Editorial
Mais médicos: melhor atenção
à saúde da população?
José Luiz Gomes do AmaralI, Paulo Manuel Pêgo-FernandesII, Benoit Jacques BibasIII
Não há falta de médicos no Brasil nem
evidências de que sejam em número insuficiente
nos próximos 20 anos
Na última década, o número de médicos cresceu 21,3%,
índice superior ao aumento da população no mesmo período,
12,3%.1 Há hoje no Brasil mais de 350 mil médicos registrados.1 Levando-se em conta que a população brasileira ultrapassa
190 milhões,2 há 1,8 médicos para 1.000 habitantes. Cada médico tem, portanto, 544 pessoas para cuidar.
Aos médicos brasileiros pode-se atribuir a mesma expectativa de vida da população que assistem: 73 anos. Eles provavelmente trabalharão até os 70 anos. Portanto, pode-se imaginar que tenham, da especialização à aposentadoria, 40 anos
de vida profissional. É licito estimar que, anualmente, 1 em 40
ou 8.750 afastem-se da profissão. Tem-se, por outro lado, 181
faculdades de medicina,3 que graduam pelo menos 90% dos
seus admitidos, o que significa 13.500 novos médicos ao ano.1
Dos 350 mil médicos hoje em atividade, 87.500 deixariam a
profissão até 2021, mas aos remanescentes, acrescentar-se-iam
135 mil novos.
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) estima, para 2021, 208.280.241 habitantes e 216.410.030, em
2030.2 Em 2021, haverá 397.500 médicos; ou seja, 524 pacientes/médico ou 1,9 médicos/1.000 habitantes. Em 2030 serão
445 mil médicos; ou seja, 485 pacientes/médico, 2 médicos
para 1.000 habitantes.
Não há recursos no sistema de saúde (público
e privado brasileiros) para manter os médicos
existentes
Em 2010, pesquisa publicada pela Fundação Getúlio Vargas,
mostrou que a carga média de trabalho semanal do médico
pós-graduado é de 52 horas e sua remuneração mensal é de
R$ 8.966,07.4 Assim, considerando que ao salário (R$ 8.966,07)
acrescentam-se encargos trabalhistas, o gasto médio anual do
empregador deste médico é de R$ 198.150,14.
Contratar os médicos existentes representaria investimento
da ordem de R$ 70 bilhões ao ano, o que equivale à quase
totalidade do orçamento do Ministério da Saúde.5 Sem considerar o limitado investimento que se faz no país em seu
caótico sistema de saúde, sugere-se que a solução seria aproximar o Brasil das cifras europeias de 2,5 a 3 médicos/1.000
habitante. Este argumento falacioso atende às conveniências e
justificaria o aumento de 2.500 vagas nas escolas médicas brasileiras. Seria possível contratar os serviços de tantos médicos?
Considerada a relação 2,5 médicos/1.000 habitantes, para a
população brasileira de 2021 (208.280.241 habitantes), seriam 833.120 médicos; para a população esperada em 2030,
(216.410.030 habitantes), 865.640 médicos. Contratá-los todos custaria, em 2021, R$ 165 bilhões e R$ 171,5 bilhões em
2030, respectivamente.
A distribuição de médicos no país acompanha o
desenvolvimento social e econômico e ilustra
predominância do investimento no sistema
privado de saúde
O número de médicos do Brasil não é a meta a ser corrigida,
mas sim as distorções na sua distribuição. Setenta e dois por
cento dos médicos do Brasil estão nos estados do Sul e Sudeste,
não coincidentemente onde há maior participação do sistema
privado de saúde.1 O Distrito Federal lidera o ranking, com
4,02 médicos por 1.000 habitantes, seguido pelo Rio de Janeiro
(3,57), por São Paulo (2,58) e pelo Rio Grande do Sul (2,31) –
taxas comparadas às de países europeus.1 Na outra ponta, estão
o Amapá, Pará e Maranhão, com menos de 1 médico por 1.000
habitantes.1 Este grave problema decorre da absoluta falta de
políticas consistentes e recursos públicos para a interiorização
da medicina.
A abertura de novos cursos de Medicina não resolverá a assistência deficiente, mas escolas médicas de má qualidade tendem a
agravá-la. Setenta e sete escolas médicas foram criadas de 2000 a
2010: 7,7 ao ano ou mais de 1 a cada 60 dias! Isto equivalente a
42,5% das escolas abertas em dois séculos no Brasil.1 A duplicação do número de escolas médicas neste período não solucionou
a má distribuição dos médicos, mantendo-se a desassistência, inclusive nos grandes centros urbanos.
