ENTREVISTA COM MARIA APARECIDA BACCEGA
ALINE FERNANDES DE AZEVEDO
Universidade Estadual de Campinas
Maria Aparecida Baccega: um percurso teórico e político
O que dota de atualíssima pertinência este livro da professora Baccega
é que se localiza diante do debate sobre a constituição científica e
acadêmica do campo da comunicação. E, pondo desde o primeiro
momento as cartas na mesa, tem como objetivo central reinserir o
estudo da comunicação no âmbito das ciências da linguagem enquanto
parte das ciências sociais. Isto mostra, de entrada, uma releitura das
transformações sofridas entre o marxismo e os estudos da linguagem.
[...] A partir dessa linha de forças que, ainda com certa anacronia de
linguagem, organizam o mapa da reflexão, a professora Baccega
elabora uma heterodoxa e original proposta de construir a
especificidade do discurso da comunicação a partir dos discursos da
história e da literatura (MARTÍN-BARBERO, 2004, p.424-425).
Pode-se considerar que a escrita e a trajetória de pesquisa e ensino de Maria
Aparecida Baccega inscrevem um lugar de dissidência no campo logicamente
estabilizado da comunicação, em especial da Comunicação/Educação, produzindo uma
crítica teórica rica e fundamental para pensar os objetos ideológicos na atualidade. Em
“Comunicação e Linguagem: discursos e ciência” (BACCEGA; 1998), uma obra
complexa e instigante, é possível ver o quanto suas ideias reafirmam posicionamentos
éticos e teóricos. É justamente essa posição crítica frente ao pensamento hegemônico,
posição tão bem colocada tanto em seus escritos quanto em sua prática docente, que faz
ver nela um lugar possível para práticas de resistência: é a práxis política que marca seu
pensamento, colocando-o para além do determinismo reducionista ou da armadilha do
conformismo político. Entre as tantas críticas tecidas em seus inúmeros artigos e livros,
não se pode esquecer a crítica que tece à suposta referencialidade da palavra: “A
atividade linguística não consiste em simplesmente etiquetar a realidade. (...) signos
verbais – palavras – terão sentidos diferentes, dependendo da formação ideológica em
que se encontram” (BACCEGA, 1998, p. 20). E, ainda, a crítica ao pensamento que
afirma a língua e a linguagem como meros instrumentos de comunicação: reduzir a
linguagem à “condição de instrumento, dando primazia a sua condição de canal de
comunicação, é negar a existência da práxis, é diminuir a condição do homem de
criador de novas realidades” (BACCEGA, 1998, p. 22). Docente aposentada da Escola
de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, hoje é decana do Programa de
Pós-graduação em Comunicação e Práticas de Consumo da ESPM, Escola Superior de
Propaganda e Marketing, recebeu, recentemente, o Prêmio Luiz Beltrão de Ciências da
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Entremeios: revista de estudos do discurso. n.8, jan/2014
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Comunicação, Categoria Maturidade Acadêmica, da Intercom, e o Prêmio Comunicon
de Pesquisa em Comunicação e Consumo, da PPGCOM ESPM.
PARTE 1: Interdisciplinaridade, discurso, história
Não há Língua Portuguesa sem realidade brasileira, não há língua sem
cultura. Pautei-me sempre, no ensino de Língua Portuguesa, por tornar
manifesta essa relação, que implica também o conhecimento dos
rigores da norma padrão por todos os alunos, de tal modo que essa
arma da classe dominante possa ser usada para a construção de uma
variável histórica que beneficie a todos. (BACCEGA, 1996, p.28)
ALINE - Professora, em primeiro lugar gostaria de agradecer a possibilidade de
realizar esta entrevista nesta tarde do dia 16 de janeiro de 2013, para falar de sua
trajetória e da constituição e do campo epistemológico da comunicação no Brasil. Estou
muito feliz não só pela tarefa que me foi confiada, mas pela oportunidade do reencontro
prometido já há tanto tempo.
BACCEGA - Eu é que estou muito feliz em receber você aqui, de você sempre
reestabelecer meu contato com Eni Orlandi, que é uma pessoa que eu admiro e por
quem eu tenho um profundo afeto há tantas décadas.
ALINE - Nestes últimos dias estive lendo e relendo alguns textos da professora,
textos publicados na Revista Comunicação e Educação, e outros tantos que já faziam
parte do meu arquivo pessoal como o livro “Comunicação e Linguagem: discursos e
ciência” (BACCEGA; 1998), com o objetivo de preparar esta entrevista. Então, eu pude
perceber alguns pontos-chave da trajetória de pesquisa e ensino da professora, que
tocam questões como a interdisciplinaridade, o diálogo permanente com a Análise de
Discurso e a constituição do campo da Comunicação/Educação, além de seus estudos
sobre telenovelas e práticas de consumo. Em um perfil biográfico publicado
recentemente (ASSIS & CASTRO; 2013), o autor afirma que a marca autoral da
professora seria a interdisciplinaridade. Eu gostaria de começar falando um pouco sobre
isto. A que se deve esta interdisciplinaridade? A professora acha que a
interdisciplinaridade como marca de seu trabalho tem relação com seu investimento nas
questões da linguagem e do tratamento dado ao discurso durante sua trajetória?
BACCEGA - Acho que o fato de a interdisciplinaridade ser importante durante
toda a minha trajetória, e continuar a ser, claro, advém de uma determinada formação
político-ideológica que eu tive na condição de, muito jovem ainda, de ser militante do
Partido Comunista Brasileiro, que era uma coisa completamente diferente naquela
época. Fazíamos reuniões semanais para discutir textos de filosofia, de sociologia, etc.
