Publicação do
Instituto Estudos Direito e Cidadania (IEDC)
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6
Quadrimestral
v.3 - Fevereiro 2010
REID é uma publicação quadrimestral (junho, outubro, fevereiro) do Instituto de Estudos de Direito e Cidadania (IEDC).
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COORDENAÇÃO
Inês Virgínia Prado Soares
Sandra Akemi Shimada Kishi
CONSELHO EDITORIAL
Adilson Paulo Prudente do Amaral Filho
Adriana Zawada Mello
Blanca Lozano Cutanda
Bruno Campos Silva
Carlos Alberto de Salles
Christian Courtis
Daniel Sarmento
Evanson Chege Kamau
Everson Paulo Fogolari
Fabiana Saenz
Flávia Moreira Guimarães Pessoa
Flávia Piovesan
Geisa de Assis Rodrigues
Gerd Winter
João Bosco Araújo Fontes Jr.
João Luís Nogueira Matias
José Adércio Leite Sampaio
José Roberto Pimenta Oliveira
John Bernhard Kleba
Juliana Santilli
Lília Maia de Morais Sales
Ligia Maria Rodrigues Carvalheiro
Marcelo Buzaglo Dantas
Marcus Orione Gonçalves Correia
Nelson Nery Junior
Oscar Vilhena
Paulo Affonso Leme Machado
Rebecca Purdom
Renata Porto Adri
Sérgio Salomão Shecaira
Solange Teles da Silva
Tullio Scovazzi
Uendel Ugatti
Virgílio Afonso da Silva
Walber de Moura Agra
Walter Claudius Rothenburg
EDITORAÇÃO
Danilo Cymrot
Darcy Rudimar Varella
Rafael Bresciani Marracini
Revista Internacional de Direito e Cidadania / Instituto Estudos Direito e
Cidadania – v.3, n. 6, Fevereiro 2010. – Erechim, RS : Habilis, 2010.
v. ; 18 x 26cm
Quadrimestral
ISSN 1983-1811
1. Direito 2. IEDC
C.D.U.: 340
Catalogação na fonte: bibliotecária Sandra M. Milbrath CRB 10/1278
www.iedc.org.br
2
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, fevereiro/2010
www.habiliseditora.com.br
Sumário
5
COLABORADORES
Sumário
7
O DIREITO à DIVERSIDADE:
PATRIMôNIO E quILOMBO DE PALMARES
Aline Vieira de Carvalho
Pedro Paulo A. Funari
17
A MATERIALIZAÇÃO DO SADISMO:
ARquEOLOGIA DA ARquITETuRA DOS
CENTROS CLANDESTINOS DE DETENÇÃO
DA DITADuRA MILITAR ARGENTINA
(1976-1983)
Andrés Zarankinn
Claudio Niro
33
CONSIDERAÇõES SOBRE INTERESSE
SOCIAL E INTERESSE DIFuSO
Antonio Augusto Mello de Camargo Ferraz
47
O ENFRENTAMENTO AO TRáFICO DE
PESSOAS NO BRASIL
Antonio Guimarães Marrey
Anália Belisa Ribeiro
67
POLíTICA CRIMINAL CARCERáRIA NO
BRASIL E POLíTICAS PúBLICAS
Antonio Roberto Xavier
75
A BuSCA PELA REPARAÇÃO POR
DANOS AMBIENTAIS CAuSADOS
POR ATIVIDADES PETROLíFERAS DA
TRANSNACIONAL CHEVRON-TExACO
EM TERRITóRIOS INDíGENAS NO CASO
“MARIA AGuINDA E OuTROS AuTORES
VERSuS TExACO: ANáLISE DA ATuAÇÃO
DA CORTE NORTE-AMERICANA DE
APELAÇõES DO SEGuNDO CIRCuITO
Carol Manzoli Palma
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, fevereiro/2010
3
Sumário
83
187
SExuALIDADE E DIREITOS HuMANOS
Clara Silveira Belato
Eduardo Baker Valls Pereira
A RELAÇÃO INTRíNSECA ENTRE O
DIREITO, LINGuAGEM E COMuNICAÇÃO
Rodrigo de Abreu Rodrigues
97
193
CRIMES DE PESCA NO PANTANAL:
DE quEM É A COMPETÊNCIA PARA
LEGISLAR?
Fabio Marques Barbosa
Lamartine Ribeiro
José Manfroi
ExISTE ESTE DIREITO DE NASCER PARA
MORRER?
Rodrigo Gonçalves Oliveira
107
OS FuNDAMENTOS TEóRICOS E
PRáTICOS DO GARANTISMO NO STF
Grupo do Ativismo Judicial IBMEC-RJ, UFU e
PUC-RIO
125
A EFICACIA HORIZONTAL DOS DIREITOS
FuNDAMENTAIS NAS RELAÇOES
PRIVADAS ESPANHOLAS
Jonathas Fortuna Gomes
133
A CONDENAÇÃO DA COMuNIDADE
quILOMBOLA DA OLARIA EM IRARá,
BAHIA: 05 DE MAIO DE 1890
Jucélia Bispo dos Santos
207
VISÃO CRíTICA SOBRE A CONVENÇÃO
DA BIODIVERSIDADE - SEuS OBJETIVOS,
SOBERANIA ESTATAL E ACESSO AO
CONHECIMENTO TRADICIONAL
Sandra Akemi Shimada Kishi
219
O TRIBuNAL PENAL INTERNACIONAL
(TPI) E CRIANÇAS EM SITuAÇõES DE
CONFLITOS ARMADOS
Sylvia Helena F. Steiner
227
A PROTEÇÃO PREVIDENCIáRIA DOS
SERVIDORES PúBLICOS APóS AS
REFORMAS CONSTITuCIONAIS
Zélia Luiza Pierdoná
237
145
EL uSO “TRANSNACIONAL” DE PRuEBA
OBTENIDA POR MEDIO DE TORTuRA
Kai Ambos
NORMAS PARA PuBLICAÇÃO
173
NOTAS SOBRE A INAPLICABILIDADE
DA FuNÇÃO SOCIAL à PROPRIEDADE
PúBLICA
Nilma de Castro Abe
4
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, fevereiro/2010
Colaboradores
CoLABorADorES
CLARA SILVEIRA BELATO
Estudante de Direito na Faculdade Ibmec/Faculdade de Direito Evandro Lins e Silva
ANDRÉS ZARANKIN
Graduado em Antropologia com orientação
em Arqueologia pela universidade de Buenos
Aires,tem Especialização em Historia e Critica
da Arquitetura pela universidade de Buenos
Aires (1995-1997) e Doutorado em História
pela unicamp (1998-2001). Pós-doutorado em
Arqueologia no CONICET (2001-2003) e em
História na uNICAMP (2004-2005). Desde 2006
é professor do Departamento de Sociologia e
Antropologia da FAFICH-uFMG, onde ministra
aulas na graduação e na pós-graduação.
ANÁLIA BELISA RIBEIRO
Psicóloga, Especialista em Direitos Humanos
e Proteção a Testemunhas, Coordenadora do
Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas
Governo de São Paulo.
ANTONIO AUGUSTO MELLO DE
CAMARGO FERRAZ
Procurador de Justiça do Estado de São Paulo
ANTONIO GUIMARÃES MARREY
Secretário da Justiça e da Defesa da Cidadania
do Estado de São Paulo
ANTONIO ROBERTO XAVIER
SGT da PMCE 5ª CIA/1ºBPM; Mestre em Políticas Públicas e Sociedade – uECE (2008), Mestre
em Planejamento e Políticas Públicas – uECE
(2007); Especialista em História e Sociologia –
uRCA (2006) e Graduado em História – uECE
(2002).
CAROL MANZOLI PALMA
Advogada, consultora ambiental e mestranda em
Direito pela universidade Metodista de Piracicaba (uNIMEP).
CLAUDIO NIRO
Estudante do Curso de Ciências Antropológicas
– universidade de Buenos Aires (uBA) e exdetido desaparecido.
EDUARDO BAKER VALLS PEREIRA
Estudante de Direito na Faculdade Ibmec/Faculdade de Direito Evandro Lins e Silva.
FABIO MARQUES BARBOSA
Bacharel em Direito pela Universidade Federal
de Mato Grosso do Sul. Pós-graduado em Direito
Criminal pela uCDB/ Campo Grande/MS (lato
sensu) e mestrando bolsista (FUNDECT) em
Estudos Fronteiriços pela Universidade Federal
de Mato Grosso do Sul.
GRUPO DO ATIVISMO JUDICIAL IBMECRJ, UFU E PUC-RIO
O Grupo do Ativismo Judicial é integrado pelo
professor Alexandre Garrido da Silva, universidade Federal de uberlânida, Anna Federici
Araujo, Bacharel em Direito pela PuC-Rio, Bernardo Medeiros, Mestre em Direito pela PuCRio, Daniella Peçanha, graduanda de Direito do
Ibmec-RJ, Eduardo Pereira Vals, graduando em
Direito do Ibmec-RJ, Fermando Gama, universidade Federal Fluminense, Havine Santos Muri
Rodrigues, Bacharel em Direito pelo Ibmec-Rio,
Jorge Chalub, Mestre em Direito pela PuC-Rio,
José Ribas Vieira, Ibmec, PuC-Rio, Julliano
Castro, graduanda de Direito do Ibmec-RJ, Karine Souza, graduanda de Direito do Ibmec-RJ.
JONATHAS FORTUNA GOMES
Advogado. Pós-Graduando em Direito Civil
pela uFBA(universidade Federal da Bahia). Pós
graduando em Direito Civil pela FACuLDADE
BAHIANA DE DIREITO.
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, fevereiro/2010
5
Colaboradores
JOSÉ MANFROI
Graduado em filosofia (FuCMT/MS), Mestre
em Educação (uFMS) e Doutor em Educação (uNESP/Marília/SP). Orientador do Trabalho de Conclusão do Curso de Pós-graduação
lato sensu da uCDB/Campo Grande/MS.
JUCÉLIA BISPO DOS SANTOS
Mestre em Estudos Étnicos e Africanos pela
Universidade Federal da Bahia, professora de
História do Ensino Médio da rede estadual da
Bahia, e professora das disciplinas de Teorias
Sociológicas I e II da Faculdade Nobre de Feira
de Santana.
KAI AMBOS
Professor de Direito Penal, Procedimento Penal,
Direito Comparado e Direito Penal Internacional
na universidade Georg-August de Göttingen;
Juiz do Tribunal Regional de Justiça (Landgericht) de Göttingen.
LAMARTINE RIBEIRO
Professor, especialista e advogado. Orientador do
Trabalho de Conclusão do Curso de pós-graduação lato sensu da uCDB/ Campo Grande/MS.
NILMA DE CASTRO ABE
Mestre em Direito Administrativo pela Pontifícia
Católica de São Paulo (PuC-SP), Advogada da
união em São Paulo.
RODRIGO DE ABREU RODRIGUES
Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da
universidade Presbiteriana Mackenzie. Exerceu
monitoria de Linguagem Jurídica e Direito Civil
sob orientação da Professora Titular Regina
Toledo Damião.
6
RODRIGO GONÇALVES OLIVEIRA
Graduando da universidade Federal da Paraíba, Monitor Bolsista da Disciplina Direito do
Trabalho.
SANDRA AKEMI SHIMADA KISHI
Procuradora Regional da República; mestre em
direito ambiental, professora convidada nos
cursos de pós-graduação lato sensu em direito
ambiental na universidade Metodista de Piracicaba. Coordenadora do Grupo de Trabalho
sobre águas do Ministério Público Federal e
coordenadora adjunta do VI e VII Cursos de
Ingresso e Vitaliciamento da Escola Superior do
Ministério Público da união – Meio Ambiente
e Patrimônio Cultural. Pesquisadora no grupo
de pesquisa DFG/Brasil-Alemanha em parceria
com a universidade de Bremen-Alemanha, sobre
acesso ao patrimônio genético e ao conhecimento
tradicional associado e repartição de benefícios
(2007-2009).
SYLVIA HELENA F. STEINER
Juíza brasileira junto ao Tribunal Penal Internacional (TPI) desde 2003, presidente da Câmara
Preliminar I. Foi Procuradora da República de
1982 a 1995 e Desembargadora Federal do Tribunal Regional Federal da Terceira Região de
1995 a 2003.
ZÉLIA LUIZA PIERDONÁ
Procuradora da República em São Paulo; Mestre
e Doutora pela PuC/SP; Professora da graduação
e da pós-graduação da universidade Presbiteriana Mackenzie em São Paulo; autora do livro
“Contribuições para a seguridade social”, LTr,
2003, e de diversos artigos em revistas especializadas.
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, fevereiro/2010
O DIREITO à DIVERSIDADE: PATRIMôNIO E quILOMBO DE PALMARES
Artigo
o DirEito à DivErSiDADE:
PAtrimônio E quiLomBo DE PALmArES1
Aline Vieira de Carvalho*
Pedro Paulo A. Funari**
rESumo: O presente texto tem como objetivo
discutir a construção do conceito de Patrimônio
e sua relação com a diversidade. O Quilombo
de Palmares é apresentado como estudo de caso
para elucidar a possibilidade de abordagem da
própria diversidade como um patrimônio.
Palavras-chave: Política patrimonial pluralista.
Diversidade. Comunidade quilombola.
ABStrACt: This paper aims to discuss the
construction of the concept of heritage and its
relationship to diversity. quilombo de Palmares
is presented as a case study to elucidate the possibility of approach the diversity as a heritage.
Keywords: Pluralistic patrimonial policy. Diversity. Quilombola community.
Patrimônio como construção:
do ideal nacional à questão da
diversidade
As discussões sobre o patrimônio não
podem ser dissociadas de sua historicidade, dos
contextos históricos em que se tratou tanto das
questões tanto teóricas, como práticas, referentes
aos usos do passado, à sua construção social
(Bond & Gilliam 1994). A própria noção de
patrimônio é histórica, como lembra Dominique
Audrerie (1997: 15):
On est passe d’un patrimoine familial,
tranmis de génération en génératio, à un
*
Doutora em Ambiente e Sociedade pelo IFCH/ unicamp. Pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais (Nepam/unicamo) e pósdoutoranda Fapesp (Departamento de História – unicamp). E-mail: [email protected]
Professor Titular do Departamento de História, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Professor e Pesquisador do Núcleo de Estudos e Pesquisas
Ambientais (Nepam – unicamp). E – mail: [email protected]
**
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 7-15, fevereiro/2010
7
CARVALHO, A. V. - FuNARI, P. P.
patrimoine collectif, témoin de l’histoire
de la nation2.
Como se fez essa passagem do patrimônio
privado e aristocrático ao patrimônio público,
subjetivo, da nação? Como chegamos ao patrimônio universal que transcende, por definição
o quadro da nação? Convém, brevemente,
retomarmos o próprio sentido das palavras que
utilizamos para nos referirmos a isso. Assim, as
línguas românicas usam termos derivadas do
latim patrimonium para se referir à “propriedade herdada do pai ou dos antepassados, uma
herança”. Os alemães usam Denkmalpflege, “o
cuidado dos monumentos, daquilo que nos faz
pensar”, enquanto o inglês adotou heritage,
na origem restrito “àquilo que foi ou pode ser
herdado” mas que, pelo mesmo processo de
generalização que afetou as línguas românicas e
seu uso dos derivados de patrimonium, também
passou a ser usado como uma referência aos monumentos herdados das gerações anteriores. Em
todas estas expressões, há sempre uma referência
à lembrança, moneo (em latim, “levar a pensar”,
presente tanto em patrimonium como em monumentum), Denkmal (em alemão, denken significa
“pensar’) e aos antepassados, implícitos na
“herança” (Funari 2001). Ao lado destes termos
subjetivos e afetivos, que ligam as pessoas aos
seus reais ou supostos precursores, há, também,
uma definição mais econômica e jurídica, “propriedade cultural”, comum nas línguas românicas
(cf. em italiano, beni culturali), o que implica
um liame menos pessoal entre o monumento e a
sociedade, de tal forma que pode ser considerada
uma “propriedade”. Como a própria definição de
“propriedade” é política, “a propriedade cultural
é sempre uma questão política, não teórica”,
ressaltava Carandini (1979: 234).
O patrimônio como bem privado a ser
transmitido por herança esteve na base da criação
do patrimônio público da nação e resulta da implantação do estado nacional, em fins do século
xVIII e no decorrer do século xIx. A nação
surgiu como um projeto político, baseado na
invenção de tradições visando à criação de uma
identidade compartilhada por todos os cidadãos.
Os reinos de origem medieval eram formados por
súditos que falavam diversas línguas, pertenciam
8
a comunidades locais e só eram iguais enquanto
servidores do rei. O novo estado nacional, ao amputar o estado de sua cabeça, teve como primeira
tarefa criar os novos cidadãos, um único povo,
com uma única cultura, língua e território. Esse
processo foi lento e continua em curso e é ele
que justifica a noção abstrata de ‘patrimônio nacional’. quais os pressupostos epistemológicos
desse projeto? O compartilhamento de valores,
a homogeneidade social e o consenso fundam
a ideologia nacionalista e viriam a encontrar
fundamentação, no âmbito das Ciências Sociais.
De fato, a Sociologia viria a propor modelos de funcionamento da sociedade, como um
todo homogêneo, sem lugar para o conflito. Ou
melhor, o conflito existe como anomia, exceção
que confirma a regra e comportamento desviante. Durkheim3 e Weber serão os dois pilares do
pensamento social sistêmico, formuladores de
modelos duradouros sobre a sociedade como estável conjunto de relações, com grande influência
nos estudos sobre o patrimônio durante o século
xx. Os conflitos sociais, sinais de anomalia,
4
refletem o metus plebis (medo do povo) , cujas
origens remontam ao início da industrialização, mas que adquirem contornos novos com a
sociologia normativa. Se para os positivistas a
História era um suceder-se de lutas e de mudanças, os modelos sociológicos viriam a enfatizar
a reprodução das relações sociais de geração a
geração, as permanências subterrâneas, a longa
duração, a estabilidade.
Neste contexto, o patrimônio é construído
como a sensação de compartilhar valores, de pertencimento, em uma interpretação que minimiza
a diversidade de interesses sociais e, ainda mais,
os conflitos e contradições (e.g. Cohen 1982;
Meneses 1987). A sociedade é vista como um
conjunto harmônico de pessoas, uma koinonia,
no sentido já proposto por Aristóteles (Politica
1252a7), a viver segundo normas sociais compartilhadas e aceitas. Neste modelo normativo,
a dissensão, a variedade e a diferença aparecem
como desvios da norma, exceções que confirmariam a regra. Essa concepção de sociedade
cria o conceito de identidade partilhada, de características iguais (de onde se origina a própria
palavra identidade, de idem, “o mesmo”, em la-
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 7-15, fevereiro/2010
O DIREITO à DIVERSIDADE: PATRIMôNIO E quILOMBO DE PALMARES
tim), como se todos, portanto, pertencêssemos à
confraria. Este o conceito normativo de pertença,
belonging, tão caro aos modelos de sociedade
sem conflitos, sem diversidade (Funari 2003).
As críticas a essas concepções normativas
não tardaram a afirmar-se, contudo. A sociedade,
considerada como um conglomerado de grupos
sociais, com características e interesses variados, caracteriza-se pelos conflitos. Estudiosos
da sociedade, na esteira de Marx, insistiram na
aplicabilidade do uso do conceito de classe para
estudar as sociedades humanas, bem como na
importância da bipolaridade5 entre apropriadores
e apropriados, elite e povo, estes tão magnificamente chamados, por Walter Benjaumin, de
geknechteten, “aqueles que servem, escravos”,
termo usado para designar todos os explorados
do passado, escravos, servos, operários6. De fato,
à diferença dos modelos normativos de cultura7,
que buscam a continuidade das relações sociais, a
submissão dos grupos e dos indivíduos às regras
sociais, os Marxismos ressaltam que os interesses
e os conflitos são características inerentes à vida
em sociedade. Mesmo estudiosos das sociedades
arcaicas, como Randall McGuire e Dean J. Saitta,
têm demonstrado como o conceito de classe é
apropriado para o estudo de todas os tipos de
sociedades, pois mesmo grupos pré-históricos,
mal definidos como “simples”8, podem ser considerados como igualitários e estratificados a um
só tempo e, pois, com relações de classe9. Além
disso, os conflitos de classe atingiam, também, os
dominantes, como destacado pela historiografia
crítica (Funari 1996).
Nas últimas décadas as críticas aos modelos normativos generalizaram-se, em particular
no contexto do pós-modernismo, com sua valorização da diversidade, e passaram a considerar
importantes não apenas os conflitos econômicos,
como muitos outros, como os culturais, sociais,
políticos, de gênero, de idade e muito mais.
Diversidade implica identidades, no plural,
fluidas e em mutação, pertencimentos múltiplos,
parciais e contraditórios, conflitos e interesses
em confronto.
Como isto se reflete no patrimônio? Em
termos internacionais, a UNESCO tem, desde
a década de 1970, produzido literatura e propugnado a diversidade cultural como objetivo
central, em ações que envolvam a participação
das comunidades, em sua diversidade, na gestão
pública dos bens culturais. A uNESCO reconhece que, talvez, nada defina melhor o momento em
que vivemos, do que a luta pela preservação da
diversidade, cultural, social, natural, ambiental.
No Brasil, o cuidado com o patrimônio
seguiu trajetória própria, no contexto de uma
sociedade patriarcal e hierarquizada (Funari
1995). As preocupações com patrimônio, entre nós, deram-se no contexto oligárquico da
República Velha e se concretizaram no período
nacionalista autoritário, na década de 1930. A
luta pela ampliação e diversificação do patrimônio, de maneira a incluir os vestígios indígenas,
levada a cabo por Paulo Duarte e bem sucedida
com a lei de 1961, foi bastante prejudicada
pela ditadura militar e seu fortalecimento dos
modelos normativos, homogeneizadores e de
‘pertença’ forçada à ‘pátria’ (Funari 1994). Como
resultado, o conceito de patrimônio e as práticas
de preservação patrimonial ficavam restritas as
construções materiais das elites brancas e católicas de nosso país.
Apesar de uma expressiva agitação internacional pelo reconhecimento e valorização
da diversidade, levada a cabo por movimentos
sociais e intelectuais (como o movimento dos
direitos civis, feminismo, multiculturalismo, entre outros – cf. Semprini, 1999), no Brasil, essas
forças vieram a ecoar nas questões patrimoniais
e nas políticas nacionais a partir de meados da
década de 1980; momento de redemocratização
do país. Com a abertura política, temas relativos
às identidades do “cidadão brasileiro” passaram
a ser abertamente discutidas e problematizadas.
Nesse contexto de debates, o quilombo de Palmares foi retomado como símbolo do que poderia
ser o Brasil e o idealizado “povo brasileiro”.
Palmares: que “País” é esse?
‘“Parece que Zumbi era casado, com
uma branca, dona Maria, filha de um
senhor de engenho de Pôrto Calvo. Esta
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 7-15, fevereiro/2010
9
CARVALHO, A. V. - FuNARI, P. P.
mulher branca talvez tenha sido raptada
pelo Zumbi, mas sabe-se, por outro lado,
que certa família de brancos se extraviou
nas matas alagoanas e caiu nas mãos dos
palmarinos, não sendo difícil que a companheira do Zumbi pertencesse a essa
família. De qualquer modo, a esposa
branca do chefe do quilombo pertence
à tradição e à lenda, que, entretanto,
encontram reforço na existência de uma
rainha branca no folguedo popular do
quilombo, que faz parte do folclore de
Alagoas” (Carneiro, 1966: 36).
“A criação de D. Maria, a rainha quilombola loura, é parte da estratégia dos
que não abrem mão de decidir o que é
história. De certo modo, a luta prossegue em Palmares, mesmo após tantos
séculos. Uma disputa acirrada em que os
adversários dos palmaristas buscam agora ofuscar distinções opressivas, negar
identidades e impor homogeinidades.
Tudo em nome de superiores “interesses
nacionais”. Na verdade, tudo em nome
dos interesses contrários às políticas de
superação das desigualdades raciais”
(Cardoso, Jornal írohín, 2008).
As falas acima estão separadas no tempo
por, pelo menos, 40 anos. A primeira foi produzida por Edison Carneiro; advogado soteropolitano, que dedicou-se ao estudo dos temas
afro-brasileiros durantes os anos de 1930 até
1960. Inserido em contextos culturais próprios,
salientou a questão da existência de “não negros”
dentro do quilombo de Palmares: alguns destes
habitantes seriam homens, mulheres, crianças,
das mais diversas categorias “raciais” e religiosas
(brancos, negros, índios, católicos e mouros) de
poucas posses, de um Pernambuco extramentente
empobrecido, que procuravam uma vida melhor,
afastando-se das instituições coloniais oficiais.
Alguns teriam escolhido a nova morada enquanto
outros teriam sido raptados para fortalecer numerica e militarmente Palmares.
A segunda fala é de Edson Lopes Cardoso, também natural de Salvador, mestre em
Comunicação Social e editor do jornal Ìrohìn.
10
O trecho acima mencionado foi retirado de um
artigo publicado no periódico eletrônico Ìrohìn
intitulado “História: prepare-se para o embate
ou engula o sapo”. Trata-se de uma crítica às
publicações de Ruy Jobim Neto, destinadas ao
público infanto-juvenil, nas quais a esposa de
Zumbi é ilustrada como uma mulher branca. De
acordo com Cardoso (2008), Neto teria construído esta Maria, “(...) de olho no presente das
crianças que brincam alegres e felizes sem que
nada as distinga, exceto o detalhe irrelevante da
cor da pele (...). Assim, tudo teria começado em
Palmares. Tanto as sementes do paraíso racial,
quanto as primeiras germinações de enredos e
personagens de novelas de televisão (...)”. Para
o autor, trata-se de um confronto de discursos
sobre a história, algo que vai além do universo
acadêmico e liga-se à “defesa das legítimas
reivindicações dos afro-brasileiros” (Cardoso,
2008).
