• Coordenação Teresa Arruda Alvim Wambier Luiz Rodrigues Wambier Luiz Manoel Gomes Jr. Octávio Campos Fischer William Santos Ferreira REFORMA DO JUDICIÁRI PRIMEIRAS REFLEXÕES SOBRE A EMENDA CONSTITUCIONAL N. 45/2004 EDITORA REVISTA DOS TRIBUNAIS XVII - A TRAJETORIA BRASILEIRA EM BUSCA DO EFEITO VINCULANTE NO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE FERNANDO FACURY SCAFF Doutor em Direito pela USP. Professor da Universidade Federal do Pará. Advogado. • ANTÓNIO G. MOREIRA MAUÉS Doutor em Direito pela USP. Professor da Universidade Federal do Pará. SUMÁRIO: 1. Introdução - 2. Os problemas de articulação entre o controle difuso é o controle concentrado de constitucionalidade das leis no Brasil antes da EC n. 45 - 3. A criação da ação declaratória de constitucionalidade e a consolidação do efeito vinculante: 3.1 O efeito vinculante em ação; 3.2 A questão de ordem na ADC 1; 3.3 A medida cautelar na ADC 4; 3.4 A consolidação do efeito vinculante nas Leis 9.868/1999 e 9.882/1999 - 4. A EC n. 45 e a súmula vinculante: o coroamento da busca pelo efeito vincularite no controle de constitucionalidade das leis - 5. Conclusões. 1. Introdução 1.10 desenvolvimento dajustiça constitucional nas últimas décadas permite-nos identificar umarelativização das diferenças entre os sistemas dejustiça constitucional difusa e concentrada. Nos países que adotam o sistema difuso, as Cortes Supremas ocupam-se cada vez mais com o julgamento, em última instância, dos litígios que envolvem a interpretação e a aplicação da Constituição, o que tem levado à extensão dos efeitos das decisões dessas Cortes a casos semelhantes. Assim, o órgão de cúpula do Poder Judiciário nos sistemas difusos acaba assumindo, como uma de suas funções principais, a definição dos parâmetros de interpretação da Constituição.1 Além disso, os sistemas difusos da América Latina passaram a conviver com formas de (l) Cf. Louis Favoreu. Modele Americain et Modele Européen de Justice Constitutionnelle. Annuaire International de Justice Constitutionnelle Al62, 1988. controle concentrado de constitucionalidade das leis, convertendo-se em sistemas mistos de justiça constitucional. Essa mudança foi propiciada tanto pela criação de um Tribunal Constitucional (Peru, Colômbia e Equador) quanto pela atribuição à Corte Suprema (México, Brasil) ou a uma de suas Salas (Venezuela) da competência para julgar a constitucionalidade das leis por via direta. 2 No que se refere aos sistemas concentrados, tornou-se indispensável a participação da jurisdição ordinária na aplicação judicial da Constituição, consolidando um conceito material de <2) Cf. Néstor Pedro Sagiiés. Justicia constitucional y control de la ley en América Latina. In: Luis López Guerra (Coord.). La justicia constitucional en }a actualidad (Quito: Ed. Nacional, 2002). Na página <www.uc3m.es/jci>, mantida pelo Instituto de Direito Público Comparado da Universidade Carlos III de Madrid, também encontram-se informações sobre a justiça constitucional latino-americana. 226 REFORMA DO JUDICIÁRIO jurisdição constitucional. 3 Em primeiro lugar, a existência da via incidental nesses sistemas impõe aos juízes e tribunais o dever de inteipretar a Constituição, a fim de que possam decidir sobre a apresentação de questões de inconstitucionalidade ao Tribunal Constitucional. Seja em razão de um pedido da parte, ou de ofício, o órgão judicial deve realizar um juízo prévio acerca da constitucionalidade das normas aplicáveis ao caso subjudice, o qual irá motivar sua decisão de submeter ou não uma questão de inconstitucionalidade ao Tribunal Constitucional. Em ambos os sentidos, a decisão do juiz ou tribunal requer a interpretação da Constituição: no primeiro caso, ele deverá apresentar as razões que fundamentam a dúvida sobre a constitucionalidade da norma, justificando a manifestação do Tribunal Constitucional; no segundo caso, ele deverá apresentar as razões que fundamentam o convencimento contrário, rechaçando a necessidade de intervenção do Tribunal Constitucional.4 No entanto, a contribuição da jurisdição ordinária nos sistemas concentrados manifesta-se mais fortemente com a afirmação do princípio da aplicabilidade direta dos direitos fundamentais, que possibilita aos órgãos judiciais protegê-los contra atos de caráter infralegal.t4a medida em que o exercício dessa competência faz com que os juízes e tribunais produzam jurisprudência constitucional, torna-se necessário o estabelecimento de mecanismos que permitam a harmonização dessa jurisprudência com aquela estabelecida pelo Tribunal Constitucional, a quem corresponde dar a última palavra sobre a matéria.5 Esses mecanismos de articulação podem consistir na 0) (4) (5) Cf. Pablo Pérez Tremps. La justicia constitucional en la actualidad. Especial referencia a América Latina. Revista Brasileira de Direito Constitucional 1/31, 2003. Cf. Pablo Pérez Tremps. Tribunal Constitucional)/poder judicial (Madrid: Centro de Estúdios Constitucionales, 1985. p. 126-144). Vale lembrar que o reconhecimento da função do Tribunal Constitucional como intérprete supremo da Constituição, bem como sua própria criação, nos países europeus do segundo pós-guerra, originamse de uma desconfiança original em relação à capacidade de os membros do Poder Judiciário aplicarem adequadamente a Constituição, e mesmo de sua lealdade com a nova ordem constitucional. revisão, pelo Tribunal Constitucional, das decisões tomadas pela jurisdição ordinária sobre direitos fundamentais, o que o converte em um tribunal de "última instância" nesses casos, ou podem consistir na atribuição de efeitos especiais às suas sentenças, tal como o efeito vinculante, que obriguem a jurisdição ordinária a incorporai' a interpretação desenvolvida pelo Tribunal Constitucional.6 Em ambos os casos, o Tribunal Constitucional adquire uma articulação funcional com o Poder Judiciário em matéria de direitos fundamentais, que se aproxima da relação que a Corte Suprema mantém com os demais órgãos judiciais no sistema difuso. 1.2 Apesar dessas aproximações, uma diferença notável ainda permanece entre os dois modelos. Nos sistemas concentrados, o Tribunal Constitucional possui o monopólio da declaração de inconstitucionalidade das leis, que é efetivada mediante um processo constitucional distinto dos processos judiciais ordinários. No sistema difuso, a ausência desse monopólio permite que, em qualquer litígio, a constitucionalidade da norma a ele aplicável seja questionada pela parte, cabendo ao juiz da causa decidir sobre a compatibilidade ou incompatibilidade dessa norma com a Constituição. Neste caso, os órgãos judiciais dispõem de mais poder para a defesa dos direitos fundamentais, visto que a efetivam contra a lei sem que seja necessária a manifestação do Tribunal Constitucional. Assim, enquanto no sistema concentrado a identificação da violação de um direito fundamental pela lei possibilita apenas que o juiz suspenda o processo até o julgamento da questão de constitucionalidade pelo Tribunal Constitucional, no sistema difuso o juiz pode deixar de aplicar a lei ao caso, decisão que somente pode ser reformada por via recursal. No entanto, essa ampliação da proteção dos direitos fundamentais contra a lei acarreta problemas para a igualdade e a segurança jurídicas, pois o reconhecimento da competência difusa para declaração de inconstitucionalidade pode fazer com que um mesmo texto normativo seja reputado válido por alguns tribunais e nulo por outros. Como (6) Cf. Louis Favoreu. Op. cit.; Pablo Pérez Tremps. La justicia constitucional..., cit., p. 36. EFEITO VINCULANTE: é sabido, no sistema norte-americano o instituto do síare decisis impõe limites a essa variação, enquanto sua ausência nos países de direito romanista sempre foi considerada um risco para o bom funcionamento do controle difuso.7 Com o incremento da produção legislativa e a ampliação do acesso à justiça, que acompanharam a consolidação do Estado Social, a probabilidade de decisões judiciais divergentes no campo do controle de constitucionalidade foi exponenciada, tornando necessária a criação de mecanismos que possibilitassem a harmonização da jurisprudência constitucional. Essa situação contribuiu para que vários países da América Latina adotassem, como vimos, formas de controle concentrado de constitucionalidade das leis, sem abandonar o controle difuso. Nesses sistemas mistos de justiça constitucional, a articulação entre ambas as modalidades de fiscalização resulta de grande importância, por duas razões principais, para a conformação da proteção judicial dos direitos fundamentais. Em primeiro lugar, a criação do controle concentrado possibilita que as decisões sobre a constitucionalidadedas leis sejam dotadas de eficácia erga omnes. Portanto, o alcance da proteção contra a lei, oferecida pelo controle difuso aos direitos fundamentais, tenderá a estar condicionada pelas decisões do Tribunal Constitucional ou Corte Suprema. Em segundo lugar, quando o controle concentrado de constitucionalidade é exercido pela Corte Suprema, o próprio sistema de recursos possibilita que ela julgue em caráter definitivo as decisões tomadas pelas instâncias inferiores em matéria constitucional. Isso permite que a interpretação da Constituição, firmada por essa Corte no controle concentrado, também se aplique aos casos que envolvem violação dos direitos fundamentais por atos infralegais, originados nas instâncias inferiores. Em ambas as situações, verifica-se que a diminuição da divergência judicial em torno da aplicação da Constituição tende a ser conduzida pelo predomínio da inteipretação constitucional elaborada no controle concentrado sobre aquela (7) A critica clássica foi desenvolvida por Mauro Cappelletti, O controle judicial de constitucionalidade das leis no direito comparado (Porto Alegre: Fabris, 1984). JETÓRIA BRASILEIRA 227 elaborada no controle difuso. Apesar do caráter lógico que esse desenvolvimento possui, decorrente dos efeitos especiais atribuídos às decisões proferidas no controle concentrado e da posição institucional do Tribunal Constitucional ou da Corte Suprema, deve-se analisar se ele pode vir a restringir a proteção judicial dos direitos fundamentais. Essa preocupação parte do reconhecimento de que, enquanto há uma ampla possibilidade de os cidadãos arguirem a constitucionalidade de uma lei no controle difuso, no controle concentrado costuma ocorrer uma limitação dos sujeitos legitimados para provocá-lo, o que pode diminuir as oportunidades de apreciação judicial da validade das leis. Além disso, o caráter abstraio das decisões tomadas no controle concentrado dificulta a identificação das violações dos direitos fundamentais que podem ocorrer quando da aplicação da lei a casos concretos. Considerando o princípio da presunção de constitucionalidade das leis, é possível que uma norma permaneça no ordenamento jurídico mesmo quando houver bons argumentos no sentido de sua incompatibilidade com a Constituição. Nos casos de "interpretação conforme a Constituição", por exemplo, ao mesmo tempo em que se mantém a vigência da lei cuja inconstitucionalidade foi arguida, há o reconhecimento de que essa lei pode ser interpretada em sentido contrário à Constituição. Assim, a adoção do controle concentrado como vetor da harmonização da jurisprudência constitucional comporta o risco de que uma lei, cujo pedido de declaração de inconstitucionalidade tenha sido indeferido, venha a originar situações inconstitucionais, tendo em vista que não é possível prever todos os casos aos quais ela será aplicada.8 (S> Esse ponto de vista baseia-se na distinção entre texto normativo e norma, reconhecendo que o conteúdo da norma é estabelecido pelas sucessivas interpretações elaboradas no momento de sua aplicação. Dado o caráter genérico e abstrato das normas legais, sua aplicação a situações individuais e concretas depende do intérprete, que deve formular as normas adequadas às características das situações que ele tem diante de si. Cf. Lenio Luis Streck. Jurisdição constitucional e hermenêutica (Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002); Menelick de Carvalho Netto. Racionalização do ordenamento jurídico e democracia. Revista Brasileira de Estudos Políticos, n. 88, 2003. 228 REFORMA DO JUDICIÁRIO 1.3 Para evitar esses prejuízos à proteção judicial dos direitos fundamentais, os sistemas mistos de justiça constitucional devem conter mecanismos que possibilitem a revisão da jurisprudência formulada no exercício do controle concentrado de constitucionalidade das leis. Essa possibilidade depende do modo como se organizam, em cada sistema, duas variáveis. A primeira diz respeito ao grau de vinculação dos juízes e tribunais à jurisprudência do Tribunal Constitucional ou da Corte Suprema, que, caso se assemelhe à vinculação existente em relação à lei, dificultará que essa jurisprudência seja confrontada por novas interpretações que venham a ser formuladas no exercício do controle difuso. A segunda variável refere-se ao processo pelo qual são tomadas decisões com eficácia erga omnes pelo órgão encarregado do controle. Caso essas decisões emanem somente da fiscalização exercida pela via direta, a articulação entre o controle difuso e o concentrado far-se-á na direção do abstrato para o concreto, o que acarreta os riscos acima descritos à proteção dos direitos fundamentais. Por outro lado, se essas decisões também se formarem a partir da "revisão" daquelas tomadas no exercício do controle difuso, o sistema de justiça constitucional possibilitará que a articulação se faça na direção oposta, favorecendo que a jurisprudência do controle concentrado leve em conta as diferentes situações surgidas na aplicação da lei a casos concretos. No Brasil estas duas variáveis se comportavam da seguinte maneira até a edição da EC n. 45, de 08.12.2004: a) havia um processo de aumento gradativo do grau de vinculação das decisões adotadas pelo STF por meio do controle concentrado de constitucionalidade - o que será melhor detalhado adiante -, porém sem o nível de vinculação hoje obtido mediante as súmulas vinculantes, que a referida emenda constitucional acresceu ao art. 103, batizando-o de 103-A; b) o nível de articulação entre os dois tipos de controle de constitucionalidade das leis era bastante impreciso, pois muitas vezes o que era de- cidido por meio de controle difuso necessitava de uma apreciação mediante controle concentrado para se tornar vinculante e valer erga omnes. As súmulas vinculantes surgiram no bojo da EC n. 45 para tentar resolver estas duas classes de problemas, como será adiante exposto. 2. Os problemas de articulação entre o controle difuso e o controle concentrado de constitucionalidade das leis no Brasil antes da EC n. 45 2.1 Um dos melhores exemplos da falta de articulação entre o controle difuso e controle concentrado de constitucionalidade das leis e suas repercussões para a proteção dos direitos fundamentais pôde ser verificado pouco mais de um ano após a promulgação da Constituição. Diante de uma inflação mensal próxima a 100%, o Presidente Fernando Collor (que havia sido o primeiro presidente eleito diretamente desde 1960), editou um conjunto de medidas económicas ao tomar posse, em 15.03.1990. Dentre essas medidas, estava o sequestro de todos os depósitos bancários de pessoas físicas e jurídicas no valor superior a 50 mil cruzados novos (cerca de 1.300 dólares norte-americanos à época), os quais começariam a ser devolvidos 18 meses após o bloqueio, em 12 parcelas mensais sucessivas. A norma em questão foi a Medida Provisória 168, editada em 15.03.1990, e posteriormente transformada em Lei pelo Congresso Nacional, com o n. 8.024, de 12.04.1990. Ocorre que o Governo Federal, desde logo, supôs que pudesse surgir uma enorme contestação, com base na Constituição, em razão do bloqueio de cruzados novos efetuado. Temendo que a magistratura ordinária, por meio de decisões liminares, viesse a liberar esses valores, o Governo editou, três dias após a Medida Provisória 168, a Medida Provisória 173, em 18.03.1990. Esta medida provisória explicitamente vedava "a concessão de medida liminar em mandado de segurança e em ações ordinárias e cautelares" decorrentes de toda a gama de medidas provisórias que estavam sendo editadas sob o nome genérico de Plano Collor, inclusive EFEITO VINCULANTE: TRAJETÓRIA BRASILEIRA acerca da Medida Provisória 168, que efetuava o bloqueio de dinheiro. Imediatamente, o Partido Democrático Trabalhista - PDT ingressou com a Ação Direta de Inconstitucionalidade - ADIn 223, pedindo que fosse considerada inconstitucional a proibição de concessão de liminares imposta pela Medida Provisória 173. O relator originário da ADIn, Min. Paulo Brossard, embora tenha votado pela concessão da cautelar, suspendendo a eficácia da lei, foi vencido pela maioria da Corte.9 O julgamento, ocorrido em 05.04.1990, foi no sentido de não reconhecer a inconstitucionalidade da Medida Provisória 173 em sede de medida cautelar, permitindo, contudo, que em cada caso concreto, mediante o controle difuso de constitucionalidade, fossem apreciados os requisitos átfumus boni júris epericulum in mora que justificassem sua concessão. Por outras palavras, o STF abdicou de decidir, em sede de controle concentrado, sobre a inconstitucionalidade da Medida Provisória 173, mas permitiu que, em cada caso concreto, por meio de controle difuso, cada magistrado decidisse ser a referida norma constitucional ou não. Estafração da ementa do acórdão bem demonstra a decisão: "Indeferimento da suspensão liminar da Medida Provisória 173, que não prejudica, segundo o relator do acórdão, o exame judicial em cada caso concreto da constitucionalidade, incluída a razoabilidade da aplicação da norma proibitiva da liminar". Í Com esta decisão o STF abdicou de seu poder de controle de constitucionalidade concentrado e delegou-o à magistratura ordinária, para realizá-lo por meio de controle difuso. Foi o próprio relator designado, Min. Sepúlveda Pertence, quem afirmou: "O caso, a meu ver, faz eloquente a extrema fertilidade desta inédita simbiose institucional que a evolução constitucional brasileira produziu, gradativamente, sem um plano preconcebido, que acaba, a partir da EC n. 16, a acoplar o velho sistema difuso americano de controle de constitucionalidade ao novo sistema europeu de controle direto e concentrado. (...) O que (9) RTJ 132/2-571. Foi acompanhado apenas pelo Min. Celso de Mello. 229 vejo aqui, embora entendendo não ser de bom aviso, naquela medida de discricionariedade que há na grave decisão a tomar, da suspensão cautelar, em tese, é que a simbiose institucional a que me referi, dos dois sistemas de controle de constitucionalidade da lei, permite não deixar ao desamparo ninguém que precise de medida liminar em caso onde a vedação da liminar, por que desarrazoada, por que incompatível com o art. 5.°, XXXV,10 por que ofensiva do âmbito de jurisdição do Poder Judiciário, se mostre inconstitucional. Assim, creio que a solução estará no manejo do sistema difuso, porque nele, em cada caso concreto, nenhuma medida provisória pode subtrair ao juiz da causa um exame da constitucionalidade, inclusive sob o prisma da razoabilidade, das restrições impostas ao seu poder cautelar, para, se entender abusiva esta restrição, se a entender inconstitucional, conceder a liminar, deixando de dar aplicação no caso concreto, à medida provisória, na medida em que, em relação àquele caso, a julgue inconstitucional, porque abusiva"."12 A partir daí o controle difuso de constitucionalidade das leis foi amplamente manejado para a liberação dos valores bloqueados. Milhares de ações judiciais foram apresentadas contestando a medida com base na Constituição, especialmente por violação do direito de propriedade e ausência de previsão constitucional para esse seqiiestro, argumentando que se traduziria em uma modalidade de tributo (empréstimo compulsório), instituído de modo contrário ao previsto na Constituição. A Lei 8.024/1990, que determinou o bloqueio do dinheiro, somente foi questionada diretamente no STF por meio da ADIn 534 apresentada pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB) tl0> 011 <l2) "XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito". RTJ 132/2-589-590. Deve-se referir que a Ordem dos Advogados do Brasil, então presidida por Ophir Cavalcante, e o Partido Democrático Trabalhista-PDT, ingressaram com duas ADIns sobre o tema, que foram in limine indeferidas, em julgamento realizado em 08.05.1990, ambas relatadas pelo Min. Aldir Passarinho: ADIn 272 (OAB) e ADIn 273 (PDT). 230 REFORMA DO JUDICIÁRIO em 19.06.1991,' 3 cujo pedido de cautelar foi apreciado pelo STF em 27.06.1991, 14 decidindo a maioria15 pelo seu indeferimento. Ainda que reconhecessem a plausibilidade da alegação de que a Constituição fora violada (fumus boni iuris), os juízes entenderam que o outro elemento necessário para a concessão de liminar, o periculum in mora, não estava suficientemente atendido, tendo em vista que haveria um perigo maior caso os cruzados fossem devolvidos em razão da concessão da cautelar e, ao final do processo, a ação fosse julgada improcedente. Depois que o STF, nas Ações Diretas 223, 272 e 273, recusou-se a suspender a eficácia da norma que por 30 meses suspendeu o uso judicial de qualquer medida18 contra o chamado plano económico, inclusive o emprego do mandado de segurança, que é direito individual assegurado pela Constituição, destinado à defesa de direito líquido e certo ameaçado ou violado, só um mentecapto ingressaria na Justiça.19 É doloroso dizer isto, mas é a pura e dura verdade. Só um mentecapto viria discutir a inconstitucionalidade do grande assalto cometido em março de 1990".20 Não se pode deixar de registrar que a ADIn 534 foi proposta passados 15 meses depois de instituído o bloqueio do dinheiro, quando então faltavam apenas 3 meses para o início de sua liberação parcelada.16 Este aspecto não deixou de ser observado pelo Min. Moreira Alves, que, embora negando a liberação do bloqueio sob o argumento do dano irreparável que ele ocasionaria, afastou a tese da existência de periculum in mora alegando que "depois de quinze meses de aplicação, sem que qualquer das inúmeras pessoas legitimadas para propor ação direta tivessem arguido a inconstitucionalidade, não se pode sustentar que haja periculum in mora para a suspensão do ato normativo impugnado". 17 Registre-se que até março de 1991, passados mais de 12 meses de editada a Lei 8.024/1990, portanto, antes de o Partido Socialista Brasileiro propor a ADIn, já haviam sido liberados, por decisão das várias instâncias judiciais, por meio de controle difuso, mais de 62 bilhões de cruzados, em todo o País.21 É bem verdade que o Min. Paulo Brossard, em seu voto, anterior ao do Min. Moreira Alves, já havia respondido a esta questão de modo peremptório: "Mas resta a pior das alegações. A que, para negar a cautelar, afiança ser ela desnecessária por inocorrer o periculum in mora tanto que o sequestro ora impugnado tem mais de um ano e só agora teria sido descoberta sua ilegalidade e sua lesividade. Essa afirmação chega ao sarcasmo. <l3) (,4) <l5) <K,) (m Cópia da petição inicial proposta, encontrável no site do STF (www.stf.gov.br) demonstra que a inicial foi proposta nessa data. ADIn-MC 534, RTJ 153/3-692. Os Ministros Celso de Mello (relator), Néri da Silveira e Paulo Brossard votaram pela imediata liberação de todos os valores bloqueados. Menção efetuada como sustentação do voto do Min. Carlos Velloso, RTJ 153/3-176. RTJ 152/3-725. 2.2 Todos estes fatos bem demonstram a extensão e a implicação da decisão anterior do STF, na qual abdicou de decidir sobre a constitucionalidade da Medida Provisória 173, que vedava a concessão de liminares contra o Plano Collor. (l8> ll9) (20) Cl' O Ministro quer se referir à concessão de liminares contra o plano económico (Medida Provisória 173). Quer dizer, por meio de ação direta de inconstitucionalidade no STF. RTJ 152/3-723. Dado mencionado pelorelatorda ADIn-MC 534, trazido aos autos pelo Banco Central do Brasil {RTJ 153/3-710). Não se podem deixar de analisar alguns números desta situação para se poder medir a grandiosidade da questão envolvida. O montante total bloqueado pela Medida Provisória 168, que se transformou na Lei 8.024/1990, importava em 12 trilhões de cruzados novos (cerca de 53 bilhões de dólares norte-americanos), e deste total já haviam sido liberados em março de 1991, um ano após o bloqueio, cerca de 5 trilhões e meio de cruzados novos (aproximadamente 22 bilhões de dólares norte-americanos, ou 44% do total), dos quais 62 bilhões de cruzados novos (ou 270 milhões de dólares norte-americanos, pouco mais de 1% do montante liberado) por meio de decisão judicial. Os dados são do Banco Central, constantes da ADIn-MC 534. EFEITO VINCULANTE: TRAJETÓRIA BRASILEIRA 231 Foram necessários mais de 15 meses de vigência de uma norma, que vinha sendo contestada mediante o controle difuso em todo o País, com bastante sucesso, e nenhuma ação de controle concentrado havia até então sido proposta contestando diretamente sua constitucionalidade. Registre-se que não se poderá jamais alegar demora na prestação jurisdicional por parte do STF na análise deste específico processo, pois, uma vez proposta em 19.06.1991, sua análise cautelar foi decidida em 27.06.1991, ou seja, em aproximadamente uma semana. A sequência dos fatos, no entanto, constitui uma página muito desfavorável do ponto de vista da guarda da Constituição pelo STF.23 Apesar de essa decisão significar o temor do STF de que uma manifestação sua pudesse derrubar o plano económico, o argumento da injuridicidade do referido plano era sustentável em termos constitucionais. Tanto que o relator, Min. Celso de Mello, que foi vencido ao final da votação, menciona em termos categóricos: "o mero decurso de tempo já transcorrido desde a edição da Medida Provisória 168, em 15.03.1990, não pode transformar-se em elemento descaracterizador do periculum in mora, cuja preocupante atualidade - especialmente se se considerar a circunstância de que a restituição do dinheiro bloqueado efetivar-se-á ao longo de um período de doze meses, só a partir de setembro de 1991 - manter-se-á enquanto não se concluir o processo de liberação e devolução dos recursos financeiros retidos. A extrema gravidade do comportamento estatal censurado não pode encontrar, no tempo, um manto protetor de sua intangibilidade, nem pode justificar, qualquer que seja o pretexto invocado - até mesmo razões de Estado - , a insubsistência de um plano económico aparentemente fundado no desrespeito aos postulados fundamentais que regem e limitam, em favor dosindivíduos, a atividade do Estado. Razões de ordem prática não podem escudar e muito menos justificar condutas lesivas da ordem constitucional. Quando setembro vier nada mais restará senão lamentar o continuado desrespeito ao que impõe, soberanamente, a Lei Fundamental da República". 22 Pouco mais de um ano após sua edição ficou patente o retumbante fracasso do Plano Collor, pois a inflação voltou com todo o seu ímpeto anterior. (22) RTJ 152/3-711. Seguindo o rito das ADIns, após o indeferimento da liminar, a ação foi encaminhada para a manifestação do Procurador-Geral da República, retornando ao STF para julgamento definitivo somente em 14.08.1992, três dias antes do depósito da última parcela da devolução. 24 Diante disso, o STF, atendendo ao parecer da Procuradoria, julgou a ação prejudicada por perda de objeto. 25 2.3 Outros exemplos poderiam ser descritos acerca da dificuldade de articulação entre estes dois sistemas de controle de constitucionalidade no Brasil, tai&como o caso do reajuste das aposentadorias em 147%, 26 da cobrança de contri<W) O caráter premonitório do voto vencido do Min. Paulo Brossard no julgamento da ADIn-MC 534 não pode deixar de ser registrado: "Por entender que se trata de uma questão que não poderá deixar de ser mencionada na história deste STF, refleti serenamente sobre o caso, como se estivesse longe dos homens e fora do tempo, como se estivesse a contemplar o mar imenso, em eterno movimento, e as montanhas coroadas de neve eternas em sua imobilidade milenar, e concluí que entre o discurso económico, de duvidosa correção, e o discurso jurídico claramente enunciado na Constituição, não havia o que hesitar. Em uma das formidáveis tragédias de Esquilo, lê-se que 'um voto a menos pode ser uma catástrofe, como um voto a mais reergue uma casa' (...). Votando como voto, suponho estar reerguendo a casa da lei e da segurança jurídica, sem a qual a lei não tem sentido. Concedo a cautelar" (RTJ 152/3-723). <24) RTJ 152/3-731. Mais uma vez deve-se anotar o caráter premonitório do voto do Min. Paulo Brossard, ainda na apreciação da MC 534, que previu este exato desfecho com 15 meses de antecedência {RTJ 152/3-723). SS 471 e AgRg 471, RTJ 147/2-512. <25) (26) 232 REFORMA buição social sobrepró-labore,27 e o caso da inconstitucionalidade da cobrança de ISS sobre locação de bens móveis,28 mas, por ora, é suficiente e emblemático o caso do Plano Collor acima exposto para demonstrar o estado de coisas existente. 3. A criação da ação declaratória de constitucionalidade e a consolidação do efeito vinculante 3.1 O efeito vinculante em ação 3.1.1 A criação de uma ação para declarar a constitucionalidade de uma lei deve ser entendida no contexto de crescentes divergências entre as decisões tomadas no controle difuso e no controle concentrado de constitucionalidade, bem como pela ausência de mecanismos eficazes de articulação dos dois sistemas, visando a harmonização da jurisprudência constitucional. Esse objetivo pode ser verificado na justificativa da <27) <2S) O leading case do controle difuso foi o RE 166.772-RS, cujo relator foi o Min. Marco Aurélio, julgado em 12.05.1994. No entanto, o controle concentrado foi exercido pór meio da ADIn 1.102, proposta pela Confederação Nacional da Indústria, cujo relator foi o Min. Paulo Brossard, tendo a liminar sido concedida em 04.08.1994 e o julgamento definitivo ocorrido em 05.10.1995, tendo por relator o Min. Maurício Corrêa. O leading case pela inconstitucionalidade desta cobrança foi o RE 1 16.121, cujo julgamento foi iniciado em 24.04.1990, tendo por relator o Min. Octávio Gallotti, e findou em 11.10.2000, tendo como relator para o acórdão o Min. Marco Aurélio, líder da divergência. A norma declarada inconstitucional foi a da Prefeitura Municipal de Santos-SP, mas como seguia o modelo federal estabelecido pelo Dec.-lei 406/1968, todas as demais 5.000 Prefeituras Municipais brasileiras, que certamente possuem norma tributária semelhante, passaram a ter esta exação colocada em cheque perante o Judiciário, inclusive com pedidos de restituição do que foi cobrado nos anos anteriores. Pelo menos duas ADIns já foram propostas, e ainda não julgadas pelo STF, mas receberam parecer do Ministério Público Federal favorável à sua constitucionalidade (ADIn 3142-2/600-DF e ADIn 3287-9/600. Ver Parecer PGR 3769-CF, de 21.01.2005). JUDICIÁRIO proposta de emenda constitucional apresentada pelo Deputado Roberto Campos, que ensejou a criação do instituto: "Um dos aspectos que mais têm preocupado o País, pelo prisma da nova ordem constitucional, é a valorização dos juizados de primeira instância - louvável conquista da cidadania - sem a contrapartida de um instrumento processual de uniformização célere, omissão incompreensível do constituinte na conformação do controle difuso e concentrado de constitucionalidade. A força outorgada aos juízes de primeira instância, sem um instrumento adequado de ação para os Tribunais Superiores, subverte a hierarquia necessária - e mais do que isto - a tranquilidade para a preservação da ordem jurídica, pois qualquer questão constitucional da maior relevância pode ser decidida de forma satisfativa, desde que o tribunal imediatamente superior não suspenda aefícáciade decisões que garantam benefícios ou direitos". O instrumento utilizado para lograr essa "uniformização", preservando a hierarquia entre as instâncias do Poder Judiciário, foi o efeito vinculante, instituto até então inexistente no direito brasileiro. Nos termos do § 2.° do art. 102, acrescentado pela EC n. 3: "As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo STF, nas ações declaratórias de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal, produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e ao Poder Executivo". Além dessa inovação, a criação da ADCguardava ainda duas outras diferenças em relação à ADIn: seu objeto limitou-se às leis e atos normativos federais, excluindo os estaduais (art. 102,1, a), e a legitimidade para propô-la foi restrita ao Presidente da República, às Mesas do Senado Federal e da Câmara dos Deputados, e ao Procurador-Geral da República (art. 103, §4.°). Tal conformação nos permite concluir, do ponto de vista da divisão funcional do poder, que a ADCestabeleceu um mecanismo de freio, outorgado aos Poderes Executivo e Legislativo, contra o exercício do controle difuso de constitucionalidade pelo Poder Judiciário. 3.2 A questão de ordem na ADC1 3.2.1 Corroborando a relação da criação da ADC com á ordem tributária, a primeira ação EFEITO VINCULANTE: TRAJETÓRIA BRASILEIRA declaratória foi ajuizada pelo Presidente da República, a Mesa do Senado Federal e a Mesa da Câmara dos Deputados para que o STF declarasse constitucional a LC 70/1991, que havia criado a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins). No entanto, diante dos inúmeros questionamentos doutrinários e jurisprudenciais sobre o novo instituto, manifestados inclusive em uma ação direta de inconstitucionalidade ajuizada pela Associação dos Magistrados Brasileiros - não conhecida por ausência de pertinência temática -, o relator da ação propôs uma questão de ordem para que o STF decidisse sobre a constitucionalidade da ADCantes de julgar seu mérito. A análise desse acórdão é válida para que se compreendam melhor os problemas da convivência dos dois sistemas no Brasil. O questionamento da constitucionalidade da ação declaratóriabaseava-se nos limites materiais à reforma constitucional, no que tange aos direitos e garantias individuais e à separação de Poderes. Entre os vários argumentos apresentados contra a ADC com base nesses princípios, vale destacar dois deles. Em primeiro lugar, a ausência de contraditório na ADC converteria o STF em órgão consultivo dos demais poderes. Assim, enquanto naADInoautorda ação expõe os argumentos contrários à constitucionalidade da norma, cabe ao Advogado-Geral da União sua defesa, sendo esse contraditório importante para que se assegure o caráter judicial do controle de constitucionalidade. No entanto, já que o autor da ADCvisaà declaração de constitucionalidade, não haveria no processo a produção de argumentos das "partes" em favor da inconstitucionalidade. A essa crítica o STF respondeu que, "visando a ação declaratória de constitucionalidade à preservação da presunção de constitucionalidade do ato normativo, é ínsito a essa ação, para caracterizar-se o interesse objetivo de agir por parte dos legitimados para propô-la, que preexista controvérsia que ponha em risco essa presunção, e, portanto, controvérsia judicial no exercício do controle difuso de constitucionalidade, por ser esta que caracteriza inequivocamente esse risco. Dessa controvérsia, que deverá ser demonstrada na inicial, afluem, inclusive, os argumen- 233 tos pró e contra a constitucionalidade, ou não, do ato normativo em causa, possibilitando a esta Corte o conhecimento deles e de como têm sido eles apreciados judicialmente. Portanto, por meio dessa ação, o STF uniformizará o entendimento judicial sobre a constitucionalidade, ou não, de um ato normativo federal em face da Carta Magna, sem qualquer caráter, pois, de órgão consultivo de outro Poder, e sem que, portanto, atue, de qualquer modo, como órgão de certa forma participante do processo legislativo. Não há, assim, evidentemente, qualquer violação ao princípio da separação de poderes" (Min. Moreira Alves, relator).29 O segundo questionamento referia-se ao efeito vinculante atribuído à ADC. Até então inexistente no direito brasileiro, a própria definição de seu significado deixava margem para amplas dúvidas, conduzindo à ideia de que impediria o exercício do controle difuso e afetaria a independência dos juízes. Para superar esses questionamentos, o STF definiu o conceito de efeito vinculante de modo restrito: "De feito, se a eficácia erga omnes que também possuem suas decisões de mérito lhe dá a mesma eficácia que têm as decisões de méritos das ações diretas de inconstitucionalidade (...) do efeito vinculante que lhe é próprio resulta: a) se os demais órgãos do Poder Judiciário, nos casos concretos sob seu julgamento, não respeitarem a decisão prolatada nessa ação, a parte prejudicada poderá valer-se do instituto da reclamação para o STF, a fim de que este garanta a autoridade dessa decisão; e b) essa decisão (e isso se restringe ao dispositivo dela, não abrangendo - como sucede na Alemanha - os seus fundamentos determinantes, até porque a EC n. 3 só atribui efeito vinculante à própria decisão definitiva de mérito), essa decisão, repito, alcança os atos normativos de igual conteúdo daquele que deu origem a ela, mas que não foi seu objeto, para o fim de, independentemente de nova ação, serem tidos como constitucionais ou inconstitucionais, adstrita essa eficácia aos atos normativos emanados dos demais órgãos do Poder Judiciário e do Poder Executivo, (29 > ADC \-QO, RTJ 157/372. 234 REFORMA DO JUDICIÁRIO uma vez que ela não alcança os atos editados pelo Poder Legislativo" (Min. Moreira Alves, relator). Dessa forma, o STF concluía que a ADC não impedia o exercício do controle difuso, mas apenas conferia ao novo instituto a eficácia necessária para resolver o problema de os demais órgãos do Poder Judiciário continuarem a julgar contrariamente à decisão do STF, outorgando às partes um meio mais expedito que o recurso extraordinário.30 3.2.2 Apesar disso, o Min. Marco Aurélio opôs-se à maioria, apontando problemas decorrentes para o devido processo legal da adoção da ADC. Assim, enquanto a ADIn, na ausência de efeito vinculante não impedia que o cidadão pudesse obter "uma decisão ditada pela própria consciência do magistrado, mormente quando a maioria, ao julgar a ADIn, haja concluído pela harmonia do preceito com a Carta e não se tenha procedido ao exame, considerado um certo dispositivo dessa última", na ADC haveria duas consequências: "a) declarando o STF, por maioria absoluta de votos, constitucional a lei, os demais órgãos do Judiciário estarão compelidos, em face do citado efeito vinculante, a emprestar, com automaticidade imprópria ao ofício judicante, ou seja, sem a realização de um julgamento livre e, portanto, norteado pela prova dos autos e convencimento formado, solução idêntica às lides; b) declarando a inconstitucionalidade, da mesma forma far-se-á presente o efeito vinculante. Pois bem: em face do primeiro desfecho, os contribuintes que tenham ação em andamento, quer em primeiro ou em segundo grau, perderão o bem em litígio, sem o devido processo legal, pois não terão participado do processo objetivo julgado por este tribunal. (...) Com a ação de constitucionalidade e o efeito vinculante do provimento positivo do Supremo, as lides em andamento são apanhadas e aí os desfechos respectivos decorrerão de simples e obrigatória observância do que decidido em processo diverso, sem dele ter participado os verdadeiramente interessados e que integram uma minoria". (30) Além de não exigir decisão de última instância, como o recurso extraordinário, a reclamação permite que o relator suspenda o processo ou o ato impugnado (Lei 8.038/1990, arts. 13 a 18). Apesar de o voto dissidente indicar os riscos da ação declaratória, era débil o argumento de que o sistema de justiça constitucional adotado originalmente pela Constituição de 1988 não poderia ser alterado pelo poder reformador. Sem embargo, parte dessas críticas encontra maior fundamento diante da outra polémica que surgiu com a ADC 4, acerca da concessão de medida cautelar, que adiante será melhor explicitada. Portanto, a criação da ação declaratória de constitucionalidade inovou substancialmente na articulação dos dois sistemas de controle de constitucionalidade. Com a atribuição do efeito vinculante às suas decisões, passava-se de uma vinculação dos juízes e tribunais à jurisprudência do STF de caráter meramente intelectual, baseada na força persuasiva das decisões da instância superior e sem nenhum mecanismo de exigibilidade, para uma vinculação de caráter dissuasório, na qual a não-observância da jurisprudência acarreta a cassação das sentenças que a contrariam.31 Além disso, optava-se por uma harmonização da jurisprudência constitucional apartir das decisões tomadas no controle abstrato de constitucionalidade, às quais dever-se-ia adequar o controle exercido a partir da apreciação de casos concretos. Ultrapassado o debate sobre o cabimento deste novo tipo de ação instituindo o efeito vinculante no controle concentrado, o que foi debatido preliminarmente na questão de ordem acima exposta, restou para ser discutido seu mérito, o que aconteceu em 1.°. 12.199332 e que deu provimento aos argumentos contrários aos dos contribuintes, confirmando a nova exação. Vale referir, apenas como um adendo, que esta declaração de constitucionalidade da LC 70/1991 (ADC 1) acarretou o início de um processo de aumento da arrecadação í3l) As categorias de vinculação intelectual e vinculação dissuasória são formuladas por Luis López Guerra, La fuerza vinculante de la jurisprudência, Actualidad Jurídica Aranzadi, n. 442, 2000. No extremo oposto da vinculação intelectual, o autor coloca a "vinculação formal rigorosa", que é similar a existente com relação à lei e acarreta a responsabilização do juiz em caso de não-observância da jurisprudência. m ADC \,RTJ 156/722. EFEITO VINCULANTE: TRAJETORIA BRASILEIRA das contribuições no Brasil, uma vez que sua receita não é compartilhada com Estados e Municípios em razão de um mecanismo financeiro denominado federalismo participativo. Pela Constituição, este rateio de arrecadação entre os entes federativos apenas deve acontecer com alguns impostos, e não com as contribuições sociais. Curiosamente o Brasil passou a ser um país onde mais se arrecadam contribuições sociais, mas que apresenta um dos piores níveis de desenvolvimento social do globo. 3.3 A medida cautelar na ADC 4 3.3.1 Após o julgamento da ADC ^reconhecendo a constitucionalidade da criação do instituto e definindo a extensão do efeito vinculante, outra importante inovação no sistema de justiça constitucional no Brasil adveio com o julgamento da ADC 4, em que se solicitava a declaração de constitucionalidade das disposições do art. 1.° da Lei 9.494/1997, que estendia à tutela antecipada33 um conjunto de limitações já existentes no ordenamento jurídico para a concessão de liminares em mandado de segurança ou processo cautelar contra o Poder Público. Igualmente proposta pelo Presidente da República e as Mesas do Senado e daCâmara, essa açãocontinhaum pedido para que fosse deferida medida cautelar determinando o sobrestamento imediato da execução das decisões que haviam concedido tutela antecipada nas hipóteses vedadas pela lei acima referida. 235 da ação acentuava essas dificuldades, fazendo com que o deferimento da cautelar atingisse, inevitavelmente, o exercício do controle difuso pelos juízes e tribunais. Assim, o reconhecimento da admissibilidade da medida cautelar em ação declaratória de constitucionalidade impunha uma decisão acerca da extensão em que essa medida viria a limitar o controle difuso de constitucionalidade. A concessão de medidas cautelares no controle abstrato era admitida no Brasil desde o julgamento da Representação de Inconstitucionalidade 933, em 1975, em que a maioria do STF entendeu que o "poder geral de cautela", atribuído ao juiz pelo Código de Processo Civil (art. 798), também se aplicava ao controle de constitucionalidade, permitindo a suspensão da eficácia da lei enquanto a decisão definitiva não houvesse sido proferida pelo STF. Posteriormente, essa jurisprudência foi incorporada pela EC n. 7/77 e permanece na atual Constituição, em seu art. 102, \,p. O mesmo raciocínio foi aplicado pelos Ministros que compuseram a maioria no caso das cautelares em ADC, visando evitar que decisões judiciais contrárias à orientação do STF pudessem gerar efeitos definitivos. Nas palavras do Min. Sydney Sanches, relator: "Mutatis mutandis, as razões ali expendidas, quanto ao cabimento da medida cautelar, podem ser aqui adotadas, para sua admissão, também na ação direta de constitucionalidade, mesmo sem previsão expressa do legislador constituinte derivado, que a instituiu. Aliás, se se entender inadmissível a medida cautelar em ação diO caráter polemico da concessão de medida reta de constitucionalidade, estará o STF impedicautelar em ADC manifesta-se tanto nos votos do de adotar providências para prevenir efeitos contrários a sua admissibilidade quanto nos loncontrários exatamente a possíveis decisões de gos debates em torno dos efeitos que essa medida mérito, com eficácia erga omnes e força vinculandeveria possuir. O caráter processual da lei objeto te para órgãos do Judiciário e do Poder Executivo. E isso não me parece razoável, pois não é compreen(33) A tutela antecipada foi incorporada ao ordenamen- sível que não possa a Corte acautelar a eficácia de to jurídico brasileiro pela Lei 8.952/1994, que modificou o art. 273 do CPC, nos seguintes termos: suas decisões de mérito" (p. 397). "O juiz poderá, a requerimento da parte, anteciOutro importante argumento em favor da adpar, total ou parcialmente, os efeitos da tutela pre- missibilidade de cautelar em ADC foi apresentatendida no pedido inicial, desde que, existindo do pelo Min. Sepúlveda Pertence: "Vivemos em prova inequívoca, se convença da verossimilhança da alegação e: I - haja fundado receio de dano um sistema singular em que, ao cabo de um longo processo de acomodação, de acoplagem, terirreparável ou de difícil reparação; ou II - fique minamos com a convivência integral dos dois siscaracterizado o abuso de direito de defesa ou o manifesto propósito protelatório do réu". temas clássicos de controle de constitucionalida- 236 REFORMA de. (...) A partir daí, é claro, cabe a este tribunal construir um sistema de convivência, de harmonização desses dois sistemas, no qual é fatal, dada a eficácia universal do controle abstraio, que este venha a predominar sobre o controle difuso, paralisando-o ou mesmo extinguindo-o em cada caso, seja por força da decisão liminar da ação direta - praticada entre nós com dimensões que nenhum outro ordenamento conhece - seja por força da decisão definitiva do STF. (...) Sempre me impressionou o trânsito em julgado, de uma decisão de caso concreto, fundada em decisão liminar nossa - seja de suspensão da vigência, seja, com mais razão, nessa declaração provisória de constitucionalidade - e, depois, o tumulto que gerará uma decisão definitiva em sentido contrário" (p. 411; 425-426). Apesar desses argumentos, não se pode negar consistência às alegações dos Ministros que compuseram a minoria, baseados no entendimento de que a EC n. 3 havia deferido o efeito vinculante apenas às "decisões definitivas de mérito" em ADC. Além disso, destaca-se o problema da intromissão que a decisão cautelar na ADC provocaria no exercício do controle difuso pelos juízes e tribunais, sobrepondo-se ao sistema de recursos previsto nas leis processuais. Nas palavras do Min. Marco Aurélio: "Quer-se, mediante esta ação, alcançar objetivo único, ou seja, o acesso imediato ao STF, deixando-se, assim, de observar os meios próprios previstos no Código de Processo Civil, criando-se forma ímpar da suspensão de tutelas antecipadas, a ser procedida por tribunal estranho àquele previsto, em lei, como o competente para julgar o recurso cabível. (...) Digo que o pedido liminar formulado é mais nefasto do que o resultado do mecanismo da sepultada avocatória. Na avocatória, o Supremo julgava a lide, fazendo-o nos autos em que instaurada. Aqui, julgará as tutelas sem o conhecimento das balizas que, caso a caso, serviram de base aos julgadores, substituindo-se aos regionais no exame, se é que assim se pode falar, de decisões precárias de primeira instância" (p. 405-406; v. também p. 416). Essa dificuldade de aplicai- o juízo "em abstrato" do STF aos casos concretos sob julgamento, também foi destacada pelo Min. limar Galvão: "Impressionou-me especialmente que a liminar, nessas ações, não poderá ser concedida senão com interferência em ações em curso perante outros JUDICIÁRIO juízos, o que não ocorre com as ações declaratórias de inconstitucionalidade. (...) Não vejo como se possa conceder liminar, numa ação declaratória de constitucionalidade, para observância obrigatória por todos os juízes, com essa extensão de suspender o efeito de decisões de outros juízos, sem que se configure interferência do STF, com efeito de controle difuso de constitucionalidade a distân- i cia e sem exame das respectivas lides" (p. 406-407). Por um lado, deve-se reconhecer que, diante da possibilidade de trânsito em julgado de decisões baseadas na inconstitucionalidade da lei ao final julgada constitucional pelo STF, a concessão de medida cautelar para impedir tais decisões do controle difuso parece justificada; por outro lado, isso impede que o juiz possa dai" provimento a ação quando identificada uma situação inconstitucional. Como veremos adiante, o problema da concessão de medidas cautelares em ADC é, de modo especial, o problema da inadequação de um julgamento "em abstrato" pela constitucionalidade em relação aos casos concretos, o que também foi destacado pelo Min. Néri da Silveira: "Num juízo de controle abstrato, não é de conceder liminar acerca da constitucionalidade da norma em foco, porque ocorrem fatos concretos. O que cumpre dizer, liminarmente, é que, num juízo provisório, a presunção da validade da lei é de manter-se. Não pode ter maior extensão essa cautela, sob pena de já se penetrar no controle concreto de situações, subjetivas ou de processos em curso em que haja sucedido a aplicação, ou não aplicação, da lei, objeto da ação" (p. 421). Dentre os Ministros que compuseram a maioria favorável à concessão da cautelar, três posições podem ser identificadas no debate: a) "conceder a cautelar para que essa lei seja aplicada - quando for a hipótese de sua aplicação , e não ser afastada, sob alegação de invalidade, até o julgamentofinal"(Min. Néri da Silveira, p. 422); b) "suspender qualquer decisão em processo que, ajuízo do magistrado competente, dependa da afirmação da constitucionalidade ou inconstitucionalidade da lei, objeto da ação direta (...)" (Min. Sepúlveda Pertence, p. 420-421); c) "desconstitui-se retroativamente aquela decisão da tutela e aplica-se, para o futuro, para impedir-se que prossiga a execução" (Min. Moreira Alves, p. 425). EFEITO VINCULANTE: TRAJETÓRIA BRASILEIRA Aofinal,prevaleceu a terceira posição, decidindo o STF "deferir, em parte, o pedido de medida cautelar, para suspender, ex mine, e com efeito vinculante, atéfinaljulgamento da ação, a prolação de qualquer decisão sobre pedido de tutela antecipada, contra a Fazenda Pública, que tenha por pressuposto a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade do art. I o da Lei 9.494, de 10.09.1997, sustando, ainda, igualmente ex mine, os efeitos futuros dessas decisões antecipatórias de tutela já proferidas contra a Fazenda Pública (...)". Assim, ao admitir a concessão de cautelar em ação declaratória de constitucionalidade, o STF dotou-se de um amplo poder para, antes do julgamento do mérito da ação, impedir a declaração de inconstitucionalidade de uma lei pela via do controle difuso, bem como a execução dessas decisões. 3.4 A consolidação do efeito vinculcmte nas Leis 9.868/1999 e 9.882/1999 3.4.1 Como vimos, foi a jurisprudência do STF que definiu os contornos da ação declaratória de constitucionalidade, bem como do efeito vinculante. No entanto, o grau de inovação que esses institutos representavam, bem como as contínuas resistências a sua aplicação, tornaram impossível adiar a regulamentação legislativa do controle concentrado de constitucionalidade no Brasil. Assim, a Lei 9.868/1999 veio suprir essa lacuna, regulando o processo e o julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade. Boa parte desse texto legislativo consiste na formalização das diversas construções jurisprudenciais do STF sobre as duas ações, como a exigência de controvérsia judicial na ADC (art. 14, III) e a concessão de medida cautelar na ação declaratória, ainda que limitada à "determinação de que os juízes e os tribunais suspendam o julgamento dos processos que envolvam a aplicação da lei ou do ato normativo objeto da ação até seu julgamento definitivo" (art. 21). Ao lado disso, verificam-se algumas inovações importantes, que tendem a aumentar o poder do STF: a) a medida cautelar na ADIn pode ser deferida inaudita altera pars, em casos de "excepcional urgência" (art. 10, § 3.°) e também pode ter efeitos ex tunc (art. 11, § 1.°); 237 b) com base em razões de "segurança jurídica" ou "excepcional interesse social", o tribunal pode restringir os efeitos da declaração de inconstitucionalidade, inclusive diferindo no tempo esses efeitos (art. 27); c) o efeito vinculante se atribui às declarações de constitucionalidade e de inconstitucionalidade, à "interpretação conforme a Constituição" e à "declaração parcial de nulidade sem redução de texto" (art. 28, parágrafo único). 3.4.2 O momento de regulamentação da ADIn e da ADC também propiciou a edição da Lei 9.882/1999, sobre a arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF). Previsto nc original parágrafo único do art. 102 da CF, sem qualquer precedente no ordenamento brasileiro, o instituto foi interpretado por alguns autores como uma autorização constitucional para a criação de uma ação em que qualquer pessoa poderir recorrer ao STF na defesa de seus direitos constitucionais, nos moldes da queixa constituciona alemã ou do recurso de amparo espanhol. A regulamentação do instituto, no entanto, dis tanciou-se bastante dessa interpretação, já que ; ADPF só pode ser proposta pelos legitimados par; a ADIn (art. 2.°, I). Seu objeto é "evitar ou repara lesão a preceito fundamental, resultante de ato de Poder Público" (art. 1.°), cabendo também "quan do for relevante o fundamento da controvérsia cons titucional sobre lei ou ato normativo federal, esta dual ou municipal, incluídos os anteriores à Cons tituição" (art. l.°, parágrafo único, I). Essa regulação tem o claro sentido de criar un mecanismo de controle concentrado naquelas hipo teses que não são objeto de ADIn, tal como os ato não normativos do Poder Público e o direito ante rior à Constituição. Além disso, também se admit a concessão de liminar, que "poderá consistir n determinação de que juízes e tribunais suspendar o andamento de processo ou os efeitos de decisõe judiciais, ou de qualquer outra medida que apreser te relação com a matéria objeto da arguição d descumprimento de preceito fundamental, salvo s decorrentes dacoisajulgada" (art. 5.°, § 3.°).Porfin concede-se eficácia contra todos e efeito vinculanl às decisões em ADPF (art. 10, § 3.°). 3.4.3 A extensão do efeito vinculante a várií decisões do STF, por meio das leis supracitada 238 REFORMA DO JUDICIÁRIO levou a Ordem dos Advogados do Brasil a ajuizar ações diretas de inconstitucionalidade contra ambas. Ainda que essas ações não tenham sido julgadas, na Rcl 1.880, em 07.11.2002, o STF teve a oportunidade de decidir, por maioria, em questão de ordem proposta pelo relator, a constitucionalidade do art. 28, parágrafo único, daLei 9.868/1999, reconhecendo o efeito vinculante de suas decisões em ADIn. Nos termos da ementa: "Para efeito de controle abstrato de constitucionalidade da lei ou ato normativo, há similitude substancial de objetos nas ações declaratória (sic) de constitucionalidade e diretade inconstitucionalidade. Enquanto a primeira destina-se à aferição positiva de constitucionalidade, a segunda traz pretensão negativa. Espécies de fiscalização objetiva que, em ambas, traduzem manifestação definitiva do tribunal quanto à conformação da norma com a Constituição Federal. A eficácia vinculante da ação declaratória de constitucionalidade, fixada pelo § 2.° do art. 102 da Carta da República, não se distingue, em essência, dos efeitos das decisões de mérito proferidas nas ações diretas de inconstitucionalidade". 3.4.4 Vale lembrar que a extensão da técnica do efeito vinculante também se observa no controle difuso, já que a Lei 9.756/1998, modificando o art. 557 do CPC, buscou limitar a apreciação de recursos pelos tribunais, ampliando os poderes do relator.34 04) . ^ r t 55-7 Q re ] a tor negará seguimento a recurso manifestamente inadmissível, improcedente, prejudicado ou em confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do respectivo tribunal, do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior. § 1 .°-A. Se a decisão recorrida estiver em manifesto confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior, o relator poderá dar provimento ao recurso. § 1.° Da decisão caberá agravo, no prazo de 5 (cinco) dias, ao órgão competente para o julgamento do recurso, e, se não houver retratação, o relator apresentará o processo em mesa, proferindo voto; provido o agravo, o recurso terá seguimento. § 2.° Quando manifestamente inadmissível ou infundado o agravo, o tribunal condenará o agravante a pagar ao agravado multa entre 1% (um porcento) e 10% (dez por cento) do valor corrigido da causa, ficando a interposição de qualquer outro recurso condicionada ao depósito do respectivo valor". 4. A EC n. 45 e a súmula vinculante: o coroamento da busca pelo efeito vinculante no controle de constitucionalidade das leis 4.1 Como um coroamento desta longa busca pela obtenção do efeito vinculante nas decisões concentradas de controle de constitucionalidade no Brasil, a EC n. 45, de 08.12.2004, estabeleceu as seguintes normas: i a) Deu nova redação ao § 2.° do art. 102 da Constituição,35 pelo qual: a. 1) Constitucionalizou aquilo o que já havia sido legalizado pela Lei 9.868 (art. 28, parágrafo único) e a jurisprudência do STF já havia reconhecido, qual seja que as decisões definitivas de mérito proferidas em ADIns têm efeito vinculante e eficácia erga omnes, Não há nenhuma novidade neste aspecto, tendo sido apenas alçado à categoria de norma constitucional. a.2) Estendeu a vinculação e a eficácia erga omnes de suas decisões em ADIn e ADC à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal. Trata-se de uma novidade, pois anteriormente estes efeitos apenas alcançavam o Poder Judiciário e o Poder Executivo, gerando dúvidas em alguns exegetas se autarquias e fundações federais estariam abrangidas. Esta dúvida não mais há como persistir. Outra novidade diz respeito ao fato de que expressamente as decisões nestas ações passaram a ser de cumprimento obrigatório pelos Estados, Municípios, e sua administração direta e indireta. Logo, os efeitos do ato se espraiam para além da esfera federal de governo. Nada existe de inconstitucional neste preceito, uma vez que, a dest35) Nova redação: "§ 2.° As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal". • EFEITO VINCULANTE: TRAJETÓRIA BRASILEIRA peito de ter o nome de STF, nosso modelo de Corte Suprema alcança todo o País, sendo, na verdade, uma corte nacional, e não apenas federal. b) Acrescentou o art. 103-Aà Constituição,36 por meio do qual criou o mecanismo da súmula vinculante, cujas principais características são: b. 1) Estabeleceu a vinculação e a eficácia erga omnes das súmulas para todo o Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal. b.2) Lei a ser editada regulará o processo de aprovação, cancelamento e revisão destas súmulas, mas desde logo ficou estabelecido que elas serão aprovadas de ofício ou por provocação das pessoas legitimadas para propor ADIns. Aliás, a competência destas pessoas se estende para além da provocação para aprovação, mas também para cancelamento e revisão das súmulas. b.3) Sua aprovação deverá se dar por decisão de dois terços dos membros do STF; ou seja, oito (,6) "Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei. § 1.° A súmula terá por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica. § 2.° Sem prejuízo do que vier a ser estabelecido em lei, a aprovação, revisão ou cancelamento de súmula poderá ser provocada por aqueles que podem propor a ação direta de inconstitucionalidade. § 3.° Do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal que, julgando-a procedente, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada, e determinará que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula, conforme o caso." 239 membros.37 Nada foi dito sobre o número de votos necessário para cancelamento e revisão das súmulas, mas, por uma questão de paralelismo, entende-se que deve ser seguido o mesmo número de oito Ministros. b.4) O objetivo da súmula será estabelecer de modo vinculativo e com eficácia erga omnes a interpretação, a validade e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia relevante entre órgãos judiciários, ou entre estes e a Administração Pública. O escopo é reduzir o âmbito da insegurança jurídica e a multiplicação de processos acerca da mesma questão. b.5) Caberá reclamação quando ocorrer de um ato administrativo ou uma decisão judicial contrariar a súmula aplicável ou a aplicar de forma indevida. Neste caso vislumbram-se três hipóteses: 1. sendo julgada procedente a reclamação contra ato administrativo, este deverá ser anulado; 2. se julgada procedente contra decisão judicial que a aplicar quando não era o caso de sua utilização, outra decisão deverá ser proferida sem a aplicação da súmula; e 3. se julgada procedente contra decisão judicial que não a aplicar quando deveria fazê-lo, a decisão judicial será cassada. Nesta terceira hipótese, entende-se que o próprio STF cassará a decisão por meio da reclamação, a qual deverá ter o mesmo sentido esposado na súmula anteriormente publicada, e substituirá a decisão que tiver sido cassada. Na hipótese de haver mais de um tema em debate nos autos, apenas o que tiver contrariado a súmula será objeto da cassação, devendo o processo retornar ao seu curso normal, a fim de que as partes continuem a discussão judicial sobre os outros aspectos do caso. Os riscos inerentes a este procedimento serão abaixo analisados. b.6) Outro aspecto que deve ser considerado diz respeito ao fato de que as atuais súmulas do STF podem vir a ter efeito vinculante após sua t37) Certamente surgirá uma discussão bizantina sobre quanto é 2/3 de 11 membros. Como a resposta é fracionária (7,33), advoga-se que sejam 8 membros, uma vez que 7 membros não alcançarão o desiderato constitucional que é o de obter um mínimo de 2/3 dos votos dos membros do STF; por isso 7 membros não alcançam este mínimo de 7,3, gerando a mais adequada resposta de 8 membros. 240 REFORMA : confirmação pelos mesmos oito Ministros e publicação na imprensa oficial.3S c) O caput do art. 103 foi modificado para ampliar o rol dos legitimados para propor ADCs, que passaram a ser os mesmos legitimados para a propositura de ADIns. Este procedimento foi positivo, sanando uma discriminação injustificada. d) Foram incluídos no rol de legitimados para propor ADIns e ADCs, pela modificação dos incisos IV e V do art. 103 da Carta, o Poder Legislativo e o Chefe do Poder Executivo do Distrito Federal, o que a jurisprudência do STF já havia reconhecido. Trata-se apenas de um apego à literalidade das normas e uma homenagem ao positivismo jurídico. e) Embora não tenha reflexo direto na questão da vinculação das decisões, o acréscimo do art. 102, III, d, e a novaredação do art. 105, III, b, da Carta, são importantes para a articulação entre o controle concentrado e o controle difuso, pois alterou a competência que anteriormente estava com o STJ para julgar válida lei ou ato de governo local, em face de lei federal. A modificação realizada bipartiu esta competência mantendo-a no STJ quando o debate se referir a "ato do governo local em face de lei federal", e transferindo-a para o STF quando o debate se referir à validade "de lei local contestada em face de lei federal". Desta forma, quando o debate se referir a um ato contestado em face de lei federal, a competência será do STJ. Quando o debate se referir à validade de uma lei local em face de uma lei federal, a competência será do STF. Esta nova repartição visa reduzir situações como a da declaração de inconstitucionalidade, em controle difuso, da lei municipal de Santos-SP, que estabelecia a cobrança de ISS sobre a locação de bens móveis, gerando reflexos em todos os mais de 5.000 municípios brasileiros, sem que houvesse uma declaração formal do STF quanto a estes. 5. Conclusões 5.1 Na introdução deste trabalho, identificamos os problemas que podem decorrer da utilização do (3,) Art. 8.°daECn. 45. JUDICIÁRIO controle concentrado como vetor da harmonização da jurisprudência constitucional. Em síntese, a desejada eficácia de suas decisões sobre a inconstitucionalidade da lei pode ser oposta aos riscos gerados por decisões favoráveis à constitucionalidade da lei. Disso decorre a necessidade de identificar os mecanismos de articulação entre o controle concentrado e o controle difuso de constitucionalidade. De início, a adoção de um sistema misto de controle apresenta as desvantagens de ambos os sistemas, ou seja, a pouca eficiência e a propensão à divergência do controle difuso, e a limitação imposta pelo controle concentrado à solução de questões constitucionais pelo Poder Judiciário. Some-se a isso a possibilidade de conflito entre decisões tomadas no controle difuso e no controle concentrado, levando à sobrecarga do Tribunal Constitucional ou da Corte Suprema. Todas essas características foram identificadas nos casos analisados neste trabalho. Sem embargo, sistemas mistos de controle também podem ter a vantagem de, sem perda da agilidade na resposta judicial a violações de direitos fundamentais cometidas pela lei, contar com mecanismos que garantam a eficácia erga omnes das declarações de inconstitucionalidade. Os primeiros mecanismos tentados pelo sistema brasileiro para resolver os problemas do controle difuso foram a resolução suspensiva do Senado Federal e a reserva de plenário, os quais, por problemas distintos, não produziram os resultados pretendidos. No primeiro caso, o caráter discricionário da decisão do Senado Federal limitou o uso desse mecanismo de generalização; no segundo caso, a continuidade de divergência entre os tribunais tornava necessária a intervenção harmonizadora do STF, cuja via, o recurso extraordinário, tornou-se crescentemente inadequado pelo seu volume. Desde a criação da ação declaratória de constitucionalidade, a busca de soluções para os problemas de harmonização dajurisprudência constitucional no Brasil passou a ser orientada pela concessão de eficácia vinculante às decisões do STF. Essa estratégia possui um conjunto de consequências: a) ao emanai"de umjulgamento abstrato da constitucionalidade, a decisão pela permanência do texto normativo no ordenamento jurídico permite que EFEITO VINCULANTE: TRAJETÓRIA BRASILEIRA sua aplicação a outras situações concretas venha a gerar situações inconstitucionais, tal como foi reconhecido pelo próprio STF no caso da suspensão de liminares contra o Plano Collor e em várias das reclamações ajuizadas com base na decisão cautelar da ADC 4. Mesmo que no caso da ADC e da ADPF para solução de controvérsia judicial, o STF tome em consideração as divergências sobre a constitucionalidade da norma geradas por sua aplicação, esse contraditório já existente não elimina todas as possibilidades futuras de divergência; b) o efeito vinculante caracteriza-se como um mecanismo de prevenção da divergência sobre a interpretação constitucional, e não como um mecanismo de correção. Ele visa que os juízes se adaptem às orientações jurisprudenciais do STF e decidam de modo conforme a ela, evitando que as questões de inconstitucionalidade sejam levadas à Corte Suprema, o que dificulta a possibilidade de uma nova análise da questão por ela; c) o efeito vinculante transcende o nível meramente intelectual de vinculação dos órgãos judiciais às decisões do STF e o transforma em uma vinculação dissuasória (ver supra), naqual o descumprimento dessa orientação pelos juízes e tribunais acarreta a revisão de suas decisões, nesse caso, via o meio expedito da reclamação. Sem embargo, como não se alcançou o nível máximo de vinculação, que implicaria a responsabilização administrativa ou mesmo criminal do juiz em caso de desrespeito à decisão do STF, é possível que a eficiência desse mecanismo de vinculação continue repousando na aceitação pelos juízes da jurisprudência superior, caso contrário, haverá um número substancialmente elevado de reclamações junto ao STF.39 Essa eleva(W Segundo as informações disponíveis na página do STF, em 1994 foram julgadas 59 reclamações, número que ascendeu a 400 em 2003. Isso demonstra que o problema da harmonização da interpretação constitucional não se resolve somente por meios técnicos, mas demanda também a legitimidade do tribunal constitucional. No caso brasileiro, o reduzido pluralismo na composição do STF contribui para um alto grau de críticas às suas decisões, inclusive no que se refere a sua excessiva vinculação ao Executivo. Sobre esses problemas de legitimação, cf. António G. Moreira Maués, Legitimidade da justiça constitucional: 241 ção, por sua vez, pode ser contida por meios coercitivos junto às partes, como mostra a recente utilização pelo STF da imposição da multa prevista no § 2.° do art. 557 do CPC. 5.2 Esse conjunto de situações demonstra a necessidade de dotar o sistema de mecanismos que permitam a revisão da jurisprudência do STF de acordo com as particularidades dos casos que se apresentam. Apesar do indeferimento da reclamação pelo STF significar a manutenção da possibilidade de exercício do controle difuso sobre textos normativos declarados constitucionais pelo Supremo, tal mecanismo não parece adequado para prover essa possibilidade, por duas razões: a) a reclamação implica que seja arguido o desrespeito à autoridade da decisão do STF pela parte interessada, ou seja, supõe-se que a autoridade julgadora praticou uma conduta antijurídica, passando a ser reclamada junto ao STF. Assim, o que deveria funcionar no sistema como uma dinâmica normal e desejável,^m que os juízes têm meios de propor novamente uma questão de inconstitucionalidade ao Supremo, acaba trazendo a marca inicial da violação da autoridade de suas decisões, que pode exigir um grau de coragem intelectual dos juízes para examinar a adequação da jurispmdência do STF ao caso concreto que tem diante de si; b) o indeferimento da reclamação não significa que o STF tenha decidido sobre o mérito da questão de inconstitucionalidade, mas somente sobre o respeito à autoridade de sua decisão. Assim, tendo em vista que o mesmo texto normativo não pode ser submetido novamente ao controle concentrado, somente pela via do recurso extraordinário o STF poderá decidir sobre o mérito, o que coloca novamente todos os problemas de eficiência e harmonização do controle difuso acima apontados. Esses problemas tornam-se ainda mais claros se compararmos o quadro brasileiro com países que adotam o sistema concentrado. Apesar do monopólio da declaração de inconstitucionalidade pelo Tribunal Constitucional, a via incidental permite que a questão seja reexaminada por ele, reflexões sobre o caso brasileiro, in: Roberio Nunes dos Anjos Filho, Estudos de direito constitucional (Salvador: Jus Podium, 2003). 242 REFORMA DO JUDICIÁRIO mantendo aberta a interpretação constitucional. Assim, no caso espanhol, uma norma que tenha sido julgada constitucional pela via direta pode ser objeto da via incidental, caso os fundamentos da alegação de inconstitucionalidade sejam distintos.40Na Alemanha, admite-se a reapreciação pelo Tribunal Constitucional quando ocorrer significativa mudança das circunstâncias fáticas ou relevante alteração das concepções jurídicas dominantes.41 ficiência e baixa qualidade das decisões desses órgãos. Assim, a necessidade da decisão de um caso concreto pelo Tribunal Constitucional ou Corte Suprema decorre da importância de estabelecer os parâmetros de interpretação constitucional por meio da generalização dos fundamentos dessa decisão, fazendo com que os juízes apliquem os mesmos critérios para casos análogos, de modo semelhante ao princípio do stare decisis presente na common law. Diante desses problemas, deve-se fazer um esforço adicional para buscar outros mecanismos de articulação entre o controle difuso e controle concentrado no Brasil, já que não pode permanecer o impasse representado, por um lado, pelos problemas para a igualdade e a segurança jurídicas decorrentes do exercício do controle difuso em um sistema judicial complexo e diante de uma Constituição detalhista como a brasileira, e, por outro lado, pelo risco para a proteção judicial dos direitos fundamentais provocado pelo efeito vinculante das decisões no controle concentrado. Assim, deve-se admitir que, diante da complexidade das sociedades contemporâneas, haverá casos particulares em que a aplicação judicial de uma mesma lei far-se-á de modo distinto, podendo inclusive chegar a negar sua aplicação por incompatibilidade com a Constituição em um caso determinado, particularidades as quais é o juiz da causa o mais apto para julgar, sujeito ao segundo grau de jurisdição. Portanto, os mecanismos de articulação entre o controle difuso e o concentrado devem conter válvulas de escape que permitam que as alegações de inconstitucionalidade na aplicação da lei ao caso concreto sejam constantemente reapreciadas. Isso implica reconhecer que a harmonização da jurisprudência constitucional deve admitir a presença de acordes dissonantes, o que, no País da bossa-nova, deveria ser bem-vindo. 5.3 Essa última observação nos permite identificar que, à margem dos problemas já apontados para a proteção dos direitos'fundamentais, uma excessiva concentração das decisões sobre matéria constitucional no Tribunal Constitucional ou na Corte Suprema pode resultar em ine- (40) çç Pablo Pérez Tremps. Tribunal Constitucional..., cit., p. 260-261. i4,) Cf. Ives Gandra da Silva Martins; Gilmar Ferreira Mendes. Controle concentrado de constitucionalidade, p. 332.