Reuniões para ler o jornal que se chamava “Novos Rumos”, em uma época foi “A voz
operária”, depois surgiu o “Novos Rumos”. Então, esta formação sempre me levou a ver
toda a sociedade de maneira interdependente. Era muito claro para mim que se eu estava
em uma escola do Estado, que era uma escola para rico, na época era completamente
diferente. E eu era pobre e estava em uma escola do Estado, mas havia vária outras
colegas minhas de classe do primário que não estavam, que não tinham tido a
oportunidade de estar. E eu considerava, e considero até hoje, muito injusto que colegas
tão inteligentes não tivessem a mesma oportunidade que eu. Por que eu estava e elas
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não? Daí começa a haver uma necessidade de considerar o todo, de considerar a família,
de considerar as influências familiares, no sentido do que a família colocava como mais
importante, as origens da família. Porque eu sou de uma época em que as origens da
família eram muito importantes, não do ponto de vista sócio-ecônomico, mas do ponto
de vista das etnias. Sou descendente de italiano, e ser italiano tinha uma marca e tinha
um jeito de ser e nós nos víamos como tal. E, sobretudo, a pobreza. Primeiro, sempre
achei isso absolutamente injusto, absolutamente injusto. Todos deviam estar ali porque
todos tinham competência, etc. Então certas coisas foram me levando a ver a realidade
como um todo, como uma relação muito forte entre tudo que acontecia, sobretudo a
partir da classe social. Não era só o fato de eu estar e elas não, era uma coisa que
ultrapassava esse aspecto e que eu buscava, não entendia muito bem, mas buscava
compreender, etc.
BACCEGA - Bom, desde que eu me conheço por gente que escreve, eu sempre
tive paixão pela linguagem, pela língua portuguesa basicamente, e principalmente,
como meio de eu adentrar em todos os outros lugares de conhecimento. Tanto que
quando eu estava na quarta série do ginásio, tinham uma aula vaga na primeira série do
ginásio, e a professora de português, que era excelente, me convidou para dar essa aula,
preenchendo esta lacuna, e eu aceitei. Quer dizer, para você ter uma ideia, eu tinha de
13 para 14 anos e estava dando uma aula para os meninos de 11 e 12 anos, mas uma
aula de português, que era uma coisa de que eu gostava e sempre gostei. Então, a
interdisciplinaridade advém da minha vivência, de minha formação político-ideológica,
etc. E ela sempre me acompanhou. Quando eu cheguei a São Paulo, eu fui diretora de
escola, de uma escola do SESI, em Osasco, a primeira coisa que eu fiz foi procurar
todas as instituições da cidade, isso foi em 1966, fui procurar a indústria que se
relacionava com a escola, eu sempre fui favorável a essa concepção, e isto também era
um pouco intuitivo, do Gramsci de que não há separação completa, você tem trocas,
você tem dinâmicas, você tem câmbios entre as classes sociais; fui procurar o Sindicato,
dentro do Sindicato fui procurar as várias forças, fui procurar a Igreja Católica, a igreja
importante era a católica, fui procurar o Cenearte, o Colégio Estadual e Escola Normal
Raposo Tavares, que era a escola mais importante de Osasco, fui procurar, falar com a
diretora, para ver se algum aluno de lá queria vir para cá para dar umas aulas de história
para os meus alunos fora do horário de aula, e consegui. Porque eu achava que aquela
formação que eu estava dando, que era uma realidade completamente diferente da
realidade de Ribeirão Preto de onde eu vim e que nunca foi exatamente uma cidade
industrial, a formação não era suficiente e para compreender a realidade de uma cidade
industrial como Osasco eu tinha de me cercar e cercar meus alunos de muitos
conhecimentos. Eu queria era resgatar um pouco uma coisa que tinha nesse tempo, que
era a Biblioteca COLTED, do MEC – USAID. Já em 1966 estamos no golpe militar, e
havia esta biblioteca circulante que eles mandavam para as escolas. Só que neste tempo,
de 66 – 68, você ainda tinha muita gente de pensamento mais avançado que continuava
a trabalhar no Aparelho de Estado, quer dizer, a ditadura não tinha conseguido acabar
com todos. E esta biblioteca vinha com livros maravilhosos. Inclusive o “Introdução à
Semântica” do Schaff foi um livro que eu li porque estava nesta biblioteca, eu não
conhecia, em 1966, enfim, na minha opinião a gente não pode se recusar a ler as coisas
a que temos acesso, seja da ideologia A, B ou C, então mesmo em uma biblioteca de um
governo de direita havia muita coisa interessante. Isso tudo me leva a ter como baliza na
minha vida essa questão da totalidade que é uma questão que eu prezo muito, porque é
importante ver as partes em suas especificidades, claro, mas sempre em relação ao todo,
ou seja, é importante considerar o permanente diálogo entre as partes para tentar dar
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conta da totalidade. Não pense que fazendo isso eu chego ao todo, porque não há como
apreender uma totalidade acabada, mas é uma forma de não ser reducionista. É preciso
compreender a realidade que está aí e, desta realidade, procurar construir uma nova
realidade, de acordo com os nossos objetivos.
ALINE - Em termos discursivos, é possível pensar essa relação da parte com o
todo, de um processo que seria metonímico? Essa relação é bem interessante...
BACCEGA - O que eu coloco muito é a questão da metonímia na mídia, quer
dizer, a voz da mídia é metonímica, ela nos vende a parte como o todo. Então você se
sente absolutamente conhecedora da realidade, informada sobre a realidade, mas não é
bem isso...
ALINE - Uma realidade parcial e fragmentária...
BACCEGA - Isso sem falar nos interesses políticos e econômicos, da ideologia,
dos aparelhos, etc. Mas sim, é isso. E com isso, todo o meu trajeto foi no sentido de
construir um saber interdisciplinar.
ALINE – E isto tem relação com a própria constituição do campo da
comunicação, com saberes de diversos campos constituindo propriamente o campo da
comunicação...