As duas posturas citadas ressaltam um não
consenso entre os estudiosos sobre como teria
sido a vida cotidiana no quilombo de Palmares. As disparidades dos discursos, bem como
suas próprias estruturas, ressaltam como as
interpretações sobre esse quilombo são eminentemente políticas. Palmares torna-se um espaço
no passado para construir quem nós somos (ou
gostaríamos de ser) no presente. Símbolo social,
o Quilombo é constantemente alterado de acordo
com contextos sociais específicos.
Surgido no século xVII, em território que
atualmente pertence ao Estado de Alagoas, o
assentamento palmarino permeneceu silenciado
por mais de 200 anos. O silêncio se dava, entre
outros motivos, pelo temor que as elites coloniais
sentiam da força simbólica de Palmares. um
levante escravo já havia se provado perigoso aos
grupos economicamente dominantes na colônia
após a eclosão de rebeliões no Haiti, em 1794.
O Haitianismo levou as autoridades coloniais
do Brasil à se dedicaram ao desenvolvimento
de medidas de segurança que evitassem o surgimento e a consolidação de novos Palmares
(Lara: 2000:81).
O silêncio foi rompido, no início do século
xx, quando novas categorias sociais, ainda que
estanques, passaram a serem celebradas, como
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 7-15, fevereiro/2010
O DIREITO à DIVERSIDADE: PATRIMôNIO E quILOMBO DE PALMARES
os bandeirantes ou os negros. O bibliotecário e
arquivista Ernesto Ennes encabeçou, com Arthur
Ramos e Edson Carneiro, uma valorização dos
estudos do assentamento palmarino. O autor
utilizou-se das fontes oficiais sobre Palmares
para comprovar o heroísmo bandeirante paulista
diante da barbárie quilombola. Ligado ao Museu
Paulista (conhecido, popularmente, como Museu
do Ipiranga) – seu livro As Guerras nos Palmares
foi dedicado a Afonso E. Taunay, diretor da instituição – e às elites do sudeste brasileiro, Ennes
organizou inúmeros documentos em uma narrativa épica com a intenção declarada de reconstruir
“a verdadeira história de Palmares” e valorizar a
figura de Domingos Jorge Velho, o bandeirante
paulista que comandou a última expedição de
ataque a Palmares e que representava o “espiríto”
dos valentes paulistas.
A resposta a Ennes surgiu na voz do
antropólogo Arthur Ramos e do historiador e
advogado Edison Carneiro (mencionado anteriormente). Ambos pesquisadores defenderam
Palmares como um exemplo duradouro e, por
isso, “mais expressivo” da persistência cultural
africana. Em seus estudos, Ramos e Carneiro
afirmaram que os negros escravos fugiam para o
quilombo para preservar a cultura que traziam da
áfrica, mantendo-a livre das ameaças culturais
brancas (como a religião católica, as roupas,
comidas, entre outras). No caso específico de
Edison Carneiro, o autor destaca que os não
negros, ao chegarem ao Quilombo, passavam
a desfrutar de outra identificação cultural (não
branca, colonial, européia). Assim, o quilombo
seria uma alternativa para manter a identidade
negra distante das deformações representadas
pela cultura branca.
Os primeiros enfoques das investigações
sobre Palmares foram amplamente combatidos
pelos estudiosos da década de 1960, em especial,
por Clóvis Moura e Décio Freitas. Os autores
discutem a rebeldia dos escravos e a existência
do quilombo palmarino embasando-se em teorias
marxistas. Dentro de um contexto analítico de
luta de classes, Moura e Freitas defenderam o
quilombo de Palmares como inerente à escravidão: o quilombo só existiu porque havia exploração de classes. Por outro lado, em uma relação
de ambivalência, o surgimento de quilombos é
percebido como responsável pela dinamização
e, principalmente, pelo desgaste do sistema
escravista. As revoltas escravas e, entre elas, os
quilombos, passam, então, a ser consideradas
como caminhos para o negro recuperar a dignidade humana (perdida na escravização). Zumbi
torna-se o grande herói dessa história.
No mesmo período, e em um caminho semelhante ao trilhado por Moura e Freitas, Abdias
do Nascimento glorificou Palmares como um
exemplo heróico da força negra no Novo Mundo.
Intelectual afro-brasileiro – como ele próprio se
definia –, pregava o pan-africanismo imediato (a
união de todos os “filhos da áfrica” - descendentes de africanos nascidos em outros continentes),
cujo modelo inspirador deveria ser o Quilombo
de Palmares. Com um texto narrativo e caloroso,
justificado pela sua experiência de ser negro no
Brasil, Nascimento afirma a existência de uma
exclusão social causada pela cor, atacando de
forma direta o mito da democracia racial.
Os seis autores expostos almejavam resgatar, “através da pesquisa empírica e exaustiva”,
o quilombo de Palmares como ele “realmente”
teria sido, (Azevedo 2000: 124). Apresentam, no
entanto, um quilombo repleto de expectativas,
dúvidas e respostas que são próprios do tempo
vivenciado por cada pesquisador. O quilombo
colonial deixa de representar apenas um acontecimento histórico para simbolizar lutas do nosso
presente; de símbolo da “fraqueza e inferioridade
negra” passa a ocupar o patamar de exemplo
“concreto da riqueza e força africana”.
Após a década de 1980, expande-se dentro das academias brasileiras uma variedade
temática acerca de Palmares. As investigações
descentram-se dos campos econômicos e passam
a incorporar os estudos das famílias, mulheres,
alimentações, sexualidade de Zumbi, entre outras
possibilidades. E, em 1992, somam-se às várias
abordagens acerca do quilombo de Palmares os
trabalhos arqueológicos sobre o assentamento
palmarino. A leitura dos artefatos, ou seja, dos
objetos produzidos ou modificados pelas ações
humanas (Funari 2003:13), pertencentes ao
cotidiano quilombola, junto à leitura das fontes
escritas, sustentam outras visões sobre o qui-
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 7-15, fevereiro/2010
11
CARVALHO, A. V. - FuNARI, P. P.
lombo. O trabalho arqueológico realizado na
Serra da Barriga, e financiado por instituições
nacionais e internacionais, foi idealizado pelos
pesquisadores Charles Orser Jr., Michel Rowlands, Pedro Paulo A. Funari. Cada um deles, apesar
de investigar os mesmos vestígios materiais do
assentamento quilombola, produziu um Quilombo de Palmares bastante diferenciado.
O arqueólogo americano Charles Orser Jr
(1996:41-53) afirma que o quilombo palmarino
não formava uma unidade isolada para o combate de uma cultura pura, pois se inseria em uma
complexa teia de relações diretas ou indiretas
tanto com os colonos como com europeus. Os
colonos, compartilhando de uma identidade
mais próxima a dos palmarinos do que com a
dos latifundiários ou outras elites locais, teriam
mantido relações estreitas com Palmares, não
apenas comerciais, mas também na esfera particular da vida cotidiana.
A convivência entre as pessoas também
é valorizada pelo arqueólogo brasileiro Pedro
Paulo Abreu Funari (1999:37-66), que afirma o
quilombo como local onde conviviam pessoas
de diversas origens étnicas e culturais. Esse
caráter multiétnico ter-se-ia originado da situação histórica e estratégica do quilombo. Os
palmarinos estabeleceram-se em uma região
onde havia nativos, moradores das vilas coloniais, fazendeiros, holandeses, e outros grupos,
muitas vezes, marginalizados. Os quilombolas,
deste modo, não estavam isolados; sobreviveram
não apenas em confronto com esses grupos, mas
necessariamente, em interação. Esses contatos
transformaram Palmares não em um resumo
modificado ou cópia fidedigna de experiências anteriores (exclusivamente africanas); ao
contrário, consolidaram o quilombo como uma
experiência singular.
O não isolamento de Palmares também é
advogado pelo arqueólogo britânico Michael
Rowlands (1999: 330-340), que defende Palmares como uma estrutura plural, onde haveria,
por exemplo, diferentes status sociais, que se
refletiriam em variadas distribuições espaciais,
entre os quilombolas. Nessa perspectiva, o
quilombo se configuraria como uma sociedade
muito próxima à existente no mundo colonial da
12
época. Haveria distinções entre a elite palmarina
e os outros habitantes dos quilombos; em outras
palavras, distinções de classe, e diferenciações
determinadas por gênero e etnia.
Outras escavações foram realizadas na
Serra da Barriga no ano de 1996. O arqueólogo norte-americano Scott Joseph Allen (1998
141:177) afirmou Palmares como detentor de
uma dinâmica bem específica: os quilombolas
teriam criado, em um ambiente natural e social
desconhecido, uma nova cultura e identidade.
Suas roupas, nomes, utensílios, dentre outras
expressões culturais (materiais ou não), eram
compostos a partir da junção de elementos
tradicionais (na maioria africanos) e novos.
Essas articulações tinham como propósito a
diferenciação entre os palmarinos e os diversos
grupos pertencentes à sociedade escravocrata
(holandeses, portugueses e colonos brasileiros).
A identidade palmarina teria se consolidado
através do contato entre muitas culturas, e originado, a partir de então, uma identidade própria,
específica do quilombo.
A pluralidade de identidades e os contatos
entre os seres-humanos, dentro e fora do Quilombo de Palmares, são divulgados não apenas
pelos discursos arqueológicos, nascido na década
de 1990, como também por uma significativa
parcela da historiografia sobre a escravidão. Essa
postura é bastante interessante em nossa atualidade, já que com a divulgação da possibilidade de
múltiplas identidades de Palmares, ou mesmo de
outros objetos de pesquisa que não o quilombo,
abre-se espaço para a liberdade: os leitores dos
trabalhos arqueológicos podem construir suas
próprias identidades sem se sentirem cerceados
ou excluídos.
O exemplo de Palmares demonstra como
uma política patrimonial pluralista, que valorize a diversidade, pode produzir resultados que
incluam segmentos sociais. O patrimônio de um
grupo rebelde pode permitir, ainda, uma discussão social mais ampla sobre o sentido da preservação dos bens materiais do passado. Não se
trata de preservar apenas o respeito à norma, aos
valores dominantes, às dominações sociais, mas
também a resistência, a diversidade. As diversas
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 7-15, fevereiro/2010
O DIREITO à DIVERSIDADE: PATRIMôNIO E quILOMBO DE PALMARES
interpretações da cultura material do quilombo
devem ser explicitadas nas exposições, sejam em
museus, livros ou outros meios de divulgação.
uma política de patrimônio pluralista começa e
termina com a diversidade, que inclui e liberta.
7
8
9
notas
1
O presente artigo é uma versão revisada e ampliada da
publicação FuNARI, P. P. A. ; CARVALHO, A. V. . O
patrimônio em uma perspectiva crítica: o caso do quilombo dos Palmares. Diálogos, Maringá, PR, v. 9, n. 1,
p. 33-48, 2005.
2
“Passou-se de um patrimônio familiar, transmitido de geração em geração, a um patrimônio coletivo, testemunha
da História da nação”.
3
Cf. Cf. JOHNSON, Terry; DANDEKER, Christopher;
ASHWORTH, Clive. The structure of social theory.
Londres: McMillan, 1984. p. 9-12 e 147-183.
4
Medo da plebe, em tradução literal. “Apenas a direção
ordenada das massas por políticos responsáveis pode
pôr fim ao irregular domínio da rua e o predomínio dos
demagogos do momento”. WEBER, Max. Whalrecht
und Demokratie in Deutschland, Gesammelte politische
Schriften. Munique: Dreimasken, 1921. p. 322. Note-se o
uso de “ordem” e “regra”, os dois termos da equação law
and order: “In tutti i Paesi occidentali, ‘legge e ordine’
è un’espressione che fotografa la mentalità e il cuore (o
almeno un aspetto decisivo) della destra politica. Non
significa necessariamente una prospettiva forcaiola. No,
vuol dire semplicimente che le regole – quelle dei codici
come quelle non scritte che riguardanol’ambito informale
della civile convivenza – devono essere rispettate in modo
assoluto e che perciò con coloro che no le rispettano
non si scherza, non deve esserci, non ci sarà, spazio per
indulgenze di alcun tipo (a New York, come si ricorderà,
è stato questo il programma del sindaco Giuliani)” (“em
todos os países ocidentais, lei e ordem é uma expressão
que representa a mentalidade e o centro (ou ao menos
um aspecto decisivo) da direita política. Não significa,
necessariamente, uma perspectiva estreita. Não, quer dizer
simplesmente que as regras – dos códigos mas também
as não escritas que se referem ao ambiente informal da
convivência civil – devem ser respeitadas de forma absoluta e que, por isso, com aqueles que não as respeitam
não se brinca, não deve haver, não haverá, espaço para
indulgência de qualquer tipo”. GALLI DELLA LOGGIA,
Ernesto, Le insegne di Babilônia. Corriere della Sera, p.
1, 30 out. 2001. Grifo nosso.
5
Carlo Ginsburg, Na Interview, Radical History Review,
35, 1986, p. 108: bipartition between popular and learned
culture is more useful than a holistic model.
6
Walter Benjamin, Über den Begriff der Geschichte, em Gesammelte Schriften, vol.1, tomo 2, Frankfurt, Suhrkamp,
1974, tese xii; cf. Pedro Paulo A Funari, Considerações
em torno das “Teses sobre a Filosofia da História”, de
Walter Benjamin, Crítica Marxista, 1,3, 1996, pp. 45-53.
Sobre o modelo normativo de cultura, uma crítica consistente encontra-se em Siân Jones, The Archaology of
Ethnicity, Constructing identities in the past and present,
Londres, Routledge, 1997.
Randall McGuire, Why complexity is too simple, em
Debating Complexity, organizado por P.C. Dawson e D.T.
Hanna, Calgary, 1996, pp. 1-7.
Randall McGuire e Dean J. Saitta, Although they have
petty captains, they obey them badly: the dialectics of
prehispanic Western Pueblo social organization, American Antiquity, 1996, 61, 2, pp. 197-216; Dean Saitta,
Agency, class, and archaeological interpretation, Journal
of Anthropological Archaeology, 13, 1994, pp. 201-227;
Dean J. Saitta, Power, labor, and the dynamics of change
in Chacoan political economy, American Antiquity, 62,1,
1997, pp. 7-26.
Agradecimentos
Agradecemos, em especial, a Inês Prado
Soares e Sandra Akemi Kishi pela oportunidade
de publicar o presente texto na REID. Aos colegas Siân Jones, Randal McGuire, Dean J. Saitta,
Peter ucko. Devemos mencionar, ainda, o apoio
institucional do CNPq, da FAPESP, da CAPES.
A responsabilidade pelas idéias restringe-se aos
autores.
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15
16
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, fevereiro/2010
A MATERIALIZAÇÃO DO SADISMO: ARquEOLOGIA DA ARquITETuRA DOS CENTROS CLANDESTINOS
DE
Artigo
DETENÇÃO DA DITADuRA MILITAR ARGENTINA (1976-1983)
A mAtEriALizAção Do SADiSmo:
ArquEoLogiA DA ArquitEturA DoS
CEntroS CLAnDEStinoS DE DEtEnção DA
DitADurA miLitAr ArgEntinA (1976-1983)1
Andrés Zarankin2
Claudio Niro3
rESumo: O artigo, a partir de um nível teórico
e do relato de experiências reais sofridas por um
dos autores, apresenta uma síntese da história das
instituições punitivas na sociedade ocidental e
um panorama geral do funcionamento da repressão durante a ditadura militar argentina, abordando, em seguida, a arquitetura e a organização
espacial dos Centros Clandestinos de Detenção,
mais precisamente o CCD Club Atlético, e seus
efeitos sobre os corpos e mentes dos detidos.
Palavras-chaves: Ditadura. Tortura. Centros
clandestinos de detenção. Arqueologia. Justiça
de transição.
ABStrACt: The article, from a theoretical
level and reports of real experiences suffered
by one of the authors, gives an overview of the
history of punitive institutions in Western society
and an overview of the operation of repression
during the military dictatorship in Argentina,
addressing then the architecture and spatial organization of clandestine detention centers, more
precisely the CCD Athletic Club, and its effects
on bodies and minds of the detainees.
Keywords: Dictatorship. Torture. Clandestine
detention centers. Archeology. Transitional
justice.
O presente artigo foi originalmente publicado em FuNARI; Pedro Paulo; ZARANKIN, Andrés; REIS, José Alberioni dos (Org). Arquelogia da
repressão e da resistência na América Latina na era das ditaduras (décadas de 1960-1980). Annablume/Fapesp, 2008. As figuras nele contidas foram
retiradas para que o artigo fosse adaptado aos propósitos da REID. No texto original, os autores expressam agradececimentos, especialmente: a
Comissão de Trabalho e Consenso do Club Atlético; a Melisa Salerno por sua ajuda com as figuras do artigo; e a María ximena Senatore por sua
leitura crítica e sugestões.
2
Dipa-Imhicihu-Conicet e professor-visitante do NEE-uNICAMP (Fapesp).
3
Estudante do Curso de Ciências Antropológicas – universidade de Buenos Aires (uBA) e ex-detido desaparecido.
1
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 17-32, fevereiro/2010
17
ZARANKIN, A. - NIRO, C.
“Quem nunca esteve em um campo
concentração, jamais poderá entrar ali,
imaginar o que significa e, quem esteve,
nunca poderá sair de todo”.
Daniel M, sobrevivente do Clube Atlético
(2002:10)
um dia no El vesubio
Em 9 de maio de 1978, em horas da madrugada, a bordo de um Ford Falcon, cheguei
ao centro clandestino de detenção conhecido
como El Vesubio. Estava localizado no Camino
de Cintura, na Auto-estrada Richieri, bairro La
Matanza. quatro indivíduos, sob as ordens de
Suárez Mason, me tiraram do carro, encapuzado,
com as mãos algemadas pelas costas, enquanto
me insultavam e me golpeavam, conduzindo-me
para uma casa. Dentro da mesma, me colocaram
de pernas abertas, junto a uma parede. Enquanto
isso, me obrigaram a apoiar a cabeça no muro.
Vários torturadores me brindaram com patadas
nos testículos e me insultaram. Dito procedimento chamaram de “el ablande”. Consistia em
um método de acovardamento do prisioneiro,
anterior ao ingresso na sala de tortura.
Todos estes fatos aconteciam na casa 3,
dado que o centro clandestino constava de três
locais. Cada um destes estava destinado a distintas funções. Na casa 1 estava a chefatura, sede
do comando e morada do encarregado de campo.
Na casa 2 se encontravam os “quirófanos ou
enfermarias”, isto é, as salas de torturas. A casa
3 era o lugar das celas de detenção ou “cuchas”.
As “cuchas” eram uns cubículos, de um
por dois metros, onde estávamos, umas quatro
ou cinco pessoas encapuçadas, algemadas nos
braços e nas pernas e, por sua vez, algemadas
umas nas outras. quando recém chegávamos nas
“cuchas” nos obrigavam a tirar as roupas e nos
entregavam uns uniformes marrons que todos
devíamos vestir. Através deste procedimento
nos faziam perder, junto com a roupa, os últimos
rastros de nossa vida exterior.
4
No princípio reinava um total desconcerto
entre nós. Não sabíamos onde estávamos e nem
o que ia suceder com nossas vidas. Na primeira
semana não comi nada, em razão do asco que
me dava ao que nos davam (guisados urinados
pelos guardas) e pela forma em que nos faziam
comer (devíamos comer de uma panela imensa,
tomando o alimento com as mãos). Passada a
primeira semana, a fome me fez comer tudo.
Um companheiro, seqüestrado desde muito
tempo, era quem nos subministrava a água e a
quem chamávamos de “Hueso”. Este companheiro era a única pessoa a quem podíamos ver
enquanto levantávamos os capuzes, no caso de
não se encontrar nenhum guarda dando voltas.
Isto acontecia em poucas ocasiões, dado que os
guardas estavam vigiando constantemente.
Dado que havia um pequeno furo no capuz (seguramente o mesmo capuz que havia
sido usado por outros companheiros, em muitas
oportunidades, devido ao cheiro que desprendia)
pude observar através do mesmo e reconhecer
a Auto-estrada Richieri e os coletivos da Linha
86, por meio de uma janela que se encontrava
no que, provavelmente, havia sido um antigo
refeitório na casa 2.
A partir do tempo que suportamos nas
‘cuchas’ e da relação com “Hueso” começamos
a conhecer o lugar, pelas descrições que ele nos
fazia. Deste modo, nos inteiramos que a comida
vinha do quartel de La Tablada, carregada em
uma camionete, para logo ser deteriorada no El
Vesubio. Também nos contou que os captores
nos consideravam “perejiles”4, pois havíamos
sido seqüestrados nos colégios Carlos Pellegrini
e Juan José Paso. Explicou-nos que, na casa 2,
estava a sala de tortura e os quirófanos. Algumas
vezes nos conseguia comprimidos roubados para
acalmar a dor dos golpes.
Enquanto sucedia tudo isto, lá fora, era o
Mundial de 78. Então, alguns verdugos viam
os jogos por vários televisores e algumas companheiras os viam com eles. Igualmente, as
mulheres estavam detidas em ‘cuchas’ separadas
dos homens. Também sabíamos que as faziam
Termo usado para referir-se a pessoas sem importância, que não tem poder. Neste texto, algumas palavras que estão em negrito são gírias oriundas
de um contexto discursivo de repressão e de tortura, por isso, são mantidas na grafia original em espanhol.
18
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 17-32, fevereiro/2010
A MATERIALIZAÇÃO DO SADISMO: ARquEOLOGIA DA ARquITETuRA DOS CENTROS CLANDESTINOS DE
DETENÇÃO DA DITADuRA MILITAR ARGENTINA (1976-1983)
realizar tarefas de ordem doméstica, no campo
de detenção.
Os guardas procediam de duas escolas
do exército: Lemos e Cabral. Muitos
deles eram do litoral e escutavam, seguidamente, chamamé. Estes costumavam
nos insultar com consignas racistas, aos
companheiros que identificavam como
judeus e a todos em geral.
Recordo-me que estava com duas pessoas
que haviam caído, novas. Começamos
a falar como podíamos e, claro,.... não
falavam de comida nem nada. Falavam
da Revolução Russa. Eu não podia acreditar. Emocionou-me estar falando de tais
assuntos no meio deste lugar. Os tipos
queriam me captar para o trotskismo.
Depois me pus feliz, por um lado. Se os
tipos estavam aí, e eu podia escutar a
palavra Trotski e a palavra Lênin, ainda
havia esperança. Todavia, eles não me
puderam captar!
A sala de tortura era uma habitação
coberta com telgopor e, escrita com cigarros, havia uma frase que dizia: “se o
sabe cante, senão agüente”. As paredes de
telgopor estavam manchadas de sangue.
Havia um balde com água e uma foto de
Hitler pendurada, debaixo da qual dizia:
Heil Hitler. A mesa era uma mesa de madeira com pranchas, recoberta com ferros
e estava manchada de sangue.
El Vesubio me traz certas recordações.
Recordo-me da cidade de Pompéia, destruída no ano 79 d.C. As cinzas preservaram os edifícios e, inclusive, os cadáveres
de suas vítimas. Este Vesúvio, ano 1975
a 1978 d.C., também arrasou com vidas
e bens dos detidos, impondo uma lógica
do terror. Do terrorismo de Estado. Antes
foi a lava, agora os Ford Falcon, que se
estenderam por toda a Argentina.
Meu companheiro Leonardo, que era meu
responsável no grupo em que militava,
em um momento, antes da tortura, me
disse que “hay que cortar la cadena”, não
delatar a ninguém. Não reconhecer que
éramos da União dos Estudantes Secun-
dários (uES) e, tampouco, Montonero.
Devíamos fingir que não sabíamos nada
de nada. O problema foi que algum dos
detidos haviam reconhecido sua militância na uES. Enquanto nós tratávamos de
convencê-los que não tínhamos nada que
ver, que havíamos deixado a militância
antes da ditadura.
Na sala de torturas me perguntavam pelo
responsável do meu pelotão, porém, eu
nunca dei nenhum nome. Os torturadores
perguntavam com palavras próprias da
militância, por isso, devíamos passar por
ignorantes, para não pisarmos. Usavam
palavras como “embute”, “pepas”, etc.
Posteriormente, fomos transladados para a
Villa Martelli, no Logístico 10. Meteramnos em umas celas, custodiados por três
recrutas e um sargento ou cabo. Aí pudemos tirar os capuzes. Aí aparecia o major
Teslaf que fazia o papel de bonzinho,
porém, depois, me interei que era um dos
chefes do El Vesubio.
Através dos soldados, dado que havíamos
feito certa amizade com eles, enviamos
uma carta, clandestinamente, para nossos
familiares, avisando que nos encontrávamos vivos. O recruta não podia dizer
onde estávamos para evitar que sua vida
corresse perigo e também a nossa. Seu
nome era Horacio Sap.
Três companheiros: Mauricio Westein,
Juan Carlos Martire e Gabriela Juarez
Celman, que caíram dias antes de nós,
continuam desaparecidos. Mediante Horacio Sap, recebíamos notícias de nossas
famílias. Certa vez, escutamos uma conversa entre militares de alta patente na qual
mencionavam que nos haviam dividido
em grupos de quatro, em distintos quartéis. Desta forma, pudemos avisar nossas
famílias que não sabíamos onde, porém,
que todos estávamos vivos.
Na realidade, durante o cativeiro, por
mais de 40 dias, não dormimos. Era
impossível dormir. Esquecer o que sucedia. Ter sonhos. O capuz te isola por
completo, do mundo exterior. Por sua
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vez, há um outro detalhe sinistro, na raia
com a maldade de outros seres humanos:
os gritos, os uivos, os lamentos, os pedidos de piedade que gritam os torturados.
Os insultos, as puteadas, “subversivo de
merda ...”, “bolche (bolchevique) hijo
de puta”, o Heil Hitler, la patota (grupo
de pessoas violentas, multidão) que vem
pisando-nos, las palizas com puños (ser
agredido com socos), patadas, ferros,
contra nós, agrilhoados os tornozelos,
algemados e indefesos.
Outra forma de resistir que tivemos, os
companheiros: quando levaram o Leonardo à tortura (casa 2), o acostaron en
“la parrilla” (o deitaram em uma cama
para ser torturado com eletricidade) e o
empezaron a dar picana (instrumento de
tortura, fabricado na Argentina, para produzir descargas elétrica) para que “cante”
a la hermana (para que confesse, delate).
