Luis
Filipe
Ribeiro
–
Geometrias
do
Imaginário.
Santiago de Compostela: Edicións Laiovento, 2000.
Literatura, Discurso, Sociedade
Luis Filipe Ribeiro
Luis Filipe Ribeiro – Geometrias do Imaginário.
Santiago de Compostela: Edicións Laiovento,
2000.
Poderá parecer, à primeira vista, que a escolha do
tema a que me propus hoje é excessivamente ambiciosa.
Não posso dizer o contrário. Entretanto, para discutir o
estado atual das questões que ocupam aqueles que têm
como preocupação teórica central a análise dos discursos,
não parece haver outro caminho senão o de tentar fazer
uma espécie de reconhecimento de terreno, estabelecendo
as
fronteiras
capazes
de
desenhar
áreas
conceituais
minimamente definidas, sem o que há o risco de se falar no
vazio e a vender alhos por bugalhos.
O campo da linguagem, já o reconhecia Saussure, é
“multiforme e heteróclito; cavalgando múltiplos domínios, a
um só tempo físico, fisiológico e psíquico, ele pertence
ainda ao domínio individual e ao domínio social; ele não se
deixa classificar em nenhuma categoria dos fatos humanos,
porque não sabemos como determinar a sua unidade.”
1
O que o genial mestre genebrino faz aqui, se a ele
pertence realmente tal pensamento — já que a redação do
Cours de Linguistique Générale
1
foi tarefa de discípulos,
Saussure, Ferdinand de. Cours de Linguistique Générale. Publié par Charles Bally,
Albert Sechehaye et Albert Riedlinger. Paris: Payot, 1966.
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aplicados, mas sempre discípulos — é desferir um golpe de
estilo. Pois, ao reconhecer a heterogeneidade do terreno e
as conseqüentes dificuldades daí advindas, o que ele faz é,
autoritariamente, determinar que a linguagem não pode
classificar-se entre os fatos humanos. Assim, a linguagem,
enquanto totalidade, enquanto fenômeno humano e, em
conseqüência social e histórico, estaria fora do alcance de
nosso
conhecimento
conhecimento
sistemático,
científico,
enfim.
fora
do
campo
Pesa
a
seu
do
favor,
entretanto, o admitir, com louvável humildade científica,
que faz isto “porque não sabemos como determinar a sua
unidade”.
Com esse simples passe de mágica, descarta um
problema que, por ser de difícil solução, nem por isso deixa
de ser importantíssimo para o entendimento do próprio
fenômeno humano. Que Saussure quisesse estabelecer o
seu objeto — e o fez com insuperável talento! — tudo bem.
Era o passo necessário para fundar a ciência que o tem
como patrono. Fundou-a e bem fundada. Não é aí que
reside o perigo!
O problema é outro. Ao fundar a Lingüística nas bases
em que ele a fundou, com esse mesmo gesto, descartou a
possibilidade
de
um
estudo
sistemático
e
metodologicamente orientado do fenômeno mais amplo da
linguagem,
relegando-a
para
o
limbo
das
coisas
incognoscíveis, criando um paradoxo de impossível solução.
A linguagem, meio essencial de humanização do homem,
não poderia ser objeto de uma ciência que dela desse conta
em toda a sua extensão e amplitude. No horizonte filosófico
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em que Saussure se situava, talvez não houvesse, na
época, outra alternativa, mas isso não impediu que, anos
mais tarde, o excluído retornasse ao palco das indagações.
E foi exatamente na Rússia, em meio à grande
convulsão social decorrente da Revolução Bolchevique, que
uma outra corrente de pensamento sobre os fenômenos da
linguagem começou a desenhar-se.
Navegando contra o
oficialismo filosófico reinante em seu contexto, sempre
empobrecedor
e
reducionista,
mas
sem
afastar-se,
entretanto, do campo das indagações marxistas, Mikhaïl
Mikhaïlovitch
Bakhtin
começa
um
longo
processo
de
repensar as grandes questões com que o campo da
linguagem continuava a desafiar todos aqueles que se
defrontavam com suas manifestações. Desafio ainda maior
para os que se debruçavam sobre as questões da produção
literária, mormente dentro da tradição russa, sempre muito
voltada para o social.