BACCEGA - Sim, o campo da comunicação é constituído de vários saberes, ele
se nutre de vários saberes, mas isso acontece “antropofagicamente”. Quer dizer, ele
devora esses saberes e os transforma de acordo com suas próprias especificidades e
necessidades. Por exemplo, você pega a filosofia, você vai usá-la no campo da
comunicação, você vai lê-la, vai transformá-la de acordo com os objetivos da
comunicação, então o resultado não é mais aquela filosofia, pois ela irá se transformar
em uma outra, sem perder sua base. O mesmo acontece com a sociologia, etc. Então, o
embate se dá entre essas transformações ocorridas advindas destas ciências. O embate
não se dá na porta de entrada, e sim na porta de saída. Quer dizer, é um embate
permanente. É por isso que o nosso trabalho em comunicação não pode ser um trabalho
de história, nem de sociologia e nem de linguística. É um trabalho que deve conhecer
esta discussão permanente que existe no campo, seus diálogos permanentes.
ALINE – É sempre um embate, inclusive entre as questões epistemológicas que
surgem. E quanto à Análise de Discurso, particularmente, como a professora vê este
embate, esta tensa relação?
BACCEGA – Pois é, a Análise de Discurso é um encanto da minha vida que
permanece. A linguagem sempre esteve muito presente na minha trajetória. Na verdade,
eu fui fazer letras em 1968, e retornei em 19721, foi um período muito importante.
Quando retornei em 72, eu encontro algumas coisas que estavam lá do mesmo jeito,
coisas que eu achava que tinham sido ultrapassadas, mas enfim. Eu gostava muito de
linguística, inclusive a partir do Paulo Freire. Eu tive a oportunidade de estar em
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Baccega inicia o curso de graduação em Letras na USP em 1968, entretanto não foi possível prosseguir
“por conta da situação imposta pela ditadura à sua vida pessoal” (ASSIS, 2013, p.30), como descreve em
seu Memorial, entregue à Escola de Comunicações e Artes em 1996: “Vem o AI-5. Famigerado 13 de
dezembro [de 1968]. Começam as prisões. Fomos os primeiros. Eu, saio logo. Meu companheiro fica. Vai
amargar dois anos e meio de cadeia, entremeado a torturas. Os irmãos desaparecem. A repressão
encurrala a todos. Qualquer resistência está proibida. Deixou frutos? Muitos morreram. A maioria é
barbaramente torturada [...]. É a hora do desespero. O preço por querer que o mundo seja de todos é muito
alto. Mas a minha geração não foi covarde. Perdeu a batalha” (BACCEGA, 1996, p. 20).
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Brasília de outubro de 1963 a março de 1964, e trabalhei lá com Paulo Freire, com uma
equipe grande, eu ajudava a organizar os ciclos de cultura. Eu era uma das pessoas que
trabalhavam com Paulo Freire e aprendi muito, foi uma experiência maravilhosa, e ele
mostrava nas palestras para formar os coordenadores dos círculos de cultura, esta
relação do homem com o mundo, da temporalidade, da criticidade, a possibilidade de
dar muitas respostas, como ele colocava em seus livros. Esta relação do homem com o
mundo é uma relação que tem certas características e estas características apareciam na
linguagem, é uma relação de linguagem. Isso foi o que vi em Brasília, eu vivi isso, foi
muito concreto para mim. Esta relação do homem com o mundo, passando pela
linguagem, aparecia, por exemplo, quando a gente fazia um levantamento nas
comunidades, não se chamava comunidade, este termo era, aliás, bastante condenável.
Era um levantamento dos grupos que iriam ser alfabetizados e neste levantamento de
vocabulário apareciam as palavras que deveriam ser usadas na alfabetização, e uma
palavra que aparecia muito nestes levantamentos, em Brasília, obviamente, era a palavra
tijolo.
ALINE – Tijolo...
BACCEGA - E de como a palavra tijolo concretizava tudo aquilo que a gente
via na teorização. De como efetivamente a palavra, o signo linguístico, concretiza
aquilo que a gente tem de diferente dos outros animais, digamos assim. Nossa relação
com o mundo só se concretiza efetivamente na linguagem, e isso foi antes de eu ter
qualquer leitura de Bakhtin, nada disso, isso eu vi com o Paulo Freire, tive a
oportunidade de ver concretamente. Então, quando eu volto para cá, para a faculdade de
Letras, em 72, eu já estava procurando alguma coisa deste tipo, e não se falava ainda em
mediação, alguma coisa que mostrasse a concretude da linguagem, o peso ideológico da
palavra, o quanto a palavra carregava as experiências, enfim. E eu não encontrava, e fui
encontrar na linguística. E foi quando a Eni aparece como professora da gente, eu
acompanhei a Eni uma boa fase na USP, e depois ela foi para a Unicamp.
ALINE – O que foi muito interessante, pois na Unicamp ela já estava
constituindo um lugar para a Análise de Discurso, institucionalizando mesmo. E ela deu
aula de sociolinguística também, ainda na USP...
BACCEGA – Foi, aliás, eu me apaixonei por sociolinguística, o Dino Preti
também dava sociolinguística muito bem, e o livro dele “Sociolinguística: os níveis da
fala”, que é tão condenado por tanta gente, eu continuo achando que é um livro
introdutório que é preciso ler, para depois fazer as críticas que forem pertinentes, mas
para abrir a porta deste mundo fascinante para alunos que nunca leram isso, ele continua
sendo interessante. Havia uma série de questões internas na universidade, eu sempre me
perfilei ao lado da Eni, e foi quando eu comecei a conhecer a Análise de Discurso, mas
comecei e não essa Análise de Discurso com tanto ingredientes como tem agora. Eu
tinha um amigo, maravilhoso, que era como um irmão, era o Haquira Osakabe, que era
da Unicamp, né? Ele foi para França, fez um trabalho sobre Getúlio Vargas utilizando a
Análise de Discurso, quer dizer, aquela Análise de Discurso começava a interessar, mas
ainda tinha de desenvolvê-la. Se você pegar o livro do Haquira você vai ver a diferença,
é um livro bom, é um livro excelente, é um marco para aquele momento, mas hoje há
muitos outros ingredientes para analisar, para se pensar, do que havia naquele momento.
