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A ESCOLA DESOBEDIENTE O autoritarismo no meio esportivo, a falta de alegria e de movimento nas escolas
e o uso de drogas pelos atletas. Por Cleusa A. Monteiro
oão Batista Freire, 41 anos, é um crí­
tico profundo do tratamento que a es­
cola dá às crianças e às disciplinas com
que trabalha, escorado em uma qualidade
essencial: a paciência histórica. A mesma
que, em 1971, o levou a trabalhar no Cen­
tro de Treinamento, em São Bernardo do
J
Revista da Fundação do Esporto e Turismo 1 (3): 11-18,1989
Campo, com mais de duas mil crianças fa­
veladas. Era a forma possível, naquele mo­
mento, segundo ele, de "derrotar a ditadura
militar". Para isso, era preciso esquecer a
vida pessoal e dedicar-se totalmente ao tra­
balho, que incluia até ensinar crianças a es­
covar dentes. Segundo Freire, foi o melhor
trabalho de sua vida - experiência que está
sendo transformada em um livro.
Formado pela Faculdade de Educação Fí­
sica de Santo André, há 16 anos, Freire tra­
balhou na Universidade de São Paulo, na
Universidade Federal da Paraíba e hoje,
apaixonado pelo estudo da motricidade,
participa da montagem do laboratório de
pesquisas em motricidade humana na Uni­
versidade de Campinas (Unicamp). Ao
mesmo tempo, coordena o setor de espor­
tes da Prefeitura de Campinas.
Voz mansa e serena, recebeu a "Revista da
Fundação de Esportes e Turismo", para fa­
lar de repressão, de autoritarismo, do uso
de drogas no meio esportivo e da necessi­
dade de uma ciência esportiva que contri­
bua concretamente no dia-a-dia dos
cidadãos.
11
O que é uma educação para a
transformação, principalmente no caso
da Educação Física?
Eu não quero que a Educação Física
seja uma disciplina excepcional, mas uma
disciplina comum que, na escola, participe
da formação das pessoas tanto quanto as
outras. Isso não quer dizer que as outras
disciplinas dêem uma grande contribuição.
Elas têm uma série de distorções e nunca
se modernizam. Cria-se um tipo especial
na escola que não é nem criança, nem
adulto, não é nada. É o tal do aluno. Uma
pessoa que apesar de ter uma vida total­
mente diferente, de brinquedos, de fanta­
sias, quando chega na escola tem que ficar
sentado o período inteiro. E aí o aluno
aprende aqueles conteúdos que a escola
acha suficientes pra ele se formar. Não
deveria ser assim. A Educação Física po­
deria dar uma boa contribuição, não reti­
rando a liberdade de movimentos que é
uma das características da criança. Mesmo
porque aprender, não é só com o ouvido
ou só com a mão. Aprende-se com corri­
das, com saltos. Isso tudo de uma forma
prazerosa.
triste. Ela tem carteiras, prédio, mas não
tem espaço e é muito difícil que isso
aconteça. Por isso as propostas novas vão
ficar por aí. Na medida em que for sendo
possível, as coisas vão se transformando.
As crianças convivem com
transformações significativas em seu
meio, enquanto a escola continua com
o quadro, a carteira e o giz. Por que
acontece isso?
Muita gente está preocupada com um
tipo de educação através da qual as crian­
ças acumulem informações e aprendam
pensamentos dos outros. Me preocupa
muito que a gente não esteja empenhado
em fazer com que a escola seja um am­
biente onde as pessoas produzam pensa­
mentos, aprendam a pensar. Se você ob­
servar, verificará que quem faz a história
da humanidade são as pessoas que traba­
lham, que estudam, que andam nas ruas,
que vão pra guerra: as pessoas comuns. Os
nomes que ficam na história, porém, são
das pessoas que deixam certos marcos,
que conseguiram, por circunstâncias
muito especiais, produzir pensamentos.
Por que a escola insiste numa
prática que as crianças não gostam?
A história da humanidade não é feita
de dezenas, mas de milhões de anos. Es­
cola é uma coisa nova que não vai mudar
de repente só porque a gente quer. Fo­
ram milhares de anos até se chegar numa
escola. Não vai ser numa década, em duas
ou três que a gente vai mudar. Quando fa­
zemos uma proposta não esperamos que
mude amanhã. Um dos problemas de
quem mexe com educação é propor tudo
para amanhã. Quando faço uma proposta
de "Educação de Corpo Inteiro", sei que
eles não vão derrubar os prédios e tirar as
carteiras de um dia para o outro. Pensar
isso é um absurdo. Mas é acreditando que,
assim como surgiu, essa escola pode mu­
dar. Muda devagarzinho, com as pequenas
contribuições que as pessoas dão. O sis­
tema é conservador e se defende. Estabe­
leceu essa estrutura de escola para formar
um tipo de gente que se conforma com o
modelo de poder que estamos convivendo.
Nossa proposta de transformação se opõe
a essa foma de poder que estabelece que
as pessoas sejam dóceis, passivas, obe­
dientes, disciplinadas, ordeiras. Queremos
uma escola onde a criança viva um outro
tipo de ordem, que pressuponha também
desordem, que quebre a disciplina tradi­
cional, que haja barulho, porque as crian­
ças vão se movimentar, que haja alegria,
que haja brinquedo. Pra escola, isso é in­
suportável, porque ela é uma instituição
12
Uma pessoa se
movimentando está
realizando atos
de inteligência
Temos Galileu, Kant, Marx, Einstein, que
produziram pensamentos magníficos e
deram viradas na história, como Darwin,
por exemplo. Imaginar apenas que a
criança está aprendendo muitas coisas
fora da escola não resolve. O importante é
que ela esteja aprendendo a pensar, exer­
citando sua inteligência. Se brincando,
formando grupos de amigos, criando coi­
sas num computador, lendo, estiver exer­
citando sua inteligência, isso é bom. Mas
os meios de comunicação e a escola, mui­
tas vezes, não permitem que a criança
exercite sua inteligência. É preciso um es­
paço na escola sem a preocupação de que
ela acumule, e onde, de qualquer maneira,
expresse conhecimentos de matemática,
de história. O essencial é o desempenho de
pensamento sobre os problemas na ciên­
cia, na geografia, na educação física que é
um dos meios mais privilegiados na escola,
pelo menos para crianças até à puberdade
na medida em que pode exercitar sua inte­
ligência com o corpo inteiro. Inteligência
não é coisa só de cérebro, mas do corpo
todo. Uma pessoa se movimentando está
realizando atos de inteligência.