Em determinado momento, fizeram entrar
Mauricio Westein e Juan Carlos Martire
(estes companheiros continuam desaparecidos) e disseram que torturassem
Leonardo. Como se negaram, os ataram
no mesmo instrumento de tortura em que
estava Leonardo e torturaram os três.
Havia três ou mais guardas que duravam
vinte e quatro horas. Uma das guardas era
comandada por “Fierrito” e sua turma.
Este “Fierrito” gostava de escutar rock
nacional (por exemplo, “Plegaria para un
niño dormido” de Spinetta). Nós pensávamos como um filho da puta como este
pode escutar este tema. Também dizia que
gostava dos filmes de Ingmar Bergman. De
vez em quando, costumava falar para nós
de sua família, de seus filhos.
Outra guarda estava a cargo de “Pancho”. Às vezes nos dava pão. Um dia nos
conseguiu um cobertor felpudo, pelo frio
que fazia, por conseqüência do inverno.
Certo dia em que estávamos ao seu encargo, não nos trouxe pão. Então, começamos
a pedir. Pancho respondeu dizendo que
haviam seqüestrado o padeiro.
Certa vez, vieram os colaboradores (militantes de organizações políticas que, em
seu momento, haviam sido seqüestrados e
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Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 17-32, fevereiro/2010
que, durante a etapa do cativeiro, passaram para o bando dos militares). Dentre
eles, havia um que se chamava “Lucho”.
Este era médico. Nas operações de seqüestro ia com uma seringa que aplicava
naqueles que tinham tomado comprimido
de cianureto, para que o vomitasse. Os
colaboradores habitavam o mesmo chupadero (Centro Clandestino de Detenção
que ‘chupa”, abduz as pessoas), em uma
dependência que chamavam de “Q” de
Quebrados. O grupo que vimos no El
Vesubio estava integrado por Lucho e por
três mulheres. Uma delas, “La Negra”,
também torturava com a picana.
Os colaboradores, em certa oportunidade,
chegaram à casa 3. Logo após fazer-nos
tirar o capuz, para que pudéssemos olhálos, nos fizeram um tipo de averiguação.
Queriam saber a classe social a que
pertencíamos, a religião, a organização
em que militávamos. Formuladas as perguntas, não as respondíamos, dado que
não era mais do que um interrogatório,
porém, sem picana. Ao poder olhá-los,
constatamos que eles estavam bem vestidos e limpos. Além do mais, pediam que
colaborássemos, enquanto falavam maldições sobre as conduções das organizações
armadas. Diziam-nos que, em realidade,
éramos idiotas úteis.
Assim que se passaram uns vinte dias de
cativeiro, começamos a notar versões
da parte de “Hueso” acerca de que nos
considerava “perejiles”. Outra versão
era a de que iríamos para uma “granja
de reeducação”. Isto me dava um medo
horrível porque, segundo eles, nos iriam
lavar o cérebro para converter-nos em
outras pessoas. O fato de transformarmosnos em pessoas domesticadas por eles me
despertava temor por alguma forma de
escravidão mental, moral, física. Com o
tempo, a novela “1984”, de Orwell, me
recordou ditas sensações.
Outro grupo da guarda eram os nazis.
Quando vinham, o faziam ovacionando
Hitler, cantando uma canção que diz: “Aí
vem Adolfo pela rua, matando judeus para
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DETENÇÃO DA DITADuRA MILITAR ARGENTINA (1976-1983)
fazer sabão”5. Estes verdugos punham
gravações onde se escutava a voz de
Hitler e quando vinham buscar-nos nos
golpeavam com toda a fúria, produzindo
a ruptura dos ossos de alguns dos detidos.
O problema de estar encapuzado é de
não saber de onde procedem os golpes
e, portanto, permanecer em um estado
de total indefesa. Estes tipos se entusiasmavam obrigando-nos a fazer ginástica
militar (corpo ao solo, saltos de rã, etc.),
mantendo-nos algemados na parede, durante horas. Gritavam contra nós, no meio
dos ruídos das cadeias e ameaçavam-nos
com a picana se não cumpríssemos com
a consigna. Efetivamente, se alguém não
resistisse, com este tratamento, era levado
à casa 2, onde se encontrava o quirófano.
Ali se torturava pelo simples prazer de
torturar. Com um total sadismo. Enquanto tudo isto se passava, escutávamos na
televisão o Mundial de 78. Cada vez que
um rival fazia um gol na Argentina era
muito triste para nós, porque os verdugos
descontavam moendo-nos a pau.
O banheiro da casa 3 não tinha porta,
só uma cortina. Recordo que havia uma
ducha que, em realidade, era um cano do
qual saía a água gelada, e uma latrina
para fazer nossas necessidades. Recordome que não havia papel higiênico, senão
uma pilha de livros de Marx, de Lênin, da
correspondência Perón-Cooke e de revistas como “El descamisado”, etc.
Devido à pouca alimentação, havíamos
baixado de peso de forma considerável.
Além do mais, o mesmo estado de debilidade fazia com que padecêssemos
de alucinações e entrássemos em algum
momento em transe. Recordo que rezava
e que me recordava dos quarenta dias de
jejum de Cristo. Os rapazes judeus rezavam para Jeová. A debilidade permitia
que nos torturassem com mais facilidade
e, inclusive, que oferecêssemos menos
resistência. Perdemos tanto peso ao longo
desses dias que, quando nos transladaram
ao quartel de Villa Martelli e me pude ver
em um espelho, não me reconheci. Parecia
outro, um cadáver vivente. Recordava-me
dos prisioneiros de Auschwitz. “Sempre
assustam os espectros” (frase de Jorge
Semprún).
Faz pouco tempo, voltei ao lugar onde estava o El Vesubio. Quando alguém chega,
o primeiro que vê são as ruínas. O mesmo
foi demolido, nos finais de 1978, pela
ação da Comissão da OEA pelos Direitos
Humanos. As ruínas do El Vesubio estão
cercadas por arames farpados. O único
problema é que não se pode ingressar
adentro. Ali vive uma pessoa que impede
o acesso ao lugar, ameaçando os organismos de direitos humanos e soltando uns
cachorros de sua propriedade. Em uma
oportunidade, pude entrar e reconheci
uns ladrilhos vermelhos que pertenciam
ao banheiro. Fecho os olhos e penso:
restos do campo e do horror. Quando nos
faz todos esperar, acorrentados, frente ao
quirófano, escuto os gritos e os gemidos
dos torturados, a música de chamamé, as
vozes dos torturadores. Penso como será a
tortura e se a vou agüentar. Quanto tempo
passa. Impossível sabê-lo. O tremor de
meu corpo e dos demais companheiros. O
medo. Levam-me ao quirófano. Tiram-me
o capuz. Luzes fortes que não me deixam
ver. Uma voz potente. Reconheço que é
a de “Vasco”. Pede-me que colabore.
Agarram-me entre quatro pessoas. Tiramme a roupa. Molham-me com um trapo
com água e me atam com um cabo, no
dedão do pé. Com outro cabo começam
a dar máquina. O vazio. Não sei quanto
tempo dura, em realidade. Sinto que me
tiram a alma. Tiram-me o desejo. Arrebentado. Levam-me às “cuchas”, junto
com os demais companheiros. Certo dia,
um companheiro que tomava um medicamento devido a um problema psicológico,
padecia de delírios de perseguição, ao
ficar sem o remédio e pedia, aos gritos,
que o trouxesse. Nós pedíamos que ele
se calasse para evitar reprimenda. No
entanto, continuava gritando e solicitando o medicamento até que se escutava a
5 “Ahí viene Adolfo por el callejón, matando judíos para hacer jabón”.
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outra coisa que uma reescritura, isto é,
na forma mantida da exterioridade, uma
transformação pautada do que tem sido
e do que tem escrito. Não é a volta ao
segredo mesmo da origem. É a descrição
sistemática de um discurso objeto.
voz de um repressor que diz: “De que te
queixas? De teu delírio de perseguição?
Mas já te agarramos...”.
Cláudio Niro, sobrevivente do CCD “El
Vesubio”
O relato revela claramente alguns dos
dispositivos desenhados desde o sistema nos
Centros Clandestinos de Detenção (CCD’s),
utilizados pela ditadura militar Argentina, entre
1973 e 1983, para destruir a identidade, como
pessoas, dos detidos. Privação de visão, limitação
da mobilidade, aplicação de tormentos, falta de
alimentos, condições climáticas extremas (frio
ou calor), proibição de comunicação com outras
pessoas, substituição do nome por um número,
entre outras, são dispositivos que têm, principalmente, como foco de ação direta o corpo e a
mente do detido. Estamos ante um novo modelo
punitivo que utiliza elementos de sistemas repressivos anteriores. Por exemplo, a utilização de
torturas físicas e a destruição do corpo são típicas
da Idade Média. Enquanto que, a organização do
tempo em rotinas que se repetem cotidianamente
é característico das instituições disciplinares dos
séculos xVIII e xIx.
Este artigo se propõe discutir, a partir de
um nível teórico e de um outro corporal – isto
é, a partir de experiências reais, sofridas por
um dos autores – a arquitetura e a organização
espacial dos Centros Clandestinos de Detenção,
na Argentina, e seus efeitos sobre os corpos e
mentes dos detidos.
A arquitetura e a organização do espaço nos
CCD’s estão pensadas como ferramentas para
garantir o funcionamento do poder. São estas
estratégias que nos interessa discutir neste artigo, desenvolvendo uma visão arqueológica do
problema. Para isso, partimos de uma dupla idéia
de “Arqueologia”. Por um lado, como o estudo
das pessoas desde a cultura material e, ao mesmo
tempo, seguindo Foucault (1970:235), como:
A arqueologia não trata de restituir o que
pôde ser pensado, querido, encarado,
experimentado, desejado pelos homens
no instante mesmo em que proferiram o
discurso (...). Não é nada mais e nenhuma
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Desta maneira, se pensamos que a arqueologia é, em realidade, uma construção cultural
do passado, esta pode transformar-se em uma
ferramenta de luta política, destinada a enfrentar
as “master narratives” (Johnson 1966) e/ou a
“história oficial”. O investigador pode, assim, de
maneira explícita, assumir uma posição ativa no
processo de interpretação de um passado que já
não é o verdadeiro, senão apenas uma interpretação (Shanks e Tilley 1987; Funari 1988, 1999).
Desde estas perspectivas, a cultura material
está simbolicamente constituída (Hodder 1982).
É produto e produtora de pessoas e de subjetividades (Andrade Lima 1999). Os objetos são
considerados elementos ativos e dinâmicos e só
podem ser interpretados dentro dos contextos
históricos e sociais dos quais formam parte. Precisamente, no caso dos CCD’s, para se conseguir
uma leitura de sua materialidade, necessitamos
contextualizá-los. Desta maneira, dividimos
o artigo em duas partes. Uma primeira, onde
apresentamos uma síntese da história das instituições punitivas na sociedade ocidental e um
panorama geral do funcionamento da repressão
durante a ditadura Argentina. Na segunda parte,
trabalhamos sobre um caso de análise específico,
o CCD Club Atlético, a partir do qual discutimos
a arquitetura e a organização espacial dos CCD’s.
instituições punitivas
Em “Vigiar e Punir” (1976), Foucault analisa o surgimento das instituições disciplinares
entre os séculos xVI e xIx, estabelecendo uma
relação direta entre as formas de repressão e o
objeto punido. Este passa a estar centrado no
corpo no século xVI, indo à alma e a mente, no
século xIx. Nas palavras do autor, “a prisão
resitua o patíbulo”. Esta mudança se reflete
na aparição de toda uma série de dispositivos
disciplinares dirigidos a gerar indivíduos dóceis,
na mente e no-- corpo, através de instituições
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 17-32, fevereiro/2010
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DETENÇÃO DA DITADuRA MILITAR ARGENTINA (1976-1983)
de “ortopedia social”, tais como os colégios,
as fábricas, os hospitais, os manicômios, os
albergues para órfãos, as prisões, entre outras
(Bentham 1786; Goffman 1974; Gaudemar 1981;
Donzelot 1981). Paralelamente, a cidade também
começa a ser organizada em função de uma série
de parâmetros disciplinares – especialmente o
vigiar, o controlar e o dominar – gerados desde o
poder (King 1980; Markus 1993a, 1993b; Parker,
Pearson e Richards 1996).
No caso da prisão, sua função é privar da
liberdade como forma de castigo. Através da
clausura se busca, não só punir a pessoa, senão
que, este tempo possa ser utilizado para que o
detido seja reformado. Precisamente, esta situação é a de que se encarrega esta instituição,
a mais civilizada e humana de todas as penas.
Como assinala Foucault, a prisão ao corrigir,
ao modificar, ao tornar dócil e disciplinado o
indivíduo, não faz mais do que reproduzir, de
maneira acentuada, todos os mecanismos que se
encontram no corpo social. A arquitetura destes
lugares cria limites artificiais onde os corpos são
confinados e controlados (Grahame 195, 2000;
Zarankin 1999, 2000, 2002).
A partir de então e, ao longo do tempo,
estas instituições têm se ampliado e se especializado. Escolas, segundo o tipo de educação e de
classe de pessoas (crianças, adultos, atrasados,
cegos, de classe baixa, de classe alta, etc.). Hospitais, para queimados, para crianças, para olhos,
para problemas cardíacos, para o câncer, entre
outros. No caso das prisões, durante os séculos
xIx e xx, são criados institutos de detenção de
menores, prisões de diversas seguranças (baixa,
média e alta), campos de concentração, prisões
psiquiátricas, cárceres em comissariados, entre
outras.
A Argentina fez uma macabra contribuição
a esta extensa lista: os Centros Clandestinos de
Detenção (CCD), desenvolvidos durante o processo militar, entre os anos 1976 e 1983. Trata-se
de um dispositivo repressivo que, se bem pôde
contar com alguns antecedentes na história, só foi
gerado de maneira massiva e sistemática durante
a década de 1970. Este combina e maximiza as
piores categorias de todas as instituições punitivas criadas até então. Sua função já não é deter
e corrigir, senão destruir e eliminar.
o golpe militar
Em 24 de março de 1976, um golpe militar
derrubou a presidenta Isabel Martínez de Perón
(viúva do General J. D. Perón), sob a desculpa
da incapacidade do Governo para controlar as
ações dos chamados grupos “subversivos”, que
intentavam impor, no país, uma ordem social
oposta aos “costumes argentinos”. Assumiu o
poder uma junta integrada pelo Tenente General
Jorge Rafael Videla, pelo Almirante Emilio Masera e pelo Brigadeiro General Orlando Agosti.
Iniciou-se, assim, o autodenominado “Processo
de Reorganização Nacional”, um dos períodos
mais obscuros e sinistros da história argentina.
Políticas econômicas ultraliberais (Forrester 1995, 2000) foram instauradas sob a supervisão do ministro da economia José Martínez de
Hoz, multiplicando exponencialmente a dívida
pública e privada (esta última, posteriormente,
estatizada). Para conseguir o êxito do novo
plano econômico e a destruição de toda a resistência popular, o governo militar desenvolveu
um projeto de aniquilamento físico de todas as
instituições e/ou pessoas que se opunham a tal
plano. Isto se realizou a partir de uma estrutura
clandestina paralela, que incluía Centros Clandestinos de Detenção, pessoal Militar e Policial
atuando como civil (sem identificação), seqüestros e assassinatos, entre outros.
A repressão, baseada em um plano perfeitamente estruturado, tinha, além do mais, como
objetivo, submeter a população através do terror,
impondo assim uma “ordem” sem oposição.
Este plano criminoso incluía a “desaparição”
de pessoas, mediante o mecanismo dos Centros
Clandestinos de Detenção, nos quais se torturava
e se mantinham cativas as pessoas consideradas
“dissidentes”, antes de assassiná-las.
A “desaparição” de pessoas
A “desaparição” foi a fórmula adotada
pelos militares para eliminar opositores. Este
procedimento, que incluía um léxico específico,
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ZARANKIN, A. - NIRO, C.
consistia, em primeiro lugar, em marcar uma
pessoa ou “objetivo”, que logo era seqüestrada
– “chupada” – por um comando paramilitar –
“grupo de tarefas” ou “patota”. Era transladada
a um CCD ou “pozo”, onde, encapuzada – “tabicada” – era despojada de todos os seus pertences. Inclusive, o nome era suprimido e, em seu
lugar, se lhe atribuía uma letra e um número que
seriam a forma de identificá-la daí em diante.
O detido, sem nenhuma garantia legal, ficava,
assim, a mercê dos repressores. A “desaparição”
das pessoas se completava com métodos que
incluíam arrojá-las, ainda com vida, no Rio da
Prata (com prévia aplicação de sedativos), desde
aviões ou helicópteros militares ou mediante
fuzilamentos e enterramentos em fossas comuns,
sem nenhum tipo de identificação (Belleli e Tobon 1985; EAAF 1992; Doretti e Fondebrider
2001). Como assinala a Anistia Internacional, em
seu informe sobre a desaparição de pessoas por
motivos políticos: “Devido a sua natureza, uma
desaparição encobre a identidade de seu autor.
Se não há preso, nem cadáver, nem vítima, então,
ninguém, presumivelmente, é acusado de nada”.
Milhares de pessoas, de todas as idades
e ocupações foram seqüestradas e continuam
desaparecidas. uma comissão, constituída em
1983 – Conadep – constatou mais de 9.000 casos, enquanto que, por sua parte, os organismos
de direitos humanos falam em mais de 30.000.
É necessário esclarecer, sem dúvida, que
a desaparição de pessoas não foi um método
exclusivo da ditadura pós-1976, porém, sim, sua
instauração como modelo massificado de destruição da dissidência. Já desde os princípios da
década de 1970, os grupos paramilitares conhecidos como Tríplice A, liderados pelo assistente
pessoal do general Perón e, depois, ministro do
Bem-estar Social, José López Rega, a utilizava
como ferramenta repressiva.
os Centros Clandestinos de
Detenção como “não-lugares”
Talvez pelo horror que produz recordar sua
existência ou pela necessidade de alguns de negar
essa parte de nossa história recente, são poucos
os estudos que discutem os centros clandestinos
de detenção (Conadep 1984; Calveiro 2001; Barros 2001; Di Ciano et al 2001; Benítez et al 2002;
Daleo 2002; Calvo 2002; Bozzuto, Diana, Di
Vruno, Dolce e Vazquez 2004)6. Pilar Calveiro,
em sua tese de doutorado (2001) analisa, desde
sua condição de ex-detida desaparecida e também de cientista social, o fenômeno destes campos de concentração argentinos e os caracteriza
como os “quirófanos”, onde se levaram a cabo
as “cirurgias maiores”, consideradas necessárias,
pelos militares, para a “salvação” da sociedade.
Seguindo suas colocações, foi o ponto de partida
para construir “uma nova sociedade, ordenada,
controlada e aterrada” (2001:11).
“O campo de concentração aparece como
uma máquina que cobra vida própria. A
impressão é que, já ninguém pode detêla. A sensação de impotência frente ao
poder secreto, oculto, que se percebe como
onipotente, joga um papel chave em sua
aceitação e em uma atitude de submissão
generalizada” (2001:12).
Calveiro destaca que os primeiros campos
de concentração, na Argentina, começam a funcionar, todavia, durante o governo democrático
de Maria Isabel Martínez de Perón, no momento
de firmar-se a “Ordem de Aniquilamento” da
subversão de 1975. Sem dúvida, só depois do
golpe militar de 24 de março de 1976 é que a
desaparição de pessoas e os campos de concentração se convertem nas modalidades repressivas
por excelência. Durante a ditadura, funcionaram
no país mais de 340 CCD’s. Sua magnitude foi
variada e se estima que passaram por eles entre
1.500 a 20.000 pessoas, das quais 90% foram
assassinadas (Calveiro 2001:29).
Um ponto interessante tem a ver com as
fontes de inspiração dos CCD’s. Por acaso,
seguem algum modelo? Calveiro não crê que
os militares argentinos tenham se inspirado nos
campos de concentração nazistas ou estalinistas.
Simplesmente, reproduzem práticas de poderes
totalizantes que incluem campos de concentração
(2001:40). Cremos que uma fonte que deve ser
6 É interessante mencionar o fato de que, praticamente, a totalidade das publicações sobre os CCD’s foram geradas pelos próprios sobreviventes
destes campos.
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A MATERIALIZAÇÃO DO SADISMO: ARquEOLOGIA DA ARquITETuRA DOS CENTROS CLANDESTINOS DE
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explorada são os modelos empregados pelos militares franceses, na luta armada na Argélia, que
incluía centros de detenção clandestinos, onde
as pessoas eram torturadas e assassinadas. Não
devemos esquecer que um importante número
de altos oficiais argentinos recebeu treinamento
militar de luta contra a subversão neste país
europeu.
No CCD primam algumas das concepções iniciais de prisão do século xIx, isto é, o
princípio do isolamento total do detido (tanto
do mundo exterior como dos demais detidos).
Como indica Foucault, “a solidão é a condição
primeira da submissão total ... o isolamento assegura o colóquio a sós entre o detido e o poder
que se exerce sobre ele” (1976:240)”. Em algum
sentido, se assemelha a um campo de concentração, já que ali são reunidos, isolados e retidos
os “inimigos”. Sem dúvida, a diferença é que,
enquanto que um campo de concentração é “um
lugar” que se rege por convenções (ao menos
deve fazê-lo segundo uma série de convenções
internacionais que garantem algum respeito aos
prisioneiros), o CCD não possui nenhuma – ao
menos oficialmente – porque simplesmente não
existe – institucionalmente. Sua condição de
clandestino o outorga a vantagem da invisibilidade e da impunidade. O converte em um “nãolugar” para aqueles que se encontram dentro de
seu espaço. Este “não-lugar” transforma seus
ocupantes em “desaparecidos”, precisamente por
que não estão em nenhum “lugar”, ou, ao menos,
não se conhece sua localização.
Parte de sua invisibilidade se deve ao fato
de que funciona dentro de outros edifícios. Em
geral, não são construídos CCD’s. Se adapta
parte ou totalidade de um edifício já existente
para funcionar como tal (Conadep 1984:58).
Precisamente, uma das coisas que mais estremeceu a sociedade argentina, assim que retornou
a democracia, foi saber que, no edifício “vizinho”, ou “nesse que alguém passava todos os
dias quando ia trabalhar”, havia funcionado um
CCD. Ali haviam sido torturadas e assassinadas
milhares de pessoas e grande parte das pessoas
não se havia dado conta do que ocorria por detrás
dessas paredes.
o funcionamento dos CCD
A organização e o manejo dos prisioneiros
dentro de um CCD evidenciaram uma planificação sistemática. Torna inegável que se tratou de
um plano criminoso, ideado para eliminar pessoas (Conadep 1984). Assim, existia uma seqüência
de passos, relatada por Niro, na introdução, que
começava com a chegada dos detidos. Eram desnudados e se lhes atribuía uma letra e um número
que, a partir desse momento, se convertia em sua
única identificação. Posteriormente, o “ablande”,
que consistia em sessões de tortura sistemática,
onde se encarregava de aprofundar este processo
de destruição da identidade.
Por que esta ênfase em despojar os detidos
de seus nomes e, portanto, de suas identidades?
Se não há nomes – uma das características básicas de qualquer ser humano – não existem pessoas. Simplesmente, corpos anônimos que estão
sujeitos aos dispositivos punitivos e burocráticos
dessa estrutura repressiva. Sem identidade, o
sujeito perde os laços com sua própria história,
com seu passado. Transforma-se em um ser quebrado. Esta situação favorece a possibilidade de
delatar companheiros ou de obedecer às ordens
impostas.
Por sua parte, os repressores, se bem que
tampouco utilizavam seus verdadeiros nomes
dentro dos CCD’s, diferentemente dos detidos,
tinham apelidos – Hueso, Angel, Gordo, Turco,
Doctor K, Padre, Calculin, Raul, Karateca, entre
outros. Essa transformação não só assegurava
preservar sua verdadeira identidade diante dos
detidos e, inclusive, em certos casos, de seus
próprios colegas, senão transformá-los em pessoas diferentes. Ter múltiplas personalidades
tais como bom pai e torturador sádico.7 De igual
maneira, os CCD’s recebem nomes simbólicos,
que permitem a existência destes “não-lugares”.
El Olimpo, Club Atlético, Vesubio, Garage Azopardo, Talleres Orletti, entre outros.8
7
um bom exemplo disto é a obra de Eduardo Pavlovsky “O Senhor Galindez”.
8 Estes centros têm nomes, não são números como hoje os comissariados. Existem? Também são demolidos. Também desaparecem? Maria ximena
Senatore (comunicação pessoal, 2005).
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ZARANKIN, A. - NIRO, C.
Os detidos podiam passar dias, meses, ou,
inclusive, anos em um CCD. Até que se decidia
se os “transladavam” – gíria que significava
assassiná-los – ou se os branqueavam e passavam
a ser presos comuns do serviço penitenciário.
Durante a maior parte desse tempo, como foi
anteriormente mencionado, permaneciam “entupidos”, isto é, encapuzados ou vendados, o que
era outra forma de tortura.
“A tortura psicológica do capuz é tão mais
terrível do que a física, ainda que sejam
duas coisas que não se pode comparar,
já que uma procura chegar aos umbrais
da dor. O capuz procura o desespero, a
angústia, a loucura. Encapuzado, tomo
plena consciência de que o contato com o
mundo exterior não existe. Nada te protege. A solidão é total. Essa sensação de
desproteção, isolamento e medo é muito
difícil de descrever. Só o fato de não poder
ver, vai socavando a moral, diminuindo a
resistência” (Lisandro Cubas, Conadep
(1984:59).
Benítez, Enríquez e Di Ciano (2001:11)
definem de maneira clara os resultados buscados
por esta maquinaria do horror: “A vida dentro do
campo e as sessões de tortura estavam planejadas para chegar à destruição e denegrição do
cativo”. Ao mesmo tempo, existiam mecanismos implementados para evitar o suicídio dos
prisioneiros, assim como as tentativas de fuga.
Tais mecanismos eram diálogos dos repressores
com os detidos, sobre suas famílias ou perguntas
sobre planos quando deixassem o CCD.