E com isso eu comecei a minha paixão pela Análise de Discurso. Eu estava em
Linguística, na USP, me chamaram para dar um curso de fonologia, que ninguém queria
dar. Eu estava como auxiliar voluntária, em uma turma que tinha alunos de linguística,
de terapia ocupacional, fisioterapia. Se foi difícil para mim, porque fonologia não era a
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minha área, imagine para os alunos de outros cursos. Acontece que eu era auxiliar
voluntária. Só eu não, tinha um monte, éramos nós que carregávamos a USP, dávamos
aula, cumpríamos as obrigações “administrativas”, mas não recebíamos nada nem
éramos contratados e nem tínhamos nada no horizonte. Lembre-se de que estou falando
de 1972, a ditadura está pegando, já temos uma ditadura mesmo implantada, e não
apenas um golpe de Estado como era em 64.
ALINE – Um ambiente bastante complicado inclusive para a Análise de
Discurso se desenvolver...
BACCEGA – Muito, muito. Então todos os auxiliares voluntários fizemos uma
reunião, e decidimos que não continuaríamos no ano seguinte se não aparecessem
vagas, enfim, concursos ou alguma coisa para a gente. De fato não apareceu, e de fato
nós não continuamos. E neste momento, a ECA estava sem professor de Comunicação
Linguística, a professora tinha tido problemas com os alunos, eu não sabia de nada, e o
Dino Preti foi chamado, ele já tinha dado aula lá, ele e o Izidoro (Blikstein), tinham sido
postos para fora de lá. Veja a perseguição! Aí o Dino Preti foi chamado e indicou três
ou quatro alunos, inclusive eu. Fomos lá e fizemos uma prova, foi uma aula, uma aulaentrevista, e eu entrei. Eu me lembro de perguntar no departamento se eles iam pagar, e
se haveria um contrato, porque eu fazia parte deste movimento e eu não ficaria se não
houvesse contrato. E eles disseram que sim, que havia verba. De fato tinha, mas nós não
recebemos, porque quando você era auxiliar de ensino, auxiliar voluntário na USP, você
tinha um documento publicado no Diário Oficial, etc, mas que não passava pela
Segurança, mas para contrato era diferente. A segurança não deixou. Eu só vim a
receber em agosto, já no segundo semestre, quando houve uma CPI na câmara, não se
chamava CPI, mas era uma Comissão de Inquérito na Assembleia que levantou a
questão do setor de Segurança da USP, que impedia as pessoas de terem seus contratos,
etc. Quem tinha ficha, na época, em 1978, era impedido. Antônio Cândido foi um dos
professores que mais se destacou nessas denúncias.
ALINE – Quem tinha ficha?
BACCEGA – Todos que tinham ficha do DOPS. Mas aí houve essa Comissão e
eles tiveram de encerrar as atividades do Setor de Segurança, e só então eles passaram a
contratar as pessoas. Outras pessoas também estavam na mesma situação que a minha.
Então, a partir daí eu fui para a Comunicação. Eu tinha 120 alunos, foi muito bom.
Depois eu descobri que a professora havia saído devido a um foco de tensão, e depois
ela me disse que queria mesmo sair, porque ela queria se dedicar ao não verbal.
ALINE – E como foi trabalhar a Análise de Discurso em outro campo, já dentro
da Comunicação?
BACCEGA – Eu comecei com a questão das categorias, ler um discurso,
observar as categorias, ver como eles estão sendo significadas no discurso. Sem dar
nomes, sem falar, por exemplo, de esquecimento, mas mostrando como estavam
funcionando no discurso.
ALINE – Seria uma abordagem mais prática, prática de análise...
BACCEGA – Eu não falava, por exemplo, de interdiscurso, mas os levava a
observar. Às vezes eu chegava a alguns conceitos, mas não cobrava dos alunos, porque
não dava para cobrar da graduação em Comunicação, de alunos que estão entrando no
curso de Comunicação. Porque eles estão voltados para a prática. Fazer análises eles
faziam, ele inferiam todas as categorias, isso no começo. Depois o tempo foi passando,
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e eu fui percebendo que já dava para mudar um pouso isso, pois eu já tinha adentrado na
teoria, eles já me conheciam, porque um aluno conta para o outro, e de fato eu fui
fazendo isso. Sempre trabalhando com a Análise de Discurso. Aquele livro da Eni que
chegou muito tarde para mim, o “Princípios e procedimentos”, esse livrinho é uma joia,
e o da Brandão também eu usei muito.
ALINE – E quais eram os autores mais trabalhados nesta época? Era mais o
Bakhtin? Porque o Bakhtin é um nome muito forte na Comunicação...
BACCEGA – Olha, eu vou dizer uma coisa para você, ninguém conhecia o
Bakhtin na Comunicação. Ninguém. Eu cheguei com o Bakhtin em Comunicação, com
o “Marxismo e filosofia da linguagem”, os outros não. Na pós-graduação sim, eu
trabalhava outros, mas na graduação era o “Marxismo e filosofia da linguagem”, pelo
menos três capítulos eram lidos e discutidos palavra por palavra, que eram o primeiro, o
segundo e o sexto, sobre interação verbal. Tinha também o Schaff, com o livro
“Linguagem e conhecimento”.
ALINE – O Schaff é lido na Linguística, eu mesmo li nas aulas de Semântica na
pós no IEL...
