E S P E C I A L A ESCOLA DESOBEDIENTE O autoritarismo no meio esportivo, a falta de alegria e de movimento nas escolas e o uso de drogas pelos atletas. Por Cleusa A. Monteiro oão Batista Freire, 41 anos, é um crí tico profundo do tratamento que a es cola dá às crianças e às disciplinas com que trabalha, escorado em uma qualidade essencial: a paciência histórica. A mesma que, em 1971, o levou a trabalhar no Cen tro de Treinamento, em São Bernardo do J Revista da Fundação do Esporto e Turismo 1 (3): 11-18,1989 Campo, com mais de duas mil crianças fa veladas. Era a forma possível, naquele mo mento, segundo ele, de "derrotar a ditadura militar". Para isso, era preciso esquecer a vida pessoal e dedicar-se totalmente ao tra balho, que incluia até ensinar crianças a es covar dentes. Segundo Freire, foi o melhor trabalho de sua vida - experiência que está sendo transformada em um livro. Formado pela Faculdade de Educação Fí sica de Santo André, há 16 anos, Freire tra balhou na Universidade de São Paulo, na Universidade Federal da Paraíba e hoje, apaixonado pelo estudo da motricidade, participa da montagem do laboratório de pesquisas em motricidade humana na Uni versidade de Campinas (Unicamp). Ao mesmo tempo, coordena o setor de espor tes da Prefeitura de Campinas. Voz mansa e serena, recebeu a "Revista da Fundação de Esportes e Turismo", para fa lar de repressão, de autoritarismo, do uso de drogas no meio esportivo e da necessi dade de uma ciência esportiva que contri bua concretamente no dia-a-dia dos cidadãos. 11 O que é uma educação para a transformação, principalmente no caso da Educação Física? Eu não quero que a Educação Física seja uma disciplina excepcional, mas uma disciplina comum que, na escola, participe da formação das pessoas tanto quanto as outras. Isso não quer dizer que as outras disciplinas dêem uma grande contribuição. Elas têm uma série de distorções e nunca se modernizam. Cria-se um tipo especial na escola que não é nem criança, nem adulto, não é nada. É o tal do aluno. Uma pessoa que apesar de ter uma vida total mente diferente, de brinquedos, de fanta sias, quando chega na escola tem que ficar sentado o período inteiro. E aí o aluno aprende aqueles conteúdos que a escola acha suficientes pra ele se formar. Não deveria ser assim. A Educação Física po deria dar uma boa contribuição, não reti rando a liberdade de movimentos que é uma das características da criança. Mesmo porque aprender, não é só com o ouvido ou só com a mão. Aprende-se com corri das, com saltos. Isso tudo de uma forma prazerosa. triste. Ela tem carteiras, prédio, mas não tem espaço e é muito difícil que isso aconteça. Por isso as propostas novas vão ficar por aí. Na medida em que for sendo possível, as coisas vão se transformando. As crianças convivem com transformações significativas em seu meio, enquanto a escola continua com o quadro, a carteira e o giz. Por que acontece isso? Muita gente está preocupada com um tipo de educação através da qual as crian ças acumulem informações e aprendam pensamentos dos outros. Me preocupa muito que a gente não esteja empenhado em fazer com que a escola seja um am biente onde as pessoas produzam pensa mentos, aprendam a pensar. Se você ob servar, verificará que quem faz a história da humanidade são as pessoas que traba lham, que estudam, que andam nas ruas, que vão pra guerra: as pessoas comuns. Os nomes que ficam na história, porém, são das pessoas que deixam certos marcos, que conseguiram, por circunstâncias muito especiais, produzir pensamentos. Por que a escola insiste numa prática que as crianças não gostam? A história da humanidade não é feita de dezenas, mas de milhões de anos. Es cola é uma coisa nova que não vai mudar de repente só porque a gente quer. Fo ram milhares de anos até se chegar numa escola. Não vai ser numa década, em duas ou três que a gente vai mudar. Quando fa zemos uma proposta não esperamos que mude amanhã. Um dos problemas de quem mexe com educação é propor tudo para amanhã. Quando faço uma proposta de "Educação de Corpo Inteiro", sei que eles não vão derrubar os prédios e tirar as carteiras de um dia para o outro. Pensar isso é um absurdo. Mas é acreditando que, assim como surgiu, essa escola pode mu dar. Muda devagarzinho, com as pequenas contribuições que as pessoas dão. O sis tema é conservador e se defende. Estabe leceu essa estrutura de escola para formar um tipo de gente que se conforma com o modelo de poder que estamos convivendo. Nossa proposta de transformação se opõe a essa foma de poder que estabelece que as pessoas sejam dóceis, passivas, obe dientes, disciplinadas, ordeiras. Queremos uma escola onde a criança viva um outro tipo de ordem, que pressuponha também desordem, que quebre a disciplina tradi cional, que haja barulho, porque as crian ças vão se movimentar, que haja alegria, que haja brinquedo. Pra escola, isso é in suportável, porque ela é uma instituição 12 Uma pessoa se movimentando está realizando atos de inteligência Temos Galileu, Kant, Marx, Einstein, que produziram pensamentos magníficos e deram viradas na história, como Darwin, por exemplo. Imaginar apenas que a criança está aprendendo muitas coisas fora da escola não resolve. O importante é que ela esteja aprendendo a pensar, exer citando sua inteligência. Se brincando, formando grupos de amigos, criando coi sas num computador, lendo, estiver exer citando sua inteligência, isso é bom. Mas os meios de comunicação e a escola, mui tas vezes, não permitem que a criança exercite sua inteligência. É preciso um es paço na escola sem a preocupação de que ela acumule, e onde, de qualquer maneira, expresse conhecimentos de matemática, de história. O essencial é o desempenho de pensamento sobre os problemas na ciên cia, na geografia, na educação física que é um dos meios mais privilegiados na escola, pelo menos para crianças até à puberdade na medida em que pode exercitar sua inte ligência com o corpo inteiro. Inteligência não é coisa só de cérebro, mas do corpo todo. Uma pessoa se movimentando está realizando atos de inteligência. A dicotomia corpo/mente fez nascer uma visão de que a Educação Física é disciplina dispensável, ou não tão importante quanto as outras? De fato, o cérebro é muito nobre. Po deríamos ter um cérebro que fosse um tronco cerebral, algumas áreas que regu lassem os movimentos automáticos, a vi são etc, como os outros animais. O ho mem, porém, foi criando em cima do tronco cerebral uma massa imensa de córtex para poder se adaptar ao mundo. Temos realmente recursos cerebrais pri vilegiados, mas para utilizá-los, temos que exercitá-los, viver situações que os soli citem. A espécie humana tem um recurso muito particular - a neutenia - que é a ca pacidade de ser criança durante muito tempo. Nossos órgãos sexuais amadure cem e continuamos crianças por longo tempo. Se fôssemos como os animais e amadurecêssemos aos dez anos, pararía mos de nos desenvolver. Nosso cérebro é um órgão tão complexo que demora mais tempo para se colocar em funcionamento. Ele precisa organizar toda essa complexi dade e de muitas experiências que têm que ser diversificadas. Se se pegar uma crian ça e submetê-la, a partir dos 5, 6 anos de idade até sua formação, à experiência de aprender a escrever e só a escrever, ou só fazer ginástica olímpica, ou só a vender limão na rua, estar-se-á pegando essa imensidade de cérebro e limitando-o a cumprir uma única tarefa, que é uma coisa equivalente a uma atividade adulta. Na medida em que um pessoa pode ser crian ça, ela fantasia, brinca, é irresponsável, indisciplinada, imagina mil coisas do mun do que não o nosso mundo real. Assim ela está criando, mesmo porque ninguém cria quando está se exercendo uma tarefa roti neira. A gente cria quando sobra tempo. No momento de apertar um parafuso, não estamos criando. A humanidade se desen volveu muito porque inventou o tempo li vre, o lazer, o "estar à toa". Inventou isto domesticando os animais, ingerindo carne, Revista da Fundação de Esporte e Turismo 1 (3): 11-18, 1989 cultivando o trigo. Domesticando as plantas e os animais pelo menos uma parte da humanidade ficou com muito tempo sem fazer nada. E a infância teria que ser esse período de muito tempo sem fazer nada. Só imaginando, fantasiando, só exercitando esse cérebro. Gostaria que o senhor falasse da atuação da Educação Física. Qual seria a tarefa das disciplinas, de modo geral, e da Educação Física, em particular, no desenvolvimento do raciocínio? Tarefa da escola é pegar tudo que a pessoa faz fora dela e dar uma linguagem mais elaborada. A matemática, por exem plo, não é coisa só de escola. E coisa que todo mundo faz na rua, no trabalho. To dos têm uma linguagem fora da escola. A criança chega sabendo língua, matemática, calcula, fala, se relaciona, vive sentimen tos, mas é na escola que isso tem que ad quirir nova roupagem, ser elaborado. Àquela matemática que serve para jogar futebol, atravessar a rua, comprar doce, jogar figurinha, será transformada em números, em equações. Os pensamentos matemáticos serão estimulados a interar gir com outros, resultando em pensamen tos de mais alto nível. A criança forma sua moral, seus grupos infantis. Na escola ela teria que aprender a conviver com grupos diferentes, a fazer trabalhos coletivos. Por que as tarefas da escola são sempre indi viduais? Se um dos objetivos explícitos da escola é a socialização, não se poderia isolar cada pessoa em sua carteira. Se a escola tem por objetivo fazer crescer os sentimentos, por que as relações são tão impessoais? Por que os professores não têm uma relação mais estreita com a criança, por que não demonstram amor pela criança, por que não tocam numa criança, por que não mexem com o corpo de uma criança? Tentam uniformizar co mo se todos fossem iguais e pessoas sem sentimentos. Uma mesma tarefa para cin qüenta crianças, vai magoar algumas, vai frustrar outras. E nada disso é levado em conta. A tarefa da escola deveria ser me xer com os sentimentos, com as relações. Assim os conflitos virão à tona e terão que ser discutidos. A escola teria que ser um centro de produção de democracia. Como é que se faz democracia com pessoas isoladas e disciplinadas por autoridades adultas e in questionáveis? A escola não quer conviver com o conflito, mas deveria. A criança não chega na escola zerada. É agressiva, amorosa, invejosa, tímida ou violenta. Po de ter muitas virtudes e defeitos, mas teria Revista da Fundação de Esporte e Turismo 1 (3): 11-18, 1989 Como é que se faz democracia com pessoas isoladas e disciplinadas por autoridades inquestionáveis? que aparecer do jeito que é. A partir disso, a escola faria um trabalho de educação. Se não se considera a individualidade da criança, a culpa é da escola. Por isso pre cisa mudar. Não se pode ter medo de ver a criança como ela é. Um dos maiores pro blemas da criança, na escola, é a agressi vidade. Para tratar essa agressividade é preciso admiti-la. Tratar uma criança " i deal" resultará em frustração. A Educação Física é tão mais impor tante quanto mais nova for a criança. A cultura de uma criança que chega à pré escola é a do brinquedo, da fantasia, dos movimentos corporais e não a cultura de papel, de livros, de números. Se conside rarmos que o início do processo de educa ção é o que a criança sabe, é e sente, leva ríamos em conta os movimentos, a fanta sia, o jogo, o brinquedo. Se isso fosse feito talvez se pudesse pensar numa escola que não separasse a Educação Física das outras disciplinas. A educação motora passaria a ser importante porque tem mais afinidade com aquilo que a criança é nessa fase, ou seja, dependente de uma relação muito concreta de mundo. É como uma pessoa que está aprendendo a navegar e que, dificilmente, arrisca-se a ir para o alto mar. Viaja um pouquinho, mas está vendo a costa. Pensa e raciocina, mas em relação às coisas que lhe são concretas, que pode ver e pegar. O mundo das hipó teses e das coisas possíveis, dos planos, das táticas é pra gente que já tem um pensamento de mais alto nível. A ligação concreta da criança com o mundo é feita pela atividade corporal. Não sei como se ria em outras galáxias, mas nesta esfera de vida que é o planeta Terra, a ligação é corporal. Vivemos porque somos um cor po. Para respirar oxigênio, para circular nesse planeta, dependemos de um corpo. A ação corporal é a fonte das produções humanas. Para uma pessoa desenvolver um sentimento de amor, precisa de uma fonte. Essa fonte será, provavelmente, a relação corporal que ela vai ter com as outras pessoas, o que vai ver nas outras pessoas e em si mesma, o que vai tocar nas outras pessoas, o que ela vai abraçar, o coração que vai palpitar e assim por dian te. Para compreender uma operação arit mética, terá que subir em lugares altos, mais baixos, percorrer distâncias maiores, menores, cansar mais, cansar menos. Uma comparação de quantidade nascerá desse equacionamento que uma pessoa faz de suas ações de correr, andar, dormir, co mer mais e menos, de jogar, de lançar um objeto. A matemática é uma representação desse tipo de ação. Ações que estão em formação e que são feitas pelo corpo. Por isso a educação motora é indispensável. Uma educação motora que estimule a criança à reflexão. Não é um simples fa zer, é um fazer com compreensão. Ela tem que viver situações de conflitos entre o que sabe e o que não sabe. Na Educação Física você coloca uma criança se diver tindo frente a uma situação nova - mas 13 não totalmente nova, é preciso observar essa nuance - ela estará subindo mais um degrau e superando uma situação de dese quilíbrio. Dez degraus de uma só vez su birão raras pessoas privilegiadas. Se a criança está no nível A, o professor tem que estar no B e não no A ou no L. Essa sutileza não se aprende enquanto profes sor na escola, porque as escolas de ma gistério não sabem desenvolver isso. Aprende-se sozinho. É importante que, se a criança estiver no nível A, seja estimula da para o B. Se isso for feito numa escola muito chata, com carteiras, será difícil ela superar. Não terá motivos para ir adiante. Se for, no entanto, dentro de um jogo, tu do fica mais gostoso e será um estímulo para ir sempre adiante. Uma pedagogia que considere o prazer, a atividade cor poral, tem mais chances de se sair bem. Isso se pensarmos em educar e não em construir pessoas para certo modelo de sociedade. A escola brasileira é retrógrada? Não só a brasileira como também a estrangeira. No geral - claro que há exce ções - as escolas puxam pra trás. Saímos da escola e não lembramos mais nada dela. Quem fez uma faculdade, aprende nos estágios, vivendo a prática da profissão. Há algumas coisas da escola porém, das quais não nos esquecemos nunca: o medo e a subserviência, a disciplina e a ordem estabelecida. Passamos o resto da vida com medo de falar, com medo de recla mar, sem produzir pensamento original nenhum. A professora ensina um pouqui nho de equação do lº grau e a gente fica 12, 15 anos sentado, sem se mexer. Um aluno meu de 25 anos não tem coragem de falar na minha frente. Esse medo a gente aprende muito bem na escola. Esse seu papel ela exerce muito bem. Veja bem, se fosse desenvolvida na escola uma educa ção motora que privilegiasse as coisas boas, aprenderíamos que prazer é bom e seria difícil renunciar a ele. Se vivêsse mos a liberdade, saberíamos que liberdade é bom. Se a gente vivesse o prazer de fa zer as coisas a nível físico ou mental, não abriríamos mão desse prazer de pensar ou de fazer as coisas com as mãos, de chutar bola etc. Se a gente vivesse o prazer de tocar no corpo do outro, não abriríamos mão disso e queríamos fazer isto o resto da vida. Não nos deixam viver essas coi sas. E acabamos por não conhecer isto. A não ser excepcionalmente, em algumas circunstâncias de vida. E por isso esque cemos que temos um corpo, que é fonte de prazer, como a matemática é fonte de prazer, como a música etc. A educação, que deveria ser fonte de vida, de estimula 14 ção à vida, acaba sendo uma fonte de de pressão. Como concretizar sua proposta de Educação Física num contexto como o brasileiro, onde as crianças vão pra escola pela merenda escolar? Ou nem vão pra escola? Esporte escolar é para quem vai à es cola. Isso já deixa de lado uma multidão Quem compreende a fome, vira um inferno de crianças que, já da lª pra 2ª ou 3ª sé rie, é afastada da escola. O poder do pro fessor recuperar para a escola esta multi dão é pequeno. É um problema político. Nosso limite no esporte escolar ainda é a escola. Mas este não deve ser o limite das prefeituras ou do governo do Estado, cujo trabalho deve dizer respeito aos que estão fora da escola também. Uma criança que vá para a escola, mesmo que passe neces sidades, tem condições de desenvolver atividades motoras. É um pouco mistifica da essa idéia de que ela não possui esta capacidade. Tanto tem que, fora da escola, ela brinca muito. É preciso algo compatí vel com o que ela faz fora da escola. Se a escola der uma atividade ao nível de su portação de esforço Y quando o da crian ça é X, estará violentando-a. Basta um pequeno conhecimento sobre a criança em questão para uma atividade adequada. A criança brinca mesmo com fome. De qualquer forma, é ultra-necessário fazer educação motora, por pior que sejam as condições de vida da criança. Não pode mos e nem é nossa função dar o prato de comida para ela. Escola não é refeitório. Mas podemos dar condições mentais para que ela possa, um dia, reivindicar sua co mida. Uma pessoa que aprenda bem a matemática, que tenha boa coordenação motora e alto nível de pensamento, poderá não ter comida, mas entenderá sua própria fome. O meu papel, enquanto professor não é dar comida, mas sim condições pra pessoa refletir e criticar, pelo menos, sua própria fome. Quem compreende a fome, vira um inferno. Qual seria sua proposta para os Jogos Escolares? Se fosse fazê-la, ao invés de uma competição grande, tipo JEB's, começaria pelas pequenas: pelas escolas. Desenvol veria currículos com a premissa: "Quem tem que aprender voleibol não é o talen toso. É ele e todos os outros que não são talentosos." A arte está em ensinar esses outros. De uma massa de praticantes, to dos devem participar do primeiro nível competitivo e não só os escolhidos, os eleitos. A seleção começa nos níveis mais elevados. Os que não têm aptidão partici pariam de outras formas: no folclore, na dança, no teatro, no coral ou nas competi ções adaptadas; poderia fotografar, arbi trar, escrever a respeito. Em Campinas estamos propondo algo assim: se a com petição vai ser em outubro, em setembro, a escola tem que girar em torno do cam peonato. Até a matemática pode ser a dos jogos: tem mil tabelinhas dos jogos, cál culos do salto em distância, salto em altu ra, da contagem de pontos. A geografia pode trabalhar em função disso, porque jogarão escolas de várias regiões da cida de. A História pode ser a história dos jo gos, os textos podem girar em torno dos acontecimentos dos jogos. Podem ser montados conselhos de arbitragem, dos julgamentos, há toda uma estrutura a se organizar. Além disso, cada escola pode ter várias equipes e várias modalidades, como queimada, amarelinha, xadrez, do minó, dama, coral etc. Quanto ao JEB's é mais fácil descentralizá-los e atuar mais junto aos Estados e municípios. Se conti nuar existindo, quem dirigir a SEED MEC tem que ter a coragem de enfrentar essa selvageria competitiva e colocar, a qualquer custo, algo que rompa com a es trutura que valoriza apenas aquela equipe de meia dúzia que vai lá. Acredito muito na descentralização. Campinas, Vitória, Santo André, Curitiba podem gerar isso, Itapira já gerou. O que o senhor pensa do esporte que é praticado hoje na escola? Em primeiro lugar, acho que crianças muito pequenas, de 1ª á 4ª série, por exemplo, não têm que sair competindo em torneios públicos. Não nego a competição. Revista da Fundação de Esporte e Turismo 1 (3): 11-18, 1989 Depois de milhões de anos de cultura, faz parte de nós e é estupidez negar a compe tição que existe no ser humano. Se as crianças querem rivalizar, devem ter seus torneiozinhos entre classes. Competições entre escolas devem ser feitas no mo mento em que a criança enxerga o mundo menos concreto, enxerga um pouco além de sua escola. Torneios inter-escolares seria para adolescentes de 12 a 15 anos e daí por diante. As aulas de Educação Físi ca deveriam ter vários níveis. É fácil dar aula de voleibol para quem é especial mente talentoso. O teste do bom professor é ensinar pro gordinho que nunca partici pa de nada. Os 35 de uma turma teriam que aprender e participar de alguma ma neira quando sua escola for competir com outras. Seja escolhendo os 6 ou 12 que jo garão, pintando faixas e cartazes, escre vendo, atuando como árbitros, fotogra fando, auxiliando o professor, torcendo etc. Aparecendo o campeão, todos sabe riam o que aconteceu nesse processo. As competições podem ser adaptadas. Fute bol para crianças com 10 anos de idade não precisa ter regras rígidas. As compe tições podem ser mistas. Por que não misturar meninos e meninas? Poderiam também ser resgatadas atividades motoras da cultura popular. Por que dar medalha só para o vencedor? Pelo menos o esporte popular deveria ter outros referenciais que não só o do vencedor. Como o senhor vê o papel do poder público no esporte popular? O que é feito pelo poder público de veria ser exclusivamente lazer. Vejo esse lazer em três níveis. O primeiro, os even tos folclóricos, de dança, de cultura po pular, promovidos em ocasiões especiais. O segundo seriam os centros de aprendi zagem, onde, de 999 em cada mil casos, as pessoas estarão aprendendo esporte, mas não serão atletas. O objetivo desse traba lho no serviço público é fazer com que as pessoas aprendam esporte para ocupar seu tempo livre de uma forma boa e prazero sa. O terceiro nível seria quando o poder público seleciona as pessoas especialmente talentosas e as promove. O treinamento neste caso tem que ser especial porque serão grandes atletas e proporcionarão es petáculos à população. É só nesse sentido de ser uma opção de lazer que se justifica o investimento do poder público no es porte de alto nível. No Brasil, na maior parte dos casos, o poder público mantém os centros esportivos exclusivamente para descobrir o campeão. Esse é o modelo de pelo menos vinte anos, idade dos Jogos Escolares Brasileiros que, basicamente, foi quem fomentou isso. No entanto os Revista da Fundação de Esporte e Turismo 1 (3): 11-18, 1989 cada vez que viaja leva um DC-10 com trezentos dentro, gastando rios de di nheiro, vai sobrar dinheiro pra quê? Não sobra dinheiro nem pra comida, muito menos para o esporte. Alguém já viu fal tar ar condicionado, secretária, máquina de escrever, limpeza,no gabinete de algum deputado? Tudo isso que é indispensável pra ele, é indispensável também numa sala de aula. No entanto, as salas de aula são sujas, as carteiras quebradas, o salário é baixo. Os hospitais estão caindo aos peda ços, mas em gabinetes dos políticos não falta nada. Por isso tudo não temos es porte de alto nível. O esporte de alto nível reflete o país. As necessidades básicas nesses países estariam resolvidas? Os governos militares acolheram muito o esporte porque precisavam provar que ditadura dá certo campeões que temos são os que treinaram fora do Brasil, quase sempre. Dificilmente nossos técnicos vão perceber que esse modelo fracassou, porque também são fruto desse modelo e sua visão excede muito pouco os limites de uma quadra ou de um campo de futebol. Por que outros países têm tantos atletas de alto nível e o Brasil não? Porque os países são de alto nível. Quer dizer, um país em que o presidente Sim, podem ser dar ao luxo de fazer esporte de alto nível. É perfeitamente ad missível um atleta olímpico num país co mo a Alemanha. O Robson Caetano e o João do Pulo são uma exceção. O Robson não é a expressão do povo enquanto de senvolvimento. Seu povo é subdesenvol vido. Sorte a dele, porque deve haver mi lhares de pessoas com a mesma qualidade e que ficam esquecidas porque o país não tem estrutura. Não adianta uma medalha no peito nas Olimpíadas para mostrar que o país é desenvolvido. O mundo conhece bem nossa situação. O problema é que aqui a população também se alimenta dessas ilusões. Seria essa ilusão que facilita o uso do esporte pelos governos, notadamente pelo governo militar na década de 70? Os regimes de exceção foram os que mais acumularam normas legais sobre a Educação Física. O número de decretos, leis e portarias sobre a Educação Física da ditadura Vargas e da última ditadura mi litar excedem todo o resto da história do país. Há uma associação muito grande entre militarismo e esporte. Os militares gostam muito de disciplina, de ordem, conseqüentemente de ginástica, e, conse qüentemente, de regras. Como têm muito tempo livre, promovem muito o esporte em sua visão, que é estereotipada, rígida, hiper-disciplinada. Os governos militares acolheram muito o esporte porque preci savam provar que ditadura dá certo. Que nela todos podem se alfabetizar, fazer es porte, viver bem. Nada melhor pra uma ditadura que um país campeão do mundo no futebol, onde existe o "Esporte para Todos", que foi uma falácia. O regime militar aumentou o índice de anfalfabe tismo e a fome com todas suas conseqüên 15 cias. O esporte nunca será destinado a uma formação democrática, se associado ao militarismo. O problema é que nossos dirigentes civis muitas vezes incorporam mais o sentimento militarista que os pró prios militares. As Federações e Confe derações são um reduto seríssimo de au toritarismo, que banido das instituições foi correndo pro esporte. Nas confederações de basquete, futebol, vôlei, quase que sem exceção, há dirigentes extremamente au toritários que assim fazem porque as pessoas têm por hábito baixar a cabeça e não contestar. Os JEB's seria um dos eventos onde grassaria também esse tipo de mentalidade? Os JEB's é o filhote do sistema mais autoritário que o Brasil já viveu. Nasce ram em Niterói em 1969, mas só em 89 houve a primeira tentativa de um JEB's mais democrático. Nesse evento nunca houve um tribunal de recursos. Sempre que havia um problema pra se discutir, um grupo de pessoas autoritárias julgava, de acordo com seu humor. Acompanhei isso de perto. O Brasil levou delegações imensas pra Alemanha fazer estágios, gastou rios de dinheiro e não se produziu absolutamente nada. Eu participei de está gio na Alemanha - subproduto dos JEB's - e vi barbaridades. Vi pegarem um grupo de 90 pessoas, a maioria de centros muito pobres da sociedade brasileira, que, de re pente, se vêem numa cultura como a ale mã. Vi pessoas que poucas vezes na vida pisaram numa pista de atletismo e que foram fazer estágio na Alemanha. Ao voltarem, nunca fizeram um trabalho se quer de atletismo ou produziram alguma coisa pra escola. Nesses vinte anos de JEB's não descobrimos talentos esporti vos, não fomos campeões olímpicos e não fizemos esporte escolar. O senhor considera que o trabalho de esporte, tanto a nível escolar como profissional, é tradicional? Ah, sim. É o comportamentalismo colocado à toda prova. Um laboratório de comportamentalismo no mal sentido. O que se ignora é que, quando você trata um atleta de alto nível de forma humana, ele fica teu amigo e interessado em saber sempre mais. Quanto mais humanos se sentem, mais humanos querem ser. Os treinos podem ser feitos com brincadeiras ao invés de ficar correndo como um idiota ao redor da quadra. É preciso dar um sig nificado para o condicionamento físico, senão não é uma atividade humana. Saltar 16 o canguru também salta, equilibrar uma bola no nariz a foca equilibra melhor que nós. Só que o animal não tem consciência do que faz. O desporto é uma atividade ti picamente humana. Minha opção é fazer esporte humano, porque quero me huma nizar. Acho extremamente pobre tratar crianças e atletas como se fossem animai zinhos, como se não pensassem. jovens que ficam prisioneiros nesse es quema durante seis meses? O sexo deixou de existir para eles? O amor deixou de existir? Ao invés de aplaudir o ato amo roso, nós o castigamos. Isso tem que ser combatido e denunciado, assim como o uso de drogas tem que ser denunciado, assim como os dirigentes e técnicos que estimulam o uso de drogas. O senhor acredita que um atleta que tenha essa consciência se sujeite a um treinamento tradicional? O senhor acha que o esporte afasta os jovens das drogas? Se o atleta chegar a essa percepção, é porque alguém o tratou de forma humana e ele procuraria um técnico com esses va lores. Se não encontrasse, correria o risco de largar o esporte. O Sócrates, por exemplo, se submete a muita coisa porque gosta tanto do esporte e quer continuar. É no futebol que você tem os maiores exemplos: Sócrates, Maradona, Afonsinho e onde os técnicos têm mudado um pouco sua postura. Não acredito com o que vejo no voleibol! Não acredito que se possa fa zer com seres humanos o que se faz em algumas equipes de voleibol. No futebol, alguns técnicos começam a discutir com os jogadores, a criar um clima mais demo crático. Isso não seria contraditório já que o atleta de futebol geralmente vem de uma classe economicamente inferior, enquanto os de vôlei vêm de uma classe mais privilegiada, com mais informações? Apesar dos grandes nomes da história terem saído da burguesia, na média isso não significa que o nível mental, de per cepção traga alguma vantagem, porque as pessoas que entraram muito cedo para o esporte profissional, deixaram de exercer o poder de crítica. Em sua maioria para ram de estudar seriamente, de ter bons orientadores e se entregaram ao esquema do esporte. A vida dessas pessoas fica restrita ao esporte? Quando aparece uma pessoa com um mínimo de contestação como a Izabel e a Jaqueline são imediatamente abafadas. Há um tempo, houve uma experiência numa seleção de voleibol em que um grupo de meninas juvenis ficou concentrado du rante muitos meses para um campeonato mundial ou sul-americano. Às vésperas da competição, uma das garotas foi surpre endida namorando com o preparador físi co. Os dois foram mandados embora. Quer dizer, o que a gente espera de dois Há um tempo atrás havia uma campa nha do Ministério da Educação cujo cartaz trazia várias bolas, dizendo algo assim: "Use essas bolinhas ou troque..." A idéia era de trocar o vício das drogas pelas bo las do esporte. Não muda muita coisa. A diferença é que a droga química provo cará danos físicos mais imediatos, mas ví cio é vício. Drogar-se com bolas de bas quete, com reza ou com teoria política é a mesma coisa. Há muito tempo o esporte deixou de ser saúde. Ele até pode ser saú de. Mas tomar anabolizante é saúde? Treinar oito horas por dia é saúde? Entre gar-se exclusivamente a uma atividade como o esporte e esquecer que existem outras coisas na vida é saúde? Correr 40 quilômetros por dia é saúde? Nada disso é saúde. Saúde é você ser livre, ter paz, se renidade. Se o esporte trouxer isso, então ele é saúde. Imagine uma garota de 14 anos convocada para a seleção brasileira e que passa a treinar 6 horas por dia, fica concentrada durante seis meses por ano e tem que obedecer cegamente técnicos e dirigentes que têm um controle até sobre quem ela deve ou não namorar. Eu não sei se esta pessoa estará vivendo melhor do que quem toma qualquer outro tipo de droga. Afinal, essa é uma forma de se drogar. Esse tipo de esporte tem que ser combatido. Os técnicos acabam reprodu zindo aquilo que criticamos em outros setores da sociedade. Acabam sendo tira nos, criando um mundinho muito particu lar de despotismo. São tiranos que criaram seus pequenos reinados e feudos numa quadra de basquete, vôlei etc. Ninguém tem o direito de suprimir a vida de nin guém. E os técnicos desportivos acabam em boa parte dos casos - fazendo isto. Na escola, no entanto, o esporte tem que ser feito para formar a pessoa, tem que ter uma utilidade especial. É um veículo pe dagógico. Da mesma forma, posso fazer do ensino da língua e da matemática uma atividade muito boa, como um jogo. Fora da escola, quem faz esporte é o clube profissional ou o poder público. O clube profissional faz do esporte um fim em si mesmo. É uma profissão. Isso deve e pode Revista da Fundação de Esporte e Turismo 1 (3): 11-18, 1989 ser feito de uma forma decente, como também devem ser as outras profissões. O jogador profissional tem que, no mínimo, ter a consciência de um metalúrgico. Os jogadores são muito mais alienados hoje em dia, do que um metalúrgico, que luta pelos seus direitos. O atleta se submete aos carrascos dirigentes que fazem o que querem. O que acontece com os atletas que "abrem o jogo"? O dirigente quer que o atleta seja um, imbecil porque assim não cria nenhum problema Pensar é proibido. Alguns jogadores, como a Jaqueline, que se dispuseram a pensar, foram duramente castigados. O dirigente quer que o atleta seja um imbe cil, porque assim não cria nenhum pro blema. O esporte nacional deveria ser realmente uma profissão, como qualquer outra. O senhor considera grave o uso de drogas por atletas brasileiros? Eu gostaria que os atletas que tomam drogas tivessem disponibilidade para falar isso publicamente. Não se pode acusar ninguém de nada, porque não há provas, mas se se pudesse falar sobre o uso de drogas no esporte no Brasil - e não só o anabolizante, mas vários outros tipos seria um grande escândalo! O problema é que sabemos que o atleta toma drogas, mas se você pedir não dará nenhum de poimento, porque quer continuar no es porte. Se der, o castigado será ele. Como se a estrutura não tivesse nada a ver com isso. Todos ficaram com medo por causa da crise provocada pelo Ben Johnson, mas bem antes dele já era indiscriminado o uso de drogas, principalmente anabolizantes esteróides, que mexe com toda a máquina reguladora do corpo humano. As conse qüências são as mais imprevisíveis, e gra ves. Conheci vários atletas que usaram drogas até se arrebentar. Hoje são incapa zes de depor a respeito. Seria necessário um debate profundo com os técnicos. Vale. a pena ser campeão a esse preço? Vencer uma competição é significativo, mas tem que ser visto como um ritual. Um homem que deixou de jogar lança num animal, joga dardo numa competição para ritualizar isto, rendendo uma homenagem a milhares de anos de cultura. O homem que corre hoje numa pista de atletismo é o que fugia de um animal feroz. Isso deve ser resgatado enquanto ritual de cultura. A competição tem que se harmonizar com cooperação, porque colocada em seu lu gar, não desequilibra nada. É normal co mo outra atividade humana. Exacerbada, vira patologia. Como tem sido sua experiência na Prefeitura de Campinas, administrada pelo PT, partido de esquerda que defende propostas progressistas? Estamos definindo que o papel de nosso departamento é oferecer um serviço de esporte e educação física. Isso pode ser fazendo queimada, amarelinha, dominó, cantando, jogando voleibol, basquete ou assistindo a um espetáculo desportivo. Campinas possui 1 milhão e 200 mil habi tantes, 13 praças, 6 dúzias de parques e 73 professores. Isso é insuficiente porque a cidade cresceu demais. Estamos então in vestindo na formação de bons professo res, porque um bom professor desempe nha o trabalho de 10 maus professores. Aumentando a competência dos 73 pro fissionais, estarei multiplicando-os por 10. Primeiro, para investir neles, preciso que estudem. Magistério é profissão de quem estuda, não de quem capina mato, corta madeira. Professor que não estuda é pi careta. Quatro horas por semana, dedica mos ao estudo, seja ouvindo palestras, es crevendo, debatendo. Em segundo lugar, é preciso que eu acredite no meu professor, e goste dele. Investindo numa relação amorosa, permito que ele seja amoroso com seus alunos. Ao invés de criar um Revista da Fundação de Esporte e Turismo 1 (3): 11-18, 1989 clima em que as coisas são obrigatórias, criamos um clima em que são voluntárias. Fora as atividades do dia-a-dia, metade deles vai trabalhar em todos os finais de semana. Na escala de trabalho, tivemos que recusar voluntários. Isso é funda mental: se não conseguirmos que a pessoa goste do seu trabalho, e que exista um bom sentimento entre alunos e dirigentes, o trabalho estará fadado ao fracasso. O investimento em recursos humanos, no nosso caso, está funcionando muito bem. Queremos promover muitos eventos, mas o cuidado com a qualidade é essencial. Não é simplesmente chegar num bairro e fazer uma rua de recreio. Uma rua de recreio ou uma corrida têm que ser peda gógicas. Por exemplo, numa grande pro moção de corrida, todos os participantes receberão um certificado, explicando, no verso, o significado fisiológico, social etc, de uma corrida. O principal osbstáculo é a falta de recursos, mas procuramos traba lhar com a imaginação e com alguns em presários que acreditam no retorno do es porte. Uma de nossas propostas é a de que crianças, até os 12 anos, que forem à pra ça de esporte vão aprender a praticar es porte. Não somos uma escola, mas um centro esportivo. As crianças, necessaria mente, têm que aprender brincando. Al- 17 guns professores estão fazendo levanta mento de uma série de brinquedos da cultura popular e os adaptando para o vô lei, basquete, handebol, futebol. Assim, as crianças, divididas em faixas etárias, de 7 a 12 anos, enquanto brincam de pular cor da, aprenderão basquete, vôlei etc. En quanto brincam na água, estarão apren dendo natação, pólo aquático. Como pe dagores, estarão aprendendo atletismo, basquete, futebol. Cada brinquedo é pre parado para que contenha os recursos ne cessários à aprendizagem de vários es portes. É um projeto ambicioso, exige um professor hiper preparado e que está, in clusive gerando uma apostila, que é quase um livro. É um trabalho que vai exigir uma grande campanha para praticar es portes em toda cidade, exigir a ampliação da rede de praças de esportes e dos espa ços para práticas desportivas. O esporte pode ser um recurso para humanizar a ci dade. E o amor é um recurso fundamental em todo esse trabalho. Esses terão que estar conscientes também da problemática social. Vocês discutem nos seus cursos? Discutimos inclusive o preconceito racial, porque as grandes equipes brasi leiras locadas em clubes discriminam profundamente o negro. Os problemas políticos têm que ser abordados, mas não de forma panfletária. Não estou aqui fa zendo panfletagem de esquerda. Não faço panfletagem aqui e não vou fazer nunca entre os professores. Prefiro que falemos com as pessoas de forma humana. E que falemos com indignidade contra as coisas indignas. As injustiças têm que provocar indignidade. Isso é construir um trabalho humano e isso nós podemos fazer. Há bases reais para o conceito de que o professor de Educação Física é um alienado, desinformado e não gosta de leitura? Duas coisas que gosto muito de fazer é ler e jogar futebol. Se nunca tivesse lido, talvez só gostasse de futebol. O problema é que nos dão uma porcarias pra ler nas faculdades. São tão chatas que associam o livro ao desprazer. Acredito que, se os professores de Educação Física começa rem a ler textos gostosos, vão gostar de ler. Não só eles. O professor de matemáti ca costuma detestar a leitura. O médico e o engenheiro também. E que a Educação Física não tem uma leitura técnica obri gatória, e também não desenvolveu isto. A gente não lê, mas não somos diferentes dos outros. 18 E em termos de revistas científicas na área da Educação Física e do Desporto? As revistas têm que ser científicas, mas não pedantes. As revistas científicas da Educação Física brasileira - temos 3 ou 4 - são quase ilegíveis. Na medida em que você coloca uma entrevista, um relato de experiência, o aspecto histórico de alguma coisa, ela começa a ficar mais gostosa, a ter um pouco mais de humor também. A leitura "científica" é chatíssima, porque no Brasil se faz pouca ciência em esporte. Fazemos muita tecnologia. Quero que al guém me mostre qual foi a grande inven ção científica depois do interval training, em 1959! Em 30 anos, inventamos a tec nologia, o anabolizante, a tortura no trei namento, a concentração, melhorou o sa pato, o piso da pista, mas em ciência de treinamento não há nada de novo. Quer dizer, inventamos muitíssimo pouca coisa, se é que inventamos alguma. Fazemos "ciência" no esporte, mas há pouca refle xão vigorosa que revele o caráter oculto dos fenômenos. Isso sim seria científico. Poucos enxergam por detrás das coisas. A ciência exige uma investigação rigorosa para mostrar aqueles aspectos na atividade esportiva que não são visíveis a nossos sentidos. Isso exige não só procedimento metodológico, técnica de investigação, mas também uma reflexão profunda, o que não está sendo promovido pelas uni versidades ou órgãos colegiados científi cos. Um colegiado ou uma revista científi ca têm que ser estimuladores de um pen samento científico e não de procedimentos ou simplesmente de política científica. Uma conversa com Stephen Hawking, que é um investigador, é mais do que científico. Esse tipo de coisa ajuda as pessoas que têm pensado sobre a Educa ção Física, que têm ampliado esse mundi nho. mento que ele teve que fazer para chegar àquela ferramenta, mas apenas à trans formação de tal estrutura cerebral. Não há nenhum estudo do movimento em si, en quanto expressão inteligente. Tenho uma curiosidade científica muito grande em verificar que as crianças, quando se mo vimentam, quando fazem gestos esporti vos, façam tanta coisa parecida, mesmo que nunca tenham aprendido aquilo, mes mo que provavelmente elas estejam ex pressando uma bagagem cultural de cen tenas de milhares de anos. Assim, é inevi tável que, naquela situação, elas mostrem que sabem e que, se fizerem esporte, só terão que tomar aquele referencial e per segui-lo, como os atletas vão perseguir uma estética do movimento desenvolvida culturalmente. Isso para desmistificar essa idéia de que uns têm coordenação motora e outros não, de que uns podem e outros não e que existem certos padrões que você tem que incutir na criança. Sabemos, po rém, que um padrão de movimento de hoje não foi o mesmo há um milhão de anos, nem será daqui a um milhão de anos adiante, porque as coisas se modificam. Se o pé foi importante, daqui pra frente tal vez o seja apenas em termos de jogo e não mais de profissão. Quase ninguém mais trabalhará em pé com o advento do com putador e com a mecanização da agricul tura. Os movimentos vão se modificando com a construção de uma cultura e se transformando em jogos simplesmente para serem guardados enquanto memória. Não temos estudado nada disso cientifi camente. Temos comparado o calcanhar do alemão com o do chinês. Nossa ciência do esporte é muito pobre, atinge horizon tes muito estreitos, quando, ao contrário, deveria ser um fator importante para a construção da humanidade. Qual tem sido seu trabalho em termos de ciência? Estou preocupado em investigar a história da motricidade. Estudando a his tória do homem, vemos que os investiga dores são obrigados a olhar o movimento humano, o corpo humano pra poder en tender o pensamento, os sentimentos etc. Nunca, porém, olharam o movimento pra entender o próprio movimento, nunca olharam o corpo pra entender o corpo. Olham o corpo pra entender o funciona mento do sistema vascular, digestivo, neurológico. Estudando, observo uma foto de uma ferramenta de um milhão de anos atrás. Não há referência ao movi JOÃO BATISTA FREIRE Mestrado em Educação Física - USP Doutorado em Psicologia Escolar USP (em andamento) Professor Assistente na UNICAMP Endereço: UNICAMP — Departamento de Educação Física - Cidade Universitária Zeferino Vaz - 1 3 . 1 0 0 CAMPINAS - SP Revistada Fundação de Esporte e Turismo 1 (3): 11-18, 1989