A partir de uma produção irregular, apesar de
fecunda, atravessada pelos óbices de não ser um intelectual
bem-visto pelo sistema, Bakhtin vai lançando suas idéias
inovadoras, seja através de livros assinados por amigos e
colaboradores como Medvedev e Voloshinov, seja por obras
publicadas em seu próprio nome. Vai tentando organizar,
num cipoal de concepções inovadoras, as linhas de sua
pesquisa e de suas propostas. Extremamente preocupado
com as questões da cultura popular, sua mirada estará
sempre assentada sobre as questões da oralidade, por onde
circula e onde se perpetua a produção dos segmentos
menos privilegiados da sociedade. E este dado, muitas
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vezes omitido, é definitivo para a compreensão de suas
concepções teóricas.
A fixação na oralidade afasta-o das tentações sempre
presentes do fetichismo do texto, tão comum entre aqueles
que, afeitos à página impressa como suporte da literatura,
não conseguem dele escapar.
A invenção da escrita, já condenada por Sócrates no
Crátilo , por motivos diferentes daqueles que terminarei por
expor, tem como uma das suas conseqüências, ao lado dos
benefícios indiscutíveis, o ocultamento do autor e do leitor,
figuras que passam a substituir o falante e o ouvinte. Nas
sociedades ágrafas ou com predominância da oralidade em
suas manifestações culturais, a prática discursiva pressupõe
a presença física do enunciador e do ouvinte, impedindo a
sua
abstração
e
ocultamento.
Mais
que
isso,
a
manifestação, por assim dizer, literária tinha como condição
não só a presença física do narrador, mas a evidência de
suas determinações sociais. O respeito que merecia da
comunidade, o reconhecimento de seu saber, a legitimidade
de sua fala, a perícia no manejo de todas as formas de
expressão não-verbais, a sua posição hierárquica no circuito
discursivo e mesmo social, tudo constituía uma situação
histórico-discursiva perceptível a olho nu, para quaisquer
não-especialistas.
De
outra
parte,
o
narrador
tinha
presentes, com seus corpos, mentes e corações, os seus
ouvintes, grávidos de um sem número de determinações
sociais e históricas, tudo marcado por uma irrecusável
materialidade, onde a expressão lingüística talvez fosse a
materialidade menos palpável. Em síntese, a sua voz estava
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enraizada, firme e claramente, em uma situação única e
irrepetível,
ainda
quando
costumeiramente
ritual
e,
portanto, necessariamente codificada.
Em tais condições a existência de um texto , tal e
como hoje o concebemos, seria algo de impensável. Mesmo
que os semioticistas contemporâneos possam insistir em
que a expressão da memória do narrador constitua um
texto, deixemos a crédito de um rigor mais formal do que
essencial
a
insistência
ficta
desse
neo-platonismo
contemporâneo.
O que importa é que o texto, enquanto fetiche,
enquanto
mônada
auto-suficiente
e
auto-significante,
enquanto materialidade positiva e positivista, esse texto
não existia e não poderia existir, como de fato, até hoje, no
seio mesmo das culturas livrescas, segue inexistindo.
Tal inexistência, claro está, diz respeito ao caráter
positivo e burdamente material do que se entende como
texto . Não se poderia pensar em literatura e em cultura,
sem admitir que a única forma de expressão material que
encontram é o suporte simbólico de que se servem em sua
produção, circulação e consumo. Não é disso que se trata.
O que ocorre, desde a invenção da escrita e especialmente
depois do advento da imprensa, é que os discursos
perderam, na aparência, a sua unidade social, constituída
por uma instância produtora — o enunciador —, uma
instância produzida — o enunciado — e uma instância de
consumo produtivo — o enunciatário. A materialidade do
texto
escrito
ou
impresso,
capaz
de
circular
independentemente da presença física de seu enunciador e
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capaz, igualmente, de persistir fisicamente íntegro sem a
ajuda de um leitor-enunciatário, é a base desse processo de
fetichização, que tantos prejuízos vem
causando aos
estudos da literatura e da cultura.
