe sobre as Irmandades tenha sido eficaz, na prática, “[...] as rédeas são
muito mais frouxas” (BOSCHI, 1986, p. 6). As leis existiam e deveriam ser cumpridas
como o acordado previamente. Porém, a fiscalização que mais surtiu efeito foi a
econômica, ou seja, o recolhimento dos impostos devidos ao governo.
A princípio, quase todas as Irmandades funcionaram durante longos períodos de
tempo – digo décadas – sem o aval oficial do Estado português se poderiam ou não
construir seus templos, se tinham ou não permissão para ministrar as ações propostas
em seus compromissos. Um exemplo disso é que em 1765, Lisboa envia uma carta
31
reclamando energicamente contra qualquer ato praticado sem prévia consulta ou aviso.
Nessa carta também contém o aviso de uma Provisão Real com as seguintes ordens:
[...] uma ordem da mesa da Cociência (sic) o Senhor Procurador e mais oficiais
da Mesa da Irmandade do Santo digo de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos
que Sua Magestade Fidelíssima mandou Provisão de 18 deste anno (sic)
expedida pelo seu Tribunal da Mesa da Cociencia e Ordens que sejam
notificadas todas as irmandades e confrarias deste continente para irem ao
mesmo Supra Tribunal confirmar seus compromissos. (Diam AAD, Livro de
Eleições da Mesa da Irm.de N. S. do Rosário, Tijuco, Cópia da carta datada de
22/07/1765, MS).
A carta foi enviada porque, não só a irmandade Rosário dos Pretos que já
funcionava desde 1733 no arraial do Tejuco, mas muitas outras não haviam ainda
pedido a aprovação de seus compromissos. Quando o fizeram, tiveram que alegar
ignorância e pediram desculpas pela omissão. Scarano (1975, p. 26) lembra que para a
Irmandade de Negros, essa foi uma desculpa sempre muito útil para escapar de
reclamações e até mesmo punições.
A Irmandade do Rosário dos Pretos de Vila Rica, por exemplo, tem registros
oficiais desde 1715, mas consta em declarações extra-oficiais que ela já funcionava há
mais de trinta anos, ou seja, foi erguida bem antes do estabelecimento do arraial
(SCARANO, 1975, p. 48). Em suma, as datas dos compromissos em hipótese alguma
representam a data de criação, elas apenas indicam o momento de sua oficialização.
Francisco Curt Lange em História da Música em Vila Rica escreve em 1979 que a
confirmação dessa Irmandade foi feita por provisão de 24 de dezembro de 1750
(LANGE, 1979, p. 150).
O problema do controle sobre as irmandades ocorrem sobre vários outros aspectos
como, por exemplo, os da liturgia. Em todos os estudos nos quais as irmandades
aparecem, dificilmente encontramos registros de que algumas delas tenham sofrido
punições por ministrar os sacramentos ou qualquer atividade relacionada à liturgia de
32
forma inadequada. Isso sem mencionar as grandes querelas entre o poder eclesiástico e
o temporal por conta da divisão do recolhimento dos impostos.
O estudo de Boschi (1986, p. 22) aponta a descrição de todo o funcionamento e os
laços de união das Irmandades e o grau de cumplicidade com o Estado determinando o
grau atingindo pela estratificação social. As Irmandades, embora não diferissem em sua
constituição e legislação, eram bem diferentes quanto à quantidade de dinheiro gasto
para sua manutenção
O autor também enfatiza que, além da função política de agremiação, as
irmandades também funcionaram como centro de vida social e mais, se tomaram
responsáveis pelas diretrizes da nova ordem social, precedendo ao Estado e à própria
Igreja enquanto instituições. Logo no princípio do povoamento, a Igreja teve sua ação
desencontrada, individualizada, e quando ela pode se estabelecer, o Estado a impediu
fazendo legislação específica de restrição. É por essa razão que surgem as associações
leigas.
É essa relação do surgimento e constituição das Irmandades em Minas Gerais que
constitui o cerne da questão para Boschi. É dessa relação que advém o poder das
associações leigas. E cada uma delas desenvolvia uma função que interessava seus fiéis.
No caso específico de negros, Boschi (1986, p. 166) diz que eles procuravam
irmandades porque algumas delas funcionavam como meio de liberação pela alforria.
Na primeira parte do estudo, Boschi enfatiza que o movimento que faz surgir as
Irmandades leigas em Minas Gerais, está intrinsecamente ligado à chegada do Estado
com mais efetividade após a descoberta do ouro. Na segunda parte, ele tratará da
atuação ideológica de apaziguamento de manifestações sociais que eram hostis ao
Estado (BOSCHI, 1986, p. 2-13).
33
Considera também que a religião nas Minas indissociável das Irmandades não foi
fator de contestação do Antigo Regime, pelo contrário. A pompa de antes, a riqueza do
início da mineração (nas primeiras décadas do século XVIII) dá lugar à decadência,
[...] as atividades artísticas em toda a região mineira não passavam de uma
pálida lembrança dos tempos áureos, [...] cessava o ciclo artístico mineiro, não
pela morte dos geniais artistas, mas porque o poder econômico das instituições
patrocinadoras da arte estava definitivamente abalado [...] (BOSCHI, 1986, p.
110)
Reconhecendo, na arte mineira, sua importância e lamentando que a produção das obras
de arte tenha diminuído.
Ainda em relação à cultura, Boschi (1986, p. 156) acredita que foi através do
sincretismo religioso que os africanos puderam exercer suas crenças e as irmandades
acabaram se tornando uma fonte de manifestação aderista, passiva e conformista das
camadas inferiores nas quais não se formou uma consciência de classe e, por
conseguinte, inexistiu uma consciência política.
Ainda nesse ponto, diz que o Estado, através das Irmandades, negras manteve
seus olhos bem abertos e bem próximos de todas as suas ações, e o fez com sucesso. O
mesmo autor tratará mais à frente de Irmandades e tensões sociais. Isso significa que o
mesmo negro que estava sendo controlado através das irmandades poderia ser aquele
que lutou contra as mazelas que o povo escravo vivia, embora não possamos afirmar
que todos os negros ou descendentes façam parte desse movimento e nem dizer que não.
Se em algum momento era dado a esses negros
[...] instrumentos ou instituições que levassem-nos a incorporar para si e seu
grupo a falsa sensação de equitatividade em relação ao branco e que tudo isso
era ideologicamente realizado de modo a não despertar a condição humana dos
34
escravos, situação na qual se estaria negando o próprio sistema ( BOSCHI,
1986, p. 170).
Podemos pensar que as amarras administrativas, religiosas e culturais que foram
impostas, não deram conta nem de longe do fenômeno do expansionismo cultural criado
pela população negra em Minas Gerais. Caio César Boschi, enveredando por essa
análise, não descarta a possibilidade de que, mesmo camuflada, a cultura africana foi
preservada através do candomblé, do reisado e da congada.
Para entendermos que o controle que se tentou exercer não foi eficaz, podemos
começar com a própria constituição da população que, só por ter se misturado,
enriqueceu imensamente a pluralidade cultural.
1.1 A Constituição da população: o explorador que se viu explorado
Essa exploração dos trópicos não se processou, em verdade, por um
empreendimento metódico e racional, não emanou de uma vontade enérgica:
fez-se antes com desleixo e certo abandono. Dir-se-ia mesmo que se fez apesar
de seus autores. (HOLANDA, 1995, p. 40)
Em toda história vivida pela América Portuguesa, podemos destacar muitos
fatores que influenciaram efetivamente nas características econômicas, políticas, sociais
e culturais que se manifestam nos dias atuais, ainda que, no decorrer de nosso
desenvolvimento como sociedade, fizemos também aquilo que nos é próprio, ou seja,
nos transformamos também em seres donos de nossa própria trajetória sempre que nos
foi possível, reverenciando nossas necessidades e vontades como indivíduos e como
povo.
35
O objetivo agora é discutir a ação desses povos culturalmente ativos em suas
terras, que moldaram a forma de ser do habitante das possessões portuguesas e da região
mineradora de Vila Rica em especial.
Por muito tempo, uma grande quantidade de estudos e análises referentes à
avaliação de nossa história não se concentrou no estudo das ações dos agentes do povo e
construiu uma historiografia voltada para a afirmação do poderio do Estado Português
em terras colonizadas tanto na América quanto na África e em ilhas do Atlântico.
Embora essa historiografia não tenha privilegiado enfoque contrário, não
podemos nos esquecer de que ela foi base, até meados dos anos oitenta, de toda revisão
que historiadores puderam realizar nestas três últimas décadas.
Dos historiadores debruçados na história do Brasil e que, já em 1930,
compreendiam que a dinâmica das terras ocupadas pelos portugueses não devia e nem
poderia ter sido dicotômica - o opressor contra o oprimido, o senhor contra o escravo, o
homem contra a mulher, o negro contra o branco – foi Sergio Buarque de Holanda,
exímio em tudo que escreveu, que notou em inúmeras pesquisas, inclusive em Raízes do
Brasil (Holanda, 1995, p. 82) que o território recém ocupado e tudo o que nele ocorreu
foi fruto de uma política que nada diferia da política que já existia em Portugal e que
“[...] de lá nos veio a forma atual de nossa cultura: o resto foi matéria que se sujeitou
mal ou bem a essa forma” (Holanda, 1995,, p.40).
Caio Prado Junior em Formação do Brasil Contemporâneo, obra de 1942,
também atentou para o fato de que Portugal sofria várias reformulações econômicas e
sociais e que desde
[...] fins do século XIV, e desde a constituição da monarquia, história
portuguesa se define pela formação de uma nova nação européia e articula-se
na evolução geral da civilização do Ocidente de que faz parte, no plano da luta
36
que ameaçou num certo momento todo o continente e sua civilização (PRADO
JUNIOR, 1970, p. 19)
Isso significa que a cultura portuguesa, em sua formação, já apontava
características de miscigenação - de contato efetivo com povos da Europa, Ásia e
África, tanto comercial quanto político e social – o que demonstrou grande mobilidade e
adaptação a ambientes diversos em níveis que outros não alcançaram. Receberam como
moradores, além de conquistados, mouros de Ceuta em 1415, entrando em contato com
a cultura muçulmana que se deixou marcada em seus monumentos a arquitetura oriental
(Holanda, 2001).
Os portugueses cristianizaram povos da África também no século XVI com
negociações amigáveis tanto quanto por meio de guerras de conquistas e se observarmos
a história com mais atenção (HOLANDA, 2001, p. 232), podemos indagar que em sua
formação como território político, quantos povos e quantas misturas não ocorreram ao
longo de milênios de História?
No primeiro capítulo de Raízes do Brasil, intitulado “Fronteira da Europa”,
Holanda analisa a formação do Estado Português como potência ultramarina e que
consequências o ingresso econômico nascente e forte trouxe à sua forma de
organização. Assim, ressalta:
[...] a frouxidão da estrutura social, à falta de hierarquia organizada devem-se
alguns dos episódios mais singulares da história das nações hispânicas,
incluindo nelas Portugal e o Brasil. Os elementos anárquicos sempre
frutificaram aqui facilmente, com a cumplicidade ou a indolência displicente
das instituições e costumes. As iniciativas, mesmo quando se quiseram
construtivas, foram continuamente no sentido de separar os homens, não de os
unir. Os decretos do governo nasceram em primeiro lugar da necessidade de se
conterem e de se refrearem as paixões particulares momentâneas, só raras
vazes da pretensão de se associarem permanentemente as forças ativas
(HOLANDA, 2001, p. 33)
37
Dessa forma, podemos entender que falta em muito o espírito organizado e
estruturado que a historiografia tradicional pregou ressaltando o controle rígido que os
portugueses exerceram no Brasil. Parecia, antes, que o desprendimento e a aventura os
guiaram antes da estratégia.
Por esse motivo, Holanda afirma que as tentativas de controle foram, antes de
tudo, tentativas de fazer exatamente o contrário do que se fazia em Portugal e que as leis
elaboradas por eruditos do alto escalão social foram “[...] criações engenhosas do
espírito, destacadas do mundo e contrárias e ele” (HOLANDA, 1995, p. 33).
A organização social seguia a organização política. A alta hierarquia, que se
exaltava nesses tempos de conquistas e durante todo monopólio português no Brasil,
nunca chegou a importar de modo cabal entre portugueses ligados ao governo, pois os
privilégios e honrarias quase sempre escapavam às amarras da linhagem sanguínea da
nobreza, já que de status burguês se conquistava rapidamente o status de conde ou de
marquês. A esse trâmite a quantidade de moedas dos cidadãos importava muito mais do
que um título de nobreza em uma sociedade que passava por sérias necessidades
financeiras (HOLANDA, 1995, p. 55).
Logo, a fidalguia era requerida antes por costume do que real necessidade de
permanência na figuração aristocrática. A nobreza vinha preferencialmente dos “[...]
altos feitos e altas virtudes” (HOLANDA, 1995, p. 55) suprindo a vantagem da
linhagem sanguínea. Um bom exemplo dessa dinâmica foi Sebastião José de Carvalho e
Melo, o Marquês de Pombal, que ascendeu ao cargo de Primeiro Ministro de Portugal
de 1750 a 1777 no governo de D. José I não fazendo ele parte da aristocracia e que
começou sua vida política em cargos menores, galgando com o tempo postos mais
38
avultosos que culminaram no convite do rei. Antes disso, tinha ocupado o cargo de
Secretário de Estado da Guerra e dos Negócios Estrangeiros (FALCON, 1993).
Portanto, não existia nessa sociedade uma separação compartimentada do que
era ou não possível quanto à participação no governo exclusivamente por serem nobres
ou plebeus. A única premissa que impede a ascensão social em Portugal é o fato de se
realizar trabalhos mecânicos (HOLANDA, 1995, p. 36), acentuando a aversão que o
português tinha ao trabalho manual que serve para rebaixar o ser humano, criando uma
verdadeira repulsa ao culto do trabalho. Movimento contrário à própria formação da
Europa fomentada pelos afazeres manuais do artesanato medieval.
O ócio seria, então, o princípio da vida de um cidadão digno, pois dava grande
notabilidade ao português que podia praticá-lo em detrimento dos que trabalhavam
arduamente para conseguir seu sustento e de sua família. Holanda afirma anda que “[...]
entre espanhóis e portugueses, a moral do trabalho representou sempre fruto exótico [...]
e que não lhe admira “[...] que fossem precárias, nessa gente, as idéias de solidariedade”
(HOLANDA, 1995, p. 39). As solidariedades ocorrem mais no interior das relações
domésticas com vínculos de sentimentos do que nas relações comerciais ou políticas.
Por outro lado, essa desorganização social, de forma geral, pareceu desencadear
um processo de busca tão incessante por melhoria de vida, status, chances militares e
políticas, que no momento da ocupação de novo território, totalmente desconhecido e
desfavorável à exploração altamente rentável por muito tempo, o espírito aventureiro do
português o lançou a desbravar cantos inóspitos com a mesma tranquilidade de quem
não sabe o que vai encontrar. O mesmo ocorreu ao se lançarem os primeiros
marinheiros modernos em mares antes desconhecidos.
39
Já citamos a forte tendência do povo português em se adaptar e conviver bem ou
mal com novas formas de organização social. No novo território não foi diferente, e
apesar de todos os percalços que passaram e outros tantos que criaram, não devemos
menosprezar a grandeza que existe em percorrer caminhos obscuros e às vezes sem
retorno certo. Foi esse espírito que ajudou na fixação do colono que, mesmo
desajeitosamente e descuidadamente – vide a forma incorreta do uso de várias fontes
naturais de sustento e permanência em solo fértil -, criou possibilidades de receber cada
vez mais reinóis desejosos de se fixarem no território (SOUZA, 1997).
Além desses aspectos, cabe ainda observar o que para este trabalho se revela
fundamental – é “[...] a ausência completa, ou praticamente incompleta, entre eles, de
qualquer orgulho de Raça” (HOLANDA, 1995, p. 53). Tal característica, segundo
Holanda, é presente no Brasil porque já existia em Portugal. Para ele, o domínio
europeu foi brando e a vida parece ter sido mais suave no que diz respeito às
disparidades sociais e morais do que atadas às regras de convivência de outros
territórios.
Quando um colono, mesmo que abastado financeiramente, chegava para fixar
moradia, não construía sua casa diferente das que aqui existiam. Outros preferiram até
imitar a forma dos índios na hora de dormir pela comodidade e conforto (SOUZA,
1997, p. 49).
Caio Prado Junior também salientou a escassez de colonos e de como foi difícil
a expansão humana já que “[...] a distribuição pelo território da colônia é, como logo se
vê grandemente irregular” (PRADO JUNIOR, 1970, p. 36).
Somente quando se inicia o ciclo das áreas urbanizadas e com as grandes
fazendas representadas pelos canaviais em maior escala é que se pode demonstrar
40
através de construções imponentes o status social de cada família. Mesmo assim, não
estamos falando de grandes confortos como água encanada, esgoto ou qualquer tipo de
regalia, inclusive alimentar (ARAÚJO, 1993).
Então, podemos dizer que ao viver em território colonizado, principalmente no
início da exploração e nos séculos subsequentes, a grande maioria da população vivia
em condições econômicas bem parecidas e, exceto nas grandes cidades – e ainda aqui
há exceções –, há uma homogeneização do modus vivendi.
Essa afirmação pode ser estendida a todas as culturas que permaneceram em
terras brasileiras, incluindo os africanos trazidos para o trabalho escravo na lavoura, na
mineração ou onde mais se encaixasse sua força física. Aqui os portugueses
estabeleceram um contato que também imitou os moldes do reino. Muitos escravos já
permeavam a cultura portuguesa. Em 1541 já existiam 12 mil escravos, denunciava
Damião de Góis, formando um quinto da população (1932 apud AZEVEDO,
HOLANDA, 1995, p. 54).
Góis não denunciava somente o número excessivo de estrangeiros utilizados em
serviços gerais, mas também a nova miscigenação da população portuguesa em sua
história de formação social.
Esse fato indica que transportaram para o Brasil toda essa carga cultural que aqui
não tardou a continuar se desenvolvendo e, embora em muitos casos a aversão ao
contingente negro tenha realmente existido, vale ressaltar que essa não foi uma
constante, segundo estudos que veremos mais adiante.
Portanto, até o momento tentamos estabelecer que a chegada e permanência do
povo português em terras tupiniquins foram, sem dúvida, um dos fatores mais
marcantes e ricos em consequências que direcionou toda história do povo brasileiro.
41
Mais do que isso, estabelece diretrizes que nos orientem em busca da compreensão da
complexidade que existe na estrutura cultural e social do povo português e que nos
trópicos ganhou nuanças mais complexas ainda quando ocorreu o encontro entre
culturas africanas, indígenas e algumas culturas em minoria – franceses, holandeses
entre outras. Todas elas fazem parte do que hoje chamamos de Brasil.
1.1.1 Fluxos e refluxos: quando a população se move
Guardadas as devidas proporções que separam o século XXI dos séculos XVII e
XVIII, podemos dizer que muita gente se estabeleceu no Brasil. Os portugueses
advindos de várias partes de Portugal, e que nestas terras não queriam mais do lucro
rápido e fácil, não foram, porém, a maioria: pessoas de estômagos vazios, sem
perspectiva frutífera quanto ao território, de pés literalmente descalços e no que diz
respeito a dinheiro também. Famigerados em um novo território que de antemão não
lhes ofereceu mais do que a terra. Fidalgos e ladrões, aventureiros e lavradores, gente de
bem e gente do mal. Todos convivendo e divergindo diante das situações que lhes foram
impostas ou atraídas.
Soma-se a esse contingente, a população indígena que, convivendo ou
enfrentando, contribuiu em muitos fatores para a rápida adaptação dos estrangeiros em
suas terras. E, ainda, os negros africanos, que em sua essência são tão diferentes uns
dos outros quantos os indígenas. Estão prontos os temperos do início da grande
42
expansão e ocupação por meio de nascimentos e imigração da América Portuguesa, pois
confinados primeiramente à então Capital São Salvador e em menor número nas terras
de Piratininga (São Paulo), inicia-se um processo necessário da busca de novas terras.
Movidos pela ganância, pela busca de fartura ou até mesmo pela busca da
tranquilidade e sossego, o colono invade as matas, abrindo caminhos para o interior,
devemos tal empreendimento aos bandeirantes, que nesse trajeto mataram muitos
indígenas e, por eles, muitos foram mortos. Sheila de Castro Faria, em sua obra Colônia
em Movimento, ressalta a luta acirrada que esses desbravadores mantiveram com a
população indígena, pois “[...] a fama do gentio da terra afastava os que pudessem ter
interesse na ocupação” (FARIA, 1998, p. 29).
Essa afirmação nos faz pensar que a ocupação efetiva tardou não só pelo
desinteresse que os portugueses demonstraram pela ausência de materiais preciosos em
que a historiografia tradicional nos fez acreditar, como também o medo de
enfrentamentos diretos com o gentio que se mostrou feroz na defesa de suas terras, que
eram, sem dúvida, uma barreira difícil de ser derrubada. Muitos chefes de expedições
foram rechaçados, caçados e até expulsos por índios em toda parte do território. Um
deles foi Pero de Góis, expulso pelos goitacases em 1546 de suas possessões (FARIA,
1998, p. 29).
Estudos mais pormenorizados podem contribuir ainda mais na compreensão do
papel que o indígena representou na formação do território brasileiro, principalmente
nos primeiros séculos de colonização, quando o número de habitantes ainda não era
expressivo.
Outra observação deve ser feita quanto à movimentação dos habitantes que
reaviva a idéia de que a história da formação do Brasil não se deteve de forma alguma
43
às cidades mais visadas ou mesmo nas zonas de grande lavoura. Essa intensa luta de
índios e portugueses revela que havia intensa ocupação do território e que esse mundo
sempre em movimento aproximou muito mais índios, negros e portugueses do que se
pode imaginar. Segundo Laura de Mello e Sousa em Formas provisórias de existência:
a vida cotidiana nos caminhos, nas fronteiras e nas fortificações, afirma que é em seu
interior que
[...] as hierarquias sociais se superpunham com maior flexibilidade e rapidez;
onde os limites geográficos foram, até meados do século XVIII, fluidos e
indefinidos; onde os homens inventaram arranjos familiares e relações
interpessoais ao sabor de circunstâncias e contingências; onde as aldeias e
vilarejos se erguiam de um dia para o outro, nada garantindo que durassem
mais do alguns anos ou que crescessem com feição e o ritmo das aglomerações
urbanas de além-mar (ALGRANTI, 2005, p. 53).
Portanto, há, sem dúvida um processo, de ocupação feito à margem daquele que,
através das grandes cidades, se pensou realizar, e que foi nos espaços abertos e nos
lugares mais distantes que boa parte da colonização se processou, longe da Igreja, do
Estado, das amarras sociais, onde a lei foi criada e seguida segundo sua moral e
necessidades mais emergentes.