BACCEGA – Sim, o “Introdução à Semântica” sim, mas tem outros, como o
“Linguagem e conhecimento”, e tem também o “História e verdade”. Mas essa parte
mais filosófica não devidamente discutida. E uma parte importante, pois complementa o
Bakhtin. Há um trio que funciona muito bem, que é o Bakhtin, o Schaff e o Paulo
Freire. Porque o Paulo Freire tem tudo a ver com o Bakhtin e com o Schaff, então
sempre dei os três. Há um texto do Paulo Freire que é fundamental, que é “A
importância do ato de ler. Você junta ele com os textos do Bakhtin e do Schaff, o
“Linguagem e conhecimento”, você tem uma base sólida de Análise de Discurso, muito
sólida. Quando a gente trabalha um texto com os alunos, no final do ano eles
criticavam, esse foi bom, esse não foi bom, então quando faço esta afirmação para você
eu não estou receosa de fazê-la, porque ela foi resultado de muita crítica até chegar a
este ponto em que eu percebi que as coisas ficavam muito claras deste modo. Eu estou
falando de graduação, na pós-graduação eu trabalho muito com a Eni. Hoje eu nem dou
mais aula na graduação. Mas tinha a “Linguagem e funcionamento”, que eu sou deste
tempo, que eu usei muito, muito, muito. Inclusive na graduação e tudo isso. Agora, na
pós-graduação eu uso muito os livros da Eni eu sou muito ligada na obra da Eni. Acho
que, sinceramente, sem qualquer afeto em excesso, a Eni seria mais respeitada se não
escrevesse em português, que é uma coisa que nos condena a todos, acadêmicos, e
quando eu falo a todos, por exemplo, Antônio Candido pode não ser nenhuma estrela
no mundo, e para nós ele é uma estrela maior.
ALINE – É muito complicado para uma mulher, brasileira, fazendo Análise de
Discurso, escrevendo em português, e com um texto muito crítico.
BACCEGA – Mas eu acho que o que ela faz, me parece ser o que há de mais
importante em Análise de Discurso. Claro que eu trabalho com outros autores, eu
trabalho com a Gregolin, que eu acho muito boa, no geral. Fiorin, que se destaca. A
Diana, que se destaca também, entre outros.
ALINE – Claro que cada um com suas especificidades de análise...
BACCEGA – Sim, cada um com suas especificidades, mas a Eni se destaca
como totalidade, como liderança intelectual da Análise do Discurso no Brasil, e
certamente seria no mundo se não escrevesse em português. E esse negócio de achar
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que pode traduzir, não pode não, porque não é só o texto em inglês, são também as
relações editoriais etc.
ALINE – São as Condições de Produção que são outras, né professora?
BACCEGA – São as Condições de Produção.
ALINE – Fazer ciência no Brasil é ainda hoje difícil, mas no começo, eu
imagino que quando houve a institucionalização da Análise de Discurso, tenha sido
ainda mais difícil...
BACCEGA – Muito difícil. Como foi com Comunicação e Educação, que as
pessoas se recusavam a conhecer. E eu me orgulho muito disso, de ter trazido o Bakhtin
para a Comunicação, sinceramente. Lembrei-me de um aluno (risos), o Eduardo
Meditsch, foi meu aluno, hoje ele é gente importante na Academia. Ele fala que eu
mudei a vida dele, porque ele veio fazer um curso comigo, de pós-graduação, claro, e eu
estava dando Bakhtin, foi um semestre em que eu resolvi pegar a tradução em português
e cotejar com a tradução em espanhol, do “Marxismo e filosofia da linguagem”. Mas, eu
me orgulho em trabalhar com Análise de Discurso na Comunicação, há outros
professores que trabalham, não sei se com Análise de Discurso, mas com linguagem.
ALINE – Com linguagem sim, mas eu me lembro de que quando entrei para
fazer o mestrado na ECA, o único curso de Análise de Discurso que havia era o seu, e a
professora estava se aposentando, eu não cheguei a fazer o seu curso....
BACCEGA - Na ESPM, eu dou um curso de Análise de Discurso de textos
midiáticos na pós-graduação, um curso que eu consegui introduzir. Na ECA houve
crises e uma vez resolveram tirar o curso, criou-se uma polêmica, os alunos também se
revoltaram, porque era importante para eles. Não sei, mas eu acho que a única forma
efetiva que você tem de se aproximar do conhecimento da ideologia, da recepção, é a
linguagem. Só pode fazer isso com Análise de Discurso. Agora tem aqueles programas
que contam adjetivos, etc.
ALINE – Análise de conteúdo...
BACCEGA – Isso, análise de conteúdo. Mas isso não leva a nada. Eu acho que
você tem que, em algum momento, tem que usar a Análise de Discurso.
ALINE – E tem uma questão importante aí, que tem a ver com o conceito de
interdisciplinaridade e com o próprio conceito de mediação, que é a relação com o lugar
de entremeio do qual a Eni fala, isto é, da Análise de Discurso ser uma disciplina capaz
de dar conta desta interdisciplinaridade.
BACCEGA – E tem outra coisa muito importante. Para fazer Análise de
Discurso é preciso uma vasta cultura geral, e coragem para assumir uma interpretação.
PARTE 2: A Constituição do campo da comunicação/educação
Esse “ranço” se expressa numa escala que vai da tentativa de
subordinar os estudos dessa presença nos sistema formais e não
formais de educação a posturas rígidas [...] àquela que, muitas vezes
por desconhecimento, revela um exagerado fascínio com relação aos
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meios e da qual resulta, inclusive, a perda da criticidade. A decisão de
criar uma publicação periódica, voltada especificamente para as interrelações Comunicação/Cultura/Educação resulta dessa postura e tem
as seguintes premissas: a) os meios de comunicação estão nas salas de
aula, quer nas escolas que possuem um aparato tecnológico de
primeira linha, quer naquelas que podemos denominar de escolas de
“terra batida e pés descalços”; b) os meios de comunicação estão
presentes no cotidiano das pessoas e nelas introjetados, de tal modo
que, onde houver seres humanos, os meios estarão presentes
(BACCEGA, 1994, p.9).