A dicotomia corpo/mente fez
nascer uma visão de que a Educação
Física é disciplina dispensável, ou não
tão importante quanto as outras?
De fato, o cérebro é muito nobre. Po­
deríamos ter um cérebro que fosse um
tronco cerebral, algumas áreas que regu­
lassem os movimentos automáticos, a vi­
são etc, como os outros animais. O ho­
mem, porém, foi criando em cima do
tronco cerebral uma massa imensa de
córtex para poder se adaptar ao mundo.
Temos realmente recursos cerebrais pri­
vilegiados, mas para utilizá-los, temos que
exercitá-los, viver situações que os soli­
citem. A espécie humana tem um recurso
muito particular - a neutenia - que é a ca­
pacidade de ser criança durante muito
tempo. Nossos órgãos sexuais amadure­
cem e continuamos crianças por longo
tempo. Se fôssemos como os animais e
amadurecêssemos aos dez anos, pararía­
mos de nos desenvolver. Nosso cérebro é
um órgão tão complexo que demora mais
tempo para se colocar em funcionamento.
Ele precisa organizar toda essa complexi­
dade e de muitas experiências que têm que
ser diversificadas. Se se pegar uma crian­
ça e submetê-la, a partir dos 5, 6 anos de
idade até sua formação, à experiência de
aprender a escrever e só a escrever, ou só
fazer ginástica olímpica, ou só a vender
limão na rua, estar-se-á pegando essa
imensidade de cérebro e limitando-o a
cumprir uma única tarefa, que é uma coisa
equivalente a uma atividade adulta. Na
medida em que um pessoa pode ser crian­
ça, ela fantasia, brinca, é irresponsável,
indisciplinada, imagina mil coisas do mun­
do que não o nosso mundo real. Assim ela
está criando, mesmo porque ninguém cria
quando está se exercendo uma tarefa roti­
neira. A gente cria quando sobra tempo.
No momento de apertar um parafuso, não
estamos criando. A humanidade se desen­
volveu muito porque inventou o tempo li­
vre, o lazer, o "estar à toa". Inventou isto
domesticando os animais, ingerindo carne,
Revista da Fundação de Esporte e Turismo 1 (3): 11-18, 1989
cultivando o trigo. Domesticando as
plantas e os animais pelo menos uma parte
da humanidade ficou com muito tempo
sem fazer nada. E a infância teria que ser
esse período de muito tempo sem fazer
nada. Só imaginando, fantasiando, só
exercitando esse cérebro.
Gostaria que o senhor falasse da atuação da Educação Física. Qual seria a tarefa das disciplinas,
de modo geral, e da Educação Física,
em particular, no desenvolvimento do
raciocínio?
Tarefa da escola é pegar tudo que a
pessoa faz fora dela e dar uma linguagem
mais elaborada. A matemática, por exem­
plo, não é coisa só de escola. E coisa que
todo mundo faz na rua, no trabalho. To­
dos têm uma linguagem fora da escola. A
criança chega sabendo língua, matemática,
calcula, fala, se relaciona, vive sentimen­
tos, mas é na escola que isso tem que ad­
quirir nova roupagem, ser elaborado.
Àquela matemática que serve para jogar
futebol, atravessar a rua, comprar doce,
jogar figurinha, será transformada em
números, em equações. Os pensamentos
matemáticos serão estimulados a interar­
gir com outros, resultando em pensamen­
tos de mais alto nível. A criança forma sua
moral, seus grupos infantis. Na escola ela
teria que aprender a conviver com grupos
diferentes, a fazer trabalhos coletivos. Por
que as tarefas da escola são sempre indi­
viduais? Se um dos objetivos explícitos da
escola é a socialização, não se poderia
isolar cada pessoa em sua carteira. Se a
escola tem por objetivo fazer crescer os
sentimentos, por que as relações são tão
impessoais? Por que os professores não
têm uma relação mais estreita com a
criança, por que não demonstram amor
pela criança, por que não tocam numa
criança, por que não mexem com o corpo
de uma criança? Tentam uniformizar co­
mo se todos fossem iguais e pessoas sem
sentimentos. Uma mesma tarefa para cin­
qüenta crianças, vai magoar algumas, vai
frustrar outras. E nada disso é levado em
conta. A tarefa da escola deveria ser me­
xer com os sentimentos, com as relações.
Assim os conflitos virão à tona e
terão que ser discutidos.
A escola teria que ser um centro de
produção de democracia. Como é que se
faz democracia com pessoas isoladas e
disciplinadas por autoridades adultas e in­
questionáveis? A escola não quer conviver
com o conflito, mas deveria. A criança
não chega na escola zerada. É agressiva,
amorosa, invejosa, tímida ou violenta. Po­
de ter muitas virtudes e defeitos, mas teria
Revista da Fundação de Esporte e Turismo 1 (3): 11-18, 1989
Como é que se faz democracia com pessoas isoladas e disciplinadas por autoridades inquestionáveis? que aparecer do jeito que é. A partir disso,
a escola faria um trabalho de educação. Se
não se considera a individualidade da
criança, a culpa é da escola. Por isso pre­
cisa mudar. Não se pode ter medo de ver a
criança como ela é. Um dos maiores pro­
blemas da criança, na escola, é a agressi­
vidade. Para tratar essa agressividade é
preciso admiti-la. Tratar uma criança " i ­
deal" resultará em frustração.