Por estas e por outras não foi nada fácil expandir os territórios de ocupação da
possessão portuguesa, mas no decorrer dos anos, caminhos foram estabelecidos
facilitando – um pouco mais – a movimentação pelo território imenso ainda não
desbravado.
O século XVII, marcado pelo cultivo da cana-de-açúcar e da grande lavoura,
perde seu foco em notoriedade – não desaparecendo é claro, pois manteve sua produção
à revelia de qualquer outra forma de exploração – para os primeiros achados de filetes
de ouro na Capitania de Minas Gerais em 1697 e subsequentemente em Mato Grosso e
em Goiás.
44
Para Caio Prado Junior, o século XVIII é marcado pelo ciclo do ouro que
redistribui o povoamento da Colônia que toma, a partir de tal descoberta, nova estrutura
e nova feição (PRADO JUNIOR, 1970, p. 72).
Apresentam a mesma opinião os autores Maria José C. M. Wehling e Arno
Wehling em Formação do Brasil Colonial ao afirmarem que o século XVIII é o século
da consolidação colonial, pois a descoberta do ouro “[...] articulou toda colonização
portuguesa, transformando um arquipélago de colônias isoladas em continente, ainda
que apenas relativamente integrado” (WEHLING, 1999, p. 42).
Devemos nos lembrar que, enquanto o ouro se tornava a principal fonte de
riqueza do Reino, outros cantos do território continuavam sua expansão. Aliás,
enquanto a mineração era realizada, o século XVIII foi realmente o século da formação
da fronteira, onde incessantes guerras com os índios e espanhóis terminavam em
grandes carnificinas de ambos os lados. As expedições duravam meses e meses, talvez
até anos. Seguiam grupos inteiros com mulheres e crianças para uma efetiva ocupação
vivendo e morrendo em conjunto. Plantando, cultivando criações ao longo do trajeto
para não morrerem de fome. Caçando animais silvestres para manter uma dieta que
facilitasse o acúmulo de energia. (SOUZA, 2005).
Contudo, ainda tinham condições de continuar, registrando em suas passagens
um pouco da reprodução de uma vida em família que os remetesse ao cotidiano que
deixaram para trás em busca de melhoria de vida. O que os fazia continuar era a certeza
de retornar a seus lares nas capitanias sejam ricos ou pobres, negros ou índios (BÂ,
2003, p. 81)
Essa população que ainda é parte portuguesa, parte africana e parte indígena, e
que também já é parte mestiça e brasileira se movimenta. Eram aproximadamente 350
45
mil habitantes em fins do XVII sem contar os índios do Sertão (LOBARINHAS, 2002,
p. 144). Viajavam a pé em pequenas caravanas pelo território; vindos de Salvador,
Piratininga (São Paulo) ou de Campos de Goitacases (Norte Fluminense), não
esquecendo outras vilas próximas. Chegavam das terras do Reino com grandes capitais,
em navios de outras partes do mundo com pouco ou nenhum capital nos Portos do Rio
de Janeiro e São Vicente, chegavam como escravos para a mineração de toda parte da
África, mais homens do que mulheres, governadores, capitães-mores, clérigos. Todos
eles se encontravam em Minas Gerais no momento de seu pleno desenvolvimento como
centro econômico mais importante para Portugal.
Os deslocamentos ocorridos no Brasil – senão todos – foram motivados por
tentativas de enriquecimento e correspondem, segundo Prado Junior, “[...] a ensaios,
tentativas, novas tentativas, a procura incansável do melhor sistema de vida [...]
aproveitamento aleatório em cada um de seus momentos [...] de uma conjuntura
passageiramente favorável” (PRADO JUNIOR, 1970, p. 73).
Nesse movimento, os bandeirantes se tornaram mineradores, fundaram arraiais
que engrossaram pela quantidade de “gentes de toda qualidade” povoando a faixa
central que inclui Minas Gerais, Goiás e Cuiabá, afirma Buarque de Holanda (2005).
Em 1694 os primeiros indícios da existência de ouro foram confirmados. O imã
dourado atraiu com rapidez a atenção de todos, inclusive a do Rei. Este era sempre o
último a ter notícias das novidades da feitoria, devido ao precário sistema de
comunicação que atuava em suas possessões. Mesmo os moradores demoravam a tomar
conhecimento das novidades, e a verem com seus próprios olhos as descobertas. O
Capitão-general Arthur de Sá Menezes foi a primeira autoridade – de que se tem notícia
– a visitar as minas entre 1697 e 1700, anos depois das primeiras notícias oficiais
46
(PRADO JUNIOR, 1970, p. 28). A rapidez, porém, é considerável se lembrarmos dos
recursos que a época oferecia.
Toda essa movimentação e a junção dessa população já miscigenada fornecem
os ingredientes para a formação de uma população dinâmica e altamente autônoma
quanto aos rumos sociais que ela propõe.
1.1.2 A população em torno da mineração: culturas, línguas e convivência
Em um quadro de intensa movimentação, houve grande necessidade de estender
o trabalho escravo que era praticado em boa escala nas lavouras de cana-de-açúcar, para
a extração de ouro e, por isso, um imenso comércio marítimo dos Portos do Brasil e da
África foi aprimorado. E alguns pontos devem ser abordados neste sentido, na busca de
compreender este intenso e vultoso comércio.
Primeiramente, o comércio entre Brasil e África nada mais era do que uma
extensão de um comércio africano já existente. Os africanos eram vendidos como
escravos pelos mercadores “[...] envolvidos no comércio transariano séculos antes dos
portugueses chegarem à Costa de Guiné, e várias sociedades africanas tinham entre suas
instituições diversas modalidades de escravidão” (SOUZA, M., 2002, p. 153).
Não só portugueses, mas holandeses, franceses, ingleses e espanhóis
estabeleceram relações comerciais com diversas sociedades africanas. E, a partir do
47
século VX a meados do século XVII, os portugueses dominaram o comércio com a
costa africana, “[...] estabelecendo padrão básico que orienta as relações entre os povos
europeus e os povos africanos até o final do século XIX” (SOUZA, M., 2002,, p. 115).
Assim, a escravidão em sociedades africanas era uma forma de adquirir riqueza,
embora tenha tomado forma e corpo diferenciados dependendo da localidade
geográfica. Por exemplo, na etnia fula na região da Nigéria, como expõe Bâ, os escravos
se tornavam da família a ponto de, em caso de morte de algum membro central,
poderem ser nomeados os novos chefes (BÂ, 2003).
O comércio anterior à chegada dos Portugueses ao Brasil revela que, mesmo
antes de ser instituída, a escravidão já vinha sendo organizada se transformando num
verdadeiro e sistemático ponto de interlocução com o continente Africano. E, por isso, é
fundamental entendermos que esse contato fez toda diferença na introdução do africano
em terras recém colonizadas.
Pelo mesmo motivo – o fato desse intenso comércio não ter permitido controle
rígido - é muito difícil estipular, ainda que superficialmente, o número exato de negros
africanos que foram trazidos para o trabalho forçado. Assim como é equivocado afirmar
que só negros provenientes da África tiveram seus destinos traçados em terras além mar,
pois já havia um comércio com outras feitorias (Açores e Ilha de Madeira) ou mesmo
em Portugal, que provavelmente já teriam gerado filhos da terra.
Porém,
algumas tentativas
foram
realizadas
a partir
disso, e
que,
superficialmente, dão idéia da quantidade de negros que adentraram o território com
todas as suas implicações – pessoas diferentes, de religiões diferentes, costumes
diferentes etc. Além do mais, toda informação demográfica advém dos batismos e
óbitos que a Igreja registrou ou da entrada nos portos de documentos falsificados dos
48
comerciantes de escravos para fugirem da fiscalização e da taxação excessiva de
impostos para cada passageiro dos navios.
No caso exclusivo de Minas Gerais, Caio Prado Junior (1970, p. 13) utilizando
estudos de Eschwege de 1814, publicado no Plutus Brasiliense, avalia que existiam
naquele momento 555 lavras, em que trabalhavam 6.662 pessoas, sendo que 6.493 eram
escravos. Havia também 5.747 faiscadores ( mineiros que trabalhavam individualmente)
dos quais 1.871 eram escravos (RODRIGUES, 1970, p. 175). Uma população, portanto,
de 12.409 pessoas sendo 8.364 escravos que os documentos oficiais puderam registrar.
Nina Rodrigues contabilizou em seu estudo Os Africanos no Brasil, de 1976,
uma população de 3.250.000 habitantes no Brasil, sendo que deste número, 1.988.000
eram classificados como negros, pardos e libertos (RODRIGUES, 1970, p. 15). Diante
de números incertos o fato é que não é fácil sabermos com precisão a demografia da
América Portuguesa assim como não é menos confortável sabermos a proveniência
exata da localização dos negros africanos.
Porém, ao longo dos séculos, a população africana foi tão intensamente inserida
no cotidiano dos exploradores, que o conhecimento dessas populações foi enormemente
facilitado (SOUZA, 2002).
É esse intenso comércio que possibilita a expansão de áreas a serem exploradas e
delas são provenientes os escravos trazidos para as lavras. Da mesma forma ocorreu
com africanos em outras partes do Brasil e, ao aportarem, com a mobilidade existente
também entre as capitanias, fica difícil saber quais regiões receberam mais ou menos
conterrâneos, com exceção talvez da Bahia, onde a identificação é mais efetiva.
Em linhas gerais, os autores levantam alguns dados que apontam para grupos
específicos de africanos. Yeda Pessoa de Castro destaca que toda a linha abaixo do
49
Equador que engloba os seguintes países: Camarões, Gabão, Congo-Brazzaville,
Congo-Kinshasa, Angola, Namíbia, África do Sul, Zâmbia, Botsuana, Uganda, Ruanda,
Burundi, Moçambique, Tanzânia, Zimbábue, Quênia, Lesoto e Malavi, de domínio
Banto, e da África Ocidental que vai do Senegal à Nigéria, no Golfo de Benim que
compreende Serra Leoa, Guiné-Bissau, Guiné-Conakry, Gâmbia, Libéria, BurquinaFasso, Costa do Marfim, Gana e Benim, forneceram contingente escravo ao longo dos
três séculos de tráfico (CASTRO, 2002, p. 39).
O povo banto, segundo a autora, se encontra em um território vasto e fala uma
variedade de línguas que remontam um tronco linguístico comum, o proto-banto, de
quatro milênios atrás. Porém, entre todas essas línguas algumas foram sobrepostas em
importância às outras. São os casos de três delas: umbundo, quimbundo (Angola) e
quicongo no Brasil (CASTRO, 2002, p. 43) .
Os oeste-africanos, tradicionalmente chamados de sudaneses, também se
destacaram no Brasil pela preponderância numérica pertencentes à família de língua
iorubá e do grupo ewe-fon (CASTRO, 2002, p. 43).
Nina Rodrigues também salienta que quantificar a entrada de negros é muito
difícil e concorda que:
[...] a esta enumeração bem podem ter escapado muitos povos negros que,
principalmente no curso dos três primeiros séculos do tráfico, não deixaram de
sua passagem vestígios nem documentos. Seguramente africanos de muitas
outras nacionalidades haviam de ter entrado no Brasil (RODRIGUES, 1976, p.
261).
Porém, dá sua contribuição ao elencar as etnias registradas em suas pesquisas.
São elas: camitas africanos (fulas, berberes), mestiços camitas (fulanins, pretos-fulos),
mestiços camitas e semitas (bantos orientais), negros bantos ocidentais (cazimbas,
schéschés, xexys, sussus, solimas), negros da Senegâmbia (yalofs, falupios), negros da
50
Costa do Ouro e dos Escravos (gás, ashantis, minas, jejes ou ewe, nagôs, beins),
sudaneses centrais (nupês, haussás, adamanás) e negros Insuli (bossós, Bissau, bixagós)
(RODRIGUES, 1976, p. 261).
Marisa de Carvalho Soares salienta que, no Rio de Janeiro, algumas etnias se
sobrepuseram perante a outras, onde 40% dos negros eram de Guiné, 23,51% de negros
eram da região denominada Mina e 36,49% dos negros eram provenientes de Angola
(SOARES, 2002, p. 105).
Quase todos os autores que trabalham com escravidão no Brasil acabam por
elencar as etnias que aqui se instalaram e desenvolveram. Isso quer dizer que, apesar da
historiografia tradicional não reconhecer por completo o empenho das comunidades
africanas em manter autonomia cultural, todos revelam, portanto, a importância de
compreender a quais grupos pertencem, entendendo que é fundamental conhecer as
origens de cada povo africano.
Muitas guerras foram travadas entre africanos e contra inimigos comuns. Muita
gente se misturou, se reinventou e se moldou aos passos necessários à sobrevivência
desde muito cedo e essas relações de força, de poder e por vezes de cumplicidade, os
tornam passíveis de novas ressignificações.
No território brasileiro ocorreram muitas das ressignificações que foram
iniciadas a partir do surgimento de muitas necessidades, algumas imediatas (adaptação
ao cativeiro), e outras de longo prazo (formação de uma identidade que os uniu e
também os fortificou na busca de uma idéia comum: a liberdade).
Em Minas Gerais, o universo cultural intensificava-se de forma muito rápida e,
em determinados momentos com total ebulição. As trocas culturais e os contatos entre
povos de várias origens era um fator corriqueiro do dia-a-dia.
51
Segundo Eduardo França Paiva:
[...] a Capitania de Minas Gerais era o epicentro desse fenômeno, onde um
estouro cultural sem antecedentes media-se pela quantidade de gente
rapidamente acomodada na região, assim como pela montagem precoce de uma
rede urbana alargada e bem estruturada; pela pujança comercial imediatamente
instalada; pela variedade de tradições e de conhecimentos em permanente
contato; pela mobilidade de homens e de idéias; pelo estabelecimento de
ligações entre todas as unidades administrativas da Colônia e de regiões
estrangeiras, que passavam a se conhecer e a se integrar nas Minas e em função
do abastecimento delas (PAIVA, 2001, p. 41)
Portanto, embora não seja possível saber quais culturas influenciaram em maior
ou menor quantidade umas às outras, é possível, porém, determinar que houve
definitivamente essa troca cultural dinâmica, intensa, renovadora.
Nas pequenas calçadas e nas ruas estreitas passava gente da mais variada gama
de afazeres. Viajantes, tropeiros, ouvires, franceses, portugueses, pequenos agricultores,
tropeiros, caixeiros viajantes, negociantes de escravos, capitães-do-mato, militares
fardados ou descalços, religiosos, libertas ostentadoras de autonomia e de ouro,
vendeiras, escravos e escravas, negras de tabuleiro, quitandeiras (PAIVA, 2001, , p. 42).
A própria lógica da cidade, do urbano, sem muito esforço convergia todas essas
pessoas a conviverem em espaço comum e que às vezes - ou por muitas vezes – eram
compartilhados em comunhão (CASTRO, 2002).
O que tentamos mostrar aqui, não nos leva a pensar que a convivência, apesar de
ser próxima, era pacífica. Porém, a idéia é indicar que a convivência na sociedade
escravista dependeu muito mais de acordos e concessões do que se pode imaginar.
Longe de serem estáticas as divergências promoveram em Minas mais do que releituras
culturais, mais do que simples sincretismos, mais do que aculturações. O que ocorreu
em Minas Gerais foi “outra coisa”, algo que ao mesmo tempo é novo, mas que de forma
alguma se desligou das tradições do passado.
52
1.2 As Irmandades: estratégias de atuação
Permeada pela religiosidade3, a sociedade mineira do século XVIII contribuiu
para dar às Irmandades importância definitiva na vida associativa e cultural coletiva.
Sendo assim, “[...] se afirmaram como uma das principais forças sociais presentes em
Minas colonial” (SILVA, 1996, p. 21-29).
Em Ouro Preto, a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos foi
estabelecida em 1715, com sua sede no templo de Santa Efigênia (altar construído em
1717), mas o edifício o qual ocupavam era o da Matriz de Nossa Senhora da
Conceição4.
Somente mais tarde, com a construção de sua capela, levantada pelos devotos no
lugar que veio a se chamar Alto da Cruz do Padre Faria (no bairro de Padre Faria), é que
houve a separação dos altares (LANGE, 1979, p.19). Esse nome foi recebido para que
houvesse uma distinção da capela construída na Freguesia de Antônio Dias. Assim, a
Irmandade construída no Alto do morro no bairro de Padre Faria, passou a se chamar
Santa Efigênia em 1719 e a construída no bairro do Caquende próxima à Matriz do Pilar
que permaneceu com o nome de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos em 1716.
Em o Compromisso (livro que regia o funcionamento da Irmandade) da Santa
Efigênia pode-se ler que em seus primórdios, foram admitidos indiscriminadamente
membros negros e brancos. Por motivos desconhecidos da pesquisa de Lange (1979,
p.19) os irmãos negros expulsaram os brancos por volta de 1740.
3
Entendido aqui como manifestações religiosas de qualquer natureza – congadas, festas de reis, desfiles
eucarísticos, rituais realizados nos terreiros e nas senzalas, cultos aos orixás praticados em sua
particularidade.
4
Uma coisa era ter um prédio, outra era ter um altar. Pode ocorrer de uma só Irmandade conter dois ou
mais altares dentro de seu prédio e cada um deles recebe seus irmãos em dias e horários diferentes.
53
A Santa Efigênia foi construída em 1733, 10 anos após a criação da Rosário dos
Pretos. Sua ornamentação, a estrutura física do prédio e a própria localização diferem,
levando-nos a acreditar que há uma diferença de idéias entre elas em relação à
expressão cultural. Os conflitos entre a Santa Efigênia e a Rosário dos Pretos eram
frequentes. Há registros de que já 1723 a Nossa Senhora do Rosário teve vários
conflitos, portanto, a vontade de ter um altar próprio vinha de muito tempo (LANGE,
1979, p. 19).
Um estudo feito pelo historiador da cultura mineira Professor Lázaro Francisco
da Silva e um colaborador chamado Marcelo Hipólito, revelou uma série de elementos
do candomblé em toda ornamentação da Igreja de Santa Efigênia (LANGE, 1979, p.75).
O estudo não é revelador somente nesse aspecto, pois revela também que há uma
intensa luta diária dessa Irmandade com as autoridades e com seus senhores, por seus
direitos (LANGE, 1979, p. 74).
Em seu estudo “A Conjuração Negra em Minas Gerais” - um nome bem
sugestivo - o autor mostra que
[...] havia falos que numa outra perspectiva se convertiam em vaginas; havia
bolotas chanfradas que evocaram os búzios utilizados na Umbanda e no
Candomblé brasileiros para fins divinatórios; havia um clérigo com as insígnias
papais, e de cor negra e barrete frígio na cabeça e os três outros com
características negróides; havia tartarugas esculpidas nos altares; e chifres de
cabras e de carneiros; e inhames; tudo se confundido com os elementos
multiformes do barroco (LANGE, 1979, p. 76)
54
Imag. 1 - Altar principal da Irmandade de Santa Efigênia (GOMES, 2010)
Essa versão indica que, ainda que disfarçada, a cultura afro estava presente no
dia-a-dia. Então é possível pensar que tal forma de interpretação aparecia também na
música. As letras são religiosas, aparentemente compostas à moda portuguesa, como
esta ladainha feita em homenagem a Nossa Senhora:
Nessa casa tem quatro cantos
Cada canto tem um santo
Pai e filho, Espírito Santo
Nessa casa tem quatro cantos
Zum, zum, zum
Olha só Jesus quem é
Inimigo cai
55
Eu fico de pé.
Essa ladainha, tocada por uma das ordens religiosas, segundo Pai José – grande
conhecedor de história oral - foi encomendada a um negro escravo. Hoje, é cantada
como Ponto de Candomblé em um terreiro que fica nas redondezas de Ouro Preto. Pai
José, responsável pelo terreiro situado na periferia de Ouro Preto, afirma que esses
pontos são trazidos por entidades muito velhas de acordo com as crenças das práticas
religiosas africanas5.
A frase "Nessa casa tem quatro cantos", de uso freqüente do candomblé que
remete ao terreiro onde se pratica a crença. Para os praticantes, "Cada canto tem um
santo" é uma alusão às entidades específicas protetoras do terreiro. Por outro lado, "Pai
e filho, Espírito Santo" representa a presença da Santíssima Trindade que é uma das
bases do catolicismo, disfarçando o que se canta na entrada da ladainha. Algumas
onomatopéias também são frequentemente utilizadas pelos negros.
Uma delas "Zum, zum, zum" é também usada pelos capoeiristas que até o início
da século XX não praticam sua "dança, luta" longe dos terreiros, de suas mães ou pais
de santo.
Essa é, sem dúvida, a parte da música que reflete toda espiritualidade africana, e
mais que isso, reflete toda luta interna e intelectual que se trava em busca de liberdade
física também. "Olha só Jesus quem é, Inimigo cai, Eu fico de pé" representa a luta
travada pelos orixás segundo a crença afro-brasileira, que ficam constantemente indo e
vindo do mundo sobrenatural ao mundo físico atendendo desejos humanos. Temos
5
Entrevista concedida em Julho de 2006 na cidade de Ouro Preto.
56
então a junção de elementos tradicionais da cultura católica com elementos do
candomblé e umbanda.
Temos a música como ponto de partida para a interpretação e celebração da vida
em sociedade. Eis a música como forma de expressão livre de uma cultura
estigmatizada que carregou toda uma conotação pejorativa por um longo período de
tempo.
Essa forma de manifestação artística aparece em diferentes estilos dependendo
das Irmandades às quais elas serviam. Mais do que expressar uma forma cultural
peculiar, é possível, além de diferir as Irmandades de forma geral, definitivamente
reconhecer nas manifestações as diferenças existentes entre as Irmandades Negras. No
caso de Ouro Preto é visível esteticamente para começar, que a Nossa Senhora do
Rosário dos Pretos tinha mais relação de proximidade com a Ordem Religiosa
tradicional, do que a Irmandade de Santa Efigênia.
Imag. 2 - Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos (GOMES, 2010)
57
A própria localização delas dá indício sobre a diferença se olharmos a cidade
hoje. A Nossa Senhora do Rosário dos Pretos foi construída perto da Matriz do Pilar (
de 500m a 700m ) e a Santa Efigênia no morro do bairro de Padre Faria distante da
praça principal. Além disso, as formas estruturais e plásticas aplicadas nas duas igrejas
também dão sinais de sua intenção.
Existe uma ornamentação mais detalhada na Santa Efigênia construída ilustre e
iminentemente pelos negros.
Imag. 3 - Altar principal da Irmandade de Santa Efigênia (GOMES, 2010)
Imag. 4 – Altar lateral da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos
Pretos (GOMES, 2010).