“O responsável pelo Club Atlético era
o Comissário Antonio Benito Firovanti,
aliás, “Tordillo”, “Coronel” ou “De Luca”,
que dedicava longas horas a falar com
os seqüestrados. Os interrogava sobre
suas famílias e, em torno dos planos que
tinham se saíssem em liberdade. Esta política tinha um fim específico: criar falsas
expectativas para reduzir as tentativas
de suicídio e desalentar toda a idéia de
fuga. Aqui se esboçou uma política que,
em meados de 1978, se aperfeiçoou e se
desenvolveu em outros campos” (Benítez,
Enríquez e Di Ciano, 2001:11).
26
No CCD, apesar de sua clandestinidade,
existia uma organização perfeitamente articulada
que permitia o funcionamento desta máquina de
desaparecimento, composta por diversos grupos:
Patotas
Grupos de tarefas, encarregados dos procedimentos orientados para seqüestrar pessoas.
Grupos de inteligência
Grupo que manejava a informação, selecionando as vítimas e orientando as torturas.
As guardas
Formavam o aparato de vigilância e de
manutenção do CCD.
Os desaparecedores de cadáveres
Era o grupo que se encarregava do assassinato e da deposição final dos corpos.
Para Calveiro, esta divisão de tarefas tinha
como objetivo que ninguém se sentisse como
único responsável. O dispositivo consistia, ao
mesmo tempo, em despojar os detidos de sua
condição de pessoas e gerar uma cadeia ou
engrenagem que garantisse o funcionamento automático dessa maquinaria de destruição. Como
uma cadeia de montagem fabril, “tudo adotava
a aparência de um procedimento burocrático”
(2001:39).
o Club Atlético
O caso do Club Atlético – CA – se apresenta como relevante para se discutir estas questões
por sua história particular (Benítez, Enríquez e
Di Ciano 2001). Sabemos que foi produto da
dissolução e translado de outro CCD “Garage
Azopardo”, que funcionou entre 1976 e 1977, a
poucas quadras de distância, no mesmo bairro.
Posteriormente, no momento de desativação do
CA, em finais de 1977, sua infra-estrutura e os
detidos que ali se encontravam foram relocados
em um CCD chamado de “El Banco”, que foi
criado para, especificamente, tal finalidade. Finalmente, foi instituído um novo CCD, um dos
mais conhecidos, cujo triste e célebre nome foi
“El Olimpo” (1978-1979).
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 17-32, fevereiro/2010
A MATERIALIZAÇÃO DO SADISMO: ARquEOLOGIA DA ARquITETuRA DOS CENTROS CLANDESTINOS DE
DETENÇÃO DA DITADuRA MILITAR ARGENTINA (1976-1983)
Nome do CCD
Data de funcionamento
Garage Azopardo
Agosto de 1976 – Fevereiro de 1977
Club Atlético
Fevereiro de 1977 – Dezembro de 1977
El Banco
Dezembro de 1977– Agosto de 1978
üüüü
Agosto de 1978 – Janeiro de 1979
O Club Atlético, cujo nome, em realidade,
era “Centro Anti-subversivo” (Club Atlético foi
uma derivação das iniciais CA), funcionava no
sótão de um depósito de abastecimento da Polícia
Federal, na cidade de Buenos Aires, entre as ruas
Paseo Colón, Cochabamba, San Juan e Juan de
Garay. Sabe-se que, por ele, passaram ao redor
de 1500 pessoas, a maioria das quais permanece
desaparecida. Tinha a capacidade para manter,
ao mesmo tempo, 200 detidos. O edifício foi demolido em 1977, já que se encontrava no traçado
da auto-estrada 25 de Mayo.
o projeto arqueológico
No ano de 2003 é tornado público, pelo
Governo da Cidade de Buenos Aires, um concurso de projetos para escavar os restos deste
lugar.9 Nossa proposta foi selecionada (Bianchi
Villeli e Zarankin 2003a). O projeto se chamou
“Arqueologia como memória: intervenções arqueológicas no Centro Clandestino de Detenção
e de Tortura ‘Club Atlético’”.
Os objetivos do projeto podem ser resumidos em dois pontos principais. Por um lado,
buscamos entender a lógica do funcionamento
e da organização espacial da arquitetura deste
dispositivo desaparecedor de pessoas. Por outro, o segundo objetivo foi de contribuir com
a construção de uma memória material. Isto é,
transformá-la em algo físico, para assim poder
ser percebida, de diferentes maneiras, a palavra
(oral ou escrita). uma memória que pode ser
tocada, ouvida, experimentada. Como exemplo,
podemos mencionar como uma simples bolinha
de ping-pong10, recuperada durante as escava-
ções, pode se transformar em um símbolo do
sofrimento daqueles que foram torturados neste
lugar. Como assinala Delia Barrera (2002:4),
sobrevivente do Club Atlético:
O que pensariam os que jogavam pingpong, em frente à leonera11 enquanto que
nós éramos torturados, desta bolinha que
acabamos de encontrar debaixo do elevador de cargas?
Devemos considerar que a história da
repressão ilegal durante a ditadura militar tem
sido ocultada ou contada através de uma “versão
oficial”. A escavação do Club Atlético, então, é
uma forma de recuperar a memória e, através
dela, contrapor-se à história que nos foi transmitida. Tratou-se de um projeto que contemplou
a participação de sobreviventes e de familiares
dos detidos no próprio centro de detenção Club
Atlético. Foi uma forma de reapropriação de
sua própria história, que, de alguma maneira, é
a de todos.
A organização do espaço no Club
Atlético
Não foram localizadas plantas que possam
dar conta de como era realmente a organização
espacial deste CCD. Tampouco puderam ser confeccionadas a partir dos restos deste lugar. Mais
de 80% de sua superfície encontra-se, todavia,
sem ser escavada (e grande parte dificilmente
poderá ser estudada, já que implica demolir a
auto-estrada que passa por cima). Por tal motivo,
trabalhamos tomando como base os relatos e
uma planta gerada pelos próprios sobreviventes - em função de suas recordações12 (Benítez,
Enríquez e Di Ciano 2001:10). Posteriormente,
foi contrastada com os espaços do centro que
foram escavados, mostrando que existe uma
concordância importante entre ambos.
Exemplos de relatos
9 Com anterioridade, aconteceram trabalhos de escavação coordenados pelo Lic. Marcelo Weissel (Weissel 2002; Barrera 2002).
10 Trata-se de uma bolinha de ping-pong com a qual os torturadores se entretinham enquanto os presos eram torturados.
11 Cela comum onde, em geral, eram colocadas as mulheres grávidas.
12 Este mesmo procedimento de reconstrução de CCD’s foi empregado em outros centos, como assinala o informe da Conadep (1984:60): “Foi de-
terminante a memória corporal dos detidos. quantas escadas deviam subir-se ou descer-se para ir à sala de tortura. quantos passos devia-se contar
para ir ao banheiro, quantos estalos, que giro ou qual velocidade produzia o veículo no qual eram transportados ao entrar ou sair do CCD, etc”.
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 17-32, fevereiro/2010
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ZARANKIN, A. - NIRO, C.
Delia Barrera (em Benítez et al. 2001:10)
Descrição: “A dependência contava
com dois níveis. Ao primeiro, se acedia
por uma porta de vidro. Ali havia uma
repartição, na qual, se podia observar 2
escritórios, máquinas de escrever e um
telefone ...
os repressores usavam. Ao fundo, uma
salinha da guarda. Duas celas para incomunicáveis. uma sala de torturas e outras
para enfermaria. Cozinha, lavadouro e
duchas. Estas com uma abertura que dava
a superfície externa por onde os guardas
observavam o ânus das mulheres. Outro
setor para depositar o botim de guerra.
O subsolo carecia de ventilação e de luz
natural. Era muito úmido e calorento.
Ingressava-se por uma estreita escada que
levava a uma sala munida de uma mesa de
ping-pong que os repressores usavam para
jogar. Ao fundo, uma sala da guarda, duas
celas para incomunicáveis, uma peça de
torturas e “la leonera”, um aposento com
piso de cimento, dividido em boxes, com
uma parede de um metro de altura.
Cela chamada “la leonera”, com tabiques
baixos, que separavam os boxes de 1,60m
x 0,60m. Em um setor, 18 celas, em outro
23. Todas de 2m x 1,60m e uma altura
entre 3m e 3,50m. Três salas de torturas,
cada uma com uma pesada mesa metálica.
Colchões pequenos de espuma, manchados de sangue e de transpiração”.
Completava a estrutura, 41 celas pequenas, numeradas, com catres de cimento,
munidos de um colchão fino de espuma e
de um cobertor. As portas tinham uma pequena abertura. No piso, havia um frasco
com lavandina (água sanitária), no qual
deviam urinar os seqüestrados.
Os automóveis entravam pelo Paseo Colón. Os vizinhos de então puderam observar que, detrás do portão de acesso, havia
uma cortina escura que fechava depois que
passavam os veículos. Assim que saiam
dos carros, os prisioneiros eram empurrados para uma escada até o subsolo ...”
Conadep (1984: 90)
Descrição:”Primeiro nível: salão azulejado, portas de vidro, um escritório grande
e outro pequeno. Neles se identificava e
se atribuía um número para cada detento.
Acesso dissimulado para o subsolo.
Subsolo: sem ventilação e nem luz natural.
Temperatura entre 40 a 45 graus no verão.
Muito frio no inverno. Grande umidade.
As paredes e o piso vertiam água continuamente. A escada levava a uma sala
munida de uma mesa de ping-pong que
Analise da planta do Club Atlético13
Para aprofundar nossa leitura da arquitetura
e da organização do espaço do Club Atlético,
utilizamos como ponto de partida a planta produzida pelos próprios detidos. É analisada a
partir de uma série de modelos gerados desde a
arquitetura e das ciências sociais14. Entre estes,
o modelo Gamma de Hillier e Hanson (1984) e
os índices de Blanton (1994).
O modelo Gamma dos arquitetos ingleses
Hillier e Hanson permite decompor o edifício em
uma série de gráficos para entender a organização
de seu espaço. Como resultado deste, obtivemos
um gráfico de sua estrutura, composta por nodos
(que representam espaços) e por conexões (que
são as portas que conectam um nodo (ou espaço)
com outro).
Por sua parte, o arqueólogo Richard Blanton (1994), tomando por base o modelo Gamma,
construiu uma série de índices que possibilitam afinar e aprofundar a análise da estrutura
arquitetônica. Estes índices são denominados
de “escala” (mede o tamanho da estrutura), de
“integração” (estabelece o tipo de comunicação e de circulação dentro da estrutura) e de
13 As figuras contidas no artigo original (ver nota de rodapé n.1) foram retiradas por exigência das normas de publicação desta REID e a adaptação
do texto, sem as figuras foi feita por Danilo Cymrot e Inês Soares.
14 Estes modelos já foram aplicados com êxito em outras estruturas arquitetônicas (Zarankin 1999, 2002).
28
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 17-32, fevereiro/2010
A MATERIALIZAÇÃO DO SADISMO: ARquEOLOGIA DA ARquITETuRA DOS CENTROS CLANDESTINOS DE
DETENÇÃO DA DITADuRA MILITAR ARGENTINA (1976-1983)
“complexidade” (permite ver a distribuição e o
isolamento dos espaços).
Nota-se a existência de um alto grau de
compartimentalização do espaço (índice da
escala – 59 nodos ou espaços) demonstra que
o mesmo é dividido de tal maneira que permite
maximizar elementos de isolamento, tais como
celas, salas de interrogatório e de tortura. Esta estrutura revela, ao mesmo tempo, a necessidade do
centro de gerar um espaço celularizado e panóptico como eixo para seu funcionamento. Por sua
parte, o índice de integração – em conjunto com
os índices de complexidade 15 - evidenciam, de
maneira indiscutível, que estamos ante espaços
não distributivos e de alto grau de isolamento.
Este tipo de estrutura é típico de instituições disciplinares e autoritárias, onde existe um espaço
de circulação controlado e regulado.
A aplicação destes modelos permite observar, como sendo elemento organizativo do
espaço, um parâmetro de maximização e de operatividade dos procedimentos repressivos. Funciona como base desta estrutura uma circulação
restringida e controlada, além de um profundo
isolamento dos ambientes. Por outra parte, o
espaço do “CA” pode ser dividido em dois eixos.
Um setor superior (que ocupa aproximadamente
uns 20% da superfície total), que podemos denominar de centro burocrático do CCD. Existe
outro, posterior, que aloja os prisioneiros e onde
se localizam as salas de tortura. Esta organização
divide e classifica as pessoas dentro do mesmo,
delimitando espaços de circulação e de permanência dos detidos.
Cremos que a instalação de salas de tortura, em um espaço central, entre os calabouços,
permite, por um lado, minimizar o translado
dos detidos no espaço. Ao mesmo tempo, seus
gritos podem ser ouvidos por aqueles que, nesse
momento, estão nas celas.
Existe também um elemento simbólico associado à organização do espaço. Assim, à medida que se avança para o interior do CCD, o nível
de suplício vai aumentando. Imaginemos que o
prisioneiro não pode ver, porém, sim, experimen-
ta estes espaços através dos sentidos. Os cheiros
de corpos e dos fluidos humanos, a umidade e a
falta de ventilação no subsolo, o calor e o frio,
os gritos e choros dos outros detidos, a dureza
das paredes e do piso – onde eram colocados.
Trata-se de uma estrutura para ser percebida de
maneiras alternativas à visão, através de sentidos
como o tato, a audição e o olfato. Seu centro, seu
coração, é a sala de tortura. De alguma maneira,
representa a materialização do sadismo com que
foi projetado o CCD.
Os corpos dos detidos, ao estarem imobilizados, atados ou algemados nas paredes e nos
pisos, isolados e impedidos de comunicaramse com os demais, privados de seus nomes,
transformam-se em parte da própria arquitetura
dos CCD’s. Esta estrutura repressiva absorve a
essência das pessoas, transformando-as em meros objetos sobre os quais atuam os dispositivos
do poder. Pensemos que a existência “social”
de qualquer pessoa está diretamente relacionada
com a possibilidade de interatuar com outros, de
reconhecer e ser reconhecida. O CCD, através
destes elementos, busca destruir a identidade
dos prisioneiros. Esta negação do social gera
o que poderíamos denominar de um processo
de construção de “não-pessoas” – a pessoa vai
desaparecendo simbólica e fisicamente.
Conclusões
“Os monstros existem. Porém, são demasiado pouco numerosos para serem
verdadeiramente perigosos. Os que são
realmente perigosos são os homens comuns” (Primo Levy, La tregua, Barcelona,
1988).
Nosso interesse pela arquitetura e pela organização espacial dos CCD’s se entende ao pensar que brindam a possibilidade de materializar
uma ideologia. Precisamente, ao transformá-la
em algo material, a torna “real”, para, dessa maneira, transmitir seus valores e seus significados
por meio de discursos que podemos denominá-
15 Neste caso, 4.5 representa a média dos espaços necessários para aceder ao primeiro plano do edifício (que, por sua vez, tinha, provavelmente,
outros 4 ou mais espaços que o distanciavam da rua).
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 17-32, fevereiro/2010
29
ZARANKIN, A. - NIRO, C.
los de não-verbais (Fletcher 1989; Monks 1992).
Pensemos que, cotidianamente, nossos corpos
decodificam, inconscientemente, discursos
invisíveis, simplesmente, ao circularem dentro
de qualquer estrutura arquitetônica (Markus
1993a, 1993b; Grahame 1995, 2000; Zarankin
1999, 2002).
No caso dos CCD’s, a arquitetura e a
organização espacial representam um tipo de
linguagem alternativa para transmitir mensagens de outra forma, mais palpável do que a da
palavra falada. A Arqueologia como disciplina
especializada na cultura material brinda a possibilidade de discutir esses discursos, assim como
as ideologias representadas nas paredes (Leone
1977, 1984; Funari 1988; Andrade Lima 1999).
Os centros clandestinos de detenção são, ao
mesmo tempo, dispositivos de poder destinados a
destruir corpos e mentes. São metáforas materiais
que codificam discursos autoritários. Sua análise
revela o plano sistemático de aniquilação de toda
a dissidência gerada desde o governo militar.
O estudo da materialidade dos CCD’s se
transforma, assim, em um instrumento de construção de uma história negligenciada, de materialização de um dispositivo central desaparecedor
de pessoas. Como assinala George Bataille
(1992:117), “Architecture is the expression of
the very being of societies”. Assim, entendendo
os CCD’s como “monumentos” que representam
a ditadura militar, poderemos conhecer mais
sobre a perversidade e o sadismo das pessoas e
das ideologias que formaram parte deste sistema.
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CONSIDERAÇõES SOBRE INTERESSE SOCIAL E INTERESSE DIFUSO
Artigo
ConSiDErAçõES SoBrE
interesse social E interesse difuso
Antonio Augusto Mello de Camargo Ferraz1
1
rESumo: Na década de 80, antes da publicação da Constituição Federal de 1988, diversos
conceitos de interesse, interesse público, interesse social e interesse difuso eram empregados,
frequentemente, de maneira imprecisa. A Constituição de 1988 procurou ser mais criteriosa no
uso da expressão interesse público, até então
mais largamente utilizada, valendo-se muitas
vezes do termo interesse social – isso porque
o primeiro vinha sendo identificado com o interesse do Estado-Administração. quanto aos
conceitos de interesse social e interesse difuso,
ambos estavam sendo empregados com o mesmo
significado, o que mais se presta a confundir do
que a esclarecer. Partindo da premissa de que
interesse é uma relação entre sujeito e objeto,
pode-se concluir que interesse difuso é espécie
de interesse social, na medida em que possuem
identidade de sujeitos, mas diversidade de objetos. Os sujeitos dos interesses social e difuso
podem ser parcelas significativas da coletividade
(não, necessariamente, toda ela), preservada,
porém, a indeterminação das pessoas que as
integram (pois do contrário ingressaríamos na
órbita do interesse coletivo). quanto ao objeto,
o interesse difuso, em suma, seria aquela espécie
de interesse social que tem por objeto bens corpóreos, em contraposição aos demais interesses
sociais (stricto sensu), que podem ter por objeto,
além desses, bens imateriais, incorpóreos, que
parece lícito identificar com os princípios, normas e valores essenciais para a vida social. A
conseqüência mais visível, ainda assim de caráter
teórico, doutrinário, estaria na necessidade de
reconhecer que a tutela dos consumidores não
se inclui no âmbito dos interesses difusos, mas,
sim, no dos sociais.
Antonio Augusto Mello de Camargo Ferraz é Procurador de Justiça do Estado de São Paulo.
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 33-46, fevereiro/2010
33
FERRAZ, A. A. M. C.
Palavras-chave: Interesse: público, social e difuso. Bens corpóreos, materiais e valores sociais.
Constituição Federal. Interesse do consumidor.
ABStrACt: In the 80s, before the publication
of the Federal Constitution of 1988, several concepts of interest, public interest, social interest
and diffuse interest were employed, often inaccurately. The 1988 Constitution sought to be more
judicious in the use of the term public interest,
which was more widely used, often making use
of the term social interest - this occurred because the first concept had been identified with
the interests of the State-Adminstration. The
terms social and diffuse interest were both being
used with the same meaning, which confuses
more than clarifies. Assuming that interest is
a relationship between subject and object, one
can conclude that a diffuse interest is a kind of
social interest, as having the same subjects but
different objects. The subjects of social and
diffuse interests can be identified as significant
portions of the community (not necessarily all
of it), preserved, however, the indeterminacy of
the people who belong to it (otherwise it would
be the same as collective interest). Regarding the
object, the diffuse interest would be the kind of
social interest that encompasses only corporeal
goods, while the other social interests (stricto
sensu) comprise also immaterial, incorporeal
goods. We can identify the object of social interests with the principles, norms and values that
are essential to social life. The most tangible
consequence, yet of a theoretical, doctrinal nature, is the need to recognize that the protection
of consumers do not represent a diffuse interest
but a social interest.
Palavras-chave em inglês: Public, social and
diffuse interest. Corporeal goods, material
goods and social values. Federal Constitution.
Consumer interest.
1. introdução
Em artigo publicado na revista JUSTITIA,
no ano de 1987 – dois anos após a edição da
Lei da Ação Civil Pública e um antes da pro34
mulgação da nova Constituição da República –,
teci despretensiosas considerações sobre certas
imprecisões que me parecia haver nas definições
então esboçadas sobre o interesse difuso.
A comparação entre os conceitos de interesse público e de interesse difuso revelava que,
embora com palavras eventualmente diferentes,
neles se dizia a mesma coisa.
Aquele estudo chamava-se Interesse público, interesse difuso e defesa do consumidor2.
A Constituição Federal de 1988 procurou
ser mais criteriosa no uso da expressão interesse
público, até então mais largamente utilizada, valendo-se muitas vezes do termo interesse social
– isso porque o primeiro vinha sendo identificado
com o interesse do Estado-Administração3.
O que se disse naquele ensaio acerca do
interesse público, todavia, parece valer ainda
hoje para o interesse social.
qualquer instituto jurídico, para merecer
esse status, deve ter identidade própria, ou seja,
deve referir-se a fenômeno peculiar, distinto de
todos os demais.
Os conceitos de interesse social e de interesse difuso, dessa forma, somente poderão
coexistir caso possuam pelo menos um traço
característico, com base no qual seja possível
distingui-los com clareza.
Do contrário, um deles seria necessariamente supérfluo, e, ao menos sob o prisma
doutrinário, seria também deletério, porque a
subsistência de duas definições que pretendem
ser diferentes, mas que no fundo cuidam da
mesma coisa, mais se presta a confundir do que
a esclarecer.
É essencial estabelecer separação mais
nítida entre as noções de interesse social e de
interesse difuso – ambas com assento constitucional – como forma de conferir identidade
própria a ambas e de assegurar a utilidade dos
conceitos.
Essa análise crítica pareceu importante, já
em 1987, porque a defesa concreta de alguns dos
interesses denominados difusos revelava, em seu
nascedouro (a jurisdicionalização dos interesses
difusos acentuou-se na metade da década de 80),
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 33-46, fevereiro/2010
CONSIDERAÇõES SOBRE INTERESSE SOCIAL E INTERESSE DIFUSO
a necessidade de pleitear tutelas jurisdicionais
bastante distintas segundo se tratasse de uma
ou de outra categoria desses mesmos interesses
– sugerindo que talvez não pertencessem necessariamente à mesma categoria jurídica.
A proteção judicial do meio ambiente,
por exemplo, logo se encaminhou, preponderantemente, para ações de natureza reparatória,
indenizatória, ao contrário do que ocorreu com
a tutela do consumidor, feita exclusivamente por
meio de ações tendentes à imposição de obrigações de fazer ou não fazer.
Por que é difícil imaginar, mesmo em sede
doutrinária, a possibilidade de ajuizamento de
uma ação indenizatória em defesa dos consumidores, ou de um bem de valor puramente
cultural (como as manifestações folclóricas, por
exemplo)?
O que, afinal, distingue um interesse social
de um interesse difuso?
O artigo de 1987 não passava de uma
tentativa de melhor particularizar a definição de
interesse difuso, nela introduzindo, mediante
aplicação do método indutivo, elementos novos,
objetivos, extraídos da observação e experiências
práticas.
Volto ao tema com a esperança de que a
tentativa ainda se justifique.
2. interesse
O conceito de interesse é daqueles pilares
básicos, fundamentais, sobre os quais se assenta
o próprio Direito. Apesar disso, a doutrina jurídica parece não ter removido por completo o véu
de mistério que ainda o recobre.
O vocábulo possui, sem dúvida, acentuado
caráter equívoco:
“Le nozioni correnti di ‘interessi’ sono
approssimative e imprecise: difetti, questi, che in generale hanno radice nella
erronea impostazione del concetto in
termine psicologici, anzichè in termini
normativi”4.
Francesco Carnelutti, como se sabe, desenvolveu enorme, mas infrutífero esforço no senti-
do de identificar o substrato de fato do interesse.
Teve Carnelutti o indiscutível mérito de ressaltar
que o interesse deve ser entendido e considerado em seu sentido objetivo, e não subjetivo: o
interesse não é uma aspiração (juízo subjetivo),
mas uma posição (objetiva, de vantagem em
relação a um bem) do homem, dizia o famoso
processualista. Daí a formulação do conceito
segundo o qual interesse é a posição favorável
à satisfação de uma necessidade5.
A palavra interesse tem origem latina: inter
esse, estar entre, participar. O interesse é sempre
uma relação – e relação de complementaridade
– entre uma pessoa (sujeito) e um bem ou valor
(objeto).
Rodolfo de Camargo Mancuso concorda
“que o interesse interliga uma pessoa a um bem
da vida, em virtude de um determinado valor que
esse bem possa representar para aquela pessoa”.
Vale reproduzir por inteiro sua douta lição: “Por outras palavras, trata-se da busca de
uma situação de vantagem, que faz exsurgir um
interesse na posse ou fruição daquela situação.
... Essa interação ´pessoa-objeto´ deflui, já, da
própria base terminológica – quod inter est:
consoante os diversos enfoques doutrinários, ora
se revela por seu aspecto objetivo (´rapporto tra
un bisogno dell´uomo e un quid a soddifarlo´ - F.
Carnelutti, Lezioni di Diritto Processuale Civile,
vol. I, CEDAM, Padova, 1926, p. 3), ora sob o
prisma subjetivo (´ciò che si chiama interesse
no è altro che la valutazione di qualcosa come
mezzo e strumento per realizzare um fine proprio
o altrui´ - cf. C. Sforza, citado por V. Vigoriti,
in Interessi collettivi e processo, 1979, p. 18,
nota n. 1)”6.
A relação que caracteriza o interesse,
analisada sob a ótica do sujeito, traduz-se em
necessidade e, quando enfocado sob o prisma
do objeto, em utilidade.
Trata-se, entretanto, é bom insistir, de uma
única relação, vista sob perspectivas diferentes,
como as duas faces de u’a mesma moeda7.
Antes de superar este tópico, convém reafirmar que o objeto do interesse tanto pode ser um
bem como um valor. Faço-o com a transcrição
da seguinte passagem de Emilio Betti:
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 33-46, fevereiro/2010
35
FERRAZ, A. A. M. C.