A Educação Física é tão mais impor­
tante quanto mais nova for a criança. A
cultura de uma criança que chega à pré­
escola é a do brinquedo, da fantasia, dos
movimentos corporais e não a cultura de
papel, de livros, de números. Se conside­
rarmos que o início do processo de educa­
ção é o que a criança sabe, é e sente, leva­
ríamos em conta os movimentos, a fanta­
sia, o jogo, o brinquedo. Se isso fosse
feito talvez se pudesse pensar numa escola
que não separasse a Educação Física das
outras disciplinas. A educação motora
passaria a ser importante porque tem mais
afinidade com aquilo que a criança é nessa
fase, ou seja, dependente de uma relação
muito concreta de mundo. É como uma
pessoa que está aprendendo a navegar e
que, dificilmente, arrisca-se a ir para o
alto mar. Viaja um pouquinho, mas está
vendo a costa. Pensa e raciocina, mas em
relação às coisas que lhe são concretas,
que pode ver e pegar. O mundo das hipó­
teses e das coisas possíveis, dos planos,
das táticas é pra gente que já tem um
pensamento de mais alto nível. A ligação
concreta da criança com o mundo é feita
pela atividade corporal. Não sei como se­
ria em outras galáxias, mas nesta esfera de
vida que é o planeta Terra, a ligação é
corporal. Vivemos porque somos um cor­
po. Para respirar oxigênio, para circular
nesse planeta, dependemos de um corpo.
A ação corporal é a fonte das produções
humanas. Para uma pessoa desenvolver
um sentimento de amor, precisa de uma
fonte. Essa fonte será, provavelmente,
a relação corporal que ela vai ter com as
outras pessoas, o que vai ver nas outras
pessoas e em si mesma, o que vai tocar nas
outras pessoas, o que ela vai abraçar, o
coração que vai palpitar e assim por dian­
te. Para compreender uma operação arit­
mética, terá que subir em lugares altos,
mais baixos, percorrer distâncias maiores,
menores, cansar mais, cansar menos. Uma
comparação de quantidade nascerá desse
equacionamento que uma pessoa faz de
suas ações de correr, andar, dormir, co­
mer mais e menos, de jogar, de lançar um
objeto. A matemática é uma representação
desse tipo de ação. Ações que estão em
formação e que são feitas pelo corpo. Por
isso a educação motora é indispensável.
Uma educação motora que estimule a
criança à reflexão. Não é um simples fa­
zer, é um fazer com compreensão. Ela tem
que viver situações de conflitos entre o
que sabe e o que não sabe. Na Educação
Física você coloca uma criança se diver­
tindo frente a uma situação nova - mas
13
não totalmente nova, é preciso observar
essa nuance - ela estará subindo mais um
degrau e superando uma situação de dese­
quilíbrio. Dez degraus de uma só vez su­
birão raras pessoas privilegiadas. Se a
criança está no nível A, o professor tem
que estar no B e não no A ou no L. Essa
sutileza não se aprende enquanto profes­
sor na escola, porque as escolas de ma­
gistério não sabem desenvolver isso.
Aprende-se sozinho. É importante que, se
a criança estiver no nível A, seja estimula­
da para o B. Se isso for feito numa escola
muito chata, com carteiras, será difícil ela
superar. Não terá motivos para ir adiante.
Se for, no entanto, dentro de um jogo, tu­
do fica mais gostoso e será um estímulo
para ir sempre adiante. Uma pedagogia
que considere o prazer, a atividade cor­
poral, tem mais chances de se sair bem.
Isso se pensarmos em educar e não em
construir pessoas para certo modelo de
sociedade.
A escola brasileira é retrógrada?
Não só a brasileira como também a
estrangeira. No geral - claro que há exce­
ções - as escolas puxam pra trás. Saímos
da escola e não lembramos mais nada dela.
Quem fez uma faculdade, aprende nos
estágios, vivendo a prática da profissão.
Há algumas coisas da escola porém, das
quais não nos esquecemos nunca: o medo
e a subserviência, a disciplina e a ordem
estabelecida. Passamos o resto da vida
com medo de falar, com medo de recla­
mar, sem produzir pensamento original
nenhum. A professora ensina um pouqui­
nho de equação do lº grau e a gente fica
12, 15 anos sentado, sem se mexer. Um
aluno meu de 25 anos não tem coragem de
falar na minha frente. Esse medo a gente
aprende muito bem na escola. Esse seu
papel ela exerce muito bem. Veja bem, se
fosse desenvolvida na escola uma educa­
ção motora que privilegiasse as coisas
boas, aprenderíamos que prazer é bom
e seria difícil renunciar a ele. Se vivêsse­
mos a liberdade, saberíamos que liberdade
é bom. Se a gente vivesse o prazer de fa­
zer as coisas a nível físico ou mental, não
abriríamos mão desse prazer de pensar ou
de fazer as coisas com as mãos, de chutar
bola etc. Se a gente vivesse o prazer de
tocar no corpo do outro, não abriríamos
mão disso e queríamos fazer isto o resto
da vida. Não nos deixam viver essas coi­
sas. E acabamos por não conhecer isto. A
não ser excepcionalmente, em algumas
circunstâncias de vida. E por isso esque­
cemos que temos um corpo, que é fonte
de prazer, como a matemática é fonte de
prazer, como a música etc. A educação,
que deveria ser fonte de vida, de estimula­
14
ção à vida, acaba sendo uma fonte de de­
pressão.
Como concretizar sua proposta de
Educação Física num contexto como o
brasileiro, onde as crianças vão pra
escola pela merenda escolar? Ou nem
vão pra escola?
Esporte escolar é para quem vai à es­
cola. Isso já deixa de lado uma multidão
Quem compreende a fome, vira um inferno de crianças que, já da lª pra 2ª ou 3ª sé­
rie, é afastada da escola. O poder do pro­
fessor recuperar para a escola esta multi­
dão é pequeno. É um problema político.