58
A primeira fotografia é de um dos altares laterais da Santa Efigênia, e o segundo
é um dos altares laterais da Rosário dos Pretos. Nota-se que a representação da Santa
negra é a mesma. O que difere é a ornamentação que a envolve. A Primeira, muito mais
rebuscada e cheia de detalhes características da cultura africana, marcada pelas cores e
pelos excessos ornamentais e, a segunda, mais leve nos acabamentos seguindo uma
linha mais “branca”, próximo aos ideais de quem a ajudou a construir quando do
desligamento dos brancos da Irmandade de Santa Efigênia por volta de 1715.
Se nos remetermos ao período de construção da vila, notaremos que a Irmandade
de Santa Efigênia foi construída antes dos prédios importantes para o Estado e para a
Igreja, como a Casa de Câmara e Cadeia (1784) e a capela de São Francisco de Assis
(1766), ou seja, foi construída no início do povoamento no local considerado
geograficamente como a “Velha Ouro Preto”, segundo moradores. Esse fator demonstra
a importância da construção da Irmandade diante da realidade de abandono e descaso
das autoridades. A iniciativa dos negros em erguê-la se deu única exclusivamente por
vontade e esforço próprios.
Imag. 5 - Irmandade de Santa Efigênia (GOMES, 2010)
59
A construção da Irmandade de São José dos Homens Pardos está situada muito
mais próxima da entrada da cidade do que no centro, perto da matriz do Pilar.
Imag. 6 - Irmandade de São José dos Homens Pardos (GOMES, 2010)
Analisando os trabalhos de Julita Scarano, Caio César Boschi e os trabalhos do
Professor Lázaro, se estabelece uma lacuna que nos impede de compreender os passos
do poder eclesiástico que pretendia ter controle sobre as Irmandades Negras e os passos
do poder que esses irmãos exerceram através de suas expressões artísticas. Como um
movimento cultural intenso se desenvolveu em uma sociedade que supostamente
construiu suas bases políticas de controle através da figura dos senhores donos de
escravos? E como fica a aparente incapacidade de organização social e política desses
escravos segundo uma historiografia incompleta?
60
A cultura mineira ainda está por ser descoberta, afinal muitas facetas culturais e
sociais ali desenroladas podem encaminhar a discussões na direção de uma reviravolta
no entendimento das relações humanas, políticas e sociais travadas naquele cenário.
Estamos aqui analisando uma pequena parte dessas possibilidades. Médicos,
advogados, músicos e artistas negros de uma forma geral, formam essa cultura mineira
do século XVIII de acordo com as palavras de Nestor Goulart Reis Filho6.
Que controle foi exercido pela Coroa, pelas leis e pela Igreja católica se quase
nada se pode fazer diante de uma organização social e econômica dos negros africanos
e, principalmente seus descendentes, construídas e plenamente praticadas através das
irmandades? Curt Lange revela em sua pesquisa sobre a atividade musical nas
irmandades que o século XVIII não registrou presença maior do que oitenta padres
regulares, que se dividiam nas muitas irmandades existentes para uma população
estimada em 100.000 habitantes (LANGE, 1979). Lembra também que
Somente em raras ocasiões foi possível conseguir erário real alguma
contribuição, como no caso do órgão de Sé de Mariana e outra para o AltarMor de Nossa Senhora do Pilar em Ouro Preto. Neste sentido, o monarca
descuidou-se completamente da propagação da fé católica. Confiava na
religiosidade de seus súditos, fazia ouvidos surdos e deixava os sacrifícios para
outro. Tudo, absolutamente tudo, foi obra do povo rico e do povo pobre: o
edifício, os altares, estatutárias, as pias de batismo, os sinos... (LANGE, 1979,
p. 40).
Ainda não sabemos o suficiente. Reforça essa observação o fato de se encontrar,
entre os oficiais e irmãos de Mesa dessas associações, número expressivo de artistas e
militares (participantes dos regimentos de negros presentes em Vila Rica) que
certamente constituíam a elite da comunidade negra e crioula de Ouro Preto7. Eles
conseguiam alcançar altos postos por seus bons serviços prestados nas Irmandades, nas
6
GOULART, Nestor. Palestra proferida por ocasião da Semana de História da PUC-Campinas em
23/09/2001.
7
Livro de Entradas, Profissões e Termos da Irmandade (1724 a 1799 e 1734 a 1785) m 080/0851-0890
vol 0097 e m081/0225-0418 vol 0098.
61
Confrarias e ordens religiosas a mesmo no Senado da Câmara. Coincidentemente ou
não, muitos deles eram também “professores da arte de música de Vila Rica, capital de
máxima importância na formação musical e sua expansão por todo território de Minas
Gerais” (LANGE, 1979, p. 15).
Para tentar empreender este trabalho através da música negra popular e erudita, é
imprescindível usufruir das pesquisas de Curt Lange e da sabedoria daqueles que
contam histórias sobre a antiga Vila Rica do século XVIII.
Há, portanto, duas formas de análises com diferenças latentes. A primeira agrupa
autores que pensam as Irmandades analisando-as com olhos de ordenador, como Julita
Scarano e Caio César Boschi, que levantaram seu funcionamento através dos
documentos oficiais, dos documentos de quem tem o poder nas mãos. Outros, como o
Professor Lázaro Silva, analisaram a função que as Irmandades expressaram através dos
traços culturais que os negros deixaram. Seu estudo pretende novos rumos à
compreensão mais ampla sobre interpretações de mundo que os negros tiveram em
relação à Irmandade (SILVA, 1996, p. 70).
Marcos Magalhães de Aguiar em sua dissertação de mestrado apresentada na
Universidade de São Paulo, intitulada Vila Rica dos Confrades: a sociabilidade
confrarial entre negros e mulatos no século XVIII, avalia a função social das
irmandades de negros e mulatos na sociedade colonial mineira, a partir de um estudo de
caso na região de Vila Rica (AGUIAR, 1993, p. 5).
Discutiu os instrumentos de controle das despesas e das prioridades
estabelecidas no interior das associações, porém, acrescenta uma visão cultural. Passa a
olhar de dentro para fora, ou seja, priorizará a visão de seus integrantes (AGUIAR,
1998).
62
Ele mantém a utilização maciça dos termos de compromisso e o livro de
despesas por se tratarem de documentos esclarecedores quanto ao cotidiano das
irmandades. Inicia falando sobre as irmandades, quais suas funções e sua evolução.
Depois trata da parte administrativa e o significado da presença dos brancos nessas
instituições. Trata também das formas de controle em nível local pelos civis e
eclesiásticos, e, por último das atividades confrariais em relação à caridade de uma
forma geral.
Aguiar (1993) considera que as Irmandades se afirmaram como “[...] uma das
principais forças sociais presentes em Minas colonial” (AGUIAR, 1993, p. 7) e seu
objetivo não se distancia muito dos já anteriormente citados pelos trabalhos de Scarano
e Boschi.
Dessa forma, Aguiar dá a seu objeto uma importância cultural e consegue
explorar a autonomia que os negros desenvolveram a começar pela própria decisão de
participar ou não das irmandades, pois “[...] a decisão dos escravos participarem como
oficiais não contava com a simpatia dos senhores” (AGUIAR, 1993,, p. 41). Já nos
livros de despesas das Irmandades aparecem até senhores que fizeram questão de pagar
pela anuidade de seu escravo (LANGE, 1979).
Podemos interpretar que os senhores não se opunham à participação dos
escravos, exceto se tivessem grandes responsabilidades no corpo jurídico ou financeiro,
como é o caso dos Irmãos de Mesa, responsáveis pelas decisões administrativas e
litúrgicas ou tesoureiros, responsáveis pela manutenção financeira. Lembrando que ser
Irmão de Mesa não era barato:
[...] diretivos da Mesa, Juiz, Procurador, Escrivão e Tesoureiro não foram
somente cargos honorários: para os ocupar, a anuidade era muito superior à dos
simples Irmãos. Geralmente atingia a quantia de 20 oitavas de ouro e a dos
Irmãos 1,1/2, e no máximo 2. (LANGE, 1979, p. 31)
63
Mesmo com certa desconfiança de seus senhores em relação à adesão de seus
escravos às irmandades, conseguimos detectar uma liberdade de ir e vir desses irmãos
cuja condição social não lhes permitia. Ou seja, através das irmandades alcançaram
lugar de destaque entre sua população tendo passagem livre socialmente.
Lá, eles participaram de procissões, pagaram suas dívidas, empreenderam festas
gigantescas, elegeram reis (Congadas) assim como outrora fizeram em sua terra natal e,
ainda que entrassem nas confrarias pela mão de seus senhores, manifestavam
envolvimento constante nas festas, no pagamento de sua anuidade, nos negócios
internos.
Aguiar (1993) expressa idéia muito próxima da de Caio César Boschi(1986),
quando trata de formas de controle, embora reconheça que não são eficazes à medida
que as Irmandades burlavam frequentemente o ofício pela falta de fiscalização
(LANGE, 1979, p. 63).
Outro ponto existente neste trabalho é a constatação, via documentos das
próprias irmandades, de que conseguiam manter seus cofres bem alimentados para a
realização de suas necessidades (AGUIAR, 1993, p. 45).
Nos livros de receitas é possível saber toda a origem da riqueza registrada. Não
só se recebia esmolas. Os escravos colaboravam juntamente com os forros com boa
quantia, tinham a anuidade, a compra de casas, o aluguel e a contribuição livre de
membros da mesa ou simpatizantes, em maioria negros (AGUIAR, 1993, p. 45)
reforçando ainda mais a idéia de autonomia.
Em sua conclusão, lamenta não ter encontrado em seus registros nada que
provasse que houve efetivamente um estado de contestação da ordem estabelecida
64
embora diga que as “[...] irmandades representavam, para negros e mulatos,
oportunidade reconhecida legal e institucionalmente, de agir coletivamente na defesa de
seus interesses” (SCARANO, 1976, p. 183).
Aguiar avança ainda na comprovação, através dos livros de despesas, de uma
autonomia considerável na condução administrativa reforçada pelas relações mantidas
com os brancos, capelães e autoridades. Portanto, tratar as irmandades como
instrumentos de integração da população negra e mulata ao sistema colonial ou situá-las
como simples aparelho de conservação de genuínos valores africanos é correr o risco de
simplificar imensamente a problemática.
Deve-se ter cuidado ao tratar dessas questões com extremismos. As
sociabilidades permitem que as regras se estabeleçam conforme as necessidades
imediatas, obrigando-nos a estudar caso a caso sem generalizações.
Em seu outro trabalho apresentado como tese de doutorado, Negras Minas
Gerais: uma história da diáspora africana no Brasil colonial, de 1999, Aguiar traça os
caminhos pelos quais os negros alcançavam seus objetivos legais e que relações se
estabeleciam entre senhores, livres e escravos por meio dos autos de infração
catalogados na Casa de Câmara e Cadeia no século XVIII.
Esse estudo contribui para a descoberta da constituição da população escrava em
Minas, nos dando dados referentes à cultura, a vida cotidiana e à mistura de muitos
elementos que constantemente formaram o corpo confrarial. Na primeira parte vemos
uma análise da transição da escravidão para a liberdade, padrões de alforria e parentesco
entre negros e mulatos. Na segunda parte vemos padrões de conflitos a partir de um
estudo sobre a criminalidade e a terceira parte trata das estruturas mediadoras entre
indivíduo e sociedade (AGUIAR, 1999, p. 2).
65
Essa análise indica que as ações levantadas pelos escravos ou libertos muitas
vezes reivindicavam o direito à defesa, à honra, à retratação e, inclusive, de propriedade
em muitos casos. Revoltas violentas, discussões em bares, de “porta de rua”,
assassinatos, brigas familiares e maritais, roubos, desavenças entre amigos, faziam parte
do cotidiano de uma população misturada e emaranhada que não nos possibilita
estabelecer fronteiras rígidas entre ricos e pobres, senhores e escravos, homens e
mulheres (SOARES, 2000).
Um trabalho que também contempla a mistura de grupos que formam a
sociedade setecentista é o de Mariza de Carvalho Soares em Devotos da cor no Rio de
Janeiro na Irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia, no século XVIII. Em seu
estudo sobre os Makis da Guiné especificamente, conclui que é de fundamental
importância saber a origem dos negros trazidos para o Rio de Janeiro, para compreender
a peculiaridade religiosa que se estabeleceu ali.
Há, em sua obra, um elemento muito importante na compreensão dos casos
mineiros: é o fato de que ao chegar no Rio de Janeiro, as etnias escolhem o caminho da
incorporação à tradição cristã e, de acordo com sua documentação, conclui que é por
meio de suas festas que se apropriam das regras de hierarquia e distinção do Antigo
Regime e recriam uma nova ordem na qual a tradição de seus antepassados não é
abandonada, pelo contrário, a religiosidade permitiu o nascimento de outras formas
culturais (SOARES, 2002, p. 27).
A análise de Soares trata a irmandade como um lugar onde os africanos podem
manter o que lhes é importante na cultura que praticaram a vida toda. Para eles, que
foram arrancados de seu território e de sua cultura que por milênios foi seu patrimônio,
é impensável abrir mão de ser aquilo que aprenderam a ser (SOARES, 2002, p. 232).
66
Há uma autonomia estabelecida e não contestada pelas autoridades. Os negros
aqui conseguiam expressar o que lhes era mais caro: sua cultura já abrasileirada.
Outro estudo feito para detectar quais etnias foram trazidas para o Brasil e se
encontraram no interior das Irmandades é o de Marina de Mello e Souza, que afirma que
as etnias são responsáveis pela adaptação da Coroação do rei Congo e que aqui se
tornaram festas comemorativas. Em Reis Negros no Brasil escravista: história da festa
de Coroação de Rei Congo (2002), Souza entra no âmbito das irmandades religiosas,
mais especificamente, no que diz respeito às manifestações festivas de influência
nitidamente africana como congadas e jongos espalhados pelo Brasil.
Marina de Mello e Souza acredita que as congadas foram importantes veículos
de cristianização dos africanos e seus descendentes, e eram vistas ora como “[...]
instrumentos da classe senhorial na domesticação dos escravos e negros livres ora como
espaços de resistência cultural desses últimos sempre a partir de um ponto de vista que
privilegiava a opressão ou rebeldia” (SOUZA, 2002, p. 19).
Em sua visão o contato prévio entre o reino do Congo e Portugal, facilitou a
apropriação das culturas em “uma via de mão dupla” antes mesmo de se encontrarem no
Brasil. A figura do rei era forte em ambas as culturas e aqui no Brasil o imaginário de
chefe político e religioso foi explorado nas festas, recebendo homenagens e tributos
como um verdadeiro rei do Congo. Eles se tornavam líderes de forma geral, mantendose assim até o enfraquecimento das Irmandades exceto quando as festas ficaram restritas
a alguns grupos em cidades pequenas que se mantiveram longe dos tentáculos
civilizatórios foi possível manter importância (SOUZA, 2002,, p. 25-27).
Souza (2002, p. 25-27) revela que é a figura do rei mítico herói-fundador que
remetia os africanos e descendentes à terra natal, onde os reinados festivos e as
67
congadas neles realizados congregavam símbolos diferentemente codificados pelos
diversos grupos sociais de alguma forma envolvidos. Para os negros, era a confirmação
de práticas africanas e afirmação da expressão de fé, e para os senhores era uma boa
demonstração de submissão e adaptação à condição de escravo.
Roger Bastide, em Religiões africanas no Brasil de 1960, expõe uma visão
muito peculiar sobre as manifestações culturais africanas que estão intrinsecamente
ligadas à religião. Para ele, as religiões afro-brasileiras “[...] foram obrigadas a procurar
nas estruturas sociais que lhes foram impostas, espaços onde se integrar e se
desenvolver” (BASTIDE, 1960, p. 30).
Bastide conclui que existiram sem sombra de dúvida duas formas de resistência:
a religiosa (e, portanto, a cultural) e a social (esta através das rebeliões assassinatos,
fugas, criação de quilombos entre outras.), mas não chega a explorar os elementos
constituintes dessa resistência mais aprofundadamente. Deteve-se mais na compreensão
dos rituais religiosos. Ele também crê que
[...] todos os fenômenos religiosos africanos da época colonial, ou quase todos,
devem ser interpretados através desse clima de resistência cultural; mas a
resistência não é um fenômeno normal: produz distorções, cria estados
patológicos, endurece tanto os espíritos quanto as instituições [...] (BASTIDE,
1960, p. 131).
Desta forma, ao olhar as manifestações como algo africano, não descarta que
certamente elementos da cultura branca se misturaram fraternalmente a esses traços
afros e, embora a religião católica européia seja em seu discurso teoricamente rígida,
sabemos que historicamente ela é a junção de muitas culturas inclusive as “pagãs”.
Aceitar traços da cultura africana não foi algo tão complexo (BASTIDE, 1960, p. 178).
O que é preciso dizer, e que é mais justo, é que traços das civilizações africanas
“[...] passaram sem que o sacerdote percebesse, ao culto, dos santos negros [...]”
68
(BASTIDE, 1960, p. 178). E, um indício dessa afirmação é o altar da Igreja de Santa
Efigênia do Alto da Cruz do Padre Faria de Ouro Preto. Esta foi erigida com traços
africanos e lá permaneceu sem grandes mudanças de acordo com Lázaro Silva (1996).
Embora Bastide generalize a incidência da cultura religiosa africana no interior
da religiosidade portuguesa, é possível resgatar algumas considerações para estudar a
religiosidade praticada nas Irmandades Negras, fazendo-se obra importante para a
análise específica sobre música e resistência cultural.
Um estudo que tentou perceber como as culturas se misturaram e se
confundiram, é o de Luiz Mott que resgata a biografia de uma ex-escrava que se auto
denominou Rosa Egipcíaca. No livro Rosa Egipcíaca: uma Santa Africana no Brasil
vemos como é difícil separar a cultura original africana da prática da religiosidade
portuguesa.
Em suas declarações ao Santo Ofício ela utilizou da essência do
catolicismo europeu em relação a Jesus Cristo e a misturou constantemente à cultura
matriarcal de alguns povos da África. Por causa dessa mistura de elementos que
transitavam entre as religiões, ao ser denunciada, Rosa foi levada aos tribunais da
Inquisição (MOTT, 1993).
Os estudos de Lázaro Silva (1996), ao analisar os altares da Santa Efigênia
construídos e ornamentados de acordo com os anseios escravos, revelam que há naquela
construção uma intenção no sentido de aproximar cada vez mais o mundo real da
escravidão ao mundo ao seu mundo ideal, onde podem exercer sua religiosidade com
muita liberdade e autonomia. A conjuração negra, para ele, ocorreu em linhas
silenciosas, porém, permanentes.
Ao interpretarmos os documentos produzidos pelos membros das Irmandades
negras é possível abrir novos caminhos. A primeira tentativa foi a de Curt Lange (1979)
69
que realizou um trabalho muito importante de levantamento documental e biográfico
dos músicos da Capitania de Minas Gerais do século XVIII.
Com esse estudo, foi possível perceber que a atividade musical na Capitania foi
muito intensa e nota que
[...] curioso é o hábito de alguns músicos terem mandado aos seus escravos
para tocarem na procissão ou para os toques anunciando festas ao romper do
dia. O Capitão Caetano Rodrigues da Silva enviou em várias oportunidades o
seu escravo Joaquim, tambor [...] (LANGE, 1979, p. 275).
Além dos músicos escravos existiam também os forros que, aos olhos de Curt
Lange, faziam parte da mais refinada música religiosa da Capitania. É o caso de José
Joaquim Emerico de Mesquita Lobo que fez parte da Irmandade de Nossa Senhora das
Mercês do Tejuco no final do século XVIII. Lange diz:
Quando descobri em Minas Gerais, em fins de 1944, a existência duma
extraordinária atividade musical, correspondente ao período colonial e
consoante em absoluto com o desenvolvimento da arquitetura, das artes
plásticas, e das inquietações políticas, literais e teatrais, a primeiro obra que me
chamou a atenção, em meio de velhos papéis de música que me foram
oferecidos por um músico mineiro, foi uma Anthíphona de Nossa Senhora /
Com Violinos e Basso / Salve Rainha ( LANGE, 1979, Livro de anuais e
contos dos Irmãos da Confraria de Nossa Senhora das Mrecês 1780-1851).
Essa antífona foi escrita por José Joaquim Emerico pela Irmandade de Nossa
Senhora das Mercês dos homens pardos, e que se descobriu ser um ex-escravo. Mas
muitos outros exerciam essa profissão ainda quando escravos como negros de ganho.
Seus senhores os alugavam para festas particulares ou públicas e cobravam por este
serviço daqueles que os contratavam. Os escravos aproveitavam o tempo extra para
atuarem em seu próprio benefício em busca da alforria.
Na casa do Pilar, sede do arquivo público mineiro, se encontram todas as
publicações e documentos que conseguiu reunir na coleção que levou seu nome (Curt
70
Lange), proporcionando a aproximação dessa documentação e fomentando a idéia de
estudar a cultura através da música dos setecentos.
As Irmandades, de forma geral, utilizaram do serviço desses músicos durante
toda sua existência. Vemos isso através do livro de Compromisso e prestações de
contas, onde aparecem discriminadas todas as vezes que a Igreja pagava seus serviços
(LANGE, 1979).
São estas características gerais das irmandades: realizar pagamentos a serviços
particulares ao público, exclusivamente serviços musicais exercidos pelos negros e
mestiços que fazem delas alvo recorrente da população no intuito de se agremiarem; e
possibilitar novos caminhos em busca da mobilidade social e econômica e deram aos
escravos e aos libertos muito mais possibilidades além da apatia e conformação.
71
CAPÍTULO II
EDUCAÇÃO AFRICANA: A MEMÓRIA COMO REGISTRO HISTÓRICO
O movimento das ondas, agora suave, embalava seus sentimentos, numa
calmaria que lhe renovava as esperanças. Procurava recuperar em suas
lembranças as coisas boas que ninguém nunca poderiam lhe tirar. Seus deuses,
que sua gente chamava de orixás, eram grandes e poderosos. Também haviam
sofrido e se desesperado, mas nunca desistiram de ser felizes, realizados,
eternos. Adetutu também não desistiria, prometeu a si mesma. Afinal, não
tinham lhe tirado tudo; ela tinha suas memórias, sabia quem era, de onde vinha.
Tinha orgulho de sua origem nobre, de seus deuses, de seus ancestrais, que
venerava com desvelo sincero. Seu nome, Adetutu, significava A-Coroa-ÉPaciente, ou A-Princesa-Sabe-Esperar. Ela resistiria [PRANDI, 2007].
Neste capítulo discutiremos a educação africana e os seus significados
salientando a importância da tradição oral com base na memória, como manutenção de
uma cultura que não é estática em suas origens e que no Brasil foi de fundamental
relevância para a sobrevivência de matrizes da cultura africana, permitindo a adaptação
e reorganização em muitos graus de suas manifestações culturais. Os conceitos de
memória e de educação africana serão discutidos na tentativa de defini-los com o
objetivo de organizar uma linha teórica a ser seguida.