“Respinta la nozione psicologica che
identifica l’interesse col bisogno o col
desiderio, e affermata la nozione normativa di esso como esigenze di beni o valori
da realizzare o da proteggere nel mondo
sociale, diviene possibile e legittima la
comparazione fra interessi e la ricerca de
un rango di preferenza secondo un criterio
dotato di rilevanza giuridica nell’orbita di
un dato ordinamento”8.
3. interesse social e interesse
difuso na Constituição
A Constituição Federal de 1988 procura
distinguir os conceitos de interesse público e de
interesse social, uma vez que o primeiro “aparece
ordinariamente evocando a figura do Estado”9.
Segundo Mancuso, “quando se lê ou se
ouve a expressão ´interesse público´, a presença
do Estado se nos afigura em primeiro plano. É
como se ao Estado coubesse não só a ordenação
normativa do ´interesse público´, mas também a
soberana indicação de seu conteúdo”10.
Quando a Constituição prevê que “ a lei
estabelecerá os casos de contratação por tempo
determinado para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público”, o
faz referindo-se ao interesse da administração
pública direta e indireta, de qualquer dos Poderes
da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios (art. 37, Ix).
Nos arts. 19, I, 57, § 6º, II, ou 66, § 1º,
refere-se a Constituição ao interesse público
sob o prisma da Administração, ou seja, à forma
como o Poder Público interpreta esse interesse.
O art. 231, § 6º, menciona expressamente
o “relevante interesse público da união”.
O art. 51 das disposições transitórias cuida
da revisão de doações, vendas e concessões de
terras públicas no “interesse público” dos entes
da Administração.
A remoção, disponibilidade e aposentadoria de Juízes de Direito e Promotores de Justiça,
“por interesse público” (arts. 93, VIII, 95, II, e
128, I, b), ocorrem por critérios e fundamentos
próprios da Magistratura e do Ministério Público
36
(isto é, mediante avaliação que essas instituições
fazem do interesse próprio e dos jurisdicionados
no caso concreto).
Nessas hipóteses, é como se a própria
Constituição prestigiasse o modo pelo qual os
órgãos da administração vêm o interesse público, caracterizando assim o “interesse público
secundário” da lição de Renato Alessi.
No art. 19, I, a vedação a que os entes
administrativos se relacionem com entidades
religiosas é excepcionada para os casos em que a
lei identifique e aceite “colaboração de interesse
público”, onde talvez se devesse ter falado em
“interesse social”.
O art. 93, Ix, pretende preservar, nos julgamentos perante o Poder Judiciário, o “interesse
público” à informação, quando é evidente que
se trata de um interesse tipicamente “social”,
ou seja, em relação ao qual a interpretação (ou
decisão) do que seja uma devida ou indevida
restrição ao direito de informação não pode ser
apropriada pelo Estado-Administração.
Da mesma forma, quando o art. 114, § 3º,
prevê que o Ministério Público do Trabalho poderá ajuizar dissídio coletivo “em caso de greve
em atividade essencial, com possibilidade de
lesão do interesse público”, melhor teria feito
se falasse em lesão do interesse social – porque
sem dúvida é a este e não àquele que pretende
se referir.
Mas, a Constituição Federal faz menção
também ao interesse social, a meu ver sempre
de modo adequado.
A desapropriação disciplinada no art. 5º,
xxIV, deve ser feita por interesse social típico,
diferente daquela decretada “por necessidade
ou utilidade pública” (interesse público, ou seja,
mais diretamente da Administração). O mesmo
se dá no caso da desapropriação para fins de reforma agrária, quando o imóvel rural não esteja
cumprindo sua função social (art. 184 e § 2º).
A tutela dos inventos, marcas e signos
distintivos de empresas se faz “tendo em vista o
interesse social e o desenvolvimento tecnológico
e econômico do País” (art. 5º, xxIx).
A publicidade dos atos processuais (objeto,
sem dúvida, de um interesse social) somente
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 33-46, fevereiro/2010
CONSIDERAÇõES SOBRE INTERESSE SOCIAL E INTERESSE DIFUSO
poderá ser restringida em homenagem à defesa
da intimidade ou de outro interesse social (art.
5º, Lx).
Ao Ministério Público incumbe a defesa
precípua do interesse social (art. 127), coroando
a Constituição Federal longa evolução no sentido
de afastar a Instituição da defesa do Executivo
(ao qual esteve por longo período juridicamente
subordinada).
O art. 79 do ato das disposições constitucionais transitórias menciona “programas de
relevante interesse social voltados para melhoria
da qualidade de vida”.
Quanto aos interesses difusos, são referidos no art. 129, III, da Constituição da República, que inclui a tutela dos mesmos dentre as
funções institucionais do Ministério Público.
Pois bem, o status constitucional dessas
categorias de interesses – que a doutrina costuma
agrupar sob a rubrica dos interesses metaindividuais (ou transidividuais), em contraposição aos
interesses individuais – exige que sobre eles nos
debrucemos com redobrado afinco, com vistas a
uma classificação mais objetiva, lógica e clara.
4. interesse social
Para Ada Pellegrini Grinover sociais são
“interesses espalhados e informais à tutela de
necessidades coletivas, sinteticamente referíveis
à qualidade de vida. Interesses de massa, que
comportam ofensas de massa e que colocam em
contraste grupos, categorias, classes de pessoas.
Não mais se trata de um feixe de linhas paralelas,
mas de um leque de linhas que convergem para
um objeto comum e indivisível. Aqui se inserem
os interesses dos consumidores, ao ambiente, dos
usuários de serviços públicos, dos investidores,
dos beneficiários da previdência social e de todos
aqueles que integram uma comunidade compartilhando de suas necessidades e seus anseios”11.
Rodolfo de Camargo Mancuso, sempre
profundamente dedicado ao tema, identifica
inúmeras semelhanças entre as expressões interesse social, interesse geral e interesse público,
reconhecendo que elas “são praticamente equi-
valentes, por isso que, salvo certas nuanças sutis,
elas se confundem sob o denominador comum
de ´interesses metaindividuais´” .
E acrescenta:
“Quer nos parecer que a tarefa de se tentar
a separação rigorosa dessa trilogia não
seria fadada a um bom termo: mesmo
que seja possível, como visto, surpreender certos elementos identificadores de
cada espécie, eles não são em número e
intensidade tal que permita a autonomia
conceitual dessas expressões entre si.
Depois, de todo modo, as diferenças seriam tão sutis que, na prática, não haveria
contribuição relevante para o exame da
problemática dos interesses metaindividuais. Por fim, tomando-as, basicamente,
como sinônimas, chega-se a uma desejável
concreção evitando-se os inconvenientes
de um excesso terminológico”12.
Cuidando, especificamente, do interesse
social, Mancuso o identifica com “o interesse que
consulta à maioria da sociedade civil: o interesse
que reflete o que esta sociedade entende por ´bem
comum´; o anseio de proteção à res publica; a
tutela daqueles valores e bens mais elevados, os
quais essa sociedade, espontaneamente, escolheu
como sendo os mais relevantes”13.
Para aqueles que adotam a distinção, feita
por Renato Alessi, entre interesse público primário e interesse público secundário, o segundo
acaba sendo conceituado como o modo pelo
qual os órgãos da Administração interpretam o
interesse público, enquanto o primeiro é identificado como o bem geral, sendo sinônimo de
interesse social.
Assim faz Hugo Nigro Mazzilli, que define
o interesse social (interesse público primário)
como “o interesse da sociedade ou da coletividade como um todo”14.
Fazendo uso das noções gerais acerca do
interesse, apresentadas no início deste estudo,
em especial aquelas que o encaram como relação
entre um sujeito e um objeto, observaremos que a
doutrina tende a identificar o interesse social com
o que tem por titular toda a coletividade, todo o
grupo social, e, por objeto, bens ou valores essenciais para a vida em sociedade (o bem comum).
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 33-46, fevereiro/2010
37
FERRAZ, A. A. M. C.
Em tese submetida ao II Seminário Jurídico
dos Grupos de Estudo do Ministério Público do
Estado de São Paulo, veio a lume conceito que,
na época relativo ao interesse público (com certeza primário, ou seja, identificado com o interesse
social), muito se aproxima do aqui tratado:
“É o interesse à preservação permanente
dos valores transcendentais dessa sociedade.
Não é, assim, o interesse de um, de alguns, de
um grupo ou de uma parcela da comunidade;
nem mesmo é o interesse só do Estado, enquanto
pessoa jurídica empenhada na consecução de
seus fins. É o interesse de todos, abrangente e
abstrato. E por ser de todos não é de ninguém”15.
roubar ou exercer arbitrariamente as próprias
razões, em que fosse legítimo auferir vantagem
à custa da incapacidade de outrem, ou destruir
o patrimônio ambiental, ou, ainda, em que fosse
tolerável a fraude nas relações de comércio, ou a
imposição de condições arbitrárias nas relações
de consumo.
Esses bens e valores, como tantos outros
que constituem objetos de interesses sociais,
são relevantes para um pacífico convívio, são
vitais para a harmônica e ordenada vida em
sociedade18.
No mesmo sentido, a definição do Juiz
Evaristo dos Santos, em acórdão publicado na
RT 482/143, referido por Édis Milaré: “interesse
público é sinônimo de interesse geral da sociedade, de interesse do Estado enquanto comunidade politicamente organizada, vale dizer, do
Estado como expressão suprema da organização
ético-jurídica da sociedade. Interesse público é,
pois, o interesse geral – impessoal – que a todos
concerne diretamente, e não imediatamente só
ao Estado, como sujeito de direitos e obrigações
voltado para o desempenho das atividades que
lhe são peculiares”16 17.
5. interesse difuso
De modo menos utópico, diríamos que
sujeitos do interesse social podem ser parcelas
significativas da coletividade (não, necessariamente, toda ela), preservada, porém, a indeterminação das pessoas que as integram (pois do
contrário ingressaríamos na órbita do interesse
coletivo).
Quanto ao objeto, serão bens, valores,
princípios relevantes para a qualidade de vida
em sociedade.
Há interesse social, por exemplo, em que
se tutele a vida e a liberdade das pessoas, como
também a família e os incapazes, em que se garanta o respeito às disposições de última vontade
e a exatidão dos registros públicos, em que se
assegure a preservação dos recursos naturais e
a proteção do consumidor.
Ao contrário do que ocorria em 1987, quando escrito o artigo ao qual este se reporta, temos
hoje uma definição legal de interesse difuso,
constante do Código de Defesa do Consumidor:
“Interesses ou direitos difusos, assim
entendidos, para efeitos deste Código, os transidividuais de natureza indivisível, de que sejam
titulares pessoas indeterminadas e ligadas por
circunstâncias de fato”19.
Na doutrina, encontram-se conceitos que
não discrepam dessa definição.
Rodolfo de Camargo Mancuso propõe uma
descrição analítica do instituto:
“São interesses metaindividuais, que, não
tendo atingido o grau de agregação e organização
necessários à sua afetação institucional junto a
certas entidades ou órgãos representativos dos
interesses já socialmente definidos, restam em
estado fluido, dispersos pela sociedade civil
como um todo (v.g., o interesse à pureza do ar
atmosférico), podendo, por vezes, concernir a
certas coletividades de conteúdo numérico indefinido (v.g. os consumidores)”20.
Hugo Nigro Mazzilli assim os conceitua:
Realmente, jamais seria harmônico, ou
mesmo possível, o convívio no seio de uma
coletividade em que fosse admissível matar,
38
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 33-46, fevereiro/2010
“Os interesses difusos compreendem grupos menos determinados de pessoas, entre
as quais inexiste vínculo jurídico ou fático
preciso. São como um feixe ou conjunto
de interesses individuais de pessoas indetermináveis, unidas por pontos conexos”21.
CONSIDERAÇõES SOBRE INTERESSE SOCIAL E INTERESSE DIFUSO
Tampouco parece haver maiores divergências acerca das características marcantes dos
interesses difusos, a saber: a) indeterminação
dos sujeitos, estes ligados entre si normalmente
por circunstâncias de fato; b) indivisibilidade do
objeto; c) intensa litigiosidade interna (“conflituosidade”); d) tendência à transição ou mutação
no tempo e no espaço22.
6. Cotejo entre as definições de
interesse social e interesse difuso
Seria possível, com base nas definições até
aqui analisadas, estabelecer distinção nítida entre
o interesse social e o interesse difuso?
O primeiro, tanto quanto o segundo, não teria a característica da transindividualidade, com
titulares indetermináveis, ligados entre si, muitas
vezes, por vínculos de fato, e objeto indivisível?
Não seriam ambos marcados pela nota da
conflituosidade e pela tendência de transição no
tempo e no espaço?
A dificuldade em apartar as definições em
tela transparece nas mais eruditas obras dedicadas ao tema.
Hugo Nigro Mazzilli observa que “há
interesses difusos tão abrangentes que chegam
a coincidir com o interesse público (como o do
meio ambiente)”23.
Rodolfo de Camargo Mancuso, por sua
vez, reconhece a dificuldade de “enquadrar” os
interesses difusos em contornos precisos, em
virtude da extensão do seu objeto e da indeterminação dos sujeitos a eles afetos, mencionando,
como exemplo, hipóteses claras de interesses
sociais, como a “garantia de emprego” ou, mais
genericamente, a “defesa da qualidade de vida”.
E prossegue:
“Essa notável extensão do objeto, aliada à
indeterminação dos sujeitos, não permite
que se espere ou que se exija um elevado
grau de coesão, nos interesses difusos. E
isso, por duas razões: o campo próprio
dos interesses difusos é justamente aquele
plano subjacente à massa normativa já estabelecida; eles são ideais, são sentimentos
coletivos ligados a valores parajurídicos
(o ‘justo’, o ‘eqüitativo’, o ‘natural’),
insuscetíveis de se apresentarem de forma
coesa, uniforme para cada qual daqueles
valores. Assim, haverá sempre posturas
conflitantes, todas merecedoras de conhecimento, já que todas pretendem, em
princípio, representar o sentimento médio
da coletividade em certo tempo e lugar”24.
Essas palavras não poderiam ter sido dedicadas, sem nenhum retoque, ao interesse social?
Péricles Prade, para evitar a superposição
dos conceitos de interesse difuso e interesse
público, alarga demasiadamente o primeiro e
restringe sobremodo o segundo, que passa, então,
a ser identificado com o interesse da Administração: “interesses públicos, na ordem jurídica brasileira, são aqueles voltados para a consecução
de fins gerais e pertinentes à união, aos Estados,
aos Municípios e às respectivas entidades de administração indireta ou descentralizada, sujeitos
ao regime jurídico de direito público”25.
Quanto aos interesses difusos, “são os
titularizados por uma cadeia abstrata de pessoas, ligadas por vínculos fáticos exsurgidos de
alguma circunstancial identidade de situação,
passíveis de lesões disseminadas entre todos
os titulares, de forma pouco circunscrita e num
quadro abrangente de conflituosidade”26.
A definição, no entanto, é inaplicável até
mesmo a alguns dos interesses difusos apontados
pelo mesmo autor, como “o interesse à privacidade”, ou o “interesse quanto à veracidade
e à inteireza das informações”27, na verdade
hipóteses de interesses sociais: que “vínculos
fáticos” prendem os membros da coletividade,
em relação ao “interesse à privacidade”; que
“lesões disseminadas” podem ocorrer no tocante
a esse interesse?
Ada Pellegrini Grinover, ao tratar dos interesses sociais, em seu rol inclui interesses que
são igualmente difusos, como o de tutela do
meio ambiente, como visto acima, em passagem
transcrita na abertura do tópico “4”28.
Em verdade, a questão mereceria maior
aprofundamento.
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 33-46, fevereiro/2010
39
FERRAZ, A. A. M. C.
Poucos autores a enfrentam de modo aberto, embora denotem perceber as dificuldades a
ela inerentes.
Luís Felipe Colaço Antunes, citado por
Mancuso, admite que “o interesse difuso não
deixa de ser a forma concreta, plural e heterógena
do interesse público, enquanto o interesse coletivo é um interesse privado, fundamentalmente
de natureza socioprofissional, um interesse
corporativo”29.
O próprio Mancuso não evita abordar
o tema, usando o termo interesse público no
significado de interesse público primário (ou
interesse social), sem, entretanto, alcançar nítida
separação entre eles:
“Parece-nos, todavia, conveniente salientar que o interesse público é um interesse
metaindividual (à saúde, à segurança)
atomizado e compartilhado por toda a
sociedade civil, restando pensável um
conflito ‘indivíduo-estado’, a respeito
da forma de gestão desse interesse. Já
o interesse difuso, por não contar com
uma base normativa própria, exsurgindo
de circunstâncias de fato, conjunturais
(consumir produto, habitar certa região)
enseja o confronto entre interesses de
massa, sustentados por grupos contrários
(a conflittualità massima), referida pela
doutrina italiana”30.
Na tentativa de distinguir os conceitos
de interesse público (no sentido de interesse
social) e interesse difuso, Antonio Herman V.
Benjamin, atribui ao primeiro a característica de
“unanimidade social”, de modo que o seu objeto
seria constituído de valores insuscetíveis de contraposição “em termos de supraindividualidade”:
“O interesse público, como singularidade
conceitual, exigindo conflituosidade coletiva
mínima, vê, de fato, seu campo de existência
profundamente reduzido, no mundo atual de embates supraindividuais; limita-se àqueles setores
de interesses e valores onde há uma inegável
manifestação social homogênea a exigir seu
reconhecimento e tutela; uma certa unanimidade
social (= consenso coletivo) seria sua marca primeira e mais relevante. Seu império, em estado
40
de contração (convulsão?), abrange as garantias
individuais e sociais fundamentais, a segurança
pública, a moralidade administrativa, a qualidade
de vida, a harmonia da família, o pleno emprego, a educação, a paz. É a unanimidade social,
pois, que dá ao interesse público uma de suas
mais marcantes características: a sua rejeição à
idéia de contra-princípios ou contra-interesses,
tão comuns no campo dos outros interesses tipicamente supraindividuais (difusos e coletivos
stricto sensu)”31.
Nesse sentido peculiar, porém, como o
próprio autor chega a admitir, o interesse público (social) “seria uma abstração” de escassa
utilidade jurídica e prática, quase se reduzindo a
postulados morais ou aspirações ideais.
Por outro lado, em meio ao processo de
democratização do Brasil, que reclama, acima
de tudo, a superação de desigualdades sociais
imemoriais e profundas (entre as maiores do
planeta), seria imperdoável tratar de modo
superficial e genérico a categoria jurídica do
interesse social.
Sim, porque se existem desigualdades
sociais a serem vencidas, entre nós – e quanto a
isso parece não haver dúvida –, é indeclinável
imaginar a existência de inúmeros interesses
sociais vivos, palpitantes e, também, freqüentemente conflitantes.
Como imaginar uma sociedade – e sociedade complexa como a atual, em ebulição, que
procura se aprimorar – sem que em seu seio
haja uma profusão de interesses em busca de
afirmação?
O déficit social brasileiro será, por muito
tempo, o grande desafio a ser vencido.
Assim, exigir a nota de “unanimidade” para
o interesse social (interesse público primário)
representa abstração equivalente à de considerar a própria sociedade como um bloco coeso e
monolítico, com reivindicações necessariamente
idênticas ou, mesmo, homogêneas.
Há, por exemplo, expressivos grupos
sociais a defender proteção mais rígida da propriedade rural, em confronto com outros grupos
(como o dos “sem terras”) que pregam a supremacia – hoje com assento constitucional – da
função social da propriedade.
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 33-46, fevereiro/2010
CONSIDERAÇõES SOBRE INTERESSE SOCIAL E INTERESSE DIFUSO
Interesses econômicos (de conteúdo sem
dúvida social) freqüentemente se chocam com
interesses ambientais, ou de proteção ao trabalhador e ao consumidor. Atualmente, aliás, há muita
controvérsia acerca da conveniência de “flexibilização” de consagrados direitos trabalhistas.
O Código de Defesa do Consumidor representou, sob esse aspecto, a formalização de um
novo pacto político-social, amadurecido ao longo
do tempo, fruto da evolução da nossa sociedade
e que estabeleceu diferente maneira de arbitrar
esses antagônicos interesses sociais (protagonizados pelo setor produtivo e de serviços, de
um lado, e pelos consumidores, de outro) – o
que também comprova que todos os interesses
sociais (e não apenas os difusos) são marcados
pela “tendência à transição ou mutação no tempo
e no espaço”32.
Também são extremamente comuns os
embates entre interesses sociais voltados à tutela
da publicidade e da transparência, de um lado, e
à proteção à privacidade e intimidade, de outro.
Mesmo em áreas como da educação, saúde
ou segurança, lembradas por Benjamin, somente
é possível entrever unanimidade quando se pense
no objeto desses interesses de forma por demais
ampla e genérica.
Na realidade, também nesses setores da
vida social são extremamente comuns os conflitos, porque se todos, em tese, almejam esses
valores em níveis máximos de plenitude, resta
sempre a questão pragmática sobre como alcançar tal desiderato!
Os candentes debates sobre a conveniência de adoção da pena de morte, ou da redução
da idade penal, mostram que elevar a proteção
do interesse social à segurança não se fará sem
alguma redução nos patamares de tutela de outros valores sociais importantes, como a vida e
a proteção de pessoas hipossuficientes.
Na área da saúde, o embate entre interesses
sociais igualmente relevantes pode ser percebido
na atual discussão acerca da clonagem de embriões humanos, ou da utilização de células-tronco.
Na educação, poder-se-ia mencionar a discussão, bastante contemporânea, sobre o sistema
de cotas para grupos socialmente desfavorecidos.
7. tentativa de compatibilização dos
conceitos
Se o interesse traduz relação entre um
sujeito e um objeto – relação que sob a ótica do
primeiro revela necessidade e sob o prisma do
segundo denota utilidade – cabe investigar, sob
esses dois aspectos, as semelhanças e eventuais
diferenças entre o interesse social e o interesse
difuso.
Assim propôs José Carlos Barbosa Moreira, depois de observar que a expressão interesses
difusos não adquiriu até agora sentido preciso na
linguagem jurídica33.
As semelhanças entre os interesses sociais
e difusos, como sublinhado ao longo deste estudo, existem à profusão.
No que diz respeito ao sujeito, trata-se,
mesmo, de identidade absoluta.
Nos dois casos, temos grupos sociais cujos
integrantes são indeterminados (ou seja, são indetermináveis com precisão)34. As pessoas que
integram esses grupos não estão entre si ligadas
necessariamente por vínculos jurídicos, mas,
sim, normalmente, por circunstâncias de fato.
A indeterminação dos sujeitos, considerada
por alguns autores35 e por conhecido acórdão
do Colendo Supremo Tribunal Federal36 como
a nota característica dos interesses difusos, se é
suficiente para apartá-lo do interesse coletivo,
não o é para distingui-lo do interesse social.
No que respeita ao objeto, sempre será
indivisível e, normalmente, marcado por intensa
litigiosidade interna (conflituosidade), sendo que
ambos tendem a sofrer mudanças de um País para
outro, por exemplo, ou ao longo do tempo. São,
também, bens e valores sensíveis, relevantes para
a vida social (qualidade de vida).
A indivisibilidade do objeto, nos interesses
difusos, foi analisada com maestria por Pedro
da Silva Dinamarco, mas suas lições, a seguir
reproduzidas, parecem inteiramente aplicáveis
ao interesse social:
“Nos interesses difusos, o objeto (ou o
bem jurídico) é indivisível, na medida em
que não é possível proteger um indivíduo
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 33-46, fevereiro/2010
41
FERRAZ, A. A. M. C.
sem que essa tutela não atinja automaticamente os demais membros da comunidade
que se encontram na mesma situação. Ou
atinge todos ou não atinge ninguém37. Ela
não é, portanto, mera soma de uma pluralidade de pretensões individuais38. Essa
indivisibilidade, na verdade, está no bem
da vida a que se visa e não na causa de
pedir. Assim, como diz KAZuO WATANABE, por sua própria natureza a tutela
deve ser concedida molecularmente e não
ao átomo individualizado39”.
E prossegue:
“ORLANDO GOMES afirma categoricamente que as obrigações indivisíveis
deixariam de sê-lo no momento em que
forem convertidas em perdas-e-danos40.
Certamente essa é uma verdade da realidade do direito civil tradicional. Mas
quando se fala em interesses difusos,
eles não perdem aquela qualidade, pois
deverão ser revertidos para o fundo de
que trata o art. 13 da Lei da Ação Civil
Pública, onde serão aplicados na reparação de bens lesados, também de natureza
metaindividual41”42.
qual seria, afinal, a forma de compatibilizar os dois conceitos examinados?
É preciso sublinhar que em sede de definições e classificações nem sempre há verdades
absolutas, uma vez que os resultados poderão
comportar diferenças, de modo logicamente
aceitável, dependendo do critério inicial adotado
(criterium divisionis).
Na tentativa de formular um quadro sistemático da matéria, penso razoável considerar o
interesse difuso uma espécie do gênero interesse
social, tendo em vista os aspectos comuns existentes entre eles e acima destacados.
O caráter diferenciador residiria na natureza dos bens que constituem seu objeto.
Investigação das hipóteses reveladas pela
experiência prática e pelos estudos doutrinários
demonstra que os interesses difusos tendem a
recair sobre bens materiais, corpóreos, dos quais
o meio ambiente é exemplo característico.
42
Esses bens, de regra, são públicos, de uso
comum do povo, como o ar, os rios, o mar, a
fauna e a flora, as paisagens, os bens de valor
estético, histórico, artístico, arqueológico, mas
podem ser também particulares, como um bem
tombado.
O interesse difuso, em suma, seria aquela
espécie de interesse social que tem por objeto
bens corpóreos, em contraposição aos demais
interesses sociais (stricto sensu), que podem
ter por objeto, além desses, bens imateriais,
incorpóreos, que parece lícito identificar com
os princípios, normas e valores essenciais para
a vida social.
Objeto do interesse difuso é um bem que,
essencial para a boa qualidade de vida em sociedade, é passível de fruição física, concreta, por
todos os membros do grupo social.
A tutela jurisdicional dos interesses difusos
tem por escopo, precisamente, assegurar o gozo
desses bens, em proveito da qualidade de vida
da população.