BACCEGA – Exatamente. E tem a Comunicação e Educação também, que é
um outro aspecto da minha vida muito importante, pois quando nós começamos a fazer
isso ninguém nem falava nisso. Aqui no Brasil não havia nada. Nós começamos a falar
do assunto organizadamente, na ECA, em 1992. A Revista “Comunicação e Educação”
foi fundada em 1993, já com os primeiros resultados. É interessante que duas revistas
que eu queria fazer, havia dois projetos aprovados, um para a Revista de Pós-graduação,
que era um projeto gráfico lindo, maravilhoso; e o outro da Revista Comunicação e
Educação, um belo projeto. E eu fui atrás de editora para ambas as revistas, fui até a
Moderna onde eu tinha amigos, e eles disseram, olha, esta de pós-graduação nem
pensar, mas esta de Comunicação e Educação interessa sim. A Moderna trabalhava com
muito livro didático, então eu me comprometi com eles a escrever uma revista que
pudesse ser compreendida pela rede, sem abrir mão da seriedade acadêmica, etc, mas
que fosse compreendida. Se você pegar uma revista, verá que quando se usa um termo
técnico, ou ela explica, ou há uma nota de rodapé. Não deixa de usar o termo técnico,
porque é bom para o professor enriquecer o vocabulário, mas explica depois. E a revista
está aí até hoje. Eu fiquei na revista até 2003, 2004. E está lá a revista, continua, apenas
ela não vai ser impressa, o que me dói muito, porque eu gosto de revista impressa
(risos). Ela passa a ser só digital agora, em 2014.
ALINE – Já são 20 anos de revista Comunicação e Educação, cumprindo um
papel na constituição do campo da Comunicação/Educação.
BACCEGA – Agora tem mais gente trabalhando, inclusive temos o curso de
graduação na USP, de Comunicação/Educação, que o pessoal do Departamento colocou
um nome que considero feíssimo: Educomunicação. É um grande marco no
desenvolvimento dessas reflexões.
ALINE – Eu ia perguntar exatamente sobre esta denominação. Na leitura dos
seus textos, percebi que a professora usa sempre Comunicação/Educação para se referir
ao campo, e não Educomunicação...
BACCEGA – É eu não gosto desta denominação porque em Educomunicação
você tem a Educação antes da Comunicação, quando na verdade a proposta é
exatamente ao contrário, é Comunicação/Educação, ou seja, você lê a Educação a partir
da Comunicação. Não o contrário. Não é ler a Comunicação a partir da Educação, não é
isso que interessa. Isso é o que já vem sendo feito.
ALINE – Percebi isso nos seus textos, pois não aparece o termo
Educomunicação. É sempre Educação barra Comunicação.
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BACCEGA – No primeiro número da revista, eu coloco claramente que é
preciso acabar com o ranço da educação com relação às questões de comunicação. E
isso eu repito quando a revista fez 10 anos, eu repeti esse editorial, e deixei como
estava. Continuo a perceber que ainda é isso mesmo, a Educação tem uma maneira
muito rançosa de tratar a comunicação...
ALINE – Poderia dizer que é uma concepção instrumental da comunicação?
BACCEGA – Instrumental, e rançosa, preconceituosa mesmo. Preconceituosa,
muito, muito.
ALINE - Outro ponto importante são as pesquisas sobre telenovela, não é
mesmo, professora?
BACCEGA – Sim, telenovela. Ajudei a fundar e estruturar o Núcleo de
Pesquisa de Telenovela, na USP. Mas quem levou isso adiante foi a Immacolata
(Vassalo de Lopes). Ela pegou o peão com a unha. Em 2001 teve o incêndio que acabou
com todas as nossas coisas. Em 2003 eu me afastei, que foi quando me aposentei e tal.
E aí a Immacolata pegou o peão na unha e levou a coisa para frente, está maravilhoso,
hoje temos o Observatório Ibero-americano de Teleficção, em vários países. Eu
inclusive participo. Já temos várias dissertações sobre telenovela, umas excelentes, lá na
ESPM2.
ALINE – Mas voltando a Comunicação/Educação, em um artigo a professora
fala que o objetivo do campo deve ser fazer o aluno ir além de reproduzir telejornais,
por exemplo.
BACCEGA – Isso é uma coisa importante, porque ai acho que a
Educomunicação, chega um pouco perto disso, aí que eu condeno muito. Porque é o
seguinte, você levar os seus alunos a reproduzirem o jornal nacional, enfim, eu acho que
não leva a nada, porque é uma contrafação, e se for para fazer isto é melhor ver o jornal
nacional e discutir com eles. O problema é discutir, ninguém discute. Eu acho que antes
de você ensinar a fazer um telejornal, você tem que ensinar como é feito. Então, por
exemplo, você tem um processo de seleção da notícia, ali não está tudo e nem poderia
estar. Agora, como se faz a seleção? Então, isso pode ser feito na sala de aula. Então
você junta, por exemplo, cinco alunos por grupo, e manda cada um escrever o que
aconteceu de mais importante no dia anterior, cada um escreve. Aí o próprio grupo vai
tirar o que achou mais importante desses cinco. E depois fazer isso com todos os grupos
da sala, e a sala escolhe o mais importante. Daí você tem a manchete. Então, foi feita
democraticamente a escolha. E apesar disso muitos não estão lá, porque de muitos, de
cada cinco um saiu. E assim mesmo, o que eles escreveram não significa tudo o que
aconteceu naquele dia.
ALINE – Já é uma versão.