Amparados na sólida bibliografia lingüística que se
desenvolveu
depois
de
Saussure,
os
estudiosos
transferiram, do domínio da lingüística para o da literatura
e
para
o
dos
discursos,
metodológicas
que,
funcionamento
da
conceitos
competentes
instância
na
e
ferramentas
descrição
do
material-significante
da
linguagem, absolutamente não eram capazes de dar conta
dos seus fenômenos mais gerais, como aliás já o previra o
próprio Saussure.
O de que trata a lingüística, com competência e
seriedade, é do suporte físico de toda a expressão verbal. É
mesmo
extremamente
sintomático
que
o
campo
da
semântica sempre tivesse encontrado, senão dificuldades,
pelo menos um menor interesse por parte da lingüística.
Prova disso é a imensa desproporção quantitativa da
bibliografia
lingüística
especialidades
e
a
que
em
diz
todas
as
respeito
suas
ao
outras
campo
das
significações. Talvez Edward Sapir tenha sido um dos
poucos lingüistas ocidentais a perceber onde residia o
problema, quando afirmava que a semântica não pertencia
ao campo da lingüística.
Não é ocasional que o limite maior da análise
lingüística seja a frase. Do seu ponto de observação, a
partir daí é o reino da repetição, nenhum fenômeno novo se
produz. E é verdade. No plano da pura expressão, a
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redundância das frases repete modelos dentro delas já
contidos. Entretanto, do ponto de vista da significação, as
coisas não se dão da mesma maneira.
Esta não se deixa conter nos limites da formalização.
Uma
mesma
unidade
de
significação,
se
elas
são
delimitáveis, tanto pode usar como meio de expressão uma
palavra, uma frase, um parágrafo, um capítulo, um livro,
dependendo de como se articula o discurso em que é
produzida. Porque ela é a razão de ser e a própria essência
do discurso. Um discurso se produz para construir uma
significação ou um conjunto delas. Donde a situação
histórica em que se produz ser parte inalienável de sua
própria maneira de existir. Não há, e não pode haver,
discurso onde não haja um enunciador e um enunciatário
historicamente identificáveis. As condições específicas em
que um discurso é produzido são, por assim dizer,
irrepetíveis. E nisto a análise do discurso afasta-se de modo
radical das metodologias da lingüística. Não há aqui
unidades identificáveis e reiteráveis. Assim um mesmo
texto repetido em situações discursivas diferentes constitui
novo discurso com significações também diferentes. É o
caso
típico
das
citações,
tão
comuns
nos
trabalhos
acadêmicos. É o caso da paródia e da paráfrase, mantidas
as devidas proporções. Nesse sentido ninguém pode ler o
mesmo livro mais de uma vez, pois, parafraseando, os présocráticos, nem o leitor, nem o livro serão os mesmos.
Isto só vem a reiterar a afirmação de que cada
discurso é um acontecimento histórico novo e irrepetível.
Ele é a expressão da própria história no seu incontido
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processo de fazer-se a cada momento. Mas tal situação não
levaria,
no
limite,
à
própria
impossibilidade
do
conhecimento, postulada por Ferdinand de Saussure?
Se as coisas se dessem de modo linear, seguramente
sim. Mas ocorre que, até como condição para que a
comunicação
possa
se
processar,
as
significações
produzidas a cada discurso, em cada situação histórica e
social específica, passam a fazer parte de um processo de
acumulação e constituem-se em um tesouro socialmente
compartido. De forma que, a cada discurso produzido,
enunciador e enunciatário vão se enriquecendo de novas
significações
que
se
agregam
àquelas
anteriormente
produzidas em seu meio cultural. Uma tramada dialética
entre o novo e o velho, entre a renovação e a tradição, tem
lugar a cada ato comunicativo. Cada discurso agrega-se aos
demais, antes dele produzidos, e a cultura como um todo
apresenta-se como um complicadíssimo processo de luta
entre significações cristalizadas e novas significações, que
expressa o próprio processo histórico da sociedade.