Nosso limite no esporte escolar ainda é a
escola. Mas este não deve ser o limite das
prefeituras ou do governo do Estado, cujo
trabalho deve dizer respeito aos que estão
fora da escola também. Uma criança que
vá para a escola, mesmo que passe neces­
sidades, tem condições de desenvolver
atividades motoras. É um pouco mistifica­
da essa idéia de que ela não possui esta
capacidade. Tanto tem que, fora da escola,
ela brinca muito. É preciso algo compatí­
vel com o que ela faz fora da escola. Se a
escola der uma atividade ao nível de su­
portação de esforço Y quando o da crian­
ça é X, estará violentando-a. Basta um
pequeno conhecimento sobre a criança em
questão para uma atividade adequada. A
criança brinca mesmo com fome. De
qualquer forma, é ultra-necessário fazer
educação motora, por pior que sejam as
condições de vida da criança. Não pode­
mos e nem é nossa função dar o prato de
comida para ela. Escola não é refeitório.
Mas podemos dar condições mentais para
que ela possa, um dia, reivindicar sua co­
mida. Uma pessoa que aprenda bem a
matemática, que tenha boa coordenação
motora e alto nível de pensamento, poderá
não ter comida, mas entenderá sua própria
fome. O meu papel, enquanto professor
não é dar comida, mas sim condições pra
pessoa refletir e criticar, pelo menos, sua
própria fome. Quem compreende a fome,
vira um inferno.
Qual seria sua proposta para os
Jogos Escolares?
Se fosse fazê-la, ao invés de uma
competição grande, tipo JEB's, começaria
pelas pequenas: pelas escolas. Desenvol­
veria currículos com a premissa: "Quem
tem que aprender voleibol não é o talen­
toso. É ele e todos os outros que não são
talentosos." A arte está em ensinar esses
outros. De uma massa de praticantes, to­
dos devem participar do primeiro nível
competitivo e não só os escolhidos, os
eleitos. A seleção começa nos níveis mais
elevados. Os que não têm aptidão partici­
pariam de outras formas: no folclore, na
dança, no teatro, no coral ou nas competi­
ções adaptadas; poderia fotografar, arbi­
trar, escrever a respeito. Em Campinas
estamos propondo algo assim: se a com­
petição vai ser em outubro, em setembro,
a escola tem que girar em torno do cam­
peonato. Até a matemática pode ser a dos
jogos: tem mil tabelinhas dos jogos, cál­
culos do salto em distância, salto em altu­
ra, da contagem de pontos. A geografia
pode trabalhar em função disso, porque
jogarão escolas de várias regiões da cida­
de. A História pode ser a história dos jo­
gos, os textos podem girar em torno dos
acontecimentos dos jogos. Podem ser
montados conselhos de arbitragem, dos
julgamentos, há toda uma estrutura a se
organizar. Além disso, cada escola pode
ter várias equipes e várias modalidades,
como queimada, amarelinha, xadrez, do­
minó, dama, coral etc. Quanto ao JEB's é
mais fácil descentralizá-los e atuar mais
junto aos Estados e municípios. Se conti­
nuar existindo, quem dirigir a SEED­
MEC tem que ter a coragem de enfrentar
essa selvageria competitiva e colocar, a
qualquer custo, algo que rompa com a es­
trutura que valoriza apenas aquela equipe
de meia dúzia que vai lá. Acredito muito
na descentralização. Campinas, Vitória,
Santo André, Curitiba podem gerar isso,
Itapira já gerou.
O que o senhor pensa do esporte
que é praticado hoje na escola?
Em primeiro lugar, acho que crianças
muito pequenas, de 1ª á 4ª série, por
exemplo, não têm que sair competindo em
torneios públicos. Não nego a competição.
Revista da Fundação de Esporte e Turismo 1 (3): 11-18, 1989
Depois de milhões de anos de cultura, faz
parte de nós e é estupidez negar a compe­
tição que existe no ser humano. Se as
crianças querem rivalizar, devem ter seus
torneiozinhos entre classes. Competições
entre escolas devem ser feitas no mo­
mento em que a criança enxerga o mundo
menos concreto, enxerga um pouco além
de sua escola. Torneios inter-escolares
seria para adolescentes de 12 a 15 anos e
daí por diante. As aulas de Educação Físi­
ca deveriam ter vários níveis. É fácil dar
aula de voleibol para quem é especial­
mente talentoso. O teste do bom professor
é ensinar pro gordinho que nunca partici­
pa de nada. Os 35 de uma turma teriam
que aprender e participar de alguma ma­
neira quando sua escola for competir com
outras. Seja escolhendo os 6 ou 12 que jo­
garão, pintando faixas e cartazes, escre­
vendo, atuando como árbitros, fotogra­
fando, auxiliando o professor, torcendo
etc. Aparecendo o campeão, todos sabe­
riam o que aconteceu nesse processo. As
competições podem ser adaptadas. Fute­
bol para crianças com 10 anos de idade
não precisa ter regras rígidas. As compe­
tições podem ser mistas. Por que não
misturar meninos e meninas? Poderiam
também ser resgatadas atividades motoras
da cultura popular. Por que dar medalha
só para o vencedor? Pelo menos o esporte
popular deveria ter outros referenciais
que não só o do vencedor.
Como o senhor vê o papel do
poder público no esporte popular?
O que é feito pelo poder público de­
veria ser exclusivamente lazer. Vejo esse
lazer em três níveis. O primeiro, os even­
tos folclóricos, de dança, de cultura po­
pular, promovidos em ocasiões especiais.
O segundo seriam os centros de aprendi­
zagem, onde, de 999 em cada mil casos, as
pessoas estarão aprendendo esporte, mas
não serão atletas. O objetivo desse traba­
lho no serviço público é fazer com que as
pessoas aprendam esporte para ocupar seu
tempo livre de uma forma boa e prazero­
sa. O terceiro nível seria quando o poder
público seleciona as pessoas especialmente
talentosas e as promove. O treinamento
neste caso tem que ser especial porque
serão grandes atletas e proporcionarão es­
petáculos à população. É só nesse sentido
de ser uma opção de lazer que se justifica
o investimento do poder público no es­
porte de alto nível. No Brasil, na maior
parte dos casos, o poder público mantém
os centros esportivos exclusivamente para
descobrir o campeão. Esse é o modelo de
pelo menos vinte anos, idade dos Jogos
Escolares Brasileiros que, basicamente,
foi quem fomentou isso. No entanto os
Revista da Fundação de Esporte e Turismo 1 (3): 11-18, 1989
cada vez que viaja leva um DC-10 com
trezentos dentro, gastando rios de di­
nheiro, vai sobrar dinheiro pra quê? Não
sobra dinheiro nem pra comida, muito
menos para o esporte. Alguém já viu fal­
tar ar condicionado, secretária, máquina
de escrever, limpeza,no gabinete de algum
deputado? Tudo isso que é indispensável
pra ele, é indispensável também numa sala
de aula. No entanto, as salas de aula são
sujas, as carteiras quebradas, o salário é
baixo. Os hospitais estão caindo aos peda­
ços, mas em gabinetes dos políticos não
falta nada. Por isso tudo não temos es­
porte de alto nível. O esporte de alto nível
reflete o país.
As necessidades básicas nesses
países estariam resolvidas?
Os governos
militares acolheram
muito o esporte
porque precisavam
provar que ditadura
dá certo
campeões que temos são os que treinaram
fora do Brasil, quase sempre. Dificilmente
nossos técnicos vão perceber que esse
modelo fracassou, porque também são
fruto desse modelo e sua visão excede
muito pouco os limites de uma quadra ou
de um campo de futebol.
Por que outros países têm tantos
atletas de alto nível e o Brasil não?
Porque os países são de alto nível.
Quer dizer, um país em que o presidente
Sim, podem ser dar ao luxo de fazer
esporte de alto nível. É perfeitamente ad­
missível um atleta olímpico num país co­
mo a Alemanha. O Robson Caetano e o
João do Pulo são uma exceção. O Robson
não é a expressão do povo enquanto de­
senvolvimento. Seu povo é subdesenvol­
vido. Sorte a dele, porque deve haver mi­
lhares de pessoas com a mesma qualidade
e que ficam esquecidas porque o país não
tem estrutura. Não adianta uma medalha
no peito nas Olimpíadas para mostrar que
o país é desenvolvido. O mundo conhece
bem nossa situação. O problema é que
aqui a população também se alimenta
dessas ilusões.
Seria essa ilusão que facilita o uso
do esporte pelos governos,
notadamente pelo governo militar na
década de 70?
Os regimes de exceção foram os que­
mais acumularam normas legais sobre a
Educação Física. O número de decretos,
leis e portarias sobre a Educação Física da
ditadura Vargas e da última ditadura mi­
litar excedem todo o resto da história do
país. Há uma associação muito grande
entre militarismo e esporte. Os militares
gostam muito de disciplina, de ordem,
conseqüentemente de ginástica, e, conse­
qüentemente, de regras. Como têm muito
tempo livre, promovem muito o esporte
em sua visão, que é estereotipada, rígida,
hiper-disciplinada. Os governos militares
acolheram muito o esporte porque preci­
savam provar que ditadura dá certo. Que
nela todos podem se alfabetizar, fazer es­
porte, viver bem. Nada melhor pra uma
ditadura que um país campeão do mundo
no futebol, onde existe o "Esporte para
Todos", que foi uma falácia. O regime
militar aumentou o índice de anfalfabe­
tismo e a fome com todas suas conseqüên­
15
cias. O esporte nunca será destinado a
uma formação democrática, se associado
ao militarismo. O problema é que nossos
dirigentes civis muitas vezes incorporam
mais o sentimento militarista que os pró­
prios militares. As Federações e Confe­
derações são um reduto seríssimo de au­
toritarismo, que banido das instituições foi
correndo pro esporte. Nas confederações
de basquete, futebol, vôlei, quase que sem
exceção, há dirigentes extremamente au­
toritários que assim fazem porque as
pessoas têm por hábito baixar a cabeça e
não contestar.
Os JEB's seria um dos eventos
onde grassaria também esse tipo de
mentalidade?
Os JEB's é o filhote do sistema mais
autoritário que o Brasil já viveu. Nasce­
ram em Niterói em 1969, mas só em 89
houve a primeira tentativa de um JEB's
mais democrático. Nesse evento nunca
houve um tribunal de recursos. Sempre
que havia um problema pra se discutir, um
grupo de pessoas autoritárias julgava, de
acordo com seu humor. Acompanhei isso
de perto. O Brasil levou delegações
imensas pra Alemanha fazer estágios,
gastou rios de dinheiro e não se produziu
absolutamente nada. Eu participei de está­
gio na Alemanha - subproduto dos JEB's
- e vi barbaridades. Vi pegarem um grupo
de 90 pessoas, a maioria de centros muito
pobres da sociedade brasileira, que, de re­
pente, se vêem numa cultura como a ale­
mã. Vi pessoas que poucas vezes na vida
pisaram numa pista de atletismo e que
foram fazer estágio na Alemanha. Ao
voltarem, nunca fizeram um trabalho se­
quer de atletismo ou produziram alguma
coisa pra escola. Nesses vinte anos de
JEB's não descobrimos talentos esporti­
vos, não fomos campeões olímpicos e não
fizemos esporte escolar.
O senhor considera que o trabalho
de esporte, tanto a nível escolar como
profissional, é tradicional?
Ah, sim. É o comportamentalismo
colocado à toda prova. Um laboratório de
comportamentalismo no mal sentido. O
que se ignora é que, quando você trata um
atleta de alto nível de forma humana, ele
fica teu amigo e interessado em saber
sempre mais. Quanto mais humanos se
sentem, mais humanos querem ser. Os
treinos podem ser feitos com brincadeiras
ao invés de ficar correndo como um idiota
ao redor da quadra. É preciso dar um sig­
nificado para o condicionamento físico,
senão não é uma atividade humana. Saltar
16
o canguru também salta, equilibrar uma
bola no nariz a foca equilibra melhor que
nós. Só que o animal não tem consciência
do que faz. O desporto é uma atividade ti­
picamente humana. Minha opção é fazer
esporte humano, porque quero me huma­
nizar. Acho extremamente pobre tratar
crianças e atletas como se fossem animai­
zinhos, como se não pensassem.
jovens que ficam prisioneiros nesse es­
quema durante seis meses? O sexo deixou
de existir para eles? O amor deixou de
existir? Ao invés de aplaudir o ato amo­
roso, nós o castigamos. Isso tem que ser
combatido e denunciado, assim como o
uso de drogas tem que ser denunciado,
assim como os dirigentes e técnicos que
estimulam o uso de drogas.
O senhor acredita que um atleta
que tenha essa consciência se sujeite
a um treinamento tradicional?
O senhor acha que o esporte afasta
os jovens das drogas?
Se o atleta chegar a essa percepção, é
porque alguém o tratou de forma humana
e ele procuraria um técnico com esses va­
lores. Se não encontrasse, correria o risco
de largar o esporte. O Sócrates, por
exemplo, se submete a muita coisa porque
gosta tanto do esporte e quer continuar. É
no futebol que você tem os maiores
exemplos: Sócrates, Maradona, Afonsinho
e onde os técnicos têm mudado um pouco
sua postura. Não acredito com o que vejo
no voleibol! Não acredito que se possa fa­
zer com seres humanos o que se faz em
algumas equipes de voleibol. No futebol,
alguns técnicos começam a discutir com
os jogadores, a criar um clima mais demo­
crático.
Isso não seria contraditório já que
o atleta de futebol geralmente vem de
uma classe economicamente inferior,
enquanto os de vôlei vêm de uma
classe mais privilegiada, com mais
informações?
Apesar dos grandes nomes da história
terem saído da burguesia, na média isso
não significa que o nível mental, de per­
cepção traga alguma vantagem, porque as
pessoas que entraram muito cedo para o
esporte profissional, deixaram de exercer
o poder de crítica. Em sua maioria para­
ram de estudar seriamente, de ter bons
orientadores e se entregaram ao esquema
do esporte.
A vida dessas pessoas fica restrita
ao esporte?
Quando aparece uma pessoa com um
mínimo de contestação como a Izabel e a
Jaqueline são imediatamente abafadas. Há
um tempo, houve uma experiência numa
seleção de voleibol em que um grupo de
meninas juvenis ficou concentrado du­
rante muitos meses para um campeonato
mundial ou sul-americano. Às vésperas da
competição, uma das garotas foi surpre­
endida namorando com o preparador físi­
co. Os dois foram mandados embora.
Quer dizer, o que a gente espera de dois
Há um tempo atrás havia uma campa­
nha do Ministério da Educação cujo cartaz
trazia várias bolas, dizendo algo assim:
"Use essas bolinhas ou troque..." A idéia
era de trocar o vício das drogas pelas bo­
las do esporte. Não muda muita coisa. A
diferença é que a droga química provo­
cará danos físicos mais imediatos, mas ví­
cio é vício. Drogar-se com bolas de bas­
quete, com reza ou com teoria política é a
mesma coisa. Há muito tempo o esporte
deixou de ser saúde. Ele até pode ser saú­
de. Mas tomar anabolizante é saúde?
Treinar oito horas por dia é saúde? Entre­
gar-se exclusivamente a uma atividade
como o esporte e esquecer que existem
outras coisas na vida é saúde? Correr 40
quilômetros por dia é saúde? Nada disso é
saúde. Saúde é você ser livre, ter paz, se­
renidade. Se o esporte trouxer isso, então
ele é saúde. Imagine uma garota de 14
anos convocada para a seleção brasileira e
que passa a treinar 6 horas por dia, fica
concentrada durante seis meses por ano e
tem que obedecer cegamente técnicos e
dirigentes que têm um controle até sobre
quem ela deve ou não namorar. Eu não sei
se esta pessoa estará vivendo melhor do
que quem toma qualquer outro tipo de
droga. Afinal, essa é uma forma de se
drogar. Esse tipo de esporte tem que ser
combatido. Os técnicos acabam reprodu­
zindo aquilo que criticamos em outros
setores da sociedade. Acabam sendo tira­
nos, criando um mundinho muito particu­
lar de despotismo. São tiranos que criaram
seus pequenos reinados e feudos numa
quadra de basquete, vôlei etc. Ninguém
tem o direito de suprimir a vida de nin­
guém. E os técnicos desportivos acabam ­
em boa parte dos casos - fazendo isto.
Na escola, no entanto, o esporte tem que
ser feito para formar a pessoa, tem que ter
uma utilidade especial. É um veículo pe­
dagógico. Da mesma forma, posso fazer
do ensino da língua e da matemática uma
atividade muito boa, como um jogo. Fora
da escola, quem faz esporte é o clube
profissional ou o poder público. O clube
profissional faz do esporte um fim em si
mesmo. É uma profissão. Isso deve e pode
Revista da Fundação de Esporte e Turismo 1 (3): 11-18, 1989
ser feito de uma forma decente, como
também devem ser as outras profissões. O
jogador profissional tem que, no mínimo,
ter a consciência de um metalúrgico. Os
jogadores são muito mais alienados hoje
em dia, do que um metalúrgico, que luta
pelos seus direitos. O atleta se submete
aos carrascos dirigentes que fazem o que
querem.
O que acontece com os atletas que
"abrem o jogo"?