BACCEGA – É, você tem que fazer um trabalho sobre como é feito o telejornal,
e é muito comum você ver as pessoas repetirem a fórmula, entendeu? Acho que o que
importa é saber como é feito, o que está por trás da telinha, do som do rádio, são essas
coisas que interessam. Nada impede que você produza um telejornal. Mas tem muita
coisa que vem antes. Eu insisto nisso. Se é só para reproduzir, então grave o programa e
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Em 2003, Baccega pede sua aposentadoria da Escola de Comunicações e Artes da USP, e por motivos
de saúde e orientação médica, decide trabalhar apenas meio período. Aceita, então, o convite de Vladimir
Safatle para integrar um projeto stricto sensu na ESPM, Escola Superior de Propaganda e Marketing,
onde está até hoje.
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leve o jornal para a sala de aula, e discuta com os alunos. Selecione alguma notícia para
discutir, o que é que está por trás dessa notícia? Agora, isso depende, você lembra o que
eu disse sobre o Paulo Freire e os círculos de cultura, assim como ele fazia aquilo
naquele tempo, nós temos que começar a fazer de novo, a formar os coordenadores dos
círculos de cultura, quer dizer, a formação dos professores é muito importante. Então,
tem de ser feito, não adianta. Levar um programa para sala de aula e fazer um programa
sem nada por trás é bobagem, é melhor ficar naquele negócio de o que é sujeito, o que é
predicado, você entendeu? Acaba sendo uma espécie de matar o tempo, a verdade é
essa. Quando eu trabalhei em Osasco, nós fazíamos o livro do ano, com revistas e
jornais, pegávamos as notícias mais importantes de datas diversas, e organizávamos e
colávamos para ir fazendo o livro do ano todo. Então, no fim do ano você tinha o livro
da história do ano, a história vista do ponto de vista daqueles alunos com aquele
professor.
ALINE – Professora, durante o café nós conversávamos sobre as principais
dificuldades dos alunos hoje, em relação à norma padrão, e de como a Comunicação
pode contribuir para a melhoria da qualidade de ensino oferecido aos alunos. A
professora disse que, para mudar a escola, é preciso um projeto nacional que engaje as
pessoas, do contrário os efeitos são a superficialidade e o imediatismo.
BACCEGA – Não podemos esperar pelo projeto nacional. Que às vezes parece
que está vindo, mas não chega nunca. Então, para mudar a escola, é preciso, primeiro,
investir na formação dos professores. Não é difícil, tendo dinheiro não é difícil. Tem
que ter investimento. Porque eles também querem aprender. Eles querem muito
aprender. Eu participei de um projeto que foi coordenado pelo Ismar (de Oliveira
Soares) que se chamava “O rádio na escola”. Os professores do meu departamento que
quiseram ir, nós participamos do projeto para ir à periferia, mas periferia mesmo, aonde
eu nunca iria se não fosse pelo projeto, claro. Não teria nem como ir. Foi ótimo, foi
ótimo. Então a gente ia para lá de manhã e tinha uma reunião com pais e professores da
escola, para falar sobre comunicação, claro. E eu aprendi muito, e encontrei professores
maravilhosos esperando ajuda, com vontade de aprender. Aliás, esperando não, eles não
ficam lá esperando. Eles estão se mexendo. Mas falta muito para eles, porque, é o
seguinte, quem diz isso é o Lenin, onde a classe operária pode chegar sozinha? Com as
forças dela própria, é muito pouco para que ela venha a ter o poder, é muito pouco. É
preciso que todo o acervo de conhecimento da humanidade adentre a classe operária, eu
diria, a sociedade, e, para isso, você tem que contar com os intelectuais. Entra aqui toda
aquela famosa discussão de Gramsci sobre os intelectuais e a organização da cultura, e
outros autores discutem isso bem, como é o caso do Edward Said. Então, é o mesmo
caso das professoras, quer dizer, aonde elas podem chegar? Com toda vontade de
aprender, de fazer, etc., elas podem chegar até um ponto. E é nesse momento que tem
que entrar a instituição pública.
PARTE 3 – Comunicação e práticas de consumo
O consumo relaciona-se diretamente com a comunicação, através do
discurso publicitário, da mídia, do boca a boca, da divulgação dos
bens materiais/simbólicos produzidos, etc; com a educação, formal ou
não, por ser aí que se pode construir competência sobre a temática, de
modo a formar cidadãos que se relacionem reflexivamente com ele.
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Sendo o campo da comunicação/educação lócus privilegiado da
formação dos sentidos sociais, a discussão sobre o conceito e a prática
de consumo tem aí lugar privilegiado (BACCEGA, 2011, p.211).
ALINE – Professora, depois que a senhora foi para a ESPM, começou a
trabalhar também com a linha de pesquisa Comunicação e Práticas de Consumo. Para
finalizar nossa entrevista, a professora poderia falar um pouco sobre consumo...
BACCEGA - Quando eu fui para a ESPM eu fui convidada para ajudá-los a
implantar o programa de mestrado, eles não tinham nada stricto sensu, e foi muito bom
ter acontecido isso, eu estou muito bem lá. E eu não sabia nada sobre consumo, eu sabia
que consumo não podia ser aquela coisa de compra e venda, o tal do marketing, eu sabia
que consumo não podia ser isso. Aí eu fui estudar, fui ler. Daí eu fui me aproximando,
lendo autores muito interessantes. E o consumo, na verdade, é uma característica de
pertencimento da pessoa, ele faz parte, portanto, da concepção que a pessoa tem da
realidade e dela mesma. Então o ato de consumir, de comprar alguma coisa, não é só um
ato de comprar alguma coisa. Ele é um ato indicativo de um grupo ao qual você
pertence ou quer pertencer. Então é uma coisa, menos toma lá dá cá, e mais de formação
de identidade. O que eu defendo hoje, e não sou só eu, é que, primeiro, o consumo é
indispensável, toda sociedade, para existir, deve ter consumo: produção distribuição e
consumo. O consumo então é parte da sociedade. Agora, nem todos têm acesso ao
consumo daquilo que ele considere que seja importante para ele. O erro está aí, então, o
que a gente defende é que todos tenham acesso, e que tenham, portanto, o direito de se
sentirem capacitados para eles próprios se reconhecerem. Todos teriam de ter direito a
esse consumo, esse é um primeiro momento, para só depois disso, porque nós não
estamos propondo acabar com o consumo, de jeito nenhum, seria ridículo, só depois
desta satisfação é que você terá, depois não, nunca as coisas são tão separadas assim,
mas enfim, você vai tendo as condições de agir criticamente sobre as questões do
consumo.