Dessa forma a nossa conhecida teoria do signo fica
radicalmente ultrapassada. Não é possível admitir-se que
um signo é a relação de um significante e um significado,
desde sempre existentes e à disposição dos falantes,
súditos
obedientes,
para
poderem
entre
si
trocar
quantidades previamente estabelecidas e produzidas sabese lá por quem. Na verdade, em cada palavra — mas,
também, em cada frase, em cada parágrafo — o que se
observa, no momento mesmo em que o discurso se dá, é
um movimento em que a base constituída pela ou pelas
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significações
previamente
produzidas
naquele
contexto
histórico se vê acrescentada e modificada pelas novas
significações que esta situação inédita lhe acrescenta. É
então, no seio do próprio signo, que a dialética entre o
velho e o novo, entre a tradição e a renovação, acontece a
cada momento. As contradições sociais não poderiam existir
apenas na realidade fenomênica e estarem ausentes das
articulações do discurso. Seria uma contradição em termos.
Assim, se o signo, ao invés de ser um depósito morto,
apresenta-se como o lugar em que a dinâmica histórica se
processa, há que perguntar-se o como de tal movimento.
A cada momento, os sujeitos, ao agirem sobre o real
e sobre si mesmos, produzem novas avaliações desse real
frente a outros atores da cena social. A cada nova
experiência, novas avaliações do real se acrescentam às
anteriores, modificando-as. E tais avaliações passam a ter
existência e a circular, desde o momento de sua produção,
em um tipo qualquer de discurso. E o discurso é a forma de
estabelecer relações entre os distintos agentes históricos.
Só há discurso com a presença de sujeitos históricos.
Assim a abordagem do universo dos discursos não
pode ser encarada como uma aproximação formal a uma
coleção de textos ou a uma biblioteca. É evidente que sem
os livros e sem os textos, em uma sociedade letrada, não
se pode pensar numa análise de discursos. Eles são parte
importantíssima e insubstituível do universo discursivo,
ainda quando não o esgotem. Os discursos estão em toda
parte, inclusive em estado de livro, nas bibliotecas. Mas
sem a presença humana que lhes traga um sopro de vida,
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eles não são e não poderão ser discursos.
O texto, o livro congelam e conservam, por assim
dizer, um momento fundamental de qualquer discurso, que
só retoma a sua existência social, quando a presença
humana e histórica os traz de volta às contradições da vida
real. Nesse sentido a magnífica metáfora de Melquíades,
criada por Gabriel García Marquez em Cien años de soledad,
é mais do que expressiva. No romance, a figura mágica e
misteriosa, apesar de humana e afetiva, de Melquíades
surge, desaparece e ressurge em diferentes momentos da
narrativa. O curioso disto tudo é que o seu surgimento e
ressurgimento se dá sempre e quando algum dos inúmeros
Buendía abre o velho manuscrito e inicia ou reinicia a sua
leitura. Só com o sopro vital da leitura adquire Melquíades
energia suficiente para retornar à cena da narrativa.
Quando ninguém lê o manuscrito, o seu desaparecimento é
necessário. Não há quem lhe dê razão para existir...
Claro está que esta leitura, esta significação, esta
interpretação não está e não poderia estar no texto
de
García Marquez. Ela nasce de um discurso novo que se
instaura entre eu e García Marquez através de Cien años de
soledad , no momento mesmo em que a minha leitura se
produz. Cada vez que volto, a partir de minha pessoal e
insubstituível experiência, a visitar esse livro, como todos
inesgotável, um novo diálogo se estabelece e o confronto
entre as significações mais antigas, minhas ou alheias, e as
novas que estão a se ensaiar, criam a única realidade de
que me aposso: a significação presente que construo para a
obra.
Reverberam
nela
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antigas
leituras,
ligadas
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seguramente a outras recordações que as acompanharam,
conscientemente ou não. É um reviver de experiências, que
sendo radicalmente minhas, se agregam ao livro, tornandoo uma espécie de objetivação de minhas vivências íntimas,
como antes o foi daquelas de García Marquez.
Assim, num simples gesto de leitura, entrecruzam-se
histórias e sociedades diferentes, em distintos momentos
de sua evolução. O diálogo que se estabeleceu colocou em
contacto distintas experiências sociais e individuais, antigas
e contemporâneas, tudo através do suporte material em
que se constitui o texto do livro.
Isto nos encaminha, naturalmente, para a teoria do
diálogo, conceito central no pensamento de Mikhaïl Bakhtin.
Para
ele
todo
discurso,
toda
palavra
é
sempre
e
necessariamente dialógica . Um discurso se articula em
resposta a um outro; numa fala sempre está inscrita outra
que
a
provoca
e
à
qual
ela
responde.
Não
existe
comunicação no vazio. O discurso inscreve-se na dinâmica
social e implica a presença real ou virtual dos seus
interlocutores. Como a dialética discursiva não respeita as
fronteiras temporais nem espaciais, ela se serve das
imagens dos interlocutores inscritas nos enunciados em
que, provisoriamente, se cristaliza.
Aos que me ouvem ou me lêem, neste exato
momento, dirige-se não o enunciador presente que lê estas
notas, mas um outro que as produziu, em outra relação
histórica e em outra dinâmica. Lá, na origem, estava um
enunciador, alocado em seu escritório e diante da tela de
um computador, dialogando com um público virtual e
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futuro, ainda que perfeitamente previsível. Caso contrário,
a comunicação tornar-se-ia inviável. Tinha que imaginar um
público falante do Português, interessado nos temas a que
se dedica, atento e especialista a julgar as suas posições. O
diálogo
nasceu,
coordenadores
lá,
deste
respondendo
evento
que
ao
lhe
convite
haviam
dos
pedido
respostas relativas aos temas que são neste discurso
expostas. O enunciador presente aqui, nesta mesa, diante
de um público não mais virtual e agora historicamente
concretizado, lê um enunciado de outro. Quem escreveu é
um autor de quem, hoje, só resta uma imagem cristalizada
naquilo que criou. Do público a que ele se dirigia,
igualmente, fica a imagem idealizada que dele tinha, antes
que se concretizasse dias mais tarde, hoje e aqui, num
agora irrepetível. A dialogia que se realiza neste momento
histórico, igualmente único, faz cruzarem-se muitas vozes
diversas.
Eu poderia, hoje, discordar de algumas das coisas que
leio e se manifestasse, de alguma forma, tal discordância,
seria apenas uma voz a mais no diálogo, incapaz e
incompetente para renunciar ao que a outra que a
antecedeu
deixou
gravado,
seja
no
disco
rígido
do
computador, seja nas folhas de papel que se deixam
integrar nesse diálogo múltiplo. Não a minha voz narcísica e
absoluta, mas muitas vozes, entre elas as minhas, mas
muitas outras alheias, pertencentes a tempos e a espaços
diversos, se fazem presentes para que alguma significação
se realize neste momento, a sua vez único e irrepetível.
Se, num gesto de economia intelectual — justificável,
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em parte —, decidir-me a ler este mesmíssimo texto
em
outro congresso, seguramente não poderá ser o mesmo
discurso. Outra será a voz leitora, inclusive já acrescentada
e enriquecida pelos múltiplos diálogos que esta leitura atual
há
de,
necessariamente,
provocar.
Ainda
quando
as
divergências não venham a público, as vozes discordantes
não deixarão de existir e de manifestar-se, de alguma
forma, em algum momento. Tudo isto é parte do discurso
de hoje e a ele se acrescenta, cristalizando-se numa
espécie de metatexto virtual. Assim, numa próxima leitura
entre a voz que lerá — imaginando que seja a minha
própria — já será outra; maior será, igualmente, a distância
entre o autor que escreveu, existente na forma de imagem
de autor, e aquele que lê a sua produção. Maiores, talvez,
as suas diferenças; outras as experiências vividas no
intervalo. Outro será o público, outra a circunstância da
leitura. Em suma, será outro ato histórico e em outro
espaço social. Em conseqüência, outras as significações que
se agregarão às primitivas, já acrescentadas daquelas hoje
e aqui produzidas, outro discurso e outra relação com o
real. É a história em sua marcha inevitável, por rumos
muitas vezes insuspeitados.
Dessa forma, o diálogo é a forma social de existir dos
discursos. Nunca a voz isolada, autônoma, de uma entidade
geradora,
mas
sempre
a
polifonia
social
em
que
reverberam, quando muito, os acordes pessoais nela
inscritos. Toda a cultura, então, pode resumir-se num
interminável concerto de vozes, numa imensa polifonia
discursiva.
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Entretanto,
o
que
deve
ser
fixado,
para
o
entendimento é que todo discurso é sempre orientado para
o outro. Não há concebê-lo como expressão unilateral de
vontade. Só há discurso com a presença do eu e do tu .
Todo discurso compreende uma tríade de que o enunciado é
apenas um vértice, ainda que sua evidência por vezes
ofusque a presença dos demais.
Sem os três elementos o discurso tende a virar texto ,
ou seja, uma materialidade vazia que, pelo efeito de
fetichização, assume a aparência de uma coisa fisicamente
metafísica, como queria Marx. Um texto, do ponto de vista
da análise de discursos, não tem um significado. Ele pode,
ao contrário, constituir-se no lugar em que significações
divergentes e
convergentes encontram
seu
ponto de
estacionamento provisório. A prova mais evidente disto é
que, se me defronto com um texto escrito em uma língua
que desconheço, nenhum significado poderá ser encontrado
ali, até porque ali não está. Só a presença humana do
sujeito leitor, agregando aos sinais gráficos aí depositados
os valores de significação por ele acumulados, no seio de
uma determinada cultura, dará a essa folha de papel
pintado a dimensão da linguagem, fenômeno humano por
excelência. Mas a presença desse outro que é o leitor não
atribuirá ao texto
os mesmos valores de significação
imaginados e construídos pelo autor. Cada um é membro
de uma comunidade de significação, de uma determinada
cultura, de um determinado segmento social e contribuirá,
a seu modo, para as significações possíveis naquela
circunstância de leitura.
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E ao atribuir aos sinais gráficos a marca de sua
presença, o leitor estará assumindo a posição para ele
determinada por um outro que a ele dirige as suas versões
do mundo. Não importa quem assuma o lugar destinado ao
leitor, assumirá sempre a dimensão da imagem de leitor
para ele construída pelo autor original.
Assim, ao abrir as páginas de São Bernardo , onde
mestre Graça depositou todo o seu talento de escritor,
estarei obrigado a assumir um ponto de observação no
tempo que será necessariamente posterior ao do suicídio de
Madalena, e de onde ouvirei, queira-o ou não, a voz de
Paulo Honório, no seu presente de narrador, tecendo a sua
litania saudosa em torno da imagem, agora construída, da
mulher que se foi…
O eu e o tu estarão, assim, indissoluvelmente ligados
num mesmo movimento dialético que põe em contacto os
atores do discurso. Não há pensar em dialogismo apenas na
forma evidente do diálogo, seja nas obras de ficção, seja no
cotidiano da vida. O dialogismo está presente onde houver
discurso. E, por isso mesmo, o enunciado será sempre
entendido como a expressão material de uma passagem,
por ele trafegarão as versões de mundo, as indagações, as
perplexidades dos atores desse drama curioso. Em uma
palavra, os valores. O enunciado é um campo onde os
valores se organizam para dar inteligibilidade ao mundo.
Assim,
a
cada
momento
estaremos
confrontando
as
diferentes formas de considerar cada um dos atos da vida
cotidiana, tal e como os outros que a compartilham conosco
a avaliam. Compartilham o mesmo tempo e espaço, ainda e
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quando estejam muito distantes na geografia e na história.
Na medida em que estabeleçamos com eles relações
discursivas os estaremos integrando em nossa própria
historicidade e atribuindo-lhes a tarefa de nos ajudarem a
entender o mundo e seus arredores.
Dessa forma, não estarei apenas observando, em
Crime
e
Castigo,
de
Dostoiévski,
as
complicadas
maquinações mentais de um Raskólhnikov, antes e depois
de assassinar Alíona Ivânovna, a usurária, como um leitor
distante e isento. Ao contrário, estarei encarnado nos
dilemas da personagem, como se fosse ela, vivenciando o
horror do crime, ao mesmo tempo em que, trazendo-a para
o meu presente de leitor, faço-a viver os meus próprios e
outros dilemas, mas sempre e humanamente dilemas…
O discurso faz assim o papel de agregar visões de
mundo, avaliações de vida, interpretações da morte.
Sempre na dimensão do diálogo com o outro, sem o qual só
poderíamos permanecer mudos. E mudos, renunciar ao
pensamento.
Mas tal diálogo não se dá apenas entre os dois
contendores do discurso. Talvez uma das mais geniais
criações de Bakhtin tenha sido a do terceiro do diálogo. Diz
ele que um diálogo pressupõe sempre um terceiro diante de
quem e em relação a quem o diálogo se trava. É ele a
referência axiológica em relação à qual os valores, as
concordâncias e as divergências se produzem. Chame-se de
Deus, de História, de Humanidade, de Revolução, de Classe
Social ou mesmo de leitor, este terceiro é o parâmetro
organizador da polifonia, é a referência necessária à
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inteligibilidade.
Aqui mesmo, ao falar para vocês, falo diante de
alguma outra coisa que não sei bem o que seja: se a
tradição desta casa onde me formei em Letras, há muitos
anos; se a responsabilidade de ter sido escolhido para
responder a questões tão candentes; se o meu próprio
narcisismo em busca da aceitação. Pouco importa, o
terceiro me vigia e me estimula, ao mesmo tempo em que
observa a vocês e os fustiga para a divergência criativa ou
para a negação pura e simples, em nome de outros
pensamentos e outras teorias. Mas é sempre um terceiro
que baliza o meu e o alheio discurso. Lamentavelmente
este foi um ponto filosófico fundamental que a brevidade da
existência não permitiu que Bakhtin, mesmo octogenário,
pudesse desenvolver plenamente. Cabe a nós seus pósteros
a tarefa de fazê-lo, sem deslustrar excessivamente o
terceiro em que ele se constituirá, vigiando o nosso
pensamento.
Observando a literatura de modo mais próximo, dois
problemas, na verdade interlaçados, ocuparão hoje as
minhas preocupações, como forma de deter este discurso
que já vai longo.
O primeiro deles está na impossibilidade de aceitar
um comparativismo que imagina que os textos possam ser
cotejados entre si, como se textos
imaginar
que
a
aproximação
formal
fossem. Ou seja,
de
enunciados,
desconsiderados quem os lê e quem os escreveu, em suas
específicas
circunstâncias
históricas,
pudesse
trazer
resultados outros que as meras coincidências formais, em si
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muito pouco esclarecedoras. Felizmente boa parte de
nossos estudiosos de literatura comparada, ainda quando
não professem trabalhar com a análise de discursos,
sentem a premente necessidade, imposta pela própria
especificidade do material com que se defrontam, de
romper com os limites estreitos do texto , para aventurarse um pouco mais além e colocar as perguntas que a
superfície fria da página impressa não pode responder.
Esse mesmo sintoma pode ser apreendido em muitos
dos trabalhos que se filiam espontaneamente às correntes
formalistas. Nos seus procedimentos, muito comumente
podemos rastrear pecadilhos metodológicos que introduzem
contrabandos
extra-textuais,
sem
os
quais
não
conseguiriam atribuir às estruturas formais, às vezes tão
elegantes, que desenham, qualquer voz capaz de dar uma
humana dimensão aos livros de que falam.
Em outro plano, herdando uma leitura, no mínimo
infeliz,
que
Julia
Kristeva
fez
de
Bakhtin
em
sua
“Introdução” à edição francesa de Problemas da Poética de
Dostoiévski
2
, teve grande sucesso entre nós a teoria da
intertextualidade,
atribuída
pela
estudiosa
búlgara
ao
próprio Bakhtin. Nada mais distante das suas posições que
uma tal concepção. Não que estejamos brigando por
palavras. Nada de mal haveria em usar-se o conceito de
intertextualidade para traduzir o dialogismo, como aliás o
faz Tzvetan Todorov em seu excelente livro sobre Bakhtin.3
2
Bakhtine, Mikhail. La poétique de Dostoievski. Traduit du Russe par Isabelle Kolitcheff, présentation
de Julia Kristeva. Paris: Éditions du Seuil, 1970.
3
Todorov, Tzvetan. Mikhaïl Bakhtine: le principe dialogique suivi de Écrits du Cercle de Bakhtine.
19
Luis Filipe Ribeiro – Geometrias do Imaginário.
Santiago de Compostela: Edicións Laiovento,
2000.
O problema reside no específico conceito que se faz da
intertextualidade, a partir de Kristeva. Tudo se passa como
se os textos dialogassem entre si, independentemente de
quem os lê e de quem os haja escrito. Entende-se que o
livro de Bakhtin, traduzido e publicado no auge da onda
estruturalista francesa, tenha sofrido em sua leitura os
influxos formalistas de tal contexto. Era a leitura esperável,
talvez.
Entretanto o que Kristeva consegue, com sua leitura,
é aumentar o fetiche do texto, tornando-o agora, de
alguma forma e ironicamente, polifônico. Sua noção de
intertextualidade elide sujeito e objeto, com a licença de
Drummond. Estamos diante de um grande mercado a que
comparecem essas folhas de papel a dançar umas com as
outras
e
a
estabelecer
relações
nem
sempre
recomendáveis... E o curioso, mas não surpreendente, é
que tal fenômeno tenha ganhado foros de teoria e tenha
influenciado não poucos estudos de literatura.
Claro está que a senhora Kristeva tem o direito de
pensar como pensa e não nos cabe aqui a censura a
nenhum pensamento. Apenas é necessário ressaltar que
esse nunca foi o pensamento de Bakhtin, naquilo que
escreveu e publicou. Em primeiro lugar, ele jamais usou a
palavra intertextualidade, ao longo de sua obra. Sua noção
de dialogia implica sempre as relações entre enunciadores e
enunciatários. Quando, algumas vezes, usa a expressão
relações intertextuais, emprega-a para distingui-las das
Paris: Éditions du Seuil, 1981.
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Luis Filipe Ribeiro – Geometrias do Imaginário.
Santiago de Compostela: Edicións Laiovento,
2000.
relações interpessoais, mas sempre entendendo por texto
um equivalente de enunciado, uma expressão dialógica em
que os sujeitos do drama da linguagem são os atores
necessariamente centrais.
O que a mim me preocupa é que o exercício da
chamada intertextualidade reforça a crença de que, na
verdade, a imensa biblioteca que constituiria a literatura
poderia operar sem a nossa presença já tão escassa em
outros cenários da vida brasileira. Se os textos relacionamse entre si, antes mesmo de serem escritos, sem a
intervenção de ninguém, à literatura não caberia mais a
função de colocar os homens em situação de diálogo, em
busca de sua perene humanização.
Não é de estranhar-se que, na própria academia,
subsistam imagens como essas, vestidas por fora do
linguajar das tecnologias que exibem suas musculaturas
neo-modernas, mas por dentro corroídas por quanto há de
desumanizador nesta nossa sociedade desigual, não é de
estranhar-se que por nossas próprias veias possa estar
circulando o sangue que nos há de transformar em meros
robôs, numa clara renúncia à vocação da liberdade que a
literatura nos impõe?
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