Essa classificação, cumpre reconhecer,
busca apenas compatibilizar as noções de interesse social e de interesse difuso, sem maiores
repercussões práticas, por exemplo, quanto ao
sistema de tutela dos mesmos.
A conseqüência mais visível, ainda assim
de caráter teórico, doutrinário, estaria na necessidade de reconhecer que a tutela dos consumidores não se inclui no âmbito dos interesses
difusos, mas, sim, no dos sociais43.
8. interesse do consumidor
Tem sido unânime, em doutrina, o entendimento de que a proteção do consumidor deve ser
incluída no rol dos interesses difusos44.
Ao observador atento, porém, não passará
despercebido que a proteção dos consumidores
difere substancialmente da defesa do meio ambiente, ou dos bens de valor artístico, estético,
histórico, turístico e paisagístico.
A experiência prática da tutela dos interesses difusos, intensificada extraordinariamente
após o advento da Lei n. 7.347, de 24 de julho
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 33-46, fevereiro/2010
CONSIDERAÇõES SOBRE INTERESSE SOCIAL E INTERESSE DIFUSO
de 1985, em especial no âmbito do Ministério
Público, veio confirmar serem ontologicamente
diversas as duas situações.
Poucos se animam a sustentar, por exemplo, a possibilidade de pleitear, em Juízo, indenização para a reparação de prejuízo causado a
número indeterminado de consumidores.
Ada Pellegrini Grinover afirma que “o
prejuízo individualmente sofrido por cada consumidor não poderá ser coberto pela nova lei (a
Lei n. 7.347, de 1985), devendo este valer-se
das vias comuns – ou dos Juizados de Pequenas
Causas – para o ressarcimento pessoal”. Segundo
ela, “a defesa dos consumidores, coletivamente
considerada, ficará portanto naturalmente limitada, pela nova lei, às ações preventivas, que visem
à tutela inibitória, mediante a condenação a uma
obrigação de fazer ou não fazer”45.
José Geraldo Brito Filomeno, quando Procurador de Justiça Coordenador das Curadorias
de Proteção ao Consumidor no Estado de São
Paulo, reconhecia a existência de “dificuldades
no que concerne à própria caracterização do
interesse difuso na área de defesa do consumidor”. Acrescentava que, “ao menos no que diz
respeito à defesa do consumidor, o grande objeto
da ação civil pública será o preceito cominatório
de obrigação de fazer ou não fazer alguma coisa
em benefício daquele, difusamente considerado”.
Embora não a descartasse de todo, considerava
difícil a hipótese de reparação, pela ação civil
pública, de danos causados aos consumidores46.
Se um determinado produto é vendido
em quantidade inferior àquela apregoada na
embalagem, por exemplo, o dano daí decorrente
atinge diretamente o patrimônio pessoal de cada
adquirente. Poder-se-ia dizer, então, que, no caso
dos consumidores, há um número indeterminado
de direitos – e não apenas interesses – lesados.
Na hipótese do meio ambiente, ao contrário, o que importa é assegurar o gozo coletivo
de bens que, ou por sua própria natureza são
públicos, de uso comum do povo, ou, sendo
particulares (um bem tombado, ou um imóvel
recoberto por floresta nativa, por exemplo), re-
cebem especial proteção da lei, exatamente para
que seja possível essa fruição comum. O interesse individual de cada membro da coletividade,
nesse caso, é apenas reflexamente tutelado47.
Na verdade, a defesa do interesse difuso
do consumidor não se faz pela proteção de
uma determinada coisa, material ou corpórea,
mas de princípios, ou valores, necessários para
preservar o equilíbrio nas relações de consumo,
compensando-se a situação de inferioridade em
que se encontra o consumidor isolado frente às
grandes empresas e ao próprio Estado, inferioridade essa que se acentuou dramaticamente
com a produção em massa, com a velocidade e
intensidade da publicidade, com as práticas de
monopólio, com os contratos de adesão.
É por essa razão que, como vimos, as
medidas judiciais normalmente alvitradas para
a defesa difusa do consumidor têm caráter cautelar, cominatório, ou objetivam a condenação
de alguém à obrigação de fazer ou não fazer.
Assim, as ações “visando à cessação de práticas
comerciais abusivas, à introdução de normas de
segurança nos produtos de consumo particular,
ou mesmo à retirada de produtos do mercado”48.
As medidas judiciais de caráter geral,
tomadas em defesa do consumidor, assim como
em defesa de qualquer outro interesse social, não
têm em mira reparar um dano material, mas, sim,
em última análise, assegurar a observância de
um princípio, norma ou valor de ordem pública,
essencial para o harmônico convívio social, daí
não terem natureza indenizatória, mas cautelar,
quando não tendentes a condenação ao cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer.
A Lei n. 7.347, de 1985, como se vê, incluiu sob o manto protetor da ação civil pública
inúmeros interesses sociais, sendo um deles não
difuso, mas social stricto sensu (exatamente o de
defesa dos consumidores).
Fê-lo em boa hora, porque esse relevante
interesse – de assegurar equilíbrio e justiça nas
relações de consumo –, à mingua de expressa
autorização legal, não podia, até então, ser
tutelado de forma mais ampla no âmbito da
jurisdição civil.
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 33-46, fevereiro/2010
43
FERRAZ, A. A. M. C.
notas
FERRAZ, Antonio Augusto Mello de Camargo. Interesse
público, interesse difuso e defesa do consumidor. In: JuSTITIA, publicação do Ministério Público de São Paulo,
1987, v. 137, p. 49
3
“Poderia, aparentemente, causar espécie que o interesse
público, visto pelos órgãos da Administração, possa não
coincidir com o efetivo interesse da comunidade. Seria,
entretanto, mera ficção supor que o contrário sempre
ocorresse. A construção de uma hidrelétrica, de uma usina
atômica ou de um aeroporto em lugar menos propício; um
conjunto de medidas de natureza econômica; a declaração
de guerra entre países – nem sempre tais decisões significarão, necessariamente, o melhor para a comunidade, até
mesmo quando aja de boa fé o administrador. Tanto assim
que, não raro, os governantes que se sucedem reconsideram
decisões, revêem planos, abandonam projetos encetados; o
próprio povo freqüentemente rejeita na urnas as linhas de
recente atuação governamental” (MAZZILLI, Hugo Nigro.
Interesses coletivos e difusos. In: JuSTITIA, publicação
do Ministério Público de São Paulo, 1992, v. 157, p. 41/42).
4
BETTI, Emilio. Interesse (Teoria Generale). Novissimo
Digesto Italiano. Milão : utet, 1962.
5
CARNELuTTI, Francesco. Sistema di Diritto Processuale
Civile. Pádua : CEDAM, 1936, p. 7.
6
MANCuSO, Rodolfo de Camargo. Interesses difusos: conceito e colocação no quadro geral dos “interesses”. Revista
de Processo, n. 55, julho-setembro de 1989, p. 165/166.
7
Cf. sobre o tema, SANTOS, J. M. de Carvalho. Repertório Enciclopédico do Direito Brasileiro. Rio de Janeiro :
Borsoi, v. 28, verbete interesse.
8
BETTI, Emilio, op. cit., p. 839.
9
MANCuSO, Rodolfo de Camargo. Interesses difusos:
conceito e colocação no quadro geral dos “interesses”,
op. cit., p. 167.
10
MANCuSO, Rodolfo de Camargo. Interesses difusos:
conceito e legitimação para agir. 5. ed. São Paulo : Editora
Revista dos Tribunais, 2000, p. 29.
11
GRINOVER, Ada Pellegrini. Significado social, político
e jurídico da tutela dos interesses difusos. Revista de
Processo, n. 97, janeiro-março de 2000, p. 9.
12
MANCuSO, Rodolfo de Camargo. Interesses difusos:
conceito e legitimação para agir, op. cit., p. 33.
13
Idem, p. 27 – ver também, do mesmo autor, Interesses difusos: conceito e colocação no quadro geral dos interesses,
op. cit., p. 165 e seguintes.
14
MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos
em Juízo, 15. ed. São Paulo : Editora Saraiva, 2002, p. 43.
15
SALVADOR, Antonio Raphael Silva. OLIVEIRA, José
Prézia de. SANSEVERINO, Milton e THEODóSIO,
Walter. O Ministério Público no processo civil. In: JuSTITIA, publicação do Ministério Público de São Paulo,
1973, v. 82, p. 281.
16
MILARÉ, Édis. O Ministério Público e a insolvência civil.
Separata da Revista Forense, v. 275.
17
quanto à matéria, ver também FERRAZ, Antonio Celso
de Camargo. A intervenção do Ministério Público em favor
do interesse público (art. 82, III, do Código de Processo
2
44
Civil). In: Reuniões de estudo de direito processual civil,
publicação do SIP – Serviço de Informação e Pesquisa
do Ministério Público de São Paulo, 1974, ID ficha 0006.
18
O conceito proposto parece de utilidade também para o
tormentoso problema da intervenção do Ministério Público
nos termos do disposto no art. 82, III, do Código de Processo Civil: intervirá o Promotor de Justiça no feito em que,
pela qualidade da parte ou pela natureza da matéria nele
debatida, identificar a existência de um princípio sensível,
de um valor fundamental para a vida em sociedade.
19
Art. 81, I, da Lei n. 8.078“1990.
20
MANCuSO, Rodolfo de Camargo. Interesses difusos:
conceito e legitimação para agir, op. cit., p. 136.
21
MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo, cit., p. 46. Essa definição é acolhida por
VIGLIAR, José Marcelo Menezes. Ação civil pública. 4.
ed. São Paulo : Editora Atlas, 1999, p. 45.
22
MANCuSO, Rodolfo de Camargo. Interesses Difusos:
conceito e legitimação para agir, op. cit., p. 136/137.
23
A defesa dos interesses difusos em juízo, op. cit., p. 46.
24
MANCuSO, Rodolfo de Camargo. Interesses difusos:
conceito e legitimação para agir, op. cit., p. 133.
25
PRADE, Péricles. Conceito de interesses difusos. 2. ed.
São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 1987, p. 33.
26
Idem, p. 57/58.
27
Ibidem, p. 48.
28
GRINOVER, Ada Pellegrini. Significado social, político
e jurídico da tutela dos interesses difusos, op. cit., p. 9.
29
ANTuNES, Luís Felipe Colaço. A tutela dos interesses
difusos em Direito Administrativo: para uma legitimação
procedimental. Coimbra, Almedina, 1989, apud MANCuSO, Rodolfo de Camargo. Interesses difusos: conceito e
legitimação para agir, op. cit., p. 137.
30
MANCuSO, Rodolfo de Camargo. Interesses difusos:
conceito e legitimação para agir, op. cit., p. 137/138.
31
BENJAMIN, Antonio Herman V. A insurreição da aldeia
global contra o processo civil clássico: apontamentos
sobre a opressão e a libertação judiciais do meio ambiente
e do consumidor. In: Ação civil pública. Lei 7.347/85.
Reminiscências e reflexões após dez anos de aplicação.
MILARÉ, Édis (Coord.). São Paulo : Editora Revista dos
Tribunais, 1995, p. 90/91.
32
MANCuSO, Rodolfo de Camargo. Interesses Difusos:
conceito e legitimação para agir, op. cit., p. 137.
33
MOREIRA, José Carlos Barbosa. A legitimação para a
defesa dos “interesses difusos” no direito brasileiro. In:
Temas de direito processual. 3ª série, São Paulo : Editora
Saraiva, 1984, p. 183/184. Para o autor, no que tange ao
sujeito, o interesse difuso não pertence a pessoa determinada ou a grupo nitidamente delimitado; do ângulo do
objeto, não se refere a um bem individual, de tal sorte
que a satisfação de um elemento do grupo implicaria a
satisfação dos demais.
34
Ao contrário do que ocorre, por exemplo, com os interesses coletivos.
35
DELGADO, José Augusto. Interesses difusos e coletivos:
evolução conceitual. Doutrina e jurisprudência do STF.
Revista de Processo, n. 98, abril/junho de 2000, p. 81.
36
STF, Recurso Extraordinário n. 163.231-3, São Paulo,
Tribunal Pleno, rel. Min. Maurício Correia.
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 33-46, fevereiro/2010
CONSIDERAÇõES SOBRE INTERESSE SOCIAL E INTERESSE DIFUSO
JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA é preciso na
observação de que os titulares desses interesses “se põem
numa espécie de comunhão tipificada pelo fato de que a
satisfação de um só implica por força a satisfação de todos,
assim como a lesão de um só constitui, ipso facto, a lesão
da inteira comunidade” (A legitimação para a defesa dos
interesses difusos no direito brasileiro, p. 184).
38
Nesse sentido, o Min. SIDNEY SANCHES lembra
que para confirmar tal afirmação “basta considerar a
ilegitimidade do particular para provocá-la, ou a eficácia
erga omnes da sentença, ou ainda a destinação a que for
condenado o réu” (RTJ, 130/490).
39
Código Brasileiro de Defesa do Consumidor – comentado
pelos autores do anteprojeto, art. 81, n. 4, p. 626. Em razão
dessa necessidade de se dar um tratamento molecular é que
a sentença, nesses casos, não obedecerá à regra tradicional
do art. 472 do Código de Processo Civil e terá efeitos erga
omnes (CDC, art. 103, inc. I). KAZuO WATANABE critica ainda a fragmentação que o legislador e os operadores
do direito vêm tentando impor à tutela difusa e coletiva,
atribuindo-a apenas a um segmento da sociedade (como os
moradores de um Estado – v. medida provisória n. 2.10229, de 27 de março de 2001, art. 5º, que altera o art. 2º-A
da lei n. 9.494, de 10-12-1997).
40
Obrigações, n. 57, p. 75.
41
Se uma obrigação já for originariamente de natureza
pecuniária, não poderá ser caracterizada como relativa a
um interesse difuso (ou coletivo).
42
DINAMARCO, Pedro da Silva. Ação civil pública. São
Paulo : Editora Saraiva, 2001, p. 53. As notas do texto
reproduzido são do original.
43
Obviamente, sendo o interesse difuso uma espécie do gênero interesse social, essa conseqüência não representa nenhuma redução no status dos interesses dos consumidores!
44
CAPPELETTI, Mauro. Tutela dos interesses difusos,
conferência proferida no Plenário da Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul, em 27 de novembro de
1984; REALE JúNIOR, Miguel. Concorrência desleal
e interesse difuso no Direito brasileiro, in: Revista de
Direito Mercantil, Industrial e Financeiro, 1983, v. 22, p.
5; FILOMENO, José Geraldo Brito e BENJAMIN, Antonio Herman V. A proteção ao consumidor e o Ministério
Público. In: JuSTITIA, publicação do Ministério Público
de São Paulo, 1985, v. 131-A, p. 58.
45
GRINOVER, Ada Pellegrini. Proteção ao meio ambiente
e ao consumidor, artigo publicado no jornal O Estado de
S. Paulo, 1º de dezembro de 1985, p. 71.
46
FILOMENO, José Geraldo Brito. Curadoria de proteção
ao consumidor. Cadernos Informativos da Associação
Paulista do Ministério Público, julho de 1987, p. 71 a 73.
47
Sobre a distinção entre “direito” e “interesse”, de extrema
utilidade para a análise que agora desenvolvemos, cabe
reproduzir a seguinte passagem do grande processualista
LIEBMAN, Enrico Tullio: “Bisogna a questo proposito
distinguere appunto tra diritti ed interessi. La figura giuridica soggettiva che trova nella legge la protezione più
piena è quella del diritto soggettivo, che ricorre quando
l’interesse del soggetto è riconosciuto come esclusivamente proprio del suo titolare ed è come tale direttamente
garantito dalla norma giuridica. Si há invece un interesse
37
legittimo quando l’interesse di un soggetto determinato
trova portezione nella legge solo indirettamente perchè
si trova a coincidere con un interesse generale che la legge intende tutelare, disciplinando l’esercizio del potere
dell’organo amministrativo; è chiaro che in questo caso
l’osservanza della norma che tutela l’interesse generale
viene a soddisfare di riflesso l’interesse del singolo soggetto“ (Manuale di Diritto Processuale Civile. Milão :
Dott. A. Giuffrè, 1968, v. I, p. 101).
48
COMPARATO, Fábio Konder. A proteção do consumidor:
importante capítulo do Direito Econômico. In: Ensaios e
pareceres de Direito Empresarial. Rio de Janeiro : Forense,
1978, p. 499.
Bibliografia
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46
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 33-46, fevereiro/2010
O ENFRENTAMENTO AO TRáFICO DE PESSOAS NO BRASIL
Artigo
o EnfrEntAmEnto Ao tráfiCo DE
PESSoAS no BrASiL
Antonio Guimarães Marrey1
Anália Belisa Ribeiro2
rESumo: O artigo analisa os aspectos essenciais da implementação da Política e do Plano
Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas
no Brasil no sentido de se garantir a eficácia das
ações planejadas e a estruturação de políticas
públicas e de direitos humanos a serem desenvolvidas em parceria entre a sociedade civil e o
poder público. Demonstra que fatores históricos,
geográficos, culturais, econômicos determinam
a realidade brasileira concernente ao tráfico de
pessoas, seja com vistas a prostituição ou seja em
relação ao trabalho escravo e práticas análogas.
Reafirma a difícil tarefa de proteção dos direitos
humanos prevenindo e enfrentando o tráfico de
seres humanos, uma vez que não é suficiente
declará-los, mas necessário promovê-los, ensinálos e protegê-los.
Palavras-chave: Tráfico de pessoas. Direitos
humanos. Prevenção e repressão.
ABStrACt: The article analyzes the key aspects of the implementation of the Policy and
National Plan to Combat the Traffic of People
in Brazil in order to ensure the effectiveness of
planned actions and the structuring of public
policy and human rights to be developed in partnership between civil society and government.
It shows that historical, geographical, cultural
and economic factors determine the situation in
Brazil regarding to the traffic of people, whether
with the purpose of prostitution or for forced
labor and for similar practices. It reaffirms the
difficult task of protecting human rights by
preventing and addressing the traffic of human
beings, once it is not enough to declare them,
1
2
Antonio Guimarães Marrey é Secretário da Justiça e da Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo
Anália Belisa Ribeiro é psicóloga/ especialista em Direitos Humanos e Proteção a Testemunhas/ coordenadora do Núcleo de Enfrentamento ao
Tráfico de Pessoas Governo de São Paulo.
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 47-66, fevereiro/2010
47
MARREY, A. G. - RIBEIRO, A. B.
but also it is necessary to promote, teach and
protect them.
Keywords: Traffic of people. Human rights.
Prevention and repression.
1. introdução
Contexto e Desafios para o
Desenvolvimento no Brasil
quinto maior país do mundo, com a quinta
maior população, o Brasil é a principal potência
econômica e política da América do Sul. Milhões de brasileiros, porém, vivem à margem
dos benefícios derivados da força econômica
e política do país. O Brasil é um país de renda
média com consideráveis recursos naturais, humanos e tecnológicos. Muito embora tenha progredido enormemente nos últimos 50 anos, suas
populações marginalizadas não estão colhendo
os benefícios de tal progresso, Indicadores
agregados mascaram uma série de iniqüidades
baseadas em fatores como situação econômica,
região, etnia, gênero e linhas divisórias entre
áreas urbanas e rurais.
Os dados de instituições internacionais
relativos a 2004 indicam que aproximadamente
52,3 milhões, ou 32% dos brasileiros, vivem com
menos de US$ 2/dia, enquanto que a pobreza
extrema (menos de US$1/dia) afeta por volta
de 10% da população total. Os brasileiros mais
pobres são encontrados na Região Nordeste e nas
periferias dos principais centros urbanos do país.
Ao lado dessa pobreza, existe enorme riqueza. O
índice Gini do Brasil é 0,6, o que coloca o país
entre os de maior desigualdade no mundo.
Tão lamentável panorama reflete uma realidade ainda mais desoladora: o descrito contexto
de desigualdades acaba dando margem a praticas
criminosas como as que descreveremos a seguir
e diante das quais não podemos nos conformar.
A triste realidade do Tráfico de Pessoas no
Brasil
O princípio da dignidade da pessoa humana
identifica um espaço de integridade moral a ser
48
assegurado a todas as pessoas por sua própria
existência no mundo. Como o crime organizado do Tráfico de Seres Humanos simplesmente
ignora a máxima da dignidade humana, resta
à sociedade e ao poder público prevenir e enfrentar esse tipo de prática criminosa, pautando
suas condutas e decisões pela concretização do
princípio da dignidade humana, verdadeiro progênie de todos os princípios – desde o momento
da persecução investigatória, no contato com as
vítimas, até o momento da aplicação da pena
aos infratores.
O tráfico de pessoas é uma das formas mais
explícitas de escravidão moderna. Embora tenha
sido abolida oficialmente, a escravidão nunca foi
realmente erradicada. Tratados internacionais,
leis nacionais e resoluções compulsórias podem
ser capazes de proibir esse tipo de tráfico, no
entanto, colocar um ponto final a esta prática
depende também da realização de um trabalho
em rede, onde as políticas públicas estejam pautadas pela lógica do compromisso e da dignidade
conferida à pessoa humana.
Breve Recorte Histórico
A segunda metade do século xIx e o início
do século xx foram marcados por duas fortes
características, a saber: o crescimento das grandes cidades da América do Sul, que buscavam
incessantemente atingir a modernidade européia,
e a intensa migração do norte para o sul.
Na Argentina e no Brasil, países de destaque do cone sul, cidades como Buenos Aires,
Rio de Janeiro e São Paulo viviam a explosão de
crescimento e seguiam os exemplos de Londres
e Paris, considerados ícones de modernidade.
Fábricas foram inauguradas, dando origem á
criação de postos de trabalho, cidades eram
urbanizadas, tornando-se mais belas, higiênicas
e ordeiras.
O Rio de Janeiro, por exemplo, capital do
império brasileiro e, em seguida, da Nova República, viveu momentos de enormes transformações urbanas. O progresso foi tão intenso nesse
estado e se traduziu na importação não apenas
de técnicas e produtos, mas também de homens,
comportamentos, valores e idéias diversas.
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 47-66, fevereiro/2010
O ENFRENTAMENTO AO TRáFICO DE PESSOAS NO BRASIL
Paralelo a esse surto de modernidade que
pretendia civilizar a capital brasileira e outras
cidades estimulou-se a vinda de estrangeiros para
o Brasil, em especial moradores de continente
europeu. O final do século xIx e início do século xx foram também marcados por intensos
movimentos migratórios internacionais e o Brasil
fez parte dessa rota, tendo em vista a crise e posterior fim da escravidão bem como as propostas
civilizatórias da elite nacional.
O período migratório foi marcado pela intensa movimentação de trabalhadores europeus
em face das dificuldades enfrentadas em seus países de origem, ocasionadas pelo capitalismo, por
um crescimento demográfico sem precedentes e
com grande concorrência no mercado de trabalho
nas grandes cidades. As propostas de modernização e excelentes oportunidades dos países que
pretendiam receber os fluxos de trabalhadores
também foram um estímulo a mais, uma vez que
esses imigrantes que juntos alcançaram cifras de
milhões, buscavam em terras novas condições de
vida melhor. O Brasil tornou-se o terceiro pólo
de atração de migrantes, só perdendo para os
Estados unidos e a Argentina.
Quando o Brasil declarou independência de
Portugal, em 1822, seu maior parceiro comercial
era Inglaterra. Enquanto os britânicos ofereciam
várias formas de apoio e amizade em troca do
acesso aos portos brasileiros e o direito ao comércio no Brasil, a Inglaterra já havia declarado
ser ilegal a importação de escravos africanos
em suas colônias e encorajava outros países a
fazer o mesmo. Além de argumentos morais, o
Brasil – altamente dependente economicamente
do barato trabalho escravo nas plantações de
açúcar, café e algodão – foi também considerado
um competidor desigual pelos britânicos e suas
colônias, que produziam os mesmos produtos e
aboliram a escravidão por volta dos anos 1830.
Como resultado, sob pressão britânica, uma série de leis brasileiras foram aprovadas visando
oficialmente à abolição do comércio de escravos, embora o resultado tenha sido pequeno ou
de impacto inexistente. Uma dessas leis, a Lei
Euzébio de queiroz, que proibia o tráfico de
escravos em 1831, não teve efeito algum – após
a proibição, o comércio ilegal de escravos até
mesmo aumentou significativamente (Bethell,
1989, 40, 62, 95; Militão, 2005).
Dito isto, vale informar que as demais
etapas do presente texto apresentarão as recentes iniciativas de enfrentamento ao tráfico de
pessoas no Brasil, destacando como estas foram
impulsionadas (de forma sutil ou nem tanto) por
pressões internacionais. Ao mesmo tempo, as
atenções serão voltadas para as mais importantes dimensões do tráfico de pessoas no Brasil,
país de origem e destino de pessoas traficadas.
Finalmente, as iniciativas governamentais e não
governamentais serão brevemente analisadas.
O ano de 2006 foi provavelmente o divisor
de águas na história brasileira no que tange aos
esforços contra o tráfico. Até recentemente, o
tráfico internacional de mulheres para a prostituição era considerado a única forma contemporânea de tráfico humano no Brasil, enquanto o
trabalho escravo e formas similares à escravidão
regularmente encontrados em grande e isoladas
plantações de soja e cana-de-açúcar eram considerados algo completamente diferente. Essa
separação parece estar intimamente relacionada
aos debates acerca de prostituição voluntária e
forçada, bem como á feminização dos fluxos de
emigração do Brasil, por um lado, e da migração
interna e o tradicional sistema patrão-cliente,
por outro.
Em 26 de Outubro de 2006, o presidente
Luiz Inácio Lula da Silva assinou o Decreto
5.948/06, promulgando a Política Nacional de
Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, e organizou diversas iniciativas no âmbito do governo
federal em torno desse tema. Embora sem caráter
de lei, pela primeira vez na história brasileira,
todas as diferentes formas de tráfico humano
mencionadas no Protocolo Antitráfico Adicional
à Convenção das Nações unidas contra o Crime
Organizado Transnacional Relativo à Prevenção,
Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em
Especial Mulheres e Crianças (conhecido por
Protocolo de Palermo, ou melhor, Protocolo
Humano), incluindo o trabalho escravo e formas
similares à escravidão, bem como a remoção
de órgãos, são oficialmente consideradas como
constituintes do tráfico de pessoas (apesar de
a legislação brasileira ainda não refletir esta
interpretação).