Professor titular da Disciplina de Anestesiologia, Dor e Terapia Intensiva da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP-EPM). Presidente da Associação Médica Mundial.
Professor associado da Disciplina de Cirurgia Torácica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP). Diretor científico da Associação Paulista de Medicina.
Médico estagiário em Cirurgia de Traqueia e Endoscopia Respiratória Terapêutica da Disciplina de Cirurgia Torácica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP).
I
II
III
Diagn Tratamento. 2012;17(1):3-4.
4
Mais médicos: melhor atenção à saúde da população?
Em muitas das escolas médicas existentes, o
ensino tem péssima qualidade
A abertura indiscriminada de escolas médicas é tema de altíssima relevância. A falta de seriedade no trato desta questão resulta no sombrio quadro atual. Recente avaliação do Conselho
Regional de Medicina do Estado de São Paulo com estudantes
do sexto ano atestou que quase 50% deles não sabem interpretar radiografias ou fazer diagnósticos simples.6 Administrariam
tratamento inadequado para condições frequentes, como amigdalites, meningites e sífilis, e não seriam capazes de identificar
febre como fator de risco para infecções graves em neonatos.6
Se metade dos 13.500 novos egressos de escolas médicas não
é capaz de acertar 50% dos diagnósticos ou prescrições, ao atenderem 10 pacientes ao dia, 5 dias por semana, (48 semanas ao
ano), cometerão anualmente 8.100.000 erros (33.750 erros/dia;
168.750 erros/semana; 8.100.000 erros/ano; 324 milhões de
erros ao longo dos 40 anos de suas vidas profissionais).
Se não há recursos para manter tantos médicos, muito menos haverá como pagar por tantos erros.
Como é praxe onde para os poderosos, a impunidade é a
regra, as autoridades da saúde e do ensino esquivam-se de suas
responsabilidades e a conta será, mais uma vez, paga pelos médicos e seus pacientes.
INFORMAÇÕES
Endereço para correspondência:
Paulo Manuel Pêgo-Fernandes
Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 44
Instituto do Coração (InCor)
Secretaria do Serviço de Cirurgia Torácia — bloco II — 2o andar — sala 9
Cerqueira César — São Paulo (SP) — Brasil
CEP 05403-000
Tel. (+55 11) 3069-5248
E-mail: [email protected]
E-mail: [email protected]
Fontes de fomento: nenhuma declarada
Conflito de interesse: nenhum declarado
Data de entrada: 26 de janeiro de 2012
Data da última modificação: 22 de fevereiro de 2012
Data de aceitação: 28 de fevereiro de 2012
REFERÊNCIAS
1. Agência Brasil. Empresa Brasil de Comunicação. Número de médicos no
Brasil cresce 21,3% em uma década. Disponível em: http://agenciabrasil.ebc.
com.br/noticia/2011-12-01/numero-de-medicos-no-brasil-cresce-213-emuma-decada. Acessado em 2012 (10 fev).
2. Brasil. Ministério do Planejamento. Orçamento e Gestão. Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística - IBGE. Diretoria de Pesquisas. Coordenação
de População e Indicadores Sociais. Estudos e Pesquisas. Informação
Demográfica e Socioeconômica número 24. Projeção da população do Brasil
por sexo e idade 1980-2050. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística; 2008. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/
populacao/projecao_da_populacao/2008/projecao.pdf. Acessado em 2012
(10 fev).
3. Nassif ACN. Apresentação. Escolas médicas do Brasil. Disponível em: http://
www.escolasmedicas.com.br/quem.php. Acessedo em 2012 (28 fev).
4. Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (CREMESP). Jornada de
trabalho dos médicos é a maior entre todas as profissões. Disponível em: http://
www.cremesp.org.br/?siteAcao=Jornal&id=619. Acessado em 2012 (10 fev).
5. Brasil. Ministério da Saúde. Orçamento da saúde em 2011 será o maior desde
95, segundo cálculo do contas abertas. Disponível em: http://www.brasil.gov.
br/noticias/arquivos/2011/01/10/orcamento-do-ministerio-da-saude-para2011-sera-o-maior-desde-1995-calcula-ong. Acessado em 2012 (10 fev).
6. Lopes AC. Muitos médicos, pouca qualidade. Escolas Médicas do Brasil.
Disponível em: http://www.escolasmedicas.com.br/art_det.php?cod=244.
Acessado em 2012 (10 fev).
Diagn Tratamento. 2012;17(1):3-4.
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