Essa compreensão se mostra importante à medida que é a educação que os
africanos (todos os povos da África têm uma relação profunda com aspectos da
educação, respeitando tempo e espaço específicos) organizaram ao longo de milênios de
história que possibilitou sua organização como povo, como tribo, como comunidade. É
através dela que o africano cria laços de amizade, fidelidade a seus compromissos de
forma individual e coletiva, e, acima de tudo, foi ela que conduziu o africano ao
respeito às suas tradições.
72
Tradições estas concebidas e vividas por todos de forma intencional e,
principalmente, de forma comunal. Todos fazem parte da organização, mesmo nascendo
anos ou séculos após sua constituição, pois o respeito aos antepassados é a base de sua
organização social. Em sua autobiografia, Amadou Hampâté Bâ, escreve que “[...] o
indivíduo é inseparável de sua linhagem, que continua a viver através dele e da qual ele
é apenas um prolongamento” (BÂ, 2003, p. 23). Africano da região da Nigéria não
consegue iniciar sua história sem falar de sua família primeiro.
Portanto, como vimos na passagem literária acima da africana Adetutu e também
no relato de Bâ, é muito difícil, ou impossível, “desligar” o ser africano de suas origens,
esteja onde estiver. Mesmo com o passar do tempo, o continente africano parece exercer
uma magia que toca seus habitantes e impõe necessidades ímpares que os fazem
entender a importância de ouvir com atenção e gravar certas passagens, pois contam
somente com esse instrumento para salvaguardar sua história. Parece ser essa a base da
educação africana: a oralidade. Portanto, raramente veremos o termo educação nas
histórias africanas como o sentido que conhecemos na educação escolar formal
tradicional das salas de aulas com alunos enfileirados.
Educação no sentido africano é aprender sempre, em todos os lugares, com todas
as coisas da natureza, e, principalmente com os mais velhos. Estes são detentores natos,
segundos seus códigos, de sabedoria ampla e madura. Assim, não é possível separar
quando uma criança está tomando lições ou quando está se divertindo, ou fazendo suas
refeições, ou caminhando pelas savanas ou estepes. A linha que separa tais categorias é
muito tênue.
Assim como também não é possível distinguir entre eles quem é o professor,
tampouco reduzir os aprendizes a um número. Todos a todo o momento são possíveis
73
mestres e professores. Nesse sistema as crianças são estimuladas a ouvir. Ouvir sempre.
Ouvir muito. Memorizar para recontar aos menores que são considerados menos sábios
pela pouca idade.
Por isso, Bâ explica que,
[...] quando desejamos homenagear alguém, o saudamos chamando-o repetidas
vezes, não por seu nome próprio, que corresponde no Ocidente seu nome de
batismo, mas pelo nome de seu clã [...] porque não se está saudando o
indivíduo isolado e sim, toda linhagem de seus ancestrais (BÂ, 2003, p. 23).
Toda sua ancestralidade também faz parte de sua educação, ou melhor, é ela que
define a educação mais do que os ensinamentos do presente.
Nas várias histórias sobre a África, muitos aspectos deixaram de ser tratados
com merecido empenho e que nos últimos vinte ou quinze anos vêm sendo desbravados
ou revisados, ainda que com muita timidez. É com certeza o caso da educação. E apenas
um deles. De forma geral, a história da África foi sendo maltratada e desconsiderada em
muitos aspectos. Mesmo a política, a economia e a cultura são desconhecidas pelo
mundo ocidental e por muito tempo propositadamente ignorados. Sobre o aspecto da
religião, campo que conhecemos um pouco mais, cometemos erros substanciais quanto
à origem e quanto ao significado.
Há elementos que indicam uma forte dedicação à medicina, metalurgia,
mineração, criação de gado, ciência, matemática, engenharia, à astronomia e um
cabedal de conhecimentos tecnológicos e reflexão filosófica no Continente Africano.
Segundo Elisa Lakin, um cirurgião inglês chamado Dr. R. W. Felkin, que visitava em
1879 a região africana que hoje compreende Uganda “[...] testemunhou e registrou uma
cesariana feita por médicos do povo bonyoro, demonstrando profundo conhecimento
dos conceitos e técnicas de assepcia, anestesia, hemostasia, cauterização e outros”
74
(NASCIMENTO, 1996, p.116). Médicos africanos do antigo Egito e do Mali operavam
cataratas oculares e tumores cerebrais há 4.600 anos segundo estudioso em história
africana Van Sertima (1983).
Aspectos econômicos milenares que os levaram a povoar ou se estabelecer por
toda parte do mundo primitivo como na Ásia, na Europa antiga e nas Américas, foram
deixados de lado. O comércio anterior aos grandes centros comerciais deu grande
visibilidade política aos habitantes africanos, além, é claro, de ter deixado marcas
profundas na cultura primitiva desses povos como mostra o estudo de Elisa Larkin
Nascimento (1996, p. 52-76).
Com a preocupação em estudar questões importantes relativas às experiências
afro-brasileiras, foi inaugurado o Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros
(IPEAFRO), na PUC-SP em 1994. E com a proximidade do centenário da morte de
Zumbi, três volumes foram organizados por Larkin com textos de vários autores do
Instituto para levantar tais apontamentos.
O primeiro volume, Sankofa: matrizes da cultura brasileira, no qual nos
detivemos, retrata questões do mundo africano, desde suas civilizações antigas e seu
papel na formação da civilização humana até a experiência da diáspora compulsória da
escravidão e a resistência dos africanos escravizados em toda América.
É nessa obra que encontramos alusão à importância que a oralidade - difundida
em um universo quase sem escrita onde a “palavra tem força” e os contratos são
firmados através dela, contando com a honra daqueles que os selavam -, teve no
processo inclusive, de povoamento.
A oralidade tomou proporções gigantescas, contando apenas com a memória
individual e coletiva e a cultura dos inúmeros viajantes e aventureiros do Continente
75
Africano. Chamamos de cultura o conjunto de manifestações e práticas cotidianas e que
ao longo do tempo se enraíza, criando ou não novas formas de encaminhamentos, fez-se
soar por todos os continentes em menor ou maior grau.
Para Elisa Larkin, a idéia é desfazer erros grotescos em relação aos negros cuja
historiografia insistiu em cometer (LARKIN, 1996, p. 19-38), inclusive a idéia de que
os africanos ficaram milênios fechados em um sistema tribal e sem grandes
modificações.
Em História e Memória, de Jacques Le Goff (2003), também ocorre a crítica a
esse tipo de pensamento cultivado por vários historiadores que consideram a história
oral como fonte menor de registro de acontecimentos históricos. Em um extremo,
Arthur Marwick, em The Nature History of History afirma que “[...] a história baseada
exclusivamente em fontes não documentais, como por exemplo, a história de uma
comunidade africana, pode ser uma história mais imprecisa e menos satisfatória do que
a extraída de documentos, mas de todo modo é uma história” (GOFF, 2006, p. 7-16).
Esse posicionamento, embora entenda que a história oral é uma forma de
compreender processos coletivos e individuais, ainda vê tal modalidade como inferior à
modalidade da escrita. No outro extremo, estudiosos consideram que, a menos que haja
documentos, não pode haver uma história adequada.
Tratando a História da África como inexistente, esse tipo de afirmação
desconsidera por completo qualquer conhecimento histórico da humanidade em todos
os tempos assim como fez Hugh Trevor Roper em 1965 ao declarar que “[...] a África
não possuía história, apenas evoluções sem sentido de tribos bárbaras (cit, ROPER,
1979, GOFF, 2003, p. 314).
76
Atualmente, já não é possível entender as civilizações por meio da escrita de
forma tão linear e concreta como fizeram muitos historiadores. Com as novas pesquisas
podemos permear dinâmicas diferentes das apresentadas até então. O continente
africano é, por excelência, um continente vivo e cheio de nuanças impossíveis de serem
calculadas ou medidas com precisão e a oralidade dá tempero especial a essas
características e nos intriga até o momento pela capacidade de controlar suas memórias,
criando e recriando ambientes míticos e temporais, confundindo as mentes daqueles
que, porventura, tentaram de alguma forma aprisioná-las e com isso seus corpos.
Sua memória foi, sem dúvida, o fio condutor da manutenção de uma identidade
que os fez permanecer fiéis às suas origens sem esquecer, porém, que adaptações e
posicionamentos deveriam e poderiam ser modificados para manter certa integridade do
grupo. Dependia exclusivamente do momento e das circunstâncias certas para que
ocorram. Pois, embora
[...] a sobrevivência étnica funda-se na rotina, o diálogo que se estabelece
suscita o equilíbrio entre rotina e progresso, simbolizando a rotina o capital
necessário à sobrevivência do grupo, o progresso, a intervenção das inovações
individuais para uma sobrevivência melhorada. A memória é um elemento
essencial do que se costuma chamar identidade, individual ou coletiva, cuja
busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de
hoje, na febre e na angústia (GOFF, 2006, p. 469).
Lembramos com isso que a memória coletiva além de uma conquista é também
um objeto de poder e que são sociedades como os povos africanos cuja memória social,
baseada na oralidade, permite compreender a luta pela dominação da recordação e da
tradição através da manifestação da memória. Precisam fazer esforço dobrado para
estabelecer todas as regras de conduta e permanência de uma história, fazendo com que
todos entendam o valor da tradição. E precisam de milênios para transmitir aos seus
descendentes sua visão de mundo.
77
E por milênios as sociedades primitivas e modernas da África, mantiveram tal
movimento que não foi interrompido nem mesmo pela transferência em massa de
africanos para continentes distantes por vontade própria ou por imposição. É a mesma
situação se dissermos que os judeus deixaram de ser judeus por não terem um território
em certos momentos históricos.
Desde a antiguidade se julga o historiador pela medida da verdade. Tendo-a ou
não Heródoto passou muito tempo depois de sua morte como “mentiroso”, pois a base
de sua obra foi, sobretudo, a oralidade.
A memória, como propriedade de conservar informações, remete-nos a um
conjunto de funções psíquicas, graças às quais o homem pode atualizar impressões
passadas. Pierre Janet, citado por Jacques Le Goff “[...] considera que o ato mnemônico
fundamental é o comportamento narrativo, que se caracteriza antes de mais nada pela
sua função social” (GOFF, 2006, p. 414).
Portanto, como disse Adetutu em seu trajeto no Navio Negreiro para o Brasil
“[...] Afinal não tinham lhe tirado tudo: ela tinha suas memórias, sabia quem era, de
onde vinha” (PRANDI, 2007, p. 11). Só isso lhe bastava.
2.1 Tradição oral e manutenção da cultura
Nosso objetivo é discutir a história oral africana, entender como se desenvolve e
como passa a fazer parte intrínseca do homem africano de forma geral nos
78
encaminhando a compreender os laços atemporais que ela permite e que, ao mesmo
tempo, une os homens em torno do bem comunitário. A aldeia é o local de
manifestações místicas e físicas, tornando-a um aglomerado de emoções e organizações
que respeitam o ritmo da natureza e dos deuses.
A Historiografia sobre o tema não é vasta nem conhecida. E as que chegam a
conhecimento público são pouco discutidas pelos historiadores brasileiros. Porém, nas
últimas três décadas, algumas literaturas, de cujos autores africanos de nascimento
contam sua trajetória de vida e a de seus antepassados, foram editadas. O problema é
que essa historiografia refere-se a um momento específico da história que atinge
somente meados do século XIX, por causa do tempo vivido por esses personagens. Mas
como entendemos que as tradições são passadas de geração para geração, as
características apresentadas referem-se a um tempo muito anterior ao vivido.
Esse é o caso de Amadou Hampâté Bâ (2003) que em um de seus livros
intitulado Amkoullel, o menino fula remete-se a fins do século XIX e perpassa quase
todo o século XX contando suas memórias. Embora trate de uma região específica da
savana africana, que se estende de leste a oeste do Saara até as terras do Mali, e de
tribos específicas – fula-tucolor e bambara – é possível reconhecer características
comuns aos povos de forma geral, principalmente quanto à religião e educação.
A obra explica alguns elementos necessários à compreensão do texto e também à
compreensão de seu mundo. O primeiro deles é o fato de que a memória lhes permite
reconstruir tantas coisas com minúcias de detalhes. Ele explica que “[...] a memória das
pessoas de minha geração, sobretudo a dos povos de tradição oral, que não podiam
apoiar-se na escrita, é de uma fidelidade e de uma precisão prodigiosas” (BÂ, 2003, p.
13)
79
Sua explicação nos permite pensar que, em uma África de tempos atrás, quando
a escrita não fazia parte do mundo intelectual de seus habitantes, a tradição oral era
predominante em quase todo o continente.
Em tempos atrás, quase toda parte do mundo conhecido era organizado pela
tradição oral, lembrando que a população menos favorecida demoraria ainda muitos
séculos para obter aceso à escrita. De acordo com a evolução das técnicas em vários
setores da vida humana, a população mais abastada tinha acesso mais rápido às
formalidades da educação, enquanto os menos favorecidos ficavam à margem do
processo de instrução.
A observação do autor revela que existe um método e uma forma específica que
encaminha a formação das crianças em busca do domínio da tradição oral.
Desde a infância, éramos treinados a observar, olhar e escutar com tanta
atenção, que todo conhecimento se inscrevia em nossa memória como em cera
virgem. Tudo lá estava nos melhores detalhes: o cenário, as palavras, os
personagens e até suas roupas. Quando descrevo o traje do primeiro
comandante de circunscrição francês que vi de perto em minha infância, por
exemplo, não preciso me „lembrar‟, eu vejo em uma espécie de tela de cinema
e basta contar o que vejo. Para descrever uma cena só preciso revivê-la. E se
uma história me foi contada por alguém, minha memória não registrou somente
seu conteúdo, mas toda a cena – a atitude do narrador, sua roupa, seus gestos,
sua mímica, e os ruídos do ambiente, como os sons da guitarra que o griot8
Diêli Maadi tocava enquanto Wangrin me contava sua vida, e que ainda escuto
agora [...] (BÂ, 2003, p. 13)
Segundo Emílio Bonvini, “[...] em contexto de oralidade, é a troca direta da
palavra que permite a transferência da experiência no meio do grupo, por aí, a sua vida e
sua sobrevivência” (BONVINI, 1991, p. 35) são garantidas. Portanto, a tradição oral
tem por intenção básica o intercâmbio comunitário, que os leva a compartilhar como
grupo experiências comuns.
8
Grifo do autor para esclarecer o termo Griot: corporação profissional compreendendo músicos, cantores
e também sábios genealogistas itinerantes ou ligados a algumas famílias cuja história cantavam e
celebravam.
80
Essa dimensão da realidade provoca nos aldeões das pequenas tribos ou nos
moradores de cidades importantes e de grandes impérios o sentimento de pertencer aos
acontecimentos como se fossem vivos e contínuos por milênios de história, criando
neles o sentimento de pertença.
Isso quer dizer que, por mais tempo que passe, os acontecimentos se mostram
vivos por muitas gerações e esse sentimento os transforma parte integrante deles, de sua
formação sem nunca ter estado ou participado deles in locu. Daí desencadearem
inclusive muitas guerras, ou alianças centenárias entre povos que tiveram antepassados
comuns, separações irreparáveis de familiares de uma linhagem real e toda a sorte de
acontecimentos que o cotidiano pode trazer.
Essa noção de tempo, muito diferente das medidas ocidentais cronologicamente
bem datadas e organizadas segundo acontecimentos importantes, não se preocupa,
portanto, com datas precisas e considera como acontecimentos importantes a época de
colheita, por exemplo, nascimentos, uniões de seus contemporâneos e de antepassados,
inícios de ciclos de guerras ou de paz etc. Amadou Hampâté Bâ ressalta essa afirmação
dizendo que
como a cronologia não é uma grande preocupação dos narradores africanos,
quer tratem de temas tradicionais ou familiares, nem sempre pude fornecer
datas precisas. Há sempre uma margem de diferença de uma a dois anos para
os acontecimentos, salvo quando fatores externos conhecidos me permitiam
situá-los. Nas narrativas africanas, em que o passado é revivido como uma
experiência atual de forma quase atemporal, às vezes surgem certo caos que
incomoda os espíritos ocidentais. Mas nós nos encaixamos perfeitamente nele.
Sentimo-nos à vontade como peixes num mar onde as moléculas de água se
misturam para formar um todo vivo (BÂ, 2003, p. 14).
A memória se aliou à tradição oral para fornecer subsídios que ajudassem na
sobrevivência como indivíduos e como grupo de populações africanas inteiras e por
muitas gerações.
81
Um estudo de Claudete de Sousa Nogueira Boca de Mestre, ouvido de Aprendiz:
transmissão de saberes envolvendo os velhos mestres batuqueiros, publicado em 2009
que analisa a manutenção da umbigada - dança trazida pelos escravos de origem banto no Estado de São Paulo, ressalta a idéia de que a memória é aliada de uma população
que demorou a ter acesso à educação formal. Não só mantiveram-na durante gerações
como seus instrumentos permaneceram os mesmos utilizados no passado.
As falas e as lembranças evidenciam que o batuque de umbigada permaneceu
“vivo” graças à influência que recebeu dos antepassados diretos: pais, tios e
avós, tornando-se, em alguns momentos, uma prática cultural portadora de
anseios da comunidade. Neste contexto, entende-se a memória familiar como
patrimônio simbólico dessa cultura sendo que cada membro representa um elo
entre o presente e o passado (SOUZA, 2009, p. 290).
Nesse processo de transmissão de saberes, a família sabe da importância da
tradição oral, pois é ela que garante a manutenção da estrutura social do grupo. A
memória dos mais velhos é a mediadora entre o presente e o passado, tendo o
importante papel de intermediar a cultura (BOSI, 2004). Por meio da tradição oral os
mestres do batuque de umbigada conseguiram manter sua tradição praticada entre os
escravos nas lavouras de açúcar e de café.
As tradições orais na África representam espaços simbólicos de preservação de
dado históricos e também da interpretação destes dados. As fontes orais são “[...]
fundamentais no processo de transmissão de conhecimentos e compreensão de valores e
normas, constituindo-se em patrimônio cultural” (NOGUEIRA, 2009, p.292). Nessas
sociedades cuja tradição oral e a memória são organizadas e retidas pelo grupo, os mais
velhos são responsáveis por transmiti-las. Esse processo está presente, de uma, forma
geral, no universo das manifestações culturais negras, como a capoeira, samba, jongo e
na religiosidade. Para Brandão, “[...] ali os mais velhos fazem e ensinam e os mais
moços observam, repetem, aprendem” (BRANDÃO, 1989, p. 23), tornando-se os
82
detentores do conhecimento de normas e regras e são incumbidos de os reproduzirem
para o grupo recorrendo comumente à ancestralidade.
Em outro estudo de Marcus Vinícius Fonseca, sobre a educação dos negros no
século XIX, no processo de abolição da escravidão no Brasil, trabalha a educação
formal, ou seja, aquela institucionalizada, e como a inserção de negros ocorreu. Embora
o texto traga análises eminentemente sobre o século XIX, autores como Justina
Magalhães que ressalta que
Os processos anteriores à escola assentam essencialmente numa transmissão
directa (sic), através de uma maior comunalidade e da participação da geração
adulta e das gerações mais jovens na realização das tarefas comuns. Uma
transmissão por impregnação. Mas que pela aprendizagem, é partilhando
gradualmente tarefas e responsabilidade com os adultos que as gerações novas
se iniciam aos diversos papéis e desempenhos que a vida proporciona. Estes
processos educativos decorrem em espaços familiares, nas oficinas e, locais de
trabalho, nas praças e lugares públicos, nas festas, nos jogos, nos actos (sic) de
culto e sob uma acção (sic) pedagógica, ora mais, ora menos organizada e
formal... São instâncias educativas cuja existência está marcada pelo signo
privado [...] (1978 apud FONSECA, MAGALHÃES, 1996, p. 10).
Vejamos agora como essa postura se organizou no Brasil em busca da
permanência de suas tradições.
2.2 Estratégias da educação africana no Brasil: as línguas faladas e o Dicionário
de Costa Peixoto
Após a discussão sobre educação africana e suas práticas, é necessário
compreender como sua atuação no âmbito cotidiano transformou os laços de
83
convivência entre senhores e escravos, entre livres e libertos, entre homens e mulheres
negros em Minas Gerais do Século XVIII, especificamente na cidade de Vila Rica
(Ouro Preto).
Para tanto, é proveitoso levantarmos uma discussão que está longe de terminar.
A questão das línguas faladas pelos africanos e sua utilização em terras brasileiras é um
assunto que desde o final do século XIX vem sendo timidamente tratado por alguns
estudiosos. Isso porque, entre muitas discussões, existem três vertentes que enxergam
diferentemente a questão. A primeira é a idéia de que essas línguas influenciaram o falar
da língua portuguesa incorporando palavras de seu vocabulário. Renata Mendonça
(1933) e Jaques Raimundo (1933) defendem essa postura.
A segunda é que houve uma crioulização, ou seja, a criação de uma língua mista
do africano com o português. Silva Neto (1950), Gladstone Melo (1946) e Silvio Elia
(1940) são adeptos dessa corrente.
E a terceira vertente discute que os contatos da língua portuguesa com as línguas
africanas durante cinco séculos não resultaram em uma subtração do português ou das
línguas africanas. O que ocorreu foi uma agregação de ambas (BONVINI, 2009). Nessa
visão houve uma língua geral falada pelos africanos no intuito de melhor comunicação
entre eles e os que recém chegavam, e concomitantemente, falavam o português quando
era necessária a comunicação com senhores ou brancos que desconheciam sua língua.
Bonvini lembra que esse processo não deve causar estranheza, pois as duas
formas linguísticas estavam desenraizadas de seu lugar de origem, de sua cultura, de sua
fauna de sua flora, de seu cotidiano, de sua política, de sua economia entre outros
aspectos (BONVINI, 2009, p. 33). Portanto sofrem uma degradação no sentido das
84
palavras, porque não refletiam sua realidade ao passo que o contato com muitas línguas
diferentes faz, com o tempo, surgirem novas formas de expressão verbal.
Em seu estudo sobre Línguas africanas e português falado no Brasil
(BONVINI, 2009) ele traça caminhos que nos levam a entender melhor historicamente
como essas inúmeras línguas foram consolidadas em solo hostil, desde o início dos
contatos comerciais entre esses territórios (Portugal-África). Quando seu encontro
continuou em terras novas no século XVI, já havia uma intensa reformulação nesses
falares (BONVINI, 2009, p. 21).
Com efeito, existem três grandes períodos de hegemonia nas línguas africanas
no Brasil, segundo o autor: a fase da língua quimbundo, no século XVII em Salvador, a
fase da língua mina, ou mina-jêje, no século XVIII em Minas Gerais, e uma terceira fase
denominada de plurilinguísmo no século XIX. Cabe-nos, no entanto, uma análise das
duas primeiras fases que nos indica que ocorre maciçamente uma deflagração da língua
dos cativos como base inicial de comunicação entre todos os personagens em questão.
A importância da primeira fase está no fato de que houve uma sistematização do
linguajar quimbundo indicando “[...] o emprego corrente e habitual no século XVII, no
Brasil, de uma língua africana [...] falado por escravos originários de Angola, numa área
geograficamente extensa, não limitada apenas ao Estado da Bahia.” (BONVINI, 2009,
p. 39). Esse documento é intitulado A Arte da língua Angola de Pedro Dias, sacerdote
jesuíta, de 1697 com 48 páginas. Em 1947 o Padre Serafim Leite citou, pela primeira
vez, esse documento em sua obra Padre Pedro Dias, autor da A Arte da língua de
Angola. Nesse período, a “língua angola” era a língua falada em Luanda (BONVINI,
2009, p. 36).
85
Pedro Dias nasceu em 1622 na Vila de Gouveia e, menino, veio para o Brasil
incorporando-se à Companhia de Jesus, no Rio de Janeiro, com 19 anos de idade, a 13
de julho de 1641. Cursou Direito Civil e Canônico e Medicina e, segundo Padre Leite,
cultivava um profundo amor pelos negros, o que o levou a aprender a língua angola.
Não se sabe quando exatamente ele aprendeu a língua, mas entende-se que em 1663 já a
sabia (LEITE, 1947 apud BONVINI, 2009, p. 34). Quando faleceu na Bahia, a 25 de
janeiro de 1700, os negros foram em multidão à Igreja do Colégio juntando um
montante considerável de pessoas (BONVINI, 2009, p. 34).
Pedro Dias ressaltou a necessidade de redigir tal documento por entender que
melhoraria a comunicação entre os interessados. Ao terminá-lo submeteu-o aos ditames
legais e a enviou para aprovação. Quem o revisou, segundo regras gramaticais
específicas da língua, foi Padre Miguel Cardoso, natural de Angola, entendedor da
língua, e enviou tal documento com ressalvas de aprovação imediata, “[...], pois assim
acabará a dificuldade de aprender esta língua” (BONVINI, 2009, p. 34).
O testemunho de Padre Leite revela que a primeira gramática foi redigida no
Brasil e que a língua poderia ter tido a mesma importância em outras partes do
território. Das análises de Leite chega-se à conclusão de que ele havia aprendido o falar
quimbundo em Salvador. Mas em sua biografia, podemos ver que, antes de ir para
Bahia, se formou em Direito canônico e em Medicina.
Nos anos de 1640-41, muitas revoltas ocorreram em defesa da população
indígena que tinha recebido do Papa Urbano VIII sua liberdade através de um decreto.
Essas revoltas atingiram o Rio de Janeiro onde padres eram acusados de ainda
manterem cativos os indígenas. Em resposta afirmaram em documento escrito que “O
populacho criticou acerbamente os jesuítas por possuírem mais de seiscentos escravos
86
só em um colégio do Rio, mas os padres procuraram justificar-se alegando que os
escravos eram quase todos negros” (1973 apud BOXER, BONVINI, 2009, p. 35).
Foi nesse contexto perturbador que o Padre Dias se educou. Não seria
surpreendente que esses escravos já introduzidos no Rio de Janeiro falassem o
quimbundo e que o padre, que segundo Leite, já exercia sua medicina para o cuidado
com os negros, tivesse aprendido tão logo o necessário.
O que nos chama atenção nessa obra é o fato de que ele a escreveu segundo as
regras gramaticais da língua, deixando de utilizar o modelo latino dos “casos” que ele
considerava inadequado para o tratamento do que hoje é chamado de “classes
nominais”. Sem intencionar uma análise gramatical, o que caberia à especialistas em
linguística africana, o que se pretende é apontar que, em século de colonização, pessoas
preocupadas com a comunicação – seja para qual motivo for – não mediram esforços
pra concluir sua tarefa. Mais ainda, essas pessoas sabiam da importância do domínio das
linguagens do outro, considerando que este – em maioria numérica – tinha ou poderia
causar sérios danos à ordem do sistema escravista. Então, a melhor saída para evitar
conflitos deflagrados, desde o início, foi a comunicação. Lembrando que em nenhum
estudo verificamos que essas atitudes foram de alguma forma incentivadas ou
demandadas pelo Estado ou mesmo pela Igreja, no Brasil.
A análise de Bonvini é extremamente importante quando vemos que a língua
falada aqui no século XVII é bem próxima da que é falada hoje em Angola. Em sua
opinião, não houve de forma alguma o que estudiosos chamam de pidgn9. Não se trata
de maneira alguma de língua mista, pois a “[...] data de sua redação precede somente
9
Incorporação de uma língua à outra. No nosso caso, a língua portuguesa teria incorporado palavras das
línguas africanas.
87
um ano da data de destruição do Quilombo dos Palmares (1695).” (BOXER, 1973 apud
BONVINI, 2009, p. 38)
Ou seja, é possível afirmar que a hipótese se torna verossímil, à medida que
estudiosos confirmam que nesse quilombo se falava a língua banto. Para Bonvini, o
quimbundo poderia ser essa língua e o registro dela com “concordância de gêneros”, de
“passiva”, de “dupla negação”, revela que a língua africana possui uma lógica jamais
imaginada pelos habitantes do Brasil do século VII e, como ele afirma no século XIX,
“[...] este espanto recai sobre o próprio português, ao menos na sua variante dita
popular” (BONVINI, 2009, p. 39).
Portanto, temos no século XVII um grande testemunho de que a grande maioria
da população – ao menos da cidade de Salvador e hipoteticamente em outras regiões do
Brasil – praticava uma língua africana pelo menos de uma forma geral. Isso quer dizer
que em várias ocasiões a comunicação era feita exclusivamente nessa língua, pois a
renovação do tráfico trazia cada vez mais habitantes da região de Angola. Não houve
misturas de línguas, houve uma adequação de “falares”: quando necessário se falava a
língua geral (quimbundo) e quando necessário se falava o português.
Antes de analisar o século XVIII, é importante registrar que, bem ou mal, os
primeiros a entender que a dinâmica colonizadora, principalmente no que diz respeito à
ideologia que se pretendia impor, precisava ser realizada de outra forma além da força,
foram os jesuítas. Fizeram uma incrível adaptação, primeiramente com os indígenas –
aprendendo suas línguas – e tão logo fizeram o mesmo com as línguas africanas. Essa
compreensão possibilitou sua convivência, sua sobrevivência e a manutenção de
presença no cotidiano de populações que lhes eram completamente alheias. Cada vez
mais iam ganhando espaço nos interiores da vida dessas populações. Pode ser esse um
88
dos motivos que causaram sua expulsão definitiva na administração do Marquês de
Pombal no século XVIII, além da alegação econômica.
A primeira versão do Dicionário de Costa Peixoto é de 1731 trinta e quatro anos
depois da publicação da obra e Padre Pedro Dias. Dez anos depois, em 1741, ele
apresenta uma segunda versão com o título Obra nova de Lingoa g.ª de mina, traduzida,
ao nosso Igdioma por Antonio da Costa Peixoto, Nacional do Rn.º de Portugal, da
Provincia de Entre Douro e Minho, co concelho de Filgr.ª. Essa obra é um manual
destinado aos policiais, ao poder público e aos senhores de escravos na intenção de
evitar problemas maiores com seus escravos, sem intenções literárias e compreensão
profunda da gramática.
O surgimento do Dicionário de Costa Peixoto indica uma forte influência
africana, a ponto de apenas sua presença criar a necessidade de uma adaptação do
senhorio e dos brancos em geral à forma de falar e à forma de agir do africano e de seus
descendentes. Com uma população de 100.000 escravos em média por ano (CASTRO,
2002), trazidos da região do Benim, situada entre Gana e Nigéria e renovados durante
um período de 40 a 50 anos, Costa Peixoto fez o mesmo que Padre Dias em momentos
históricos diferentes, mas pela mesma razão: a comunicação imediata.
É possível pensar que novamente a dinâmica escravista necessitava de
intervenções mais específicas no cenário urbano da extração de ouro. O fator de alta
aglomeração nos mostra que as relações eram muito mais intensas do que apenas as
relações amorosas que a historiografia antiga nos mostra.
Embora estudiosos como Correia Lopes entendam que o dicionário é resultado
de trabalho rudimentar e que mostra uma linguagem empobrecida dos negros em
questão (LOPES, 1945), é possível através dos diálogos e do vocabulário retratados por
89
ele, na década de 1730, entender que nesse momento ocorreu um processo de “[...]
coincidência das línguas africanas com o português” (LOPES,1945, p. 34). A língua
mina-jêje corresponderia a um falar veicular, mas já numa fase de pidginização, ou seja,
numa fase em que a língua submetia-se ao tríplice fenômeno de “adaptação”,
“simplificação” e de “redução”. Isso significa que a língua mina-jêje é uma língua
forjada no Brasil.
Para alguns, esse processo pode ser considerado a perda das características das
línguas africanas em detrimento do português metropolitano. Por outro lado, se
fizéssemos uma comparação do português falado na metrópole no mesmo período
(século XVIII), certamente veríamos que já não era o mesmo. Essa aparente perda, nos
indica que as várias estruturas linguísticas e, portanto, culturais, travaram sempre uma
luta constante pela hegemonia.
Para os africanos o grande ganho foi conseguir a todo o momento ter influência
fortíssima na formação da cultura local e essas transformações linguísticas, culturais,
espirituais tornaram-se peça fundamental – assim como os indígenas – na construção do
Brasil moderno e contemporâneo. Durante o século XVII, conseguiram manter sua
língua como veicular e transitavam para o português quando necessário.
No século XVIII, as condições eram diferentes e a população advinda de outros
lugares da África fez com que as línguas tivessem de se adaptar umas às outras como já
visto sem deixar de existirem os dialetos africanos. São aproximadamente trezentos
anos de existência de línguas africanas no Brasil.
Por isso podemos dizer que poucos registros foram feitos dessas línguas, ou seja,
durante muito tempo o único meio de transmissão dessas realidades de geração à
geração foi a oralidade. A organização da estrutura linguística dos dialetos africanos não
90
incide sobre a escrita. A eles não era permitido acesso às letras nessas duas grandes
fases. Como foi possível às várias gerações desses séculos manterem, conservarem,
transformarem, adequarem sua língua e sua cultura quando necessário?
A hipótese provável para essa questão é a educação que detinham em suas terras
que proporcionou a permanência de sua identidade coletiva e individual para surgir a
cultura afro-brasileira. A tradição oral foi e ainda é a base educacional para muitas
populações no Brasil.
Bonvini compartilha da idéia de que
[..] não há dúvida que existiu e existe ainda hoje no Brasil uma tradição oral
bastante viva, de origens francamente africanas e que constitui uma verdadeira
herança de conhecimento de todas as ordens, transmitidos de boca em boca
através dos séculos, apesar de um contexto particularmente hostil e de um
desenraizamento brutal devidos à escravidão (BONVINI, 2001, p. 40).
A tradição oral no Brasil é realmente muito viva, lembrando que ainda em
interiores distantes, há uma população analfabeta de ensino formal que se mantém
convivendo e sobrevivendo sem dificuldades de comunicação alguma. É muito comum
em comunidades distantes dos grandes centros, sem energia elétrica e sem escolas que,
à noite, na hora do jantar, fiquem sentadas em torno de um espaço comum, ensinando o
certo e o errado às crianças que passaram o dia brincando nos perigos da natureza. As
crianças ouvem e decidem no dia seguinte se o ensinamento da noite anterior tem
mesmo um propósito na prática diária de suas aventuras.
Podemos nos apegar a exemplos mais próximos para entender esse movimento
de ensino-aprendizagem das famílias. Nossos avós – analfabetos ou semi-analfabetos –
estão cheios de conhecimento acerca de tudo o que possamos imaginar. Eles dissertam
sobre a natureza humana, sobre a política, sobre a economia, sobre a cultura com
propriedade de doutores.
91
Sabemos que todo o ensinamento que lhes foi adquirido e processado ao longo
de anos de experiência, foi lhes passado, muito provavelmente, por seus pais e avós,
reavivando as estratégias da tradição oral praticada por nossos antepassados. O que
indica que a tradição oral só pode ser praticada em ambientes com certa liberdade de
trânsito dos corpos, e que estes possam ir e vir com facilidade transmitindo seus
ensinamentos.
Em um ambiente hostil e cheio de impedimentos dificilmente as pessoas
convivem com liberdade, se enfrentam com facilidade, se organizam, sobrevivem ou
mesmo se encontram. Vila Rica definitivamente não foi um desses lugares. Trânsito
livre e acesso a todos os lugares eram de praxe para a população habitante dos morros
ao redor da cidade ou das ladeiras do centro.
Em obra muito interessante e importante, Antonio Olinto descreve em três
volumes (Trilogia Alma da África) a trajetória de uma família de origem africana que
teve descendência brasileira por conta da permanência no Brasil, e que, ao fim da
escravidão, optou por retornar às terras de origem. Em todos os livros a predominância
da figura feminina fica latente, lembrando que os africanos têm por zelo e dedicação o
culto à figura feminina, simbolizado pela presença materna.
No primeiro livro intitulado A Casa da Água (2007), relata o trajeto oposto feito
pela família constituída pela avó (quem primeiro foi trazida), pela filha (nascida no
Brasil), pela neta (Mariana ainda menina, mas personagem principal da trilogia) e pelo
neto (irmão mais novo de Mariana). Nessa trajetória inversa, é possível notar que as
características adquiridas no Brasil durante sua estadia não se perderam ao retornar ao
continente africano, pelo contrário, redutos brasileiros foram sendo estabelecidos e
defendidos. E o que os uniu foi nada mais nada menos do que a linguagem. O falar
92
português foi o elemento fundamental que os caracterizou como brasileiros e, portanto,
estrangeiros, fazendo com que logo se reagrupassem como questão de sobrevivência.
Embora Mariana tenha saído do Brasil com escolaridade tradicional ministrada
por um convento de Minas Gerais e outro de Salvador – outro fator que deve ser
estudado em outro trabalho, pois a historiografia tradicional não costuma levantar, é o
fato de que alunas negras tenham sido instruídas logo depois da libertação oficial dos
escravos – boa parte dos ex-cativos e seus familiares não sabiam ler nem escrever em
português –, fazendo de Mariana uma ponte entre Brasil e África depois da escravidão.
Os redutos brasileiros os faziam sentir-se dentro de sua antiga casa. Os
problemas referentes ao grupo eram resolvidos em reuniões comunitárias e as
preocupações variavam segundo a ordem de acontecimentos. Mas uma chamou atenção:
o fato de os mais jovens não falarem mais o português. Isso assustou a geração mais
idosa, pois essa característica os fazia sentirem-se parte de um grupo e que seu
desaparecimento culminaria com o desaparecimento de si mesmos (OLINTO, 2007).
Nessa obra, percebemos como é importante a manutenção da cultura para um
grupo que, recém chegado a uma localidade, necessitou de agrupar-se mesmo que esse
grupo, ou parte dele, conhecesse bem o novo território, o que não correu com Brasil,
onde ninguém tinha conhecimento do que encontraria. Nas novas terras, as
aglomerações também ocorreram pelo mesmo motivo: sobrevivência.
Outra passagem interessante nos mostra como a tradição oral tem força. É que
por volta da década de 1930, o irmão mais novo de Mariana resolve voltar ao Brasil, à
cidade de Salvador, para rever a terra de onde saíra pequeno e também realizar
comércio de tecidos – a família de Mariana tinha ficado rica na África – e, por carta,
93
conta à irmã que com frequência ouvia os comerciantes do mercado falarem o dialeto
yorubá como se estivessem na África. (OLINTO, 2007)
Não precisamos ir mais longe. Leda Maria Martins em sua obra Afrografias da
Memória, onde trabalha a tradição da Congada (de origem banto) na Irmandade de
Nossa Senhora do Rosário do Jatobá desde 1993-94, testemunha que “[...] na Irmandade
de N. S. do Rosário do Jatobá, algumas pessoas, dentre elas João Lopes, José Expedito
da Luz Ferreira e Matias da Mata, falam dialetos de línguas nativas africanas,
identificados por João Lopes como da linhagem lingüística do Queto e do Benguela”
(MARTINS, 1997, p. 21)
Se analisarmos com cuidado os escritos de Costa Peixoto, que deve ter chegado
à antiga Vila Rica nas primeiras décadas do século XVIII, sonhando, como muitos, com
o enriquecimento rápido e fácil nos garimpos, veremos que era quase que impossível
não prestar atenção na forte presença das línguas africanas, principalmente no período
em que a renovação demográfica da Capitania esta se tornou constante.
Seu dicionário pretendeu tornar a linguagem mina-jeje acessível ao
entendimento das autoridades e senhores coloniais, o que ele mesmo esclarece no
prólogo ao leitor, com data de 15 de julho de 1741:
Pois he certo e afirmo, que se todos os senhores de escravos, e hinda os que
não tem, souvecem esta lingoage não sucederião tantos insultos, ruhinas,
estragos, roubos, mortes e, finalmente casos atrozes, como mtos (sic).
Mizeraveis tem experimentado: de que me parece algua sorte se poderião evitar
alguns destes desconsertos, se ouvece maior curiozid. E menos prghisa, nos
moradores, e abitantes (sic) destes payses (CASTRO, 2002).
Aprendeu “o falar mina” da escravaria local, com “curiosidade e desvelo”, como
ele próprio confessa, custando-lhe dez anos para escrever o segundo volume, em que
retratou usos e costumes da vida cotidiana, conflitos entre senhores e escravos,
94
atividades profissionais e comerciais, incluindo a prostituição da mulher negra na cidade
de Ouro Preto.
Intencionalmente ou não, o que Peixoto registrou acaba por ser um documento
importante para análises e descobertas do cotidiano da população de Ouro Preto do
século XVIII e mostra que toda carga educacional e, portanto, cultural do negro
africano, não só foi amplamente difundida em todos os meios sociais e econômicos
como ditou regras e ritmo a toda população.
A “linguagem é produto da sociedade” e de alguma forma representa a
consciência coletiva de grupos inteiros ou de indivíduos, como afirma Le Goff (2006).
Segundo Angelo Osvaldo de Araújo Santos, Darcy Ribeiro lembra que em Minas Gerais
os negros fizeram o branco falar português (CASTRO, 2002, p. 12). Os bandeirantes
paulistas, descendentes de reinóis, falavam a língua tupi. Mas quando se viram cercados
de africanos a saída foi utilizar a língua materna para melhor comunicação em um
ambiente extremamente misto nas linguagens. Em contrapartida, os negros continuaram
a cultivar a língua de origem pelas mais variadas razões, o que motivou o registro de
Costa Peixoto (CASTRO, 2002, p. 12).
Todo aparelho repressor tinha por premissa conhecer os dialetos existentes,
buscando tentativas de controle que fossem eficazes no adestramento desses africanos e
seus descendentes. O que ocorre, porém, é que as relações nem sempre são regidas pela
força. Elas se apresentam também como fruto de camaradagem, de compadrio, de
trocas, de cumplicidade, de persuasão.
Ainda segundo Angelo Santos, a presença do negro africano é muito importante
para a constituição da cultura mineira, pois:
95
Os negros tiveram papel decisivo na Vila Rica de Ouro Preto. Foram
protagonistas do desenvolvimento da cidade, do enriquecimento de suas elites
e da sofisticação da vida artística e social. Assumiram postos de relevo,
esforçaram-se para galgar patamares, em busca de afirmação e reconhecimento,
sobretudo como artistas. A tradição à volta de Chico rei (adquiriu a própria
liberdade e a da família, tornando-se prospero senhor de minas) traduz o
fenômeno da escalada social dos africanos, que se alforriavam e conquistavam
direito à fortuna crescente ou a um relativo prestígio numa sociedade
rigidamente compartimentada e preconceituosa. Falando português, praticavam
a língua ancestral certamente como exercício de sobrevivência no quadro
inapelavelmente adverso da escravidão (2002 apud SANTOS, CASTRO, 2002,
p. 13).
Esse trecho demonstra bem como a população africana permeou muitos aspectos
da construção da cidade de Ouro Preto como um todo. O que nos indica que a luta
citada pelo pesquisador pela sobrevivência, não foi somente pela necessidade de se
poupar vidas no processo de escravidão, mas também revelar que a permanência deles
como seres completos aptos a se integrarem e a se moldarem conforme suas
necessidades em uma sociedade inteiramente nova, fez total diferença na luta contra as
mazelas do sistema escravista.
O universo cultural que se criou a partir do encontro das mais variadas culturas
possibilitou um movimento de trocas intensas e dinâmicas antes não imaginadas.
Segundo Eduardo França Paiva um estudioso da cultura mineira:
No período colonial, brancos, negros, indígenas e mestiços, subdivididos em
grupos menos abrangentes, que demarcavam diferenças internas, como por
exemplo, homens e mulheres, velhos e jovens, ricos e pobres, construíram um
mundo marcado pela pluralidade e pela mobilidade. Tradições reforçadas e
repetidas, mas também recriadas e adaptadas na Colônia, através dos contatos
cotidianos entre esses grupos, suas diversas origens e seus diferentes
posicionamentos sociais (PAIVA, 2003, p. 32).
Por essas características peculiares da cidade de Vila Rica, Costa Peixoto se
embrenhou nesses mundos para poder desvendar uma pequena parte dos meios de
comunicação que eram imperantes naquele momento. Como ele próprio explicou,
conhecer outros mundos era uma questão de sobrevivência, o que demonstra uma
96
preocupação – que apesar de ser exposta por um indivíduo, não nos admira que fosse a
preocupação dos demais – de sobrevivência daqueles que, teoricamente, detinham o
poder.
Essa postura tomada pelos colonos de origem portuguesa diante de uma
população em sua grande maioria africana e mestiça indica que as teorias de
superioridade – indicadas pelo fato de possuir outro ser humano - caíam por terra até
mesmo perante a lei. No submundo ou nas necessidades do dia-a-dia a força foi o
último recurso utilizado pelos senhores de escravos.
O Estudo de Marcos Magalhães Aguiar, Negras Minas Gerais: uma História da
diáspora africana no Brasil Colonial, de 1999, coletou uma infinidade de processos
criminais na intenção de avaliar a visão que a população negra e mestiça tinha da
construção de sua história, como agentes de sua própria trajetória.
O resultado é impressionante quando nos deparamos com casos em que negros
se organizavam, ora com brancos homens e mulheres, ora com escravos e libertos do
sexo masculino e feminino para alcançarem certos objetivos. A palavra chave desses
processos é aliança. Elas eram feitas das mais variadas formas e com os mais variados
tipos de acertos, feitos “por boca” ou também com contratos assinados por todas as
partes envolvidas (AGUIAR, 1999).
Escravos com renda maior do que homens livres, mulheres donas de quitandas e
vendas, além de chefes de família, homens recém libertos por conta própria, brancos
que pediam ajuda a libertos ou a escravos para resolverem seus problemas de posse de
terra, homens e mulheres que praticavam momentos de convivência longe ou perto dos
brancos, escravos que resolviam contendas sem que ao menos os senhores ficassem
sabendo, demonstrando a “autonomia da ação escrava” (AGUIAR, 1999, p. 118).
97
Escravos que viviam em senzalas sem chaves (AGUIAR, 1999, p. 116), donos e
escravos que resolviam seus problemas extrajudicialmente para evitar conflitos maiores,
crianças e jovens que furtavam os quintais dos moradores desrespeitando a condição
social ou qualquer tipo de patente, prisões que libertavam com um simples acordo entre
carcereiros e brancos e escravos e libertos com alguma renda, negros armados
transitando nas ruas com liberdade e com apoio da jurisdição que não tolerava somente
crimes coletivos (AGUIAR, 1999, p. 89), e a lista não para por aí.
Esses exemplos representam uma pequena parte da diversidade de tipos de
relações, lembrando que a grande maioria pode nem ter sido escrita, ficando apenas no
campo da oralidade.
De qualquer modo, é uma demonstração de como os discursos de submissão ou
de controle total da população branca em relação à negra não refletem e nem podem ser
utilizados nas regiões das minas. Uma sociedade que permite tal mobilidade para
pessoas consideradas “estúpidas, sem história, inferiores, incapazes” por grande parte da
historiografia tradicional, não deve ser levada tão a sério.
Esse não é o caso. Os historiadores provavelmente tiveram seus motivos para
iniciar a degradação da imagem dos negros no Brasil, porém a população
contemporânea do século XVIII, definitivamente não entendia a situação da mesma
forma.
No intuito de rever posturas unilaterais do poder, o uso do dicionário de Costa
Peixoto, que traz histórias registradas por seus ouvidos é fundamental, pois registra uma
mesma dinâmica. Pessoas se entrelaçando, cruzando informações, deturpando-as,
criando-as, espalhando-as. Linguisticamente falando, duas nações foram dominantes no
98
Brasil: o povo banto, que fala uma variedade de línguas que remontam ao tronco
linguístico proto-banto de quatro milênios atrás, e os povos da África Ocidental.
A presença dos bantos foi registrada por Costa Peixoto nas áreas de mineração
como sendo “[...] gente de Angola, e aparece, com frequência, nos documentos
históricos da escravidão em Minas Gerais ao longo do século XVIII” (CASTRO, 2002,
p. 50). Charles Boxer constatou que os
[...] minas eram os mais numerosos, seguidos de perto pelos angolas e
benguelas, ficando na retaguarda a categoria dos congos, loangos,
moçambiques, além dos ameríndios ou carijós que durante alguns anos
ocuparam o terceiro lugar (BOXER, 1963 apud CASTRO, 2002, p. 70).
Não é demais lembrar que apesar dessa predominância do povo banto, o
dicionário não delimita a população pesquisada dessa forma, embora seu registro
indique a probabilidade de que se tratava de uma maioria falante do grupo adjá-fon do
antigo Daomé, denominado por ele como “língua geral da mina”, tentando identificar
um grupo de procedência trazido da Costa da Mina. Ele mesmo chama atenção para o
cuidado na denominação dos povos quando lembra que “[...] em alguns nomes aonde
houverem estas letras juntas /ch/ He necess.º tomar parecer algum negro, ou negra mina,
por.tº tem diferente pernuncia” (PEIXOTO, 1745 apud CASTRO, 2002, p. 51).
Nota-se o cuidado com que Costa Peixoto analisou e identificou, na medida do
possível, diferenças entre os povos africanos, diferentemente de alguns observadores
menos atentos de outras partes da Colônia ou de outras partes do mundo. Há em seu
dicionário, que vai de A a Z, uma infinidade de palavras que permeiam os universos da
cultura, do cotidiano, da política, da economia, da sociedade, da religião, reino animal e
vegetal. Fofocas, intrigas, curiosidade, nascimentos e mortes, contendas, conciliações,
família, tudo está contido nos registros de Costa Peixoto.
99
TABELA 1 - Exemplos de palavras na língua Mina-Jêje.
ABADÈ – MILHO
MÁHIJAJOU – VOU FURTAR
ACHÓSU – GOVERNADOR
NEBE – ATRÁS
BÀCHEHÊ – ROSTO
NOVI – IRMÃO
CHOGÓME – TENHO A BARRIGA GUI CLÓME – TU ENGANAS-ME
CHEIA
DÊ AVÒPÁ – TIRE OS SAPATOS
HAUHÃ – AZAR
EDEHUHEMA CHLÉCOM – ESTÁ EDEHUHEMA-GULAMCOM – ESTÁ
LENDO
ESCREVENDO
GAM MATIN- NÃO TENHO FORÇA
MÁHISÁCHUHE – VOU VENDER A
CASA
PLOMME – ENSINA-ME
SUNO – HOMEM
Fonte: CASTRO, Yeda Pessoa de . A Língua Mine-jeje no Brasil, 2002.
Há também no dicionário exemplos de numeração utilizados pelos negros na
soma de qualquer quantia ou nos negócios de forma geral (CASTRO, 2002, p. 90). O
mundo da mineração em Ouro Preto proporciona muito mais do que pequenos acessos
às minas para o trabalho ou aos porões e senzalas na hora do descanso. Havia intensa
movimentação, contatos diretos que favoreciam o estreitamento de ligações. Em um
diálogo reproduzido no dicionário temos a seguinte situação: canhombolas
(quilombolas) conversando com um branco capturado por eles.
- Maguhi hi hobouno
Matemos ente branco
100
- Anhutu nágume
Porque razão quereis matar
- Inhonu hutu na guhî
Por mor de uma fêmea o quero matar
- Aquhê hutu na guhi
Por amor do ouro o quero matar
- Lo aquhê name
Largue o ouro pra mim
- Guache guima name num poupou nagun/ mahihi. Miná – hinum poupouthóhu
Se não me der tudo, hei de matá-lo
- Hinum poupou magumehã
Tome tudo mais e não me mateis
- Héguhéthóhéhinhõ. Sódópó thóhé mápon
Tem muita razão. Dê cá as algibeiras pra ver.
- Dopo, hématim numréhã. Pom.
As algibeiras não tem nada. Vede.
- Fihà aquhégou. De avó pou.
(Aqui) mostre o picuá, ou borracha de ouro. Dispa a roupa.
- Nhináhi.
Eu hei de ir nu?
- Mégui me náhihi.
Não há de ir nu, não
- Jálé jálé – mágume hã.
Peço-vos que não me mates.
- Hum bihó – hehihávouvódum.
Peço-vos, pelo amor de Deus.
- Humé naguhehã.
Não matamos não.
- Mipoupou màhichomto.
101
Nós não somos todos amigos ou camaradas.
- Nhimáhinnháram nácruhã. Nhimerabouháme.
Eu não sou ruim para os escravos. Eu sou bom. Eu não sou de todo mau.
- Guidómórufidim.
Você diz isso agora.
- humdómó to pou pou me.
Eu digo o mesmo em qualquer parte
(CASTRO, 2002, p. 119)
O desenrolar da história, dificilmente chegaremos a conhecer com precisão.
Porém é provável que os negros quilombolas não tenham cometido assassinato já que
esse diálogo chegou aos saberes de Costa Peixoto. Segundo registros, esse diálogo foi
coletado em 1731. Alguns detalhes devem ser observados.
Primeiramente a data arrolada nos remete a um período onde se inicia a
decadência da extração de ouro, causando um aumento da criminalidade por toda a
cidade. Mas, mais interessante ainda é o fato de que três décadas apenas da fundação da
cidade (1698) existe uma fluência nos dialetos africanos que faz com que entre estradas
e acessos percorridos por muitos viajantes, estes tenham conhecimento suficiente para
se comunicarem pedindo misericórdia por suas vidas nesse caso.
Outros diálogos presentes no dicionário nos levam à mesma direção. A idéia é
que a população mineira foi tomada pelas línguas africanas, mostrando que as trocas,
mais do que as imposições, foram muito constantes no século XVIII na cidade de Vila
Rica, como ilustrou Antonio Olinto em seu romance A Casa da Água, ao relembrar que
as línguas não foram facilmente esquecidas no episódio da vinda do irmão de Mariana a
Salvador e que encontrou os mercantes falando yorubá na primeira metade do século
XX (OLINTO, 2007).
102
Temos diálogos de moças querendo casar-se, de cliente e proprietária, crédito e
pagamento, abordagem sexual, cenas domésticas, vida social, doença e mal-estar. A
vida fora de casa era frequentada por homens brancos e negros e por mulheres negras. A
vida fora do reduto privado não tolerava mulheres brancas e esposas, ou senhoras e
senhoritas (CASTRO, 2002, p. 159-168).
Outro assunto ainda a ser discutido é a presença feminina em muitos dos
processos históricos da América Portuguesa. Em Minas Gerais, a grande maioria de
produtos que eram vendidos e que sustentavam a economia local, muito mais do que a
mineração, era mantida e organizada pelas mulheres negras e mestiças.
Essas mulheres também foram utilizadas como vendedoras ambulantes de
comestíveis postos em tabuleiros e nas vendas, muitas delas de sua propriedade,
compradas com o lucro também obtido pela recepção de contrabandos e produto do
roubo de quilombolas e garimpeiros, aos que forneciam todo gênero de mercadorias,
inclusive armas e pólvora, além da prostituição das escravas (SOUZA, 1994).
Centro de festas e batuques ruidosos, temidos pela população e perseguidos
pelas autoridades locais, essas vendas, eram situadas à beira dos caminhos mais
transitados, geralmente na entrada da cidade [...] devem ter representado um
papel de destaque na agremiação e indivíduos pobres e desclassificados,
estabelecendo vínculos e solidariedade entre eles e ocupado o lugar que, na
Europa, foi preenchido pela taverna (SOUZA, 1994).
Além dos laços de solidariedade, é possível imaginar o controle de entradas e
saídas de gente e de mercadorias de que essas mulheres puderam desfrutar para o bem
ou para o mal. Esse era um fator importante, já que o comércio interno era controlado
pela chamada “gente miúda”, situada em todos os lugares da cidade.
O que se pode notar com esses pequenos fragmentos das histórias de relações
estabelecidas entre a população mineira com todas as especificidades que ela contém, é
103
que o universo cultural de Vila Rica não permitiu grandes separações físicas, tão pouco
separações afetivas e sentimentais. Em um meio geográfico restrito, os pequenos
passeios foram inevitáveis assim como os contatos diretos entre as pessoas.
Esse movimento facilitou a propagação dos dialetos africanos, “obrigando”
todos que conviviam com essa parcela da população à sua aprendizagem imediata.
Tinha que ser para uma questão de entendimento e convivência. Esses dialetos não
foram esquecidos ou substituídos pelo português. Pelo contrário, o africano e seus
descendentes nada mais fizeram do que aprender mais uma língua além da sua, como
nos mostra Costa Peixoto. E a tradição oral ajudou no processo de adaptação ao meio
diverso, porém, não hostil. Apenas diferente de seu hábito, mas com a presença maciça
de negros africanos que não parava de chegar à região mineradora, facilitando a
manutenção da língua, o que lhes era mais caro. Através dela sabiam quem eram e de
onde vieram.
2.3 As Irmandades e a educação africana
Vendo que a população mineira de Vila Rica não obedece às regras oficiais mais
amplas, é preciso pensar que a organização social deles ultrapassou os limites das ruas.
Não só nas esquinas ou nas estradas de entrada e saída da cidade os negros se fizeram
presentes. Vimos que a possibilidade de autonomia era grande em muitos casos.
104
Essa autonomia pode ser constatada quando, logo no início do povoamento da
região montanhosa que os cerca, os negros utilizaram uma forma de associação muito
comum nos mais variados lugares do território de possessão portuguesa: as Irmandades
Leigas.
Elas foram refúgio das aspirações e sentimentos democráticos. Nelas se
realizaram os debates e lutas que não podiam ser travados em praça pública. Serviam
para manter nos homens o gosto pela independência (CARVALHO, 1957).
Os negros logo construíram suas capelas, e sob a proteção dos Santos destinados
a eles, erigiram grandes prédios ornamentados com riqueza financeira e de detalhes. De
onde veio o dinheiro, não sabemos ao certo, mas com certeza foi arrecadado muito mais
de outras fontes do que os pequenos furtos praticados pelos escravos junto aos seus
senhores.
Com a quantidade de homens e mulheres libertos já no início do povoamento, é
possível que pequenas fortunas tenham sido doadas por esses compatriotas de África ou
de Brasil. O que se sabe é que nem a Coroa e nem a Igreja financiaram as construções
daquele século.
As Irmandades, afirma Julita Scarano “[...] se tornaram realmente centros de
encontro da população local, que assim podia satisfazer tendências gregárias e lúdicas,
além de atender a seus próprios interesses” (SCARANO, 1975, p. 2). Essa visibilidade
foi alvo de inúmeras tentativas de taxação e controle, mais por parte da Igreja do que
pelo Estado português principalmente em questões econômicas. Não parecia que a
preocupação fosse o conjunto de ensinamentos católicos e suas práticas10.
10
Ver capítulo I intitulado As Irmandades, em que a autora discursa sobre a organização eclesiástica
enfatizando que a questão econômica se revela mais influente do que a eclesiástica.
105
O fato é que, por meio das Irmandades, um posicionamento social foi
conquistado e mantido à custa de um poderio econômico jamais imaginado em terras
escravas.
Embora para os olhos do povo, as irmandades negras sejam uma aglomeração
simples de negros professando a fé católica, há dentro das Irmandades conflitos diretos
e indiretos de indivíduos diferentes socialmente e que, ainda assim, ora se misturam, ora
divergem, ora se agrupam, ora se distanciam. Uma pequena sociedade foi organizada
dentro delas.
Isso prova que a prática social pode ditar formas de convivência, de
sobrevivência e de permanência que darão peculiaridade a essas associações que
tiveram importância fundamental na manutenção de manifestações culturais de cunho
africano e que ditam regras sem a interferência direta dos senhores ou dos “Homens
Bons” daquela época. Às congadas, às Folias de Reis ou Reisados, às danças e às
músicas tocadas ao ritmo dos tambores, Daniel de Carvalho atribui esse movimento de
constante troca e devolutivas e diz que “[...] nas Minas do século XVIII, o profano e o
sagrado religioso mantém uma estreita ligação” (CARVALHO, 1967, p. 38)
As Irmandades podem ditar porque são autônomas e fogem ao controle rigoroso
que qualquer tipo de poder sonha alcançar. Sua prática religiosa, sua cultura e
religiosidade - entendidas aqui como práticas pessoais de fé ditadas pelo interior, pelo
cotidiano e também pelo coletivo - não fogem, porém, às amarras que a cultura impõe,
pois vivemos em comunidade e não somos isolados nem alheios às situações do dia-adia. Portanto, estamos falando de pluralidade de manifestações sem limites préestabelecidos.
106
Uma das formas que possibilitou tal adaptação foi, sem dúvida, a educação. É
por meio dela que propaga-se, perpetua-se, cria-se ou modifica-se qualquer aspecto da
vida humana. Desde os primórdios de sua vida intelectual, o homem buscou cada vez
mais abranger seu campo de conhecimento. E foi sempre através da educação no sentido
mais amplo que ela merece ter.
Dessa forma o africano buscou ligações com o presente sem deixar de manter
suas ligações com o passado. Isso não quer dizer que tenha existido pessoas que, por
opção, tenham se convertido à religião católica sem muito esforço. O fato é que a
grande maioria manteve laços com a terra natal e de lá, trouxe toda sua formação como
ser integrante da natureza. Permaneceram ligados as suas raízes místicas, ancestrais, seu
zelo pela família e sua comunidade.
Vários exemplos de transposição da religião dos deuses africanos com a religião
católica foram levantados por Marina e Mello e Souza em Diabo e a Terra de Santa
Cruz e outros trabalhos, por Luiz Mott em Rosa Egipcíaca e em tantos outros escritos,
João José Reis em A Morte é uma Festa, por Roger Bastide em Religiões africanas no
Brasil, por Pierre Verger em toda sua obra. Outros autores também já exploraram tais
situações buscando compreender esse universo ainda envolto por certa névoa.
Dentro das Irmandades ocorreu o mesmo processo de junção de duas culturas.
Muitos autores ainda tratam a questão da religião afro-brasileira como um sincretismo
ou substituição total da religião materna pela nova.
Não podemos esquecer que a base da educação africana está em tornar seus
habitantes seres completos envoltos nos princípios e harmonia com a natureza e com o
espírito. O tráfico negreiro em todas as regiões, em maior ou menor grau – e mesmo as
de influência islâmica –, não conseguiu aniquilar milênios de tradição. De seu ponto de
107
vista, o africano é religioso antes mesmo de nascer. Além disso, a infinidade de deuses
que compõem seu universo espiritual os faz compreender a comunhão que existe além
de seus limites terrenos. Cada um dos deuses-orixás é responsável por parte da vida do
homem.
Embora a religião católica seja monoteísta, existe uma infinidade de Santos que
também são responsáveis por parte da vida: riqueza, saúde, sorte, visão e até problemas
financeiros. Esse contato pode não ter sido, por esse motivo, um contato ruim ou
prejudicial ao homem africano. Pode ter sido essa a razão que fez com que rapidamente
houvesse um intercâmbio entre suas divindades e as do catolicismo. Não se trata de
substituições e aniquilamentos. Trata-se de incorporação, integração, coexistência.
Esse foi o papel que as Irmandades incorporaram. Considerando suas
características diferenciadas, de forma geral, contribuíram para a proteção da liberdade
metafísica da população negra e mestiça.
Juridicamente elas formavam corpos
[...] equivalentes entre si, o que levava qualquer delas a ter a possibilidade de
se unir a outras, de competir com elas, de estabelecer contato [...] mesmo uma
irmandade de pretos e mulatos contava com a possibilidade de adquirir bens. A
irmandade do Rosário do Tejuco possuía casas na Tua Direita, na do Bonfim,
na os Currais e na rua de „sima‟, compradas por volta dos anos cinqüenta e
sessenta. Posteriormente, adquiriram ainda outras moradias. [...] A Capela de
Nossa Senhora do Rosário dos Pretos da antiga Vila Rica, de construção mais
imponente que a do Tejuco, compete em grandiosidade com as demais
(SCARANO, 1975, p. 35).
Ser membro irmão dessas irmandades sem dúvida era importante. Elas davam ao
membro certo status, certa segurança social e até mesmo para os ritos de morte. Morrer
sendo membro de irmandades era um privilégio, pois os irmãos cuidavam da família
mesmo depois de muitos anos, caso ficassem desamparadas.
108
Contendas jurídicas também foram acionadas através das Irmandades,
principalmente a respeito das alforrias. Patrocinaram muitas cartas de alforria. Lutas por
espaços iguais fazem parte do cotidiano desses irmãos. Assim se explica que “[...] o
primeiro movimento de protesto dos pretos, o de 1789, na revolta chamada „dos
Alfaiates‟, tenha sido motivado por um desejo de terminar com a separação racial nas
confrarias, criando um catolicismo baseado, de fato, na igualdade” (SCARANO, 1975,
p. 44). Em Portugal, as Irmandades congêneres, ganharam muitas disputas raciais e
contendas judiciais em favor dos negros.
Em suma, as Irmandades eram sem dúvida reduto de várias formas de
convivência e de sobrevivência da cultua original dos negros em Vila Rica. Elas
permitiram tantas demonstrações das tradições africanas que não tardou a surgir outro
tipo de resistência. Uma resistência não menos eficaz, mas mais silenciosa que marcou
profundamente as matrizes formadoras da sociedade brasileira em todos os tempos: a
resistência cultural.
Nela foram formados, nela construíram raízes éticas e morais propagadas mais
pela educação africana do que pela educação européia, primeiro pela superioridade
numérica de indivíduos, e segundo, pela grande convivência das “gentes menores” que
possibilitou conversas nas beiradas das portas e calçadas assim como na antiga África,
onde as crianças aprendiam à sombra de grandes árvores. No Brasil, as árvores viram
crianças crescerem e se desenvolveram aos pés de suas mães pobres, solteiras, ricas,
comerciantes, prostitutas descendentes de africanos que transmitiram oralmente suas
preocupações, seus medos e suas aspirações.
As Irmandades foram foco de resistência social, política, econômica e também
cultural. A educação, aliada às novas adaptações necessárias, abriu novos caminhos e
109
também ampliou os que já existiam. A forma com que as irmandades foram erguidas,
organizadas e administradas, mesmo com o poder religioso tentando controlar suas
ações, deu ao homem negro e mestiço autonomia dentro de um universo menor criado
por ele próprio, sem sentimento de inferioridade ou sem o sentimento de ter ganhado
esmola dos brancos.
As irmandades negras, tais quais eram organizadas no século XVIII,
representavam uma conquista única e exclusivamente construída por negros africanos e
mestiços em busca, não só de igualdade, mas também de luta pelo seu espaço intimista
ou coletivo. Mas essa luta foi travada sempre de sua própria forma.
110
CAPÍTULO III
IRMANDADES, MÚSICA E RESISTÊNCIA: CAMINHOS PARA A LIBERDADE
SOCIAL E CULTURAL
Se não me é dado remontar seguro
Ao alcançar sublime memória,
Ao menos não submerge o esquecimento
O meu nome todo, e venturoso
Pelas gentis Camenas bafejado
Sobre as ondas do tempo irá boiando.
Américo Elísio, 1825.
Neste capítulo pretende-se compreender, então, qual foi o papel das Irmandades
Negras, juntamente com as estratégias da educação africana, na manutenção da cultura
afro-brasileira e como o poder eclesiástico perdeu o controle, ou talvez nunca tenha
tido, sobre as Irmandades Negras, principalmente as de músicos, que detinham prestígio
social muito intenso. Essa postura fez com que eles pudessem resistir de forma mais
organizada e permanente, além de revoltas ou momentos de violência pontuais.
A atuação das Irmandades Negras nesse processo foi fundamental para que se
pudesse ter uma efetividade eficaz. Vimos até agora que, economicamente, a
preocupação da Coroa era erradicar – quanto possível – o desvio do ouro capitado pelos
donos de minas e seus escravos11, pelo clero que foi proibido de transitar com liberdade
por aquelas terras e que financiamentos de qualquer natureza dificilmente eram
11
É necessário lembrar que as minas de extração possuíam donos particulares e que em raras exceções o
Estado detinha a posse de algumas das minas. Portanto, a extração deveria ser feita por eles e levadas à
Casa de Fundição, onde eram derretidos, transformado em barras e o imposto já era retirado ali. Por isso
muitas contendas também foram iniciadas pelos donos das minas em repúdio aos altos preços dos
impostos que incidiam também sobre os escravos.
111
concedidos; a Igreja, com poucos padres e pouco campo de ação, viu seu trabalho de
disseminação da cultura religiosa portuguesa altamente prejudicado pela falta de
incentivo que enfrentou desde o início da colonização. Talvez por essa falta de incentivo
do poder público ou mesmo do poder eclesiástico, que inúmeras querelas entre
membros de irmandades e padres contratados por eles quando algo não saía como o
combinado foram iniciadas.
Controle não é bem o conceito que melhor pode ser utilizado para denominar o
processo de construção pelo qual passou a Capitania de Minas Gerais. Também não
estamos querendo dizer que o que ocorreu foi um total e completo desmazelo, tornando
pejorativa a construção da sociedade em questão. O que estamos apontando é que houve
uma organização social altamente hierarquizada, complexa, cheia de nuanças, de
manifestações diferentes em seus objetivos, em que criou regras de sociabilidade
intensas.
Há a constituição de um conjunto ético e moral de convivência, além de existir
também momentos de explosão social violenta. Mas essa organização não foi nem
incentivada e nem controlada pelo poder público ou religioso. O que ocorreu foi um
enorme esforço coletivo dirigido pela população pobre e trabalhadora que estruturou as
bases da forma de vida de milhares de pessoas durante décadas, transformando-se e
readaptando-se sempre que foi necessário.
Uma dessas atividades que fugiu ao controle das autoridades e que se
desenvolveu no seio das Irmandades foi a atividade musical erudita e popular. Foi com
essa forma de atuação cultural, além das artes plásticas, que os negros africanos e seus
descendentes de várias gerações garantiram, ao menos naquele momento histórico,
grande visibilidade e importância em toda região. Antes de discutir os significados da
112
música e qual sua importância na manutenção da cultura africana e afro-brasileira, é
necessário dar o devido valor a um pesquisador que se dedicou durante décadas à junção
de documentos importantes para estudiosos da música mineira do século XVIII.
Toda documentação relativa à atividade musical de Minas Gerais e das cidades
do ciclo do ouro e todos os documentos primários sobre quem eram, onde estavam,
quando faleciam, em que Irmandades estavam agregados, quais instrumentos eram
utilizados, quem eram os regentes, quem e em quais circunstâncias cediam escravos
para festas religiosas, quais corporações eram mais requisitadas, suas viagens pelo
interior da Capitania, quem contratava os serviços dos músicos mineiros, suas
atividades extras que visavam maior retenção de lucro, o que faziam nas horas vagas,
estão protegidas graças a um criterioso trabalho de pesquisa e organização realizado por
Francisco Curt Lange iniciado a partir de 1944.
Ele descreve a jornada com riqueza de detalhes no primeiro volume de sua obra
intitulada História da Música nas Irmandades de Vila Rica, publicação do Arquivo
Público Mineiro em 1979. No início da pesquisa, sem saber o que iria encontrar,
procurava documentos de registros musicais (partituras) que equivalessem em
grandiosidade ao valor das construções erguidas pelos irmãos.
O alto nível das artes arquitetônicas e plásticas levava a tais conclusões.
Quando e, em que parte do mundo cristão, faltou a música para associar-se às
praticas e às festividades maiores da religião católica, única e onipotente em
toda América luso-espanhola? E nas regiões da América hispânica, marcadas
pelas riquezas de extração de metais nobres e pedras preciosas, a música, na
fase final do Renascimento e na era do Barroco, acaso não atingiu
esplendorosas manifestações de arte musical, tanto no México, Guatemala,
Peru, Colômbia e Equador? E se no Brasil foram descobertos tardiamente o
ouro e os diamantes, idêntico processo de alta cultura e arte devia ter-se
manifestado em Minas Gerais, tendo presente os maravilhosos antecedentes
musicais de Portugal, que a colocavam em igualdade de pé com a Espanha. Se
na opinião dos historiógrafos, não foram dadas as devidas condições por
Portugal, para tal desenvolvimento e se tampouco se achou capacitado o
brasileiro para desempenhar-se na arte da música erudita, tanto maior deveria
ser a nossa surpresa, ao acharmos este elo perdido, consistente em algumas
obras de música religiosa, e notável elaboração ( LANGE, 1979, p. 21-22)
113
Este longo trecho demonstrado na íntegra tem o intuito de, pelas palavras do
autor, alertar para o que ele considerou como “elo perdido”, a mais importante
descoberta, pois está vastamente documentada, de atuação cultural em Minas Gerais: a
existência de um gigantesco número de professores de música, de músicos talentosos,
de corporações de ofício musical, de compositores exímios e talentosos, todos negros e
mulatos das mais variadas origens africanas espalhados pelas irmandades negras da
Capitania.
Até então, explica ele, havia veemente uma negação pela historiografia de que
existisse música erudita no Brasil, e que só existiria música erudita de origem
portuguesa. Para eles, a música erudita portuguesa vinha sendo praticada e ensinada
pelos padres que a conheciam muito bem. Vários deles eram professores de música e
eram especializados em composição, pois se formaram em um rigoroso sistema de
tradição musical (LANGE, 1979).
Por, isso, ao encontrar a primeira obra, a opinião acerca do que pensavam sobre
a música mineira, de que havia uma produção local por alguns pesquisadores, se
comprovou. A obra era uma Antífona de Nossa Senhora de José Joaquim Emerico Lobo
de Mesquita e parecia vir da melhor música lusitana, segundo Lange. Então, chegou-se
a conclusão que existiu uma música erudita de qualidade desmentindo a primeira tese. A
questão seguinte ao achado foi “[...] Haveria em Minas Gerais músicos capacitados para
interpretar esta Antífona e outras obras de qualidade?” (LANGE, 1979, p. 23). Iniciou
assim, a incessante tarefa de procurar entre os historiadores da época, tais respostas. Foi
inútil. “[...] Para mim, sempre foi desconcertante que os historiadores mineiros nunca
tropeçaram com inúmeras referências sobre a atividade musical nas suas pesquisas”
(LANGE, 1979, p. 23).
114
Partiu para pesquisas nos Livros de Termos, de Receitas, de Batismos de Óbitos
das Irmandades e, no Arquivo Público Mineiro procurando por artistas que ninguém
sabia que existiam. O que encontrou foram muitas provas de que os autores das obras
musicais “eram brasileiros, e todo movimento musical desta grei (sic) tão numerosa se
achava em mãos de mulatos” (LANGE, 1979, p. 24).
Documentos realmente muito importantes a respeito da atividade musical, eles
mostram muito mais peculiaridades, nos levando a compreender como era a organização
desse movimento quase que totalmente ligado às Irmandades às quais pertenciam. As
Irmandades apresentadas neste trabalho (Santa Efigênia, Nossa Senhora do Rosário dos
Pretos e Irmandade de São José dos Homens Pardos) possuem em seus livros de
despesas alta movimentação financeira de pagamento desses serviços em todos que
foram encontrados. Lange lembra que o desleixo com a documentação das Irmandades
foi tamanho em outras épocas que muitos documentos foram perdidos, queimados,
soterrados pelos desabamentos ocorridos em Igrejas muito antigas e que não foram
conservadas, molhados durante anos em goteiras não consertadas e toda sorte de
intempéries (LANGE, 1979, p. 30-31).
Ainda assim, muitos documentos foram resgatados, possibilitando a criação e uma
coleção com doze volumes dedicados à história da música na Capitania de Minas
Gerais, demorando 19 anos para ficar pronta e, ainda em 1789, os dois últimos volumes
estavam sendo elaborados. Eis as sequências:
Vol I
Ouro Preto ( Fraguesia de Nossa Senhora do Pilar)
Irmandade do Santíssimo Sacramento
115
Irmandade de Santo Antônio
Irmandade de Nossa Senhora do Pilar
Irmandade de Arcanjo São Miguel das Almas
Irmandade do Senhor do Bom Jesus dos Passos
Ordem Terceira de Nossa Senhora do Monte Carmo
Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos
Irmandade de Nossa Senhora das Mercês (Mercêsde Cima)
Ordem dos Meninos de São Francisco de Paula)
Vol. II
Irmandade de São José dos Homens Pardos
Vol. III
Irmandade de Santa Cecília (segunda época)
Vol. IV
Antônio Dias (Freguesia de Nossa Senhora de Conceição)
Irmandade de Nossa Senhora da Conceição
Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte
Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos do Alto da Cruz do Padre
Faria (Santa Efigênia)
Irmandade das Mercês do Bom Jesus dos Perdões (Mercês de Baixo)
116
Ordem Terceira de São Francisco
Vol. V
As Obrigações e Arrematações de Música pelo Senado da Câmara de Vila Rica.
Vol. VI
A Ópera em Vila Rica.
Música Militar. A Música nos Festejos Reais e
Procissões. Documentação musical avulsa.
Vol. VII
A Música dos Arredores de Vila Rica, Mariana, Cachoeira do Campo,
Congonhas do Campo, Casa Branca, Sabará e Caeté.
A Música nas Vilas mais distantes: Pitangui, Campanha e Serro.
As danças públicas coletivas e as danças dramáticas das Corporações de Ofícios
em Minas Gerais. Os Vassungos.
Vol. VIII
História da Música no Arraial do Tejuco.
Vol IX
Os Compositores durante o período colonial de Minas Gerais. Estudos
Analíticos das composições de José Joaquim Emerico Lobo de Mesquita, Inácio
Parreiras Neves, Francisco Gomes da Rocha, Marcos Coelho Neto, Jerônimo de
Souza Lobo e José Rodrigues Domingues de Meirelles.
Vol. X
117
Índex e referências biográficas dos Professores da Arte da Música da Capitania
Geral das Minas Gerais. (LANGE, 1979, p. 25-27)
Todos os volumes são seguidos de introduções explicativas e de análises sobre
sua visão de mundo a respeito da atividade musical. Há também muita informação sobre
as construções das Irmandades dando um amplo panorama histórico do século XVIII.
Apesar de tantos documentos já estarem ao alcance de historiadores ou
pesquisadores de qualquer natureza, Curt Lange alerta para o fato de que “[...] ainda está
longe de um levantamento total de documentação em Minas” (LANGE, 1979, p. 23, p.
27). Mas já podemos analisar esta intensa atividade musical como mais um meio de
transgressão das regras sociais que deveam “amarrar” as ações da população escrava e
liberta que, aliada às oportunidades de mobilidade, pôde alcançar muitos ganhos.
Assim, cabe-nos uma análise da quantidade de músicos negros e mulatos que
exerceram sua profissão no decorrer do século XVIII e uma parte do século XIX.
3.1 Atuação dos músicos mineiros: a hegemonia negra e mestiça
Como a musicalidade permeia a forma de vida do africano, a mais alta forma de
expressão corporal e espiritual é a música. Os membros das irmandades que se
dedicaram à música erudita e popular manifestaram sua arte por toda parte da Minas
118
portuguesa. Isso os levou a terem prestígio e mobilidade social, revelando outro lado do
mundo escravista pelo qual a população mineira mestiça reinventou suas formas de
convivência e mais, as fronteiras.
Nesse momento podemos iniciar uma discussão acerca de qual é a dimensão que
a música tem numa sociedade pautada pela busca da ancestralidade expressada
irremediavelmente pelos cantos.
Todas as manifestações afro-brasileiras são constituídas de uma música, de uma
dança e de uma religiosidade (em todas as culturas africanas). Não há “silêncios”. Nas
Congadas espalhadas pelo Brasil (mas que tem forte marca nas regiões mineiras), nas
Folias de Reis, que estão cheias de características de nossa mistura, nas capoeiras de
Angola da Bahia, que foram também disseminadas por mestres.
Todas elas possuem um ritual próprio permeado pela religiosidade e pela
música. Todas essas tradições foram transmitidas pela tradição oral aprendida com os
escravos africanos. Em todas as expressões culturais baseadas na cultura africana que
forçosamente se adaptaram no Brasil, busca-se contemplar sempre uma vivência
anterior à sua chegada, não esquecendo nunca de suas origens.
Em todas elas a música tem função orgânica, não sendo um elemento
simplesmente ornamental. “Música e dança tornam-se o principal veículo da
experiência religiosa em certos rituais religiosos e, portanto, estão completamente
integradas dentro da organização social de tais religiões” (LUCAS, 2002, p. 18).
Nessa visão, a música é um meio de comunicação não-verbal e um poderoso
instrumento na busca de uma autoexpressão, autoafirmação e autoconsciência humana
em relação à dimensão cósmica de um grupo (LUCAS, 2002, p. 18). Sendo assim, a
música atua como um forte agente de coesão social, que busca especificamente uma
119
identidade cultural. A busca dessa identidade, com certeza, sofreu intervenções por
todas as características que o novo território lhes proporcionou.
As já mencionadas autoras, Leda Maria Martins (1997) e Glaura Lucas (2002),
iniciaram suas pesquisas sobre a Irmandade de Arturos e Jatobá respectivamente.
Conseguiram realizar seu trabalho buscando o resgate das músicas ali praticadas
realizando um trabalho de entrevista com os mais velhos que se dispuseram a contar as
histórias conhecidas trazidas por seus antepassados escravos. Essa pesquisa, baseada na
oralidade e nas entrevistas com os membros, a maior preocupação é não deixar de
registrar a existência de uma raiz milenar.
Nesse mundo de sons, os textos falados ou cantados, assim como os gestos, a
expressão corporal e os objetos-símbolos, transmitem um conjunto de significados
determinados pela sua inserção nos diferentes ritos em qualquer das manifestações
existentes e em qualquer lugar do Brasil. Reproduzem a memória e a dinâmica do
grupo, reforçando e integrando os valores básicos da comunidade através da
dramatização dos mitos, da dança e dos cantos, como também nas histórias contadas
pelos mais velhos como modelos a serem seguidos (BARROS, 2005).
Esses foram fatores que nem a colonização da África, sua transposição para a
América, nem o sistema escravocrata e a divisão do continente africano, conseguiram
apagar do sistema de compreensão do mundo africano. Os símbolos fundadores de sua
alteridade, suas culturas, sua diversidade étnica, linguística, suas civilizações, sua
História, assolaram a população dominante, que já não conseguia mais distinguir esse
povo tendo como única saída organizar a sociedade de acordo com possibilidades, de
acordo com as imposições feitas consciente e inconscientemente pela maioria.
120
As expressões em todos os aspectos (religioso, político, cultural, social)
dificilmente puderam ser arrancadas à força ou mesmo caladas frente a uma mobilidade
sem precedentes da Capitania de Minas Gerais. A música mineira através de seus
representantes legais e morais – os negros – teve igual mobilidade. A música se
espalhou pela Capitania com as casas de ofício de música – com negros e mestiços –
que demandavam um tempo enorme à prática de suas músicas, necessário para o
aprimoramento de suas habilidades em seus respectivos instrumentos. As Irmandades às
quais estavam ligados é que lhes davam tantas regalias. Afinal, ensaiar boa parte de seu
tempo produtivo tirava-lhes a possibilidade de trabalhar, nos casos de escravos, e de
haver seu sustento no caso dos livres e dos forros.
A Irmandade, tanto quanto seus senhores, compreendia que o lucro maior vinha
ao ter suas bandas ou seus escravos contratados para as inúmeras festas que ocorriam no
decorrer do ano e nas várias vilas e arraiais vizinhos. Os livros de despesas estão cheios
de informações de pagamentos e recebimentos de valores referentes às atividades
musicais.
Lange relata que os ensaios tinham local e sede definidos, onde achava-se
também o arquivo de música, “[...] sempre muito nutrido de obras, pelo interesse dos
regentes em se proverem constantemente composições, satisfazendo dessa forma a
curiosidade por obras desconhecidas” (LANGE, 1979, p. 42). Aqui, ele se detém no fato
de que não foi a teoria musical que proporcionou execuções de alta qualidade. Foi antes
a prática desta que proporcionou o ensino correto para os envolvidos.
Mais uma vez vemos que a oralidade, a memória e a prática fizeram da
população negra no Brasil e no mundo fonte inesgotável de estudo. Os músicos
mineiros não foram descritos em sua maioria. Não sabemos seu real alcance e sua
121
totalidade. Os documentos ainda muito dispersos e pouco organizados não nos
permitem, ainda, maiores esclarecimentos. Porém, é possível imaginar quantos músicos
ainda podem surgir em um panorama promissor.
Na Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, o primeiro assentamento
por pagamento de serviços musicais com menção do respectivo Regente foi em 1781
(LANGE, 1979, p. 272). Isso significa que os documentos encontrados por Lange nessa
Irmandade dessa data em diante, contém o nome dos regentes responsáveis. Antes disso
existem registros de pagamentos de atividades musicais, mas sem muitas
especificações.
Veremos que mesma na fase de decadência do período do ouro (1730-40 em
diante), os músicos tinham amplo campo de atuação se sustentando com o dinheiro
pago pela irmandade. O primeiro regente citado com data foi Inácio Parreira Neves
(1781). Os substitutos dos mais importantes regentes aparecem nos livros de
pagamentos com seus respectivos valores recebidos pelos seus serviços. Percebemos
que era comum a permanência de alguns anos (dois ou três anos) até sua substituição,
causada por morte, por proposta de melhores regências, por envelhecimento ou qualquer
outro acontecimento (LANGE, 1979, p. 273).
No ano de 1753 até 1759 e de 1771 a 1780 não há registros de assentos por
música. Nesse grande espaço de tempo quem se destaca são os trombeteiros que “[...]
anunciavam o amanhecer do dia da festividade da procissão” (LANGE, 1979, p. 273).
Em 1752 havia uma citação de um grupo de “negros marimbas”, e por ser de difícil
aparição, esse instrumento pode se tratar “[...] de negros que ainda viviam muito
pegados às tradições africanas” (LANGE, 1979, p. 273).
122
Marcos Coelho Netto Pai, que regeu de 1783-84 e 1787-88, tinha ajuda
constante de seu filho (tocador de trompa), assim como Inácio Parreiras Neves e
Francisco Gomes da Rocha, de 1799 a 1807. Como vimos, foi comum a desistência
desses músicos por vários motivos. Francisco Gomes se viu obrigado a declinar dos
convites após 1807, devido à queda de investimentos e da diminuição de seu conjunto
(LANGE, 1979, p. 274). Já Marcos Coelho Neto Filho não se dispôs a aceitar melhores
oportunidades em Irmandades superiores e permaneceu na Rosário dos Pretos.
Dentre o cabedal de músicos importantes estão Francisco Furtado da Silveira,
Caetano Rodrigues da Silva, Miguel Dionísio Vale, Sebastião de Barros Silva,
Florêncio José Ferreira e Serafim Correa Fortuna. Outros nomes não foram muito
frequentes como Manuel Pereira, Francisco Xavier Pereira e João Pio Silva, João
Araújo – cabeça de um grupo de negros que tocavam as chamadas “bucinas”, cuja
forma e som não foi definida - aparentemente desconhecidos (LANGE, 1979, p. 274).
Por trás desses músicos existia um enorme séquito de profissionais do ramo.
Alguns eram seus escravos – lembrando que esses músicos senhores eram negros,
mulatos e mestiços também – outros homens livres ou recém libertos ou ainda, escravos
de senhores que não faziam parte do mundo artístico, que circulavam por entre essas
manifestações, podendo exercer função em mais de uma banda e tocar muitos
instrumentos diferentes. Vejamos como eram registrados os pagamentos dos músicos:
TABELA 2 – Descrição de regentes, de pagamentos e de período de permanência.
Ano
1781
1783-1784
1785-1786
1785-1786
1787-1788
1799-1800
Oitavas
55 oitavas
34 oitavas
24 oitavas
67 oitavas
36 oitavas
42 oitavas
Regente
Inácio Pereira Neves
Marcos Coelho Neto (pai?)
Inácio Pereira Neves
Miguel Dionísio Vale
Marcos Coelho Neto (pai?)
Marcos Coelho Neto (filho)
123
Fonte: LANGE. Francisco Curt. História da música nas irmandades de Vila Rica. Vol.1. Freguesia de
Nossa Senhora da Conceição de Antonio Dias. Conselho Estadual de Cultura de Minas Gerais, 1981.
Vol.5
Esses registros eram marcadamente muito organizados pelos irmãos de Mesa
tesoureiros. Outros registros não recebiam tanta atenção. Quando o assunto era registrar
os instrumentos e grupos que atuavam com instrumentos de percussão ou sopro, nem
sempre havia a ocorrência de um responsável. Eram seguidos apenas da descrição do
instrumento e características físicas ou apareciam o nome de seu senhor.
TABELA 3 – Descrição de Músicos e instrumentos
Nome
Característica ou instrumento
Anônimo
Anônimo
Joaquim
Preto tocador de tambor (1812- 1818)
Tocadores de trombeta (1751-1752)
Escravo de Caetano Rodrigues sem especificação
de instrumento (1782-1784)
Francisco Martins Pereira
Trombetas e seus companheiros (1796-1798)
Anônimo
Tambor, escravo de Francisco Tavares França
(1793-1794)
Fonte: LANGE. Francisco Curt. História da música nas irmandades de Vila Rica. Vol.1. Freguesia de
Nossa Senhora da Conceição de Antonio Dias. Conselho Estadual de Cultura de Minas Gerais, 1981.
Vol.5
Vemos, com isso, que o universo musical sofria de várias influências advindas
dos mais variados tipos e compreensão do mundo reunidos na Capitania de Minas
Geras. Esse pequeno quadro apontado sugere apenas uma ínfima parte organizada por
Curt Lange em suas incursões. O fato é que nos deparamos com uma gama infinita de
possibilidades de transgressão das regras pré-estabelecidas entre senhores e escravos,
entre público e o privado, entre a força da lei e a força da negociação.
As Irmandades representaram para os desfavorecidos da sociedade colonial – na
maioria negros e seus descendentes, e a população branca pobre – mais do que uma
124
proteção espiritual. Elas foram moldadas e organizadas para o uso exclusivo dos anseios
comuns da população negra antes de tudo, sejam eles, financeiros, políticos, somente
religiosos, culturais ou mesmo de resistência a um sistema que definitivamente não
conseguiu resistir. Estabeleceram-se como fonte e guarda de uma sabedoria milenar
orientada pela memória e pela tradição oral.
Martins, ao estudar a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário do Pretos da
região do Jatobá (MG), afirma que os festejos do Reinado em fins do século XX,
mantém a mesma disposição básica do século XVIII “[...] atestando a permanência de
um continuum paradigmático nos elos da tradição e das afrografias dos congados”.
(MARTINS, 1997, p. 34).
Não estamos apontando, contudo, para uma visão na qual as tradições antigas
devem ser necessariamente iguais às praticadas séculos atrás. Estamos indicando um
caminho que entenda e reconheça que não só tradições foram e conseguiram ser
mantidas por enorme esforço da memória como também ocorreu aniquilações ou
adaptações necessárias à sobrevivência de uma identidade. Uma educação sólida,
consistente, abrangente e muitas vezes “silenciosa”, cria essa consciência de
sobrevivência. Uma educação que mostra e remonta caminhos a serem percorridos em
busca de um único ideal: a liberdade e a condição digna de vida.
Os músicos e todos os que estão envolvidos nesse processo de libertação física e
moral fizeram muito bem seu papel. A Irmandade, embora tivesse outros papéis –
caridade, assistência, religião, libertação – exerceu com muito alarde a função de
disseminadora de uma cultura afro-brasileira utilizando-se do universo erudito visitado
apenas pelas elites em outros lugares do mundo.
125
A irmandade não deteve seus músicos e artistas enjaulados em seu interior. Eles
não se apresentaram somente para os irmãos em tímidas exibições. Essa é a grande
diferença, talvez, do Brasil em relação a outras colônias de exploração. Os mundos
existentes em Minas Gerais se misturaram tanto que não é possível saber onde e como
começa um ou onde termina outro.
Os pagamentos feitos pelos contratantes foram aviltantes para os músicos
negros. Lange lembra que os pagamentos das irmandades negras eram muito superiores
aos que as outras Irmandades ofereciam a eles, indicando ou uma forte proteção
mediante as dificuldades financeiras que o sistema colonial e escravista infringia ou
indica o profundo respeito à vida e obra de seus músicos ilustres atribuindo-lhes valor
real. De uma forma ou de outra, elas protegeram, organizaram, estruturaram física e
socialmente seus membros.
Já podemos imaginar aquela vila cheia de ladeiras e minúsculos acessos de uma
rua à outra, impregnada de gente que canta, que dança, que faz barulho, que reza a seus
orixás e seus santos de devoção, que grita vendendo seus quitutes, que briga por seus
interesses mais simples, crianças andando, correndo, fugindo dos outros por seus
pequenos furtos, de músicos se preparando para a próxima apresentação e seus
instrumentos espalhados ou sendo muito bem cuidados sabendo que dali retiram todo
seu sustento.
Não é de espantar que o Conde Assumar, já em 1717, tenha reclamado aos
“quatro cantos” de Portugal que as Minas
[...] hé habitada de gente intratável, sem domicílio e ainda que está em contínua
movimento, hé menos inconstante que os seus costumes: os dias nunca
amanhecem serenos; o ar He hu´nublado perpetuo: tudo He frio naquele paiz,
menos o vício, q´está ardendo sempre. Eu com tudo reparando com mais
attenção na antiga, e continuada successão de perturbações, que nellas se vem,
acrescentary, que a terra parece, que evapora tumultos: a água exalla motins: o
ouro toca desaforos: distillam Liberdades os ares: vomitam insolências as
126
nuvens: influyem desordem os astros: o clima de tumba da paz, e berçoda
rebelliam: a natureza anda inquieta comsigo, e amotinada Lá por dentro, é
como no inferno. (1994, IMPRENSA OFICIAL DE MINAS GERAIS apud,
PAIVA, 2002, p. 4).
Nessa época, outros tipos de reinados eram estabelecidos nas terras mineiras. Em
terras abandonadas pelo Estado e pela Igreja, a autoridade e o poder eram exercidos por
“figuras”, masculinas principalmente, que mandavam e desmandavam nos sertões afora.
Manuel Nunes Viana, um negociante português, era uma dessas “figuras”. Nos tempos
da chegada de D. Pedro Miguel de Almeida, o Conde de Assumar, ao governo da
Capitania de São Paulo e Minas do Ouro a partir de 1717, havia pouco controle público
diante do poderio privado dos grandes senhores e grandes comerciantes (PAIVA, 2001,
p. 2). Esses dois personagens travaram lutas intensas em busca do controle político da
região, conflitos estes que nem sempre eram vencidos pelo governador.
Manuel Nunes Viana, personagem interessante no processo de desarticulação do
sistema econômico e político que se tentou impor, participou de vários levantes sendo
mola propulsora para alguns deles. Já havia sido expulso da Capitania em 1708 por
Borba Gato por incentivar violências e desmandos por parte dos proprietários que
haviam montado suas milícias escravas e por parte dos escravos armados.
Essas milícias eram compostas por escravos calejados de guerras em terras do
antigo Império do Mali. Conhecedores profundos de táticas de guerra e que ficavam sob
seu comando.
A história é longa e acaba com o retorno do Conde de Assumar ao Reino
português. Não foi fácil o período em que esteve nas Minas (1717 a 1721), mas ficou
tempo suficiente para entender por vias muito penosas e na própria pele, que o território
127
não deveria e não poderia ser tratado com base em idéias ou simplistas ou muito
elaboradas.
O dia-a-dia é que ditou as regras, que recomendou precaução ou atitudes mais
drásticas. Todas as ações foram, porém, analisadas e reorganizadas por uma população
que para sobreviver ao clima hostil que a natureza impôs como assinalou o Conde, só
poderia mesmo ter seus desejos “ardendo sempre”.
3.2 A conquista da autonomia no mundo escravista: a resistência que deu certo
Toda mobilidade e todas as conquistas pelos espaços públicos alcançadas pelos
negros, devem-se ao momento em que decidiram resistir às condições impostas. Das
condições vividas, fizeram tudo o que foi possível e impossível para alcançar seus
objetivos total ou parcialmente. Essa é a discussão apresentada nesta parte do trabalho:
do cativeiro à liberdade a luta foi travada diariamente e em grande parte vencida.
Não podemos negar que a abolição, apesar de ter demorado a chegar, foi alcançada
muito pela pressão da massa liberta e escrava que numerosamente circulava pelas
principais cidades da Brasil. Portanto, numericamente sabemos da força que mais cedo
ou mais tarde seria exercida sobre o governo brasileiro. A religião já havia sucumbido
aos caprichos das interseções das culturas. Mas há aqui a necessidade de pensar o que
foi feito dessa “liberdade” alcançada pelos escravos e seus descendentes já libertos ou
forros. Mais do que saber que seus corpos físicos não precisariam mais fugir ou se
128
esconder, pois tinham em mãos sua alforria conquistada, é fundamental entender o que
foi feito disso. O legado maior de todo o processo de escravização da população negra,
foi o legado cultural.
A história dos negros nas Américas escreve-se numa narrativa de migrações e
travessias, nas quais a vivência do sagrado, de modo singular, constituiu um índice de
resistência cultural e de sobrevivência étnica, política e social. Depois de terem sido
trazidos à revelia em grande parte, decidiram morrer, lutar, matar, viver, conviver,
sobreviver, adaptar-se e principalmente resistir.
Centenas de escravos, livres e forros, deixaram de uma forma ou de outra, registros
de suas conquistas. Os africanos foram tirados de suas terras e construíram outra
comunidade em torno das irmandades. Nelas conseguiram estabelecer laços sanguíneos
pós-diáspora. As Irmandades nesse processo foram meio de manutenção da cultura de
um povo pelas quais conseguiram continuar em contato com os laços com seus
antepassados de forma mais consistente. O músico Marcos Coelho Neto conseguiu
ensinar seu filho o mesmo ofício. Pai e filho conviveram em um ambiente propício às
suas atividades e podemos presumir que a mãe estivesse presente em boa parte das
atividades domésticas e públicas quando havia festas. Eles não foram os únicos.
As associações de leigos, longe de serem focos de aculturação ou imposição da
religião católica, se transformaram em um meio pelo qual a proliferação cultural se fez
possível. Nessa parte é possível estabelecer essa relação também analisando os livros de
Mesa e do dicionário Costa Peixoto.
Em A Descolonização da Ásia e da África, Letícia Canedo (1986, p. 4) conta que no
século XIX um gigantesco baobá erguia-se majestoso em Boma, no Zaire. Datada de
aproximadamente de quatro mil anos a árvore assombrava visitantes ocidentais. Esse
129
baobá testemunha o vigor das fundações e raízes africanas e a permanência de sua
oralidade. Quantas crianças podem ter passado por ali com seus griôs – mestres da
tradição oral e da manutenção da cultura e dos costumes - aprendendo coisas sobre o
céu, a água, o mar, o sagrado, a política, a conduta honrosa?
Como o baobá africano, as culturas negras nas Américas constituíram-se como
lugares de encruzilhadas, interseções, inscrições e disjunções, fusões e transformações,
confluências e desvios, rupturas e relações, divergências, multiplicidade, origens e
principalmente, disseminações.
Os africanos que cruzaram o Oceano não viajaram e sofreram sozinhos. As
divindades, seus modos singulares e diversos de divisão do mundo, sua alteridade
linguística, artística, técnica, religiosa, cultural, suas diferentes formas de organização
social e de simbolização do real. Eles evidenciaram o cruzamento das tradições e
memórias orais com outros códigos e sistemas simbólicos e escritos com os quais se
confrontaram.
Apesar da memória e a oralidade serem as maiores fontes de manutenção histórica
da esmagadora maioria dos povos da África, não se detiveram a esse universo. Muitos
deles, no cativeiro ou na liberdade, ávidos de saber mais, se dedicaram ao estudo das
letras e da leitura. Moldaram e adaptaram-se em busca da tão sonhada liberdade ou pela
luta justa pelos seus direitos frente ao sistema jurídico da época. O século XVIII, em
menor grau que os precedentes, possibilitou esse alcance a muitos negros das mais
variadas formas. Mesmo assim, a leitura e a escrita não foram os fatores que mais
ajudaram na disseminação de ideias e ideais. A oralidade e a memória continuariam a
ter papel principal nesse mosaico cultural.
130
Musicalidade como expressão de uma cultura. Oralidade como única forma de
disseminação da cultura dos antepassados e da cultura recém formada. Memória como
forma hegemônica de manutenção dessas culturas. A religião e a língua como base de
uma construção da identidade de grupo. Esses elementos juntos formam a base da
educação africana. Todos os aspectos tornam-se únicos com um único objetivo: a
construção do ser social.
O século XVIII era assombrado pela varíola no Continente Europeu, uma
doença mortal para a época. Lay Mary, pertencente à alta elite da Corte britânica,
contraiu a doença e sobreviveu. Como outros parentes acabaram morrendo por causa da
doença, ela logo se organizou para começar a entendê-la e combatê-la. Em uma de suas
viagens ao Oriente, descobriu que lá a doença já era corriqueiramente tratada. Depois de
muita luta e desconfiança ela conseguiu disseminar a cura podendo salvar muitas vidas
na Europa.
Mas quem trouxe a forma de cura da África para as Américas, foi um negro da
parte ocidental chamado Onesimus. Fora comprado por um fazendeiro da América do
Norte que ficou impressionado com a inteligência do africano.
Perguntado ao meu negro Onesimus, que era sujeito muito inteligente, se ele
tinha tido varíola, ele respondeu, sim e não; disse-me que passara por uma
operação que tinha lhe dado um pouco de varíola, que o preservaria para
sempre, acrescentando que isso era feito com frequencia entre os gurumaches,
e quem tivesse a coragem de se submeter, estaria para sempre livre do medo do
contágio. Ele me descreveu a operação e mostrou a cicatriz que tinha no
braço... Desde então conheci um grande número desses africanos, e todos
concordavam numa história: em seu país muita gente morre de varíola [...] mas
agora eles aprenderam [...] e ninguém mais pega varíola. Assim, na África,
onde as pobres criaturas morriam de varíola como ovelhas podres, um deus
misericordioso ensinou-lhes uma proteção infalível. É uma prática comum,
executada com um sucesso constante (FARREL, 2003, p. 40-41).
Onesimus não trouxe consigo no navio onde pessoas morriam aos montes,
nenhum papel onde escrevera tal informação. Conseguiu o respeito e a admiração de seu
131
senhor pela sua inteligência, pela sua memória que conseguia resgatar assim como
outros tantos negros da mesma região, fielmente o processo de aprendizagem que
tiveram lá para não morrerem. Dessa informação valiosa, muitos cientistas se
debruçaram em busca da vacina feita a partir do próprio vírus.
O que quisemos mostrar é que este não foi um episódio isolado. Foi mais
comum do que pensamos. Muitos outros negros e outras tantas negras desempenharam
papéis importantíssimos na História que ainda insiste em ocultá-los. A resistência deu
certo, e vemos cada dia mais o que as comunidades e grupos podem fazer com ela no
mundo atual, principalmente em uma sociedade que rapidamente perde sua tradição
oral.
Mas ela está em todos os lugares. Constatamos isso à medida que ainda vemos
muitas curas, muitas rezas, muita música, muita dança, muitos contos, muitas lendas,
muitos ditados populares, muita comida, muitos cheiros remanescentes e descendentes
da cultura africana.
132
CONSIDERAÇÕES FINAIS: Nem branco nem preto, é multicolorido
Em uma noite de domingo de 1757, passava um “barulho de gente tocando
instrumentos” nas ruas de Vila Rica. A maior parte do grupo talvez fosse
composta de negros e mulatos, mas muitos brancos posicionavam-se à porta ou
à janela para assistir o cortejo. Pascoal, escravo crioulo de Luís Perereira Silva,
participava do evento, no meio do grupo, quando levou uma porretada na
cabeça. João Alves, pardo forro, foi acusado de tê-lo ferido, e Bibiana, negra
coartada e “amiga” de Alves, foi nomeada como mandante do crime. (Cod.
438, auto 9060, 1º ofício, ACP, apud, AGUIAR, 1999, p. 180).
Ao ler esse relato de um dos autos de infração na obra de Marcos Francisco
Aguiar (1999), logo podemos entender que a complexidade da sociedade mineira do
século XVIII é muito maior do que a que concebemos. O relato é esclarecedor em
relação ao ambiente de múltiplos sentidos que as ruas incorporavam. Negros e brancos,
com escravos e ex-escravos, homens e mulheres, amantes e assassinos, todos os
personagens da trama envoltos num mesmo cenário. O Brasil proporcionou tais
situações de uma forma geral e em Minas Gerais, na cidade de Vila Rica, isso ficou
muito evidente.
Vila Rica possuía uma sociedade na qual as mulheres, mais que os homens,
transitaram entre os mundos sob as mais variadas formas. Onde conseguiram alcançar
status social e econômico e reorganizaram seu papel no comércio miúdo. Músicos
negros que eram valorizados em detrimento de que quaisquer outros tipos e cores e se
sustentavam com seu trabalho. Além do trabalho escravo, os negros conseguiam
angariar fundos que os libertassem. Essa é Vila Rica do século XVIII. Sem muitas
barreiras sociais, econômicas, religiosas, culturais.
Nesse cenário, as culturas africanas e afro-brasileiras não podem e não devem
ser classificadas segundo critérios fixos ou rígidos. Acontece que a resistência praticada
pelos irmãos, nesse caso, das Irmandades Negras fugiu aos critérios de violência, não
133
por não terem outra opção, mas por terem escolhido sua forma própria de viver,
conviver e sobreviver. Essa escolha não foi somente imposta pelas condições sociais ou
econômicas. Elas foram sendo moldadas pelos seus agentes conforme sua realidade.
Dessa resistência, nascem outras “cores”, outros olhares, outras visões de mundo que
sucumbem ao encanto da pluralidade cultural formadora da população brasileira em
toda sua trajetória histórica.
As brigas, as reclamações, as mortes, as atrocidades, os crimes e toda a sorte de
mazelas eram resolvidos longe dos olhos dos brancos. Aguiar afirma que o senhor só
concordava em participar da mediação de conflitos caso desaprovasse as ações do
escravo e que boa parte dos delitos envolvendo ações autônomas de escravos não eram
denunciados à justiça (AGUIAR, 1999, p. 118).
Outra categoria altamente organizada de ações coletivas dos negros eram as
chamadas “bulhas de negros” que enfrentavam a desorganização do poder judiciário.
Essas bulhas eram o enfrentamento de grupos de escravos quando alguma questão entre
eles estava pendente. A esse movimento o autor denominou de autonomia escrava
(AGUIAR, 1999, p. 118). Aguiar constatou em sua pesquisa que há apenas três casos de
assassinato registrados de senhores por escravos e que em alguns casos, os registros
relataram que os escravos dormiam em senzalas que não eram trancadas.
[...] Em uma sociedade baseada na mão-de-obra escrava, o recurso extenso à
violência como mecanismo primordial de regulação das relações sociais
representava a desintegração da ordem social. Fazia-se necessário reforçar o
papel de intermediários de um lado e, de outro, viabilizar canais legítimos de
expressão institucional das queixas quando a composição e o compromisso
falhavam. (AGUIAR, 1999, p. 104)
Essa gente ignorada por muitos historiadores mostrou sua força organizadora,
quando, ao sair de suas casas paupérrimas ou dos porões dos grandes casarões,
transformavam-se em “muitos” outros. Lavavam roupas, vendiam comidas, construíram
134
casas, cuidavam de hortas e plantações, criavam seus filhos, transformavam sua língua e
a dos outros, cuidavam da saúde, educavam os filhos dos senhores, costuravam,
auxiliavam nos Corpos Militares do Estado, aprendiam o latim, a gramática e a
matemática, ocupavam postos na Câmara do Governo, eram escrivães, eram músicos,
reeducavam-se, espalhavam-se, alastravam-se.
Ainda não encontramos registros que afirmem veementemente e com todas as
letras que as comunidades surgidas nesse gigantesco processo, tivessem oficialmente
entrado com pedidos ou reivindicações que beneficiassem um grupo ou que as
estivessem prejudicando. Pedidos que fizessem as autoridades se mobilizarem de forma
mais rápida mesmo porque as reivindicações sociais que hoje temos não faziam parte
das necessidades da época. Lutas por terras, saúde, alimentação eram vistas de outra
forma nos séculos anteriores. Mas, se essas ações ocorreram, não foram documentadas
ou ainda não as encontramos, ou estão guardadas nas memórias dos habitantes. O que
sabemos é que os laços de solidariedade foram sendo estabelecidos de forma consciente
e às vezes até sem intenção, pois os ensinamentos fazem parte de uma forma de viver
simplesmente e a dimensão educacional não é entendida como algo sistemático com
linearidades ou repetições.
Como deve ter sido a convivência dos moradores brancos com seus vizinhos
negros ex-escravos e ricos? Como deve ter sido a relação entre antigos senhores e exescravos que por muitas vezes iam morar nas casas ao lado? Como as crianças, que não
estão muito preocupadas com separações econômicas, culturais ou religiosas se
comportavam? Geograficamente essas opções são cabíveis. Socialmente, podem não ter
sido tão harmoniosas, mas foram obrigatórias.
135
Os moradores em ações isoladas dificilmente conseguiriam ser ouvidos. Mas as
Irmandades Negras não puderam ser ignoradas e delas, os africanos e seus
descendentes, fizeram suas comunidades, que buscavam alcançar interesses comuns,
sejam eles quais forem. À medida que o tempo ia passando e que mais misturas
culturais iam se consolidando, mais dificultosa se tornava a tarefa do Estado e da Igreja
na ânsia de uma regulação das regas de convivência controladas por leis civis e régias.
Na medida em que as identidades eram construídas, reconstruídas ou
sobrepostas, muitas heranças culturais africanas eram fortalecidas e conseguiam
sobreviver. A única forma de sobrevivência dessas heranças foi exclusivamente a
tradição oral, a aglomeração, os ajuntamentos dos mais velos cm sua carga de sabedoria
com os mais novos que iam aprendendo tudo o que foi possível e necessário do mundo
novo e do mundo antigo.
Para os que ainda enchergam o caso dos africanos e seus descendentes como
vítimas de um sistema escravista que visou o lucro somente, é necessário lembrar que
antes mesmo do século XVIII terminar, as autoridades já sabiam o que enfrentariam, e
não demoraria muito, com a autonomia cada vez maior conquistada por eles. O século
XIX mostrou que mesmo sob todas as circunstâncias que o cativeiro lhes impôs, a
população negra angariou mais meios pelos quais pudessem lutar contra as mazelas do
sistema.
Não cessaram as insurreições, não cessaram as mortes em massa, os
assassinatos, as vinganças, as fugas, as tramas ardilosas. Não cessaram também, os
cantos, as danças, os cantos, as histórias dos antepassados, as festas, as comemorações,
as alegrias, as rezas, as curas, as comidas, as memórias. Todos esses elementos faziam
parte da vida dos negros e logo entenderam que a sobrevivência dependia da
136
mobilização comunitária. Foram surrados pelas realidades, mas não puderam desistir
dela porque na África, aprenderam a lutar com ou sem armas.
De todo esse processo analisado, o mais descabido é ver como hoje as lutas em
torno da posse da história, fazem com que disparidades gigantescas na formação dos
discursos atuais se acomodem como lutas legítimas. O que se fez no Brasil não foi ser
mais branco, mais índio, ou mais negro. Foi feito outra coisa que ainda estamos a
caminho de descobrir. Muito deve ser feito ainda.
Estudar as Irmandades Negras em Minas Gerais no século XVIII e entender
como foram base para a manutenção da cultura musical dos negros e, que através dela
os negros tomaram conhecimento de sua força social e comunitária, é apenas umas das
facetas dessa história. Quantas associações, grupos, acampamentos, aglomerações,
quilombos, grupos secretos, foram mantenedores das mesmas culturas? Quantas
culturas ainda podemos encontrar em registros mal conservados? Quantas histórias
ainda estão encobertas por visões atrofiadas? Quantos redutos culturas ainda estão
intocados?
As pesquisas das culturas formadoras da cultura brasileira necessitam ampliar a
forma de entender nossa composição. Precisam enredar por caminhos que nos permitam
entender como e em quais momentos, e em quais âmbitos começamos a nos transformar
em brasileiros. Ainda continuamos a nos modificar, porque não somos um povo estático
ou somos como “folhas amareladas” guardadas no fundo de uma gaveta. As influências
são tantas que a discussão de quem ou o quê influencia mais, é perda de tempo. Mais
importante é o que vamos fazer com essa nova carga. Vamos continuar massacrando as
minorias (que sabemos que são maiorias), vamos começar a pensar uma sociedade mais
137
justa, ou vamos nos calar e ver aonde nossa sorte nos levará? Para saber aonde vamos
precisamos saber quem somos.
Já sabemos que gostamos de cores, muitas cores. Gostamos de simplicidade
também, mas só quando é necessária. Caso contrário, fazemos tudo de preferência com
muita abundância e muitas cores.
[...] E o povo negro entendeu,
que o grande vencedor,
se ergue além da dor.
Tudo chegou,
Sobrevivente de um navio.
Quem descobriu o Brasil,
Foi o negro que viu,
A crueldade bem de frente e,
Ainda produziu milagres [...]
Caetano Veloso. Milagres do Povo
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Download

LIDIANE MARIANA DA SILVA GOMES IRMANDADES