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 47-66, fevereiro/2010
49
MARREY, A. G. - RIBEIRO, A. B.
O Decreto n° 5.948/06 pretende traduzir
os esforços antitráfico que serão colocados
em prática com o devido suporte político efetivo das autoridades locais, estadual e federal,
para sustentar um modelo compartilhado de
investimento no nível nacional, envolvendo a
cooperação internacional e de Organizações
Não-Governamentais (ONGs). Embora a legislação brasileira de tráfico de pessoas necessite
de melhoramentos, a preocupação maior é que
as leis brasileiras, em geral, tenham efetividade.
O Código Penal Brasileiro, que se referia
apenas ao tráfico internacional de mulheres para
fins de prostituição, criminaliza, desde março
2005, explicitamente o tráfico interno de pessoas,
aplicando-se também para homens e crianças.
Essas mudanças foram bem vindas, porém os
novos artigos (Artigos 231 e 231-A do Código
Penal) ainda restringem suas definições a casos
envolvendo prostituição e não se aplicam a outras
formas de tráfico humano. Embora não intitulado
como tráfico de pessoas, muitas dessas outras
formas são, em parte, ofensas segundo outros
artigos do Código Penal ou estão em outras leis
especiais, por exemplo, o Estatuto da Criança e
do Adolescente, adotado em 1990, já faz indiretamente referência, em alguns artigos, ao tráfico
de crianças.
As mudanças introduzidas pela Lei n°
11.106 (adotada em 28 de março de 2005) foram feitas um ano depois de o Brasil ratificar o
Protocolo Antitráfico Humano (29 de janeiro de
2004). A ratificação deu ao Protocolo (que entrou
em vigor no Brasil em 28 de fevereiro de 2004)
o mesmo status legal que uma lei ordinária
infraconstitucional. Consequentemente existem
dois instrumentos legais sobre (parcialmente) o
mesmo tema, mas não sincronizados entre eles.
Essa é uma clara evidência que os envolvidos na construção de políticas não trabalham
de forma coordenada ou trocam informações
suficientes, ou, por dedução, não dão atenção
suficiente às questões ligadas ao tráfico de pessoas. Claramente, as mudanças da Lei 11.106 não
levaram em conta o amplo contexto internacional
do Protocolo Antitráfico Humano, apesar de
abolir, entre outras mudanças, o questionável
e discriminatório uso do termo mulher honesta
50
(como utilizado anteriormente nos Artigos 215 e
216 do Código Penal), que era usado para indicar
que apenas mulheres que não eram prostitutas e,
portanto, sexualmente “honestas” poderiam ser
vítimas de algum assédio sexual.
Desta forma, apesar das recentes modificações no Código Penal, o entendimento do
conceito de tráfico de pessoas no Brasil continua
bastante limitado e altamente controvertido.
Enfatiza-se ainda o tráfico de pessoas para a
finalidade de prostituição, sem o foco utilizado
pelo Protocolo Antitráfico Humano da “exploração da prostituição de outrem”. ( Conforme
Lei 2000,11)
“O Código Penal Brasileiro, datado de
1940, considera a prostituição como crime, não para a prostituta, que não se insere
em nenhum crime, mas para os chamados
agentes (hotel, cabaré, donos de bordéis),
assim como, para qualquer outra pessoa
inserida na indústria do sexo”.
De fato, a legislação brasileira já penaliza a
exploração da prostituição por meio dos Artigos
228 a 230 do Código Penal., o Artigo 231-A, que
define o tráfico interno de pessoas, é redundante.
Além disso, esse artigo não criminaliza a ofensa
de “exploração da prostituição”, mas refere-se à
“promoção e facilitação da prostituição”.
Os Artigos 231 e 231-A não levam em
conta a diferença fundamental entre prostituição
forçada e voluntária, e, portanto, em nome da
política de enfrentamento do tráfico de pessoas,
é possível que eventualmente o resultado seja
o fechamento de bordéis, tornando impossível
para os profissionais do sexo ganharem seu
sustento. Fazer a legislação sobre tráfico de
pessoas para a finalidade de prostituição (não
sendo esta proibida no Brasil) mais severa afeta
diretamente e indiretamente os profissionais do
sexo. Considerando a existência da corrupção
entre os oficiais da lei, estes podem exigir subornos maiores dos profissionais do sexo para
protegê-los especialmente quando os policiais
são os donos dos locais acima referidos.
Política Nacional de Enfrentamento ao
Tráfico de Pessoas.
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 47-66, fevereiro/2010
O ENFRENTAMENTO AO TRáFICO DE PESSOAS NO BRASIL
A Política Nacional de Enfrentamento ao
Tráfico de Pessoas, define o “tráfico de pessoas”
no seu Artigo 2º, fazendo referência direta à
definição no Protocolo contra o tráfico de Seres
Humanos. No entanto, o Parágrafo 7º do mesmo
artigo introduz uma diferença significante, uma
vez que a Política Nacional não considera em
nenhum momento o “consentimento” da vítima
como relevante. Ao evitar esse tema, deixa de
interagir com o Artigo 3º, alínea b, do Protocolo
Antitráfico Humano, que declara: “O consentimento dado pela vítima de tráfico de pessoas tendo em vista qualquer tipo de exploração descrito
na alínea a do presente artigo será considerado
irrelevante se tiver sido utilizado qualquer um
dos meios referidos na alínea a”.
A solução brasileira em evitar qualquer
discussão sobre o consentimento de fato também ignora a questão do recrutamento através
de formas abusivas, que é uma parte essencial
da definição de tráfico de pessoas no Protocolo
Antitráfico Humano. No entanto, esses meios
ainda estão todos mencionados na definição
da Política Nacional referente ao que consiste
o tráfico de pessoas (“(...)à ameaça ou uso da
força, ou a outras formas de coação, ao rapto, à
fraude, ao engano, ao abuso de autoridade, ou
à situação de vulnerabilidade, ou à entrega, ou
aceitação de pagamentos, ou benefícios para
obter o consentimento de uma pessoa que tenha
autoridade sobre outra para fins de exploração”).
Em outras palavras, por ignorar a possibilidade da vítima (inicialmente) consentir pelo
recrutamento, e assim ignorar qualquer análise
sobre o uso (ou não) de qualquer meio para
conseguir o consentimento induzido ou viciado,
o Brasil parece ter adotado uma definição simplificada, com a intenção de evitar discussões
interpretativas e o mau uso da definição nos
tribunais. Antes e durante a Consulta Pública
sobre a Política Nacional, que aconteceu no
dia 28 de junho de 2006 na Capital brasileira,
Brasília, alguns participantes governamentais
e não governamentais expressaram suas apreensões sobre a possibilidade de casos de tráfico
de profissionais do sexo precipitarem longas
discussões no tribunal, geradas por juízes conservadores ou advogados espertos, em relação ao
tráfico de ‘mulheres desonestas’, considerando
que automaticamente essas mulheres consentiram com sua exploração, porque se sustentam
com o trabalho sexual. Aqueles em favor de
evitar qualquer discussão sobre o consentimento
querem de fato focar na questão da ‘exploração’
como o elemento chave constituinte da definição
do tráfico de pessoas.
A eliminação da questão do consentimento
da definição de tráfico de pessoas significa que a
Política Nacional brasileira de fato considera o
tráfico de pessoas como o recrutamento, o transporte, transferência, alojamento ou acolhimento
de pessoas para fins de exploração. A exploração
é ainda interpretada conforme o Protocolo: “A
exploração incluirá, no mínimo, a exploração da
prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados,
escravatura ou práticas similares à escravatura,
a servidão ou a remoção de órgãos”.
Exploração associadas ao Tráfico de
Pessoas: Diversas Modalidades
Os Artigos Antitráfico 231 e 231-A do
Código Penal não definem o tráfico de seres humanos como nenhuma outra forma de exploração
mencionada no Protocolo Antitráfico Humano,
como o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravidão, a servidão
ou a remoção de órgãos ou até qualquer outra
forma de exploração sexual. Algumas dessas
práticas são, no entanto, consideradas crimes,
parcialmente ou completamente, por outros artigos do Código Penal, ou leis específicas.
O Artigo 149 do Código Penal (reduzir
alguém à condição análoga ao trabalho escravo)
merece uma atenção extra, considerando sua
modificação pela Lei 10.803 de 11 de dezembro
de 2003). Anteriormente, o Artigo 149 era capaz
de cobrir diferentes tipos de exploração, porém,
seu escopo foi limitado de “reduzir a pessoa à
condição análoga à escravidão” (que poderia
incluir o casamento forçado) para condição
análoga ao trabalho escravo. O Artigo 206 do
Código Penal trata do recrutamento fraudulento
de trabalhadores para o fim de emigração. Da
mesma forma, o Artigo 207 refere-se ao alicia-
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 47-66, fevereiro/2010
51
MARREY, A. G. - RIBEIRO, A. B.
mento e recrutamento fraudulento de trabalhadores para levá-los de uma para outra localidade
no território nacional.
O Artigo 14 da Lei 9.434, de 4 de fevereiro de 1997, alterada pela Lei 10.211,
de 23 de março de 2001, proíbe a remoção de
tecidos, órgãos ou partes do corpo de pessoa viva
ou cadáver, em desacordo com as disposições
desta lei. O Artigo 9º, no entanto, declara que,
de acordo com esta lei e sob condições estritas,
é permitido à pessoa juridicamente capaz dispor
gratuitamente de tecidos, órgãos e partes do próprio corpo vivo, para fins terapêuticos ou para
transplantes, se isso não implicar em qualquer
risco para sua saúde ou integridade física do
doador.
Em contraste com o Protocolo Antitráfico Humano, nenhuma dessas várias ofensas
mencionadas acima entende a exploração como
elemento chave constitutivo do crime. Consequentemente, o seu escopo prático para casos
de tráfico de pessoas será limitado. Além disso,
nenhuma dessas ofensas é considerada tráfico de
pessoas, significando que as pessoas definidas
como vítimas do tráfico humano sob a lei internacional com a qual o Brasil está comprometido
poderão não receber a proteção e assistência a
que têm direito.
Políticas de Enfrentamento ao Tráfico de
Pessoas
Do século xVI ao século xIx, o comércio
de escravos resultou em milhões de africanos
exportados para vários países para exploração,
incluindo o Brasil, o último país na América a
abolir a escravidão (1888). Esse fenômeno que
atualmente envolve redes organizadas e informais de fornecimento de mão de obra de trabalho
barata e outras formas de exploração, tais como
a remoção ilegal de órgãos para transplante,
começou a ser estudado e enfrentado no Brasil
apenas na década de 1990.
O presente texto visa a retratar algumas
das iniciativas governamentais e não-governamentais para enfrentar o tráfico de pessoas,
focando-se em leis específicas e políticas, assim
como no apoio internacional que o Brasil tem
recebido neste tema.
52
A questão do enfrentamento do tráfico
de pessoas entrou na agenda política apenas
no início do novo milênio, quando a primeira
Pesquisa Nacional sobre Tráfico de Mulheres,
Crianças e Adolescentes para fins de Exploração
Sexual Comercial no Brasil, também conhecida
por PESTRAF (2002), foi conduzida por meio
de uma articulação de ONGS brasileiras e universidades com substancial apoio internacional e
do governo federal, por intermédio da Secretaria
Nacional de Justiça (SNJ).
Em dezembro de 2001, o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso – por meio
da Secretaria Nacional de Justiça do Ministério
da Justiça – assinou um acordo com o Escritório das Nações unidas contra Drogas e Crimes
(uNODC) para a implementação do Programa
Global contra Tráfico de Seres Humanos (GPAT),
financiado pelos governos do Brasil e Portugal
para enfrentar o tráfico internacional de mulheres
para exploração sexual.
Em 2002, o Governo Federal, influenciado
plenamente pela PESTRAF, estabeleceu Comitês
Estaduais para a Prevenção e Combate do Tráfico
de Seres Humanos em cinco estados brasileiros
(Bahia, Ceará, Pará, Pernambuco e Rio de Janeiro), basicamente dentro da estrutura do Programa
Federal de Proteção a testemunhas, PROVITA.
Vale salientar que o referido programa se constitui como uma política pública desenvolvida
em parceria por sociedade civil e poder público
especialistas o classificam como o programa de
proteção mais democrático do mundo. Assim, o
governo federal, espelhando-se nessa experiência exitosa, passa a inaugurar uma política publica inovadora com vistas à criação do Sistema
Nacional de Prevenção e Enfrentamento ao TSH.
A Construção do Sistema Brasileiro de
Prevenção e enfrentamento ao Tráfico de
Pessoas.
Em 1999, o Brasil torna-se signatário do
Protocolo de Palermo com o compromisso de
enfrentar o crime organizado transcontinental,
quando por meio do Ministério da Justiça, concebeu o Programa Global de Prevenção e Combate
ao Tráfico de Seres Humanos (GPAT).
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 47-66, fevereiro/2010
O ENFRENTAMENTO AO TRáFICO DE PESSOAS NO BRASIL
O programa apresentado pela Secretaria
Nacional de Justiça/MJ, naquela ocasião, se
configurou no Brasil e na América Latina como
um tratamento-piloto ao crime organizado
transnacional.
Nos anos de sua vigência, o programa
desenvolveu diversas ações, produziu diversos
relatórios e, sob o caráter de livre adesão dos
países traçou os seguintes objetivos: analisar a
situação do tráfico de pessoas do país; capacitar agentes da sociedade civil organizada e do
Estado para lidar com esta situação-problema,
acompanhar inquéritos e processos, promover
campanhas educativas/preventivas sobre o tema,
bem como propor revisão legislativa.
Ressaltamos que o programa supra citado
teve pontos relevantes na formatação de um
sistema descentralizado para integrações de
ações, formação de comitês interinstitucionais
e implantação de cinco centros de referências,
seguindo a rota do tráfico de seres humanos
mapeada pela Interpol (DF, RJ, PER, BA, MS).
Outros dois centros estão em fase de implantação
(SP e PA) Tal iniciativa teve como indicador de
êxito o Departamento de Desenvolvimento da
Mulher das Nações unidas/NY que, na época,
avaliou o GPAT como sendo uma das melhores
práticas do mundo, destacando a organização
dos comitês interinstitucionais e a formação da
rede político-social. Porém, em abril de 2003, a
Secretaria Nacional de Justiça/MJ resolveu não
dar continuidade ao Programa Global nos moldes
que anteriormente estava sendo desenvolvido.
Em junho do mesmo ano, entretanto, representantes dos comitês interinstitucionais, em
parceria com diversas instituições, promoveram
a continuidade do programa concebido. E solicitaram ao Instituto Latino Americano de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos – ILADH,
assumir a coordenação do processo.
A primeira iniciativa do ILADH foi apresentar ao Governo do Estado de Pernambuco
proposta de institucionalização de uma Política
Pública para a Prevenção e Enfrentamento ao
Tráfico de Seres Humanos, observando diretrizes
próprias. Ao lançar mão da proposta, o já referido Governo, por meio da Secretaria de Defesa
Social, instituiu o Programa de Prevenção e
Enfrentamento ao Tráfico de Seres Humanos por
meio do Decreto 25.594, de 01 de julho de 2003.
No ano seguinte, alguns cooperadores internacionais, como ICLEI, GTZ, Fundo Canadá,
OIM, WINROCK, embaixadas e consulados,
passam a ser parceiros fundamentais na implementação dessa política pública.
Em 2005, o ILADH iniciou o fortalecimento dos comitês nos Estados da BA, MS, SP
e RJ, nos quais se inserem o redirecionamento
de diretrizes para a avaliação e realização de
mobilizações sócio-educativas, buscas ativas,
pesquisas. Na mesma época, são feitas parcerias com a PuC/RJ e uSP/SP, para organizar
e promover cursos para formação de agentes
multiplicadores, oficinas de capacitação, encontros nacionais e internacionais, bem como o
intercâmbio de experiências, além da formatação
de uma rede sócio-política com vistas ao atendimento integral às vítimas do Tráfico de Seres
Humanos. Ainda em 2005, o ICLEI monitora e
avalia o programa e garante a sua replicabilidade
na América Latina como prioridade da Agenda
Local 21, para combate à pobreza.
O ILADH, por compreender a necessidade
da existência de um projeto de lei para o Brasil,
no ano de 2003, assessorou os deputados Nelson
Pellegrino (PT/BA) e Orlando Fantasini (PT/SP)
na elaboração de um projeto de lei que tipifica o
crime e cria um sistema de ações integradas para
atendimento às vítimas do TSH. Atualmente,
esse projeto Nº. 2845/2003 encontra-se para
análise na Comissão de Constituição e Justiça
da Câmara Federal.
Por oportuno, vale informar que o ILADH,
no ano de 2004, atuou, por intermédio do Comitê
Interinstitucional de Prevenção e Enfrentamento
ao TSH do Estado de Pernambuco, no único
caso do mundo de vendas de rins concluso em
julgado desbaratando uma máfia internacional
que aliciava vítimas do Estado de Pernambuco/
Brasil para áfrica do Sul e Israel.
Porém, governo do presidente Luiz Inácio
Lula da Silva resolve não validar as ações acima
referidas, decidindo dar ênfase apenas a uma das
modalidades do Tráfico de Pessoas, qual seja: o
enfrentamento à exploração sexual.
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 47-66, fevereiro/2010
53
MARREY, A. G. - RIBEIRO, A. B.
Inicialmente o Governo Federal selecionou
quatro estados prioritários – Ceará, Goiás, São
Paulo e Rio de Janeiro.Tais localidades foram
escolhidas por apresentar intensa atividade de
recrutamento para o tráfico de seres humanos,
enquanto São Paulo e Rio de Janeiro têm os dois
maiores aeroportos internacionais de onde saem
muitas pessoas que são traficadas para o exterior.
É importante ressaltar que uma notória
rota de tráfico de pessoas é de Belém do Pará
para Suriname e seguindo para a Europa. Outras
rotas no Brasil, como a região entre as fronteiras
da Argentina, Brasil e Paraguai (Sanchis, 2005,
citando a Organização Internacional de Migrações – OIM), infelizmente não foram pautadas
nesses cinco anos do primeiro Programa Global
de Combate ao TSH.
O programa supra-referido propôs ações
específicas voltadas para a pesquisa e prevenção
ao tráfico de pessoas para a exploração sexual
nos quatros Estados envolvidos. As outras modalidades de tráfico humano não foram cobertas
nesta primeira fase. Em particular, o trabalho
escravo no Brasil foi retratado de forma separada, recebendo atenção internacional por parte
da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
As ações do Governo Federal voltaram-se para o
treinamento e capacitação de policiais (especialmente a Polícia Federal), campanhas, pesquisas
e diagnósticos e a construção de um banco de
dados com estatísticas de casos de tráfico humano, que não foi inteiramente concluído.
Além disso, conjuntamente com os governos dos quatros Estados envolvidos, o Ministério
da Justiça e a Unidade Contra Drogas e Crimes
– uNODCP promoveram a criação de Escritórios
de Atendimento à Vítima de Tráfico de Pessoas.
Esses Escritórios deveriam, supostamente, promover a assistência jurídica, social e psicológica
com vista à inclusão das pessoas traficadas. Serviços de saúde, educação e social seriam oferecidos por meio de rede de serviços locais. Apesar
de inovador e, até certo sentido, demonstrando o
comprometimento governamental, alguns desses
escritórios, a exemplo do existente no Estado
de Goiás, contraditoriamente, não conseguiram
sobreviver devido à falta de apoio do próprio
governo federal e do governo estadual.
54
A primeira fase do Programa Global de
Combate ao TSH terminou em 2005. Durante o
ano de 2006, o governo brasileiro negociou com
o uNODCP para assegurar o seu apoio financeiro
destinado a uma segunda fase, iniciada em 2007,
que estendeu as ações de enfrentamento ao tráfico para demais Estados brasileiros interessados.
os Escritórios Brasileiros de
Atendimento às Vítimas de Tráfico
de Pessoas: uma breve análise
O Escritório de Atendimento as Vítimas de
Tráfico de Seres Humanos em São Paulo
O escritório em São Paulo foi inaugurado
em maio de 2003, na sede da Secretaria de Estado
de Justiça e Defesa da Cidadania de São Paulo. O
Governo do Estado de São Paulo disponibilizou
uma equipe e um espaço físico, enquanto que
o Ministério da Justiça ficou responsável pela
realização de treinamentos e oficinas sobre o
tema. Em 2007, após um período de avaliação,
o já referido escritório passou a se denominar
Escritório de Prevenção e Enfrentamento ao
Tráfico de Seres Humanos e vem sendo integralmente apoiado apenas e tão somente pelo
governo acima referido. Atualmente, também
exerce a função de secretaria-executiva do Comitê Paulista de Prevenção e Enfrentamento ao
TSH. Esse comitê é composto por 32 instituições.
Dentre as ações do Escritório, vale destacar
que o mesmo oferece suporte às iniciativas da
ASBRAD, ONG que, no final de 2006, iniciou
seu projeto piloto no Aeroporto Internacional de
São Paulo em Guarulhos para assistir brasileiros
deportados ou não admitidos, visando à identificação e atendimento de pessoas traficadas e/
ou que tiveram seus direitos violados durante
o processo.
O Escritório de Atendimento à Vítimas de
Tráfico de Seres Humanos em Goiás
O escritório localizado na capital Goiânia
também foi instalado por meio da cooperação
com o governo estadual, dentro do Ministério
Público do Estado de Goiás. Assim como os
demais escritórios, a demanda também não foi
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 47-66, fevereiro/2010
O ENFRENTAMENTO AO TRáFICO DE PESSOAS NO BRASIL
significativa do ponto de vista dos atendimentos
realizados, embora tenha atendido algumas mulheres traficadas retornando do exterior. Como
resultado, o escritório em Goiás começou a
focar seu trabalho na prevenção e conscientização, com atividades em escolas, visando à
mobilização e ao “empoderamento” de modo
não-discriminatório. O escritório também estabeleceu bons contatos com a rede de assistência
social, uma vez que a coordenadora era líder da
Rede Municipal de Enfrentamento à Violência
Sexual, o que ajudou a fornecer assistência
prática às pessoas traficadas. De fato, existe em
Goiás um Centro de Referência para o Aborto
Legal, bem como Delegacias Especializadas de
Atendimento à Mulher. Como resultado dessas
iniciativas, a Secretaria Especial de Políticas para
Mulheres escolheu Goiás para sediar o Centro
de Assistência à Vítimas de Violência, também
com o objetivo de identificar pessoas traficadas.
Porém, atualmente, o escritório encontra-se desativado por falta de apoios dos governos federal
e estadual.
O Escritório de Atendimento as Vítimas de
Tráfico de Seres Humanos em Ceará
Em contraste com outros escritórios, o de
Fortaleza colabora com o Ministério Público
na questão do tráfico interno, especialmente
envolvendo crianças e adolescentes. Uma delegada da Polícia Civil, sem um mandado para
investigação de tráfico internacional de pessoas,
foi designada para conduzir as investigações e
atuar em conjunto com o escritório. Vale dizer,
também, que esse escritório vem desenvolvendo
suas atividades sem nenhum tipo de suporte do
governo federal.
O Escritório de Atendimento as Vítimas de
tráfico de Seres Humanos no Rio de Janeiro
O Estado do Rio de Janeiro foi o único
que teve seu projeto adiado. O Ministério da
Justiça levou certo tempo para identificar um
parceiro estadual que seria responsável pelo
projeto regional. Em 2005, o Conselho Estadual
dos Direitos da Mulher (CEDIM) tornou-se um
parceiro relevante do Ministério da Justiça tendo
uma sensibilidade natural para as questões de
gênero. O CEDIM vem desenvolvendo diversas
estratégias para a implementação do mandato
do escritório, convidando diversas ONGS relevantes para participar. No entanto, no âmbito do
tráfico para fins de exploração sexual, o Rio de
Janeiro – sendo descrito como o maior fornecedor para o mercado internacional e importante
rota de tráfico (Leal e Leal, 2002) – ainda não
tem políticas de assistência a pessoas traficadas,
uma vez que o escritório não foi implementado
e o governo estadual ainda não tomou nenhuma
medida substancial para tratar do assunto. A
uNIFEM, entretanto, designou uma especialista
no tema para trabalhar no escritório do CEDIM,
localizado no centro do já referido Estado. Segundo informações do CEDIM, esse escritório,
tanto quanto os demais, não vem recebendo
nenhum tipo de apoio do governo federal.
uma breve avaliação se faz necessária uma
vez que a iniciativa do governo federal ao abrir
Escritórios de Atendimento às Vítimas de Tráfico
de Pessoas, mesmo oferecendo diversos serviços,
não garante a efetividade de uma política pública
bem delineada.
Percebe-se um equívoco na escolha do
nome dos Escritórios pelo governo federal, uma
vez que pessoas que sofrem violações de direitos
humanos, especialmente as traficadas, não se
reconhecem automaticamente como “vítimas
de tráfico de seres humanos”. Pessoas traficadas
podem apenas querer esquecer o que aconteceu
com elas, como se isso fosse um pesadelo, uma
escolha sem sorte mediante a qual elas carregam
toda a responsabilidade ou apenas registram
mais uma etapa de vida repleta de violência e
exploração. Elas podem não perceber isso como
uma violação dos seus direitos humanos que
necessita ser confrontada. Neste sentido, vale
um destaque para o escritório de São Paulo, que
recebeu o nome de Escritório de Prevenção e
Enfrentamento ao Tráfico de Seres Humanos e
vem desenvolvendo ações integradas em conjunto com o Comitê Paulista.
Finalizando, convém informar que a
implantação de Escritórios como centros de
referência certamente delineava as bases de
uma política pública de Estados e não de gover-
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 47-66, fevereiro/2010
55
MARREY, A. G. - RIBEIRO, A. B.
nos. Porém, o governo federal não cumpriu o
compromisso com a efetivação desta iniciativa,
inclusive, provocando um enorme desperdício de
recursos humanos e financeiros, uma vez que não
ofereceu acompanhamento político, financeiro e
técnico qualificado com vistas à formatação de
uma rede sistêmica e integrada de ações voltadas
à prevenção e ao enfrentamento ao Tráfico de
Seres Humanos no Brasil.