ALINE – Tem de estar dentro, e não segregado e sem direito ao consumo. Para
então haver um agir crítico.
BACCEGA – Então, quando eu falo de consumo, não é essa coisa de verificar
se a tampa da latinha está estufada, não é isso. Ou do consumo consciente, se a
embalagem é reciclável. Não tenho nada contra isso, elas são necessárias, mas isso não
esgota. Coisas como estas, que são adequadas, são boas, elas ficam como uma fumaça,
encobrindo a verdadeira realidade. E tampam mesmo, tampam mesmo. Então essa
história de consumo consciente é isso, é mascaramento. O que eu defendo é isso. O que
tenho feito agora é tentar pensar um lugar para comunicação, educação e consumo.
Porque eu acho que é na Comunicação/Educação que se deve pensar as questões do
consumo, porque é um campo largo. Essas relações da Comunicação com o Consumo,
que não são apenas as questões da publicidade, eu acho que elas estão bem se estiverem
no campo da Comunicação, Educação e Consumo. Quer dizer, o consumo entrando
como um dos fatores de criticidade para esta sociedade. Quer dizer, se você quer
realmente formar estudantes, formar sujeitos sociais que tenham condições de mudar a
sociedade, se eles quiserem, eles têm de ter criticidade suficiente para compreender o
que é o consumo, e não simplesmente “não consumir”.
ALINE – Eu me lembrei agora da atual polêmica envolvendo os rolézinhos nos
shoppings, eles não querem apenas consumir, vai muito além disso...
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BACCEGA – Eu participei de um projeto em 2006/2007, na ESPM, sobre o
conceito de publicidade, trabalhei com alunos do terceiro colegial, peguei a Cohab,
periferia, e os alunos do Colégio Coração de Jesus que são mais classe B e A. B, né? E
peguei os alunos de uma escola estadual do bairro do Morumbi, mas não funcionou
porque a diretora, você sabe, é difícil. A única coisa que eu aprendi de bom foi ver que
os alunos dali eram diferentes, porque tinham acesso a jornal diário na casa dos patrões
dos pais. Mas, enfim, vamos considerar os alunos do Coração de Jesus e da Cohab. E
uma das coisas que eles disseram foi que eles não podiam entrar no shopping, então eles
tinham acesso aos bens através de publicidade. Eles consideravam que a publicidade era
o acesso deles para o mundo, porque era como eles ficavam sabendo da existência dos
aparelhos tecnológicos, etc.
ALINE – Então já era uma realidade fortemente mediada pela publicidade.
BACCEGA – É, e não tinha outro jeito, né? E eu citei isso muitas vezes, para
mostrar como é a nossa realidade, porque cada nível socioeconômico vai ter uma
relação com a publicidade. E eu não exagerava isso, porque, tá aí, eles não podem entrar
no shopping. E como é que eles vão saber dos novos aparelhos que saírem, pela
publicidade, não tem outro jeito. Porque eles não podem ir ao shopping e olhar a vitrine.
E agora eles resolveram que eles querem, e têm todo o direito.
ALINE - Eu fiquei pensando, professora, se o consumo, não sei, é uma hipótese,
se o consumo não seria hoje um articulador simbólico...
BACCEGA – Eu acho que ele é um articulador simbólico sim. Ele é um
articulador simbólico, e o que eu acho que aconteceu foi a mercadorização do consumo,
entendeu? O que se tem hoje é a mercadorização do consumo, que passa pela coisa de
se poder vender tudo, tudo tem preço. Inclusive sua identidade, seu corpo.
Explico-me: a identidade, como sabemos, passou a ser móvel, não é a mesma, a
da família e dos territórios, que se carrega do nascimento ao túmulo. Ela está sempre se
movimentando. Ocorre que em determinados períodos, valoriza-se a magreza e lá vão as
mulheres buscar essa característica, para se valorizarem no mercado; em outros, sãos os
seios grandes o objetivo, às vezes, os vilões, e assim vai. Quer dizer: o ser humano, o
sujeito é um produto que se vende a si próprio. E também uma mercadoria.
ALINE- Enfim, professora, quais permanecem seus focos de investigação?
BACCEGA – Ah! Análise do Discurso como eixo, telenovela, comunicação e
educação e comunicação e consumo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ASSIS, Francisco de; CASTRO, Gisela G. S. (orgs.) Maria Aparecida Baccega:
dedicação, ética e solidariedade. São Paulo: Intercom, 2013.
BACCEGA, Maria Aparecida. Comunicação e Linguagem: discursos e ciência. São
Paulo: Moderna, 1998.
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Entremeios: revista de estudos do discurso. n.8, jan/2014
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__________. Reflexões sobre as relações comunicação/educação e consumo. In:
MARQUES DE MELO, José (org.). Pensamento comunicacional uspiano: impasses
mundializadores na Escola de Comunicação e Artes (1973-2011). V.2 São Paulo: ECAUSP, Sociocom, 2011, p.203-2013.
__________. Memorial. Original apresentado à Escola de Comunicações e Artes da
Universidade de São Paulo, 1996.
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ENTREVISTA COM MARIA APARECIDA BACCEGA