O dirigente quer que o atleta seja um, imbecil porque assim não cria nenhum problema Pensar é proibido. Alguns jogadores,
como a Jaqueline, que se dispuseram a
pensar, foram duramente castigados. O
dirigente quer que o atleta seja um imbe­
cil, porque assim não cria nenhum pro­
blema. O esporte nacional deveria ser
realmente uma profissão, como qualquer
outra.
O senhor considera grave o uso de
drogas por atletas brasileiros?
Eu gostaria que os atletas que tomam
drogas tivessem disponibilidade para falar
isso publicamente. Não se pode acusar
ninguém de nada, porque não há provas,
mas se se pudesse falar sobre o uso de
drogas no esporte no Brasil - e não só o
anabolizante, mas vários outros tipos ­
seria um grande escândalo! O problema é
que sabemos que o atleta toma drogas,
mas se você pedir não dará nenhum de­
poimento, porque quer continuar no es­
porte. Se der, o castigado será ele. Como
se a estrutura não tivesse nada a ver com
isso. Todos ficaram com medo por causa
da crise provocada pelo Ben Johnson, mas
bem antes dele já era indiscriminado o uso
de drogas, principalmente anabolizantes
esteróides, que mexe com toda a máquina
reguladora do corpo humano. As conse­
qüências são as mais imprevisíveis, e gra­
ves. Conheci vários atletas que usaram
drogas até se arrebentar. Hoje são incapa­
zes de depor a respeito. Seria necessário
um debate profundo com os técnicos.
Vale. a pena ser campeão a esse preço?
Vencer uma competição é significativo,
mas tem que ser visto como um ritual. Um
homem que deixou de jogar lança num
animal, joga dardo numa competição para
ritualizar isto, rendendo uma homenagem
a milhares de anos de cultura. O homem
que corre hoje numa pista de atletismo é o
que fugia de um animal feroz. Isso deve
ser resgatado enquanto ritual de cultura.
A competição tem que se harmonizar com
cooperação, porque colocada em seu lu­
gar, não desequilibra nada. É normal co­
mo outra atividade humana. Exacerbada,
vira patologia.
Como tem sido sua experiência na
Prefeitura de Campinas, administrada
pelo PT, partido de esquerda que
defende propostas progressistas?
Estamos definindo que o papel de
nosso departamento é oferecer um serviço
de esporte e educação física. Isso pode ser
fazendo queimada, amarelinha, dominó,
cantando, jogando voleibol, basquete ou
assistindo a um espetáculo desportivo.
Campinas possui 1 milhão e 200 mil habi­
tantes, 13 praças, 6 dúzias de parques e 73
professores. Isso é insuficiente porque a
cidade cresceu demais. Estamos então in­
vestindo na formação de bons professo­
res, porque um bom professor desempe­
nha o trabalho de 10 maus professores.
Aumentando a competência dos 73 pro­
fissionais, estarei multiplicando-os por 10.
Primeiro, para investir neles, preciso que
estudem. Magistério é profissão de quem
estuda, não de quem capina mato, corta
madeira. Professor que não estuda é pi­
careta. Quatro horas por semana, dedica­
mos ao estudo, seja ouvindo palestras, es­
crevendo, debatendo. Em segundo lugar, é
preciso que eu acredite no meu professor,
e goste dele. Investindo numa relação
amorosa, permito que ele seja amoroso
com seus alunos. Ao invés de criar um
Revista da Fundação de Esporte e Turismo 1 (3): 11-18, 1989
clima em que as coisas são obrigatórias,
criamos um clima em que são voluntárias.
Fora as atividades do dia-a-dia, metade
deles vai trabalhar em todos os finais de
semana. Na escala de trabalho, tivemos
que recusar voluntários. Isso é funda­
mental: se não conseguirmos que a pessoa
goste do seu trabalho, e que exista um
bom sentimento entre alunos e dirigentes,
o trabalho estará fadado ao fracasso. O
investimento em recursos humanos, no
nosso caso, está funcionando muito bem.
Queremos promover muitos eventos, mas
o cuidado com a qualidade é essencial.
Não é simplesmente chegar num bairro
e fazer uma rua de recreio. Uma rua de
recreio ou uma corrida têm que ser peda­
gógicas. Por exemplo, numa grande pro­
moção de corrida, todos os participantes
receberão um certificado, explicando, no
verso, o significado fisiológico, social etc,
de uma corrida. O principal osbstáculo é a
falta de recursos, mas procuramos traba­
lhar com a imaginação e com alguns em­
presários que acreditam no retorno do es­
porte. Uma de nossas propostas é a de que
crianças, até os 12 anos, que forem à pra­
ça de esporte vão aprender a praticar es­
porte. Não somos uma escola, mas um
centro esportivo. As crianças, necessaria­
mente, têm que aprender brincando. Al-
17
guns professores estão fazendo levanta­
mento de uma série de brinquedos da
cultura popular e os adaptando para o vô­
lei, basquete, handebol, futebol. Assim, as
crianças, divididas em faixas etárias, de 7
a 12 anos, enquanto brincam de pular cor­
da, aprenderão basquete, vôlei etc. En­
quanto brincam na água, estarão apren­
dendo natação, pólo aquático. Como pe­
dagores, estarão aprendendo atletismo,
basquete, futebol. Cada brinquedo é pre­
parado para que contenha os recursos ne­
cessários à aprendizagem de vários es­
portes. É um projeto ambicioso, exige um
professor hiper preparado e que está, in­
clusive gerando uma apostila, que é quase
um livro. É um trabalho que vai exigir
uma grande campanha para praticar es­
portes em toda cidade, exigir a ampliação
da rede de praças de esportes e dos espa­
ços para práticas desportivas. O esporte
pode ser um recurso para humanizar a ci­
dade. E o amor é um recurso fundamental
em todo esse trabalho.
Esses terão que estar conscientes
também da problemática social. Vocês
discutem nos seus cursos?
Discutimos inclusive o preconceito
racial, porque as grandes equipes brasi­
leiras locadas em clubes discriminam
profundamente o negro. Os problemas
políticos têm que ser abordados, mas não
de forma panfletária. Não estou aqui fa­
zendo panfletagem de esquerda. Não faço
panfletagem aqui e não vou fazer nunca
entre os professores. Prefiro que falemos
com as pessoas de forma humana. E que
falemos com indignidade contra as coisas
indignas. As injustiças têm que provocar
indignidade. Isso é construir um trabalho
humano e isso nós podemos fazer.
Há bases reais para o conceito de
que o professor de Educação Física é
um alienado, desinformado e não
gosta de leitura?
Duas coisas que gosto muito de fazer
é ler e jogar futebol. Se nunca tivesse lido,
talvez só gostasse de futebol. O problema
é que nos dão uma porcarias pra ler nas
faculdades. São tão chatas que associam o
livro ao desprazer. Acredito que, se os
professores de Educação Física começa­
rem a ler textos gostosos, vão gostar de
ler. Não só eles. O professor de matemáti­
ca costuma detestar a leitura. O médico e
o engenheiro também. E que a Educação
Física não tem uma leitura técnica obri­
gatória, e também não desenvolveu isto. A
gente não lê, mas não somos diferentes
dos outros.
18
E em termos de revistas científicas
na área da Educação Física e do
Desporto?
As revistas têm que ser científicas,
mas não pedantes. As revistas científicas
da Educação Física brasileira - temos 3 ou
4 - são quase ilegíveis. Na medida em que
você coloca uma entrevista, um relato de
experiência, o aspecto histórico de alguma
coisa, ela começa a ficar mais gostosa, a
ter um pouco mais de humor também.
A leitura "científica" é chatíssima, porque
no Brasil se faz pouca ciência em esporte.
Fazemos muita tecnologia. Quero que al­
guém me mostre qual foi a grande inven­
ção científica depois do interval training,
em 1959! Em 30 anos, inventamos a tec­
nologia, o anabolizante, a tortura no trei­
namento, a concentração, melhorou o sa­
pato, o piso da pista, mas em ciência de
treinamento não há nada de novo. Quer
dizer, inventamos muitíssimo pouca coisa,
se é que inventamos alguma. Fazemos
"ciência" no esporte, mas há pouca refle­
xão vigorosa que revele o caráter oculto
dos fenômenos. Isso sim seria científico.
Poucos enxergam por detrás das coisas. A
ciência exige uma investigação rigorosa
para mostrar aqueles aspectos na atividade
esportiva que não são visíveis a nossos
sentidos. Isso exige não só procedimento
metodológico, técnica de investigação,
mas também uma reflexão profunda, o
que não está sendo promovido pelas uni­
versidades ou órgãos colegiados científi­
cos. Um colegiado ou uma revista científi­
ca têm que ser estimuladores de um pen­
samento científico e não de procedimentos
ou simplesmente de política científica.
Uma conversa com Stephen Hawking,
que é um investigador, é mais do que
científico. Esse tipo de coisa ajuda as
pessoas que têm pensado sobre a Educa­
ção Física, que têm ampliado esse mundi­
nho.
mento que ele teve que fazer para chegar
àquela ferramenta, mas apenas à trans­
formação de tal estrutura cerebral. Não há
nenhum estudo do movimento em si, en­
quanto expressão inteligente. Tenho uma
curiosidade científica muito grande em
verificar que as crianças, quando se mo­
vimentam, quando fazem gestos esporti­
vos, façam tanta coisa parecida, mesmo
que nunca tenham aprendido aquilo, mes­
mo que provavelmente elas estejam ex­
pressando uma bagagem cultural de cen­
tenas de milhares de anos. Assim, é inevi­
tável que, naquela situação, elas mostrem
que sabem e que, se fizerem esporte, só
terão que tomar aquele referencial e per­
segui-lo, como os atletas vão perseguir
uma estética do movimento desenvolvida
culturalmente. Isso para desmistificar essa
idéia de que uns têm coordenação motora
e outros não, de que uns podem e outros
não e que existem certos padrões que você
tem que incutir na criança. Sabemos, po­
rém, que um padrão de movimento de
hoje não foi o mesmo há um milhão de
anos, nem será daqui a um milhão de anos
adiante, porque as coisas se modificam. Se
o pé foi importante, daqui pra frente tal­
vez o seja apenas em termos de jogo e não
mais de profissão. Quase ninguém mais
trabalhará em pé com o advento do com­
putador e com a mecanização da agricul­
tura. Os movimentos vão se modificando
com a construção de uma cultura e se
transformando em jogos simplesmente
para serem guardados enquanto memória.
Não temos estudado nada disso cientifi­
camente. Temos comparado o calcanhar
do alemão com o do chinês. Nossa ciência
do esporte é muito pobre, atinge horizon­
tes muito estreitos, quando, ao contrário,
deveria ser um fator importante para a
construção da humanidade.
Qual tem sido seu trabalho em
termos de ciência?
Estou preocupado em investigar a
história da motricidade. Estudando a his­
tória do homem, vemos que os investiga­
dores são obrigados a olhar o movimento
humano, o corpo humano pra poder en­
tender o pensamento, os sentimentos etc.
Nunca, porém, olharam o movimento pra
entender o próprio movimento, nunca
olharam o corpo pra entender o corpo.
Olham o corpo pra entender o funciona­
mento do sistema vascular, digestivo,
neurológico. Estudando, observo uma
foto de uma ferramenta de um milhão de
anos atrás. Não há referência ao movi­
JOÃO BATISTA FREIRE
Mestrado em Educação Física - USP
Doutorado em Psicologia Escolar ­
USP (em andamento)
Professor Assistente na UNICAMP
Endereço: UNICAMP — Departamento
de Educação Física - Cidade
Universitária Zeferino Vaz - 1 3 . 1 0 0 ­
CAMPINAS - SP
Revistada Fundação de Esporte e Turismo 1 (3): 11-18, 1989
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A escola desobediente - Entrevista com João Batista Freire