A Política e o Plano Nacional de
Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas
O ano de 2006 constituiu-se como um
marco histórico para o Brasil, no que se refere
à construção de uma Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. O PNETIP
reconhece o tráfico humano como um problema
multidimensional que necessita de ações articuladas, e envolve pela primeira vez todos os
diferentes atores e agências governamentais que
deveriam estar envolvidos. Numa análise mais
ampla, pode-se dizer que a política antitráfico
brasileira se baseia nos princípios de direitos
humanos (Artigos 1º. e 3º.), uma vez que, por
exemplo, declara que nenhum direito da vítima
é condicionado a sua cooperação com a justiça
(Artigo 3º., III).
Contudo, ainda existe um grande trabalho
pela frente para a efetiva implantação da política. O desenvolvimento e a implementação do
Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de
Pessoas, conforme previsto na Política Nacional,
deverá estabelecer metas específicas a longo,
médio e curto prazo, um cronograma, responsáveis governamentais e necessariamente um orçamento detalhado. A sociedade civil, sem dúvida,
tem um papel importante no monitoramento da
implementação da Política e do Plano Nacional.
A partir do ano de 2009, pode se observar
um incremento frente à implantação da Política
e do Plano suprareferido. O Ministério da Justiça, por meio da Secretaria Nacional de Justiça,
passou a priorizar essa temática assumindo o
desfio na implementação do Sistema Nacional
de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Desta
maneira, tomou para si o papel de organizar
um GT legislativo com vistas à formatação do
56
Projeto de Lei que tipifica o comércio de vidas
como crime e institui o sistema acima referido.
Políticas Migratórias e o Tráfico de Pessoas
Implementar políticas públicas voltadas
a solucionar o problema da migração é um dos
grandes e importantes desafios a ser enfrentado
pela sociedade brasileira. Maior país da América do Sul, o Brasil foi inicialmente um típico
país de destino para migrantes internacionais
durante o período de colonização (e exploração
econômica), a partir de 1500 pelos franceses,
holandeses e (especialmente) portugueses. Mais
tarde, o comércio de escravos da áfrica para o
Brasil causou um crescimento significante da
população no Brasil. Após a abolição oficial da
escravatura em 1888, “a imigração de italianos,
entre o século xIx e no início do século xx,
consistia em mais de 800.000 imigrantes. O
fluxo de japoneses para o Brasil foi de 200.000
imigrantes na primeira metade do século xx”
(CNDP, 2005).
A partir de 1970, a migração interna no
Brasil foi bastante significativa, quando um grande número de pessoas provenientes das regiões
menos desenvolvidas do norte e do nordeste
migrou para o sudeste brasileiro, especialmente
para metrópoles como Rio de Janeiro e São
Paulo. Consequentemente, as favelas se multiplicaram, assim como a desigualdade econômica
e social, uma vez que as cidades não estavam
preparadas para receber milhões de migrantes
(MacDonald, 1991). O mesmo aconteceu com a
migração na Amazônia, incentivada pela ditadura
militar (1964-1985) e pela construção da rodovia
Transamazônica.
Emigração do Brasil
O Brasil teve, durante a década de 80, um
significativo acréscimo no número de pessoas
deixando o país. Estimativas oficiais do Ministério das Relações Exteriores apontam que o
número de brasileiros emigrantes em 2001 foi de
aproximadamente 1.887.895, em torno de 1,5%
do total da população na época. O número de
brasileiros vivendo no exterior aumentou para
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 47-66, fevereiro/2010
O ENFRENTAMENTO AO TRáFICO DE PESSOAS NO BRASIL
aproximadamente dois milhões em 2005 (CNPD,
2005), como consequência, pelo menos em parte,
das sucessivas crises econômicas. De acordo
com estimativas do Ministério das Relações
Exteriores, atualmente de três a quatro milhões
de brasileiros vivem no exterior de forma regular
e irregular (Chagas, 2006).
Em maio de 2005, o Congresso Brasileiro
instaurou a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) para investigar ofensas criminais
e civis relacionadas à emigração ilegal de brasileiros para os Estados Unidos, assim como para
verificar a situação da cidadania de brasileiros
no exterior. uma das muitas recomendações da
CPMI chamava pela ratificação da Convenção
Internacional sobre a Proteção dos Direitos de
Todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros das suas Famílias (CPMI Emigração Ilegal,
2006, 532). O extenso relatório (577 páginas), de
12 de julho de 2006, examinou diversos temas
importantes, como emigração, contrabando de
pessoas – especialmente via México para os
Estados Unidos – bem como a precariedade dos
direitos dos brasileiros (indocumentados) que
vivem no exterior.
É importante ressaltar que os “migrantes
da América Latina e Caribe demonstram relativamente altos níveis de educação e significante
feminização; de fato, mais da metade dos migrantes latinos são mulheres” (tradução não oficial, Pellegrino, 2004,6). De acordo com o censo
populacional de 2001, publicado pelo Instituto
Nacional de Estatísticas da Espanha, 54% de todos os migrantes da América do Sul na Espanha
são mulheres, enquanto que a porcentagem que
representa o grupo feminino evolui para 69,5%,
quando se considera apenas migrantes brasileiros
(Pellegrino, 2004,30).
Também salta aos olhos o fato de que a
maioria dos brasileiros que emigram oficialmente é proveniente do sudeste do país (CNPD,
2005,2), o que parece confirmar a idéia de que a
emigração não é causada pela pobreza absoluta,
mas pela pobreza relativa. Isto é, as desigualdades que pessoas sentem em relação às oportunidades sociais, econômicas e educacionais,
são fatores que impulsionam mais a migração
internacional, do que somente a pobreza.
Finalmente, deve-se destacar que a maior
parte dos brasileiros trabalhadores migrantes entra na Europa como turista, sem permissão para
trabalhar, especialmente aqueles que já se encontravam no setor informal brasileiro. Buscando
ganhar mais dinheiro longe de casa, às vezes,
mesmo sem nenhuma proposta de trabalho, esses
brasileiros acabam normalmente desenvolvendo
trabalhos informais, onde não necessitam qualificações específicas, como babá, doméstico
e trabalho sexual. Esses migrantes geralmente
experienciam alguma forma de exploração, estando vulneráveis para a deportação imediata se,
e quando, seu status irregular for descoberto, ou,
em outras palavras: “..com o fluxo migratório, o
número de migrantes irregular também aumentou e o tráfico de pessoas entre a América Latina
e Caribe e a União Européia resultando num
problema sério. O tráfico de mulheres e crianças
para exploração sexual é particularmente sério
e uma preocupação séria e crescente” (tradução
não oficial, Pellegrino, 2004).
Migração Interna: Exploração Sexual x
Práticas Análogas à Escravidão
O Brasil considera ser de extrema importância o tema migração. Assim sendo, faz-se
necessário estabelecer uma distinção entre o
fluxo migratório da região rural (especialmente
do norte e nordeste) para as grandes metrópoles
urbanas, de um lado, e para as grandes zonas
de desenvolvimento de agricultura, onde o desmatamento, a pecuária e a plantação em escala
industrial têm sido muito lucrativas, do outro. O
tráfico interno para áreas urbanas de desenvolvimento possui modalidades diferentes, a saber:
Tráfico interno de pessoas para a prostituição
(Artigo 231-A do Código Penal);-Tráfico interno
de trabalhadores (Artigos 207 e 149 do Código
Penal, considerando o trabalho escravo ou práticas análogas à escravidão).
A legislação brasileira atual sobre tráfico
de pessoas aborda essas duas questões como
crimes distintos, formalmente apenas identificando o primeiro como tráfico humano. Ainda, o
governo, até a promulgação da Política Nacional
de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, em
2006, também não considerava o confinamento
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 47-66, fevereiro/2010
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MARREY, A. G. - RIBEIRO, A. B.
de trabalhadores em grandes fazendas no norte,
nordeste e centro-oeste do país uma das modalidades do tráfico interno de seres humanos, mas
o identificava como trabalho escravo ou práticas
análogas á escravidão. Tanto a legislação e as
políticas governamentais fizeram (e ainda fazem)
tal distinção como também organizações internacionais, estruturas governamentais, pesquisadores e a sociedade civil organizada separavam (e
ainda separam) questões como trabalho forçado
e exploração sexual. Tal distinção nem sempre é
útil, considerando que por meio do intercâmbio
de informações de boas-práticas obtidas no enfrentamento desses diferentes tipos de exploração, medidas antitráfico mais efetivas poderiam
ser utilizadas em vários outros contextos.
O Relatório sobre Tráfico de Pessoas do
Departamento de Estado dos Estados Unidos
(TIP Report 2006) colocou o Brasil na Lista 2
(Tier 2 Watch Lista), enfatizando o “fracasso em
aplicar penas criminais efetivas contra traficantes que exploram o trabalho forçado” (tradução
não oficial, uS Department of State, 2006, 76),
considerando que “havia apenas uma persecução
reportada no Brasil que resultou na condenação,
em nível nacional, de um crime relacionado ao
tráfico de pessoas durante o período reportado
[sendo 2005 e início de 2006] – uma redução de
três condenações obtidas em 2004” (tradução
não oficial, uS Departamento f State, 2006, 77).
O Departamento de Estado dos Estados
Unidos tipifica corretamente o escravo e as
práticas análogas à escravidão como tráfico
interno de pessoas, entretanto, quando se refere
às condenações criminais no Brasil, o relatório
americano considera apenas o trabalho escravo
e práticas análogas à escravidão no nível internacional, ignorando possíveis condenações
criminais de outras formas de tráfico de pessoas,
como para exploração sexual. O relatório em
questão também não destaca as repressões e condenações não-criminais, como as indenizações e
pagamentos de multas por ofensas à legislação
trabalhista.
Por sua vez, a OIT já destacou que as
iniciativas das autoridades brasileiras para erradicar as práticas análogas à escravidão são vistas
como modelo para outros países. um exemplo
58
importante é a chamada “lista suja” publicada
pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE).
Em outubro de 2006, a lista suja continha os
nomes de 178 empregadores que exploravam
trabalhadores nas suas propriedades rurais.
Como resultado dessa tática, os empresários
e companhias mencionadas na lista suja não
recebem empréstimos de bancos públicos (e
alguns privados).
A OIT confirma que no Brasil ninguém
cumpriu pena de prisão por explorar mão-deobra escrava, enquanto que a CPT estima que
pelo menos 25.000 brasileiros são vítimas anualmente. Em 2004, autoridades brasileiras aparentemente concordavam com tais estimativas
nos seus contatos com a ONU (ILO, 2005). No
entanto, de acordo com a Secretaria de Inspeção
do Trabalho (SIT/MTE), seus grupos móveis de
fiscalização (GEFM, instalados em 2002) conseguiram libertar um total de 17.983 trabalhadores
escravos entre 1995 e 2005 (OIT, 2005).
Verifica-se também que são propostas
mudanças mais estruturais e profundas, como as
propostas de emendas constitucionais (PEC 4382001, antiga PEC 232-1995), que prevêm, entre
outras medias, a expropriação (sem compensação) da terra onde são detectados trabalhadores
escravos. No entanto, ambas estão em discussão
há 11 anos, indicando uma completa falta de interesse político. Por outro lado, o Plano Nacional
de Erradicação do Trabalho Escravo, lançado em
2003, define uma série de ações concretas para
abordar as causas estruturais do trabalho escravo
no Brasil. Esse Plano Nacional também impulsionou a criação do Conselho Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (CONATRAE), com
a participação de organismos governamentais
e organizações não-governamentais. Apesar
de estar baseado em acordos com a OIT, esse
Plano Nacional, infelizmente, não leva em consideração ações de enfrentamento ao tráfico de
pessoas, bem como não faz nenhuma referência
às definições contidas no Protocolo de Palermo
de Antitráfico Humano.
Segundo o Ministério do Trabalho e o CONATRAE, trabalhadores escravos resgatados já
conseguiram pagamento de seguro desemprego
(pago pelo Estado), bem como indenizações
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 47-66, fevereiro/2010
O ENFRENTAMENTO AO TRáFICO DE PESSOAS NO BRASIL
trabalhistas (multas pagas pelos antigos empregadores abusivos). Vítimas de outras formas
de tráfico de pessoas – onde nenhuma forma
regular de trabalho pode ser detectada, no caso
do trabalho forçado de profissionais do sexo –
são tradicionalmente consideradas desprotegidas
pelas progressistas leis trabalhistas brasileiras.
Contudo, as profissionais do sexo podem pedir
indenizações por danos morais ou materiais,
como qualquer outros, por meio das longas e
custosas ações civis, baseadas ou não em uma
condenação penal. Embora o agenciamento da
prostituição seja ilegal, as profissionais do sexo,
no entanto, deveria de alguma forma buscar a
indenização trabalhista em casos de violação,
considerando que a atual jurisprudência aparentemente também honra reclamações trabalhistas
daqueles empregados em outro setor ilegal, como
no jogo do bicho.
Migração: Brasil e o MERCOSUL
O Mercado Comum do Sul – MERCOSuL,
era formado inicialmente pelos seguintes países:
Brasil, Argentina, Paraguai e uruguai. Porém,
logo em seguida, outros países ingressaram:
Chile (1996), Bolívia (1997), Peru (2003),
Colômbia (2004), Equador (2004) e Venezuela
(2004). Apesar do tratado de Assunção, que cria o
MERCOSuL em 1991, voltar-se principalmente
para o livre movimento de capital, produção e
produtos, a migração é significativa dentro da
região.
Dois acordos foram assinados durante o
mês de dezembro de 2002, os quatros Estados
membros iniciais do MERCOSuL, juntamente
com Bolívia e Chile, assinaram dois acordos –
Residência para Nacionais e Regulamentação
da Migração dos Cidadãos do MERCOSuL.
“Segundo o Acordo de Residência para Nacionais dos Países Membros do MERCOSuL,
imigrantes de um país que recebem um visto de
residência temporário ou permanente em outro
país do MERCOSuL receberão o mesmo tratamento que os nacionais deste país, incluindo no
campo do trabalho” (tradução não oficial INTAL,
2004). Os dois acordos só entrarão em vigor
após a ratificação pelos seis países signatários.
“O fato da situação dos mercados de trabalho
dos países do MERCOSuL permanecer difícil
e, de certa forma, um obstáculo significativo de
tal ratificação em curto prazo” (tradução não
oficial, INTAL, 2004).
No ano de 2005, os países do MERCOSuL,
juntamente com Chile, Bolívia, Peru, Venezuela
e Equador, assinaram a Declaração de Montevidéu contra o Tráfico de Pessoas, prevendo a cooperação policial e o intercâmbio de informações
sobre o tráfico humano, especialmente o tráfico
ligado à prostituição (CPMI Emigração Ilegal,
2006, 333). Em 2006, a Declaração de Montevidéu ganhou um significado prático com a adoção
do Plano de Ação para a Luta contra o Tráfico
de Pessoas do MERCOSuL. Desenvolvido em
Buenos Aires, o Plano de Ação do MERCOSuL
identifica pontos focais dentro de cada governo
responsável pela sua implementação, além de
prever campanhas informativas, troca de informações, capacitação de atores governamentais e
não-governamentais e assistência às vítimas do
tráfico de pessoas.
O Brasil é o principal país de destino do
tráfico humano em relação aos países vizinhos.
Imigrantes da América Latina, especialmente bolivianos, paraguaios, peruanos e chilenos – além
de coreanos – enfrentam condições precárias de
trabalho ou até mesmo trabalho forçado e práticas análogas à escravidão nos maiores centros
urbanos do Brasil, especialmente nas pequenas
fábricas de São Paulo (uS TIP Report, 2005).
Imigrantes, a maioria sem documentados, são
atraídos pelas áreas mais produtivas do MERCOSuL, tentando obter uma parte dos benefícios
materiais. Há aproximadamente 150.000 bolivianos na cidade de São Paulo. A maioria não possui
permissão de residência, e muitas vezes essas
pessoas são exploradas em condições injustas
de trabalho. De acordo com o Serviço Pastoral
de Migrantes (SPM) – uma das poucas organizações brasileiras que trabalham diretamente com
migrantes – em torno de 10% dos bolivianos
em São Paulo são sujeitos a práticas análogas
à escravidão e servidão (Castro, 2005). Alguns
migrantes “indocumentados” em situação de
vulnerabilidade se envolvem no tráfico de drogas
como uma forma de pagar suas dívidas, porém
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 47-66, fevereiro/2010
59
MARREY, A. G. - RIBEIRO, A. B.
acabam na prisão. A coordenadora da organização não-governamental ASBRAD já encontrou
um número considerável de mulheres latinoamericanas de diferentes países nas prisões de
São Paulo por tráfico internacional de drogas.
Elas, na verdade, declaram que foram forçadas
a levar drogas como “mulas”.
Em setembro de 2005, o Ministério da
Justiça lançou em consulta pública a proposta do
novo Estatuto de Estrangeiro. O atual Estatuto do
Estrangeiro (Lei no. 6.815, de 19 de agosto de
1980) é resultado do período quando o governo
(militar) estava preocupado com a segurança
nacional, restringindo inclusive os direitos dos
imigrantes. A nova proposta do Estatuto do Estrangeiro pretende ser mais progressista. Além
de facilitar a obtenção do status de residente
temporário em busca de atrair imigrantes, a proposta visa à mudança do Conselho Nacional de
Imigração para Conselho Nacional de Migração,
consequentemente estendendo seu escopo.
Contudo, organizações de migrantes e
agências como SPM acreditam que o novo Estatuto proposto não é tão inovador na questão da
livre mobilidade dentro da região do MERCOSuL e quanto à proteção dos direitos humanos
dos migrantes (Bassegio, 2005). Além disso, o
SPM acredita que a proposta é extremamente
seletiva, atendendo escassamente aos interesses
dos migrantes que não têm qualificação ou têm
pouca educação, porém podendo ser produtivos
na economia brasileira.
Em 2006, o governo federal tornou possível aos bolivianos em situação irregular no
Brasil a obtenção de permissão de residência
sem precisar retornar à Bolívia, implicando um
tipo de anistia. Considerando que os acordos do
MERCOSuL não foram ratificados, o Brasil e a
Bolívia adotaram uma medida temporária para
resolver o problema de uma grande parcela de
bolivianos indocumentados no Brasil. No dia 15
de agosto de 2005, Brasil e Bolívia concluíram
o Acordo de Regularização Migratória Brasil/
Bolívia, com o objetivo de promover a integração
sócio-econômica dos imigrantes indocumentados dos dois países em seus territórios. A única
preocupação aqui se refere ao pagamento da
multa pela residência irregular, considerando
60
que esses migrantes possivelmente não podem
pagar essas taxas para registrar e assegurar sua
residência.
Impacto das Ações de Enfrentamento aos
casos envolvendo as Profissionais do Sexo
(Existem dois grupos de brasileiras (os)
que migram para ganhar dinheiro com comércio
sexual – 1) as profissionais do sexo, que migram
internamente ou para outros países, visando a aumentar seu lucro, e 2) brasileiras sem histórico na
indústria do sexo que consideram a prostituição
como uma oportunidade temporária para ganhar
(mais) dinheiro. Em ambos os casos, as pessoas
optam principalmente pela migração irregular
(deixar o Brasil sem a documentação necessária,
como uma permissão de trabalho ou sem seguir
os procedimentos regulares), ou aceitam ser
contrabandeados para outro país.
O tráfico de pessoas pode (eventualmente)
ser uma conseqüência dessas escolhas. Os dois
grupos de profissionais do sexo migrantes podem
sofrer algum tipo de exploração e violação dos
seus direitos, da mesma forma que experienciam
no Brasil, por encontrar dificuldades sociais e
econômicas. Profissionais do sexo experientes,
contudo, parecem estar relativamente mais
conscientes dos riscos da migração do que outros migrantes, calculando-os e avaliando-os da
mesma forma que fazem no seu trabalho diário
no Brasil.
O Brasil possui um salário mínimo federal
de R$ 465 por mês. A pobreza é uma realidade e,
portanto, a busca de melhores condições de vida
faz parte do cotidiano das pessoas submetidas a
tal realidade. Na maioria dos casos, apenas uma
promessa de emprego é suficiente para gestar no
imaginário dos grupos vulneráveis perspectivas
de futuro e melhoria da qualidade de vida.
Os Artigos 231 e 231-A do Código Penal
focam apenas no tráfico para fins de prostituição.
Esses artigos não consideram o consentimento
das pessoas como fator relevante na avaliação
se um crime foi cometido. às vezes, a polícia
brasileira conduz batida em saunas, casas de
massagem, termas e bordéis para reprimir a prostituição. A legislação brasileira não diferencia a
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 47-66, fevereiro/2010
O ENFRENTAMENTO AO TRáFICO DE PESSOAS NO BRASIL
prostituição forçada da voluntária e, consequentemente, criminaliza todos que ganham dinheiro
com a prostituição de outrem, apesar da prostituição em si não ser proibida no Brasil. Logo,
auxiliar alguém a migrar (internamente ou para
o exterior), sabendo que a pessoa tem a intenção
de praticar a prostituição, pode, de acordo com
a lei atual, ser considerado a prática do crime
de tráfico de pessoas (Piscitelli, 2006, 65). Em
contraste, o Protocolo Antitráfico Humano não
considera a pessoa que decide voluntariamente
em migrar e receber dinheiro pelo comércio
sexual como uma vítima de tráfico humano, ou
alguém que a ajude como traficante, ao menos
que algum elemento de coerção ou força seja
usado, ou o migrante seja menor de 18 anos.
O Impacto das Ações de Enfrentamento ao
Tráfico de Pessoas envolvendo Migrantes
um verdadeiro arsenal jurídico é utilizado
por países, avaliados como sendo rota do tráfico
de pessoas, para enfrentar a atuação do crime
organizado transnacional. Especialmente os
países de destino implementam políticas que são
contrárias aos interesses das pessoas traficadas
e dos migrantes em geral como estratégias de
defesa para o enfrentamento desse tipo de prática
criminosa. Não por acaso, muitos desses países
endureceram suas legislações numa tentativa de
conter e controlar a migração, até mesmo adotando métodos repressivos para lidar com a questão.
A pesquisa conduzida no Aeroporto Internacional de São Paulo em relação aos brasileiros
deportados ou não admitidos em outros países
e repatriados confirma quem em sua maioria, as
mulheres brasileiras cuja entrada nos países da
União Européia foi recusada não eram, na verdade, profissionais do sexo (Piscitelli, 2006). “Há
uma imagem cristalizada sobre as brasileiras de
certas camadas sociais, cores e estilos corporais
que as constrói como prostitutas” (Piscitelli,
2006, 65). Esse estereótipo parece ser nutrido
pelos departamentos de imigração em vários
países. Muitas mulheres brasileiras deportadas
ou não admitidas mencionaram as humilhações
e péssimos tratamentos que sofreram na Europa.
“É importante considerar que as prostitutas são
mais visíveis e vulneráveis que outras trabalhadoras em situação irregular e é possível que este
aspecto incida em uma maior representação de
trabalhadoras do sexo no grupo de deportadas”
(Piscitelli, 2006, 65). A pesquisa revela que os
países europeus tratam as brasileiras de forma
humilhante e desrespeitosa:
“O estudo sugere que nesses países há uma
forte preocupação pela migração irregular,
que, se tratando de brasileiras, é altamente
vinculada ao estigma da prostituição”
(Piscitelli, 2006. 67).
E conclui que os aparelhos de repressão
ainda não conseguem lidar de maneira satisfatória com as supostas vítimas de tráfico humano
chegando em alguns momentos a vulnerábilizá-las.
O Impacto das Ações de Enfrentamento ao
Tráfico de Pessoas envolvendo Crianças e
Adolescentes
A Pesquisa sobre Tráfico de Mulheres,
Crianças e Adolescentes para fins de Exploração
Sexual Comercial (PESTRAF) identificou o fluxo de crianças e adolescentes traficados para fins
de exploração sexual comercial. Nas 110 rotas de
tráfico interno, intermunicipais e interestaduais,
identificou-se um número de adolescentes maior
do que o número total de crianças (até 12 anos)
e mulheres adultas juntas (Leal e Leal, 2002).
Durante o ano de 2006, foi lançado o programa de capacitação, financiado pela uSAID
(cooperante americana), para desenvolver uma
metodologia de referência nas redes de serviço
em 11 cidades, com o foco nos abrigos para
crianças e adolescentes até 18 anos vítimas de
tráfico interno para fins de exploração sexual.
A escolha pela assistência às crianças e adolescentes foi feita para evitar qualquer dilema em
relação aos fundos da uSAID – considerando
que os fundos para iniciativas de prevenção a
HIV/AIDS e antitráfico são condicionadas aos
parceiros locais que devem se opor ao trabalho
sexual comercial.
O Programa de Assistência a Criança e
Adolescente Vítima de Tráfico para Exploração
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 47-66, fevereiro/2010
61
MARREY, A. G. - RIBEIRO, A. B.
Sexual da Partners of the Américas reconhece
que: “o programa foca em criança até 18 anos
que são vítimas de tráfico para fins de exploração
sexual. No caso de uma criança ou adolescente
você não precisa debater a questão da prostituição voluntária, pois existem parâmetros
legais para proteção contra o que é considerado
crime. No caso de adultos, essa é uma questão
mais complexa, que envolve outros pontos”. O
programa da uSAID assiste apenas as crianças
e adolescentes traficadas dentro do Brasil para
a exploração sexual.
Vale destacar que foi observado um novo
fenômeno acerca do tráfico de crianças, especialmente relevante no país do futebol. O Relatório
do Parlamento Europeu, de 2007, sugere que
“serão necessárias disposições adicionais com
vista a assegurar que a iniciativa relativa aos
jogadores formados nas próprias escolas dos
clubes nos conduza ao tráfico de adolescentes,
com alguns clubes a proporem contratos a jogadores muito jovens (menos de 16 anos de idade)”,
(Belet, 2007, 10).
Finalmente, considerando os procedimentos criminais em geral, a justiça brasileira
garante automaticamente algum sigilo em casos
envolvendo crianças e adolescentes, apesar desse
tipo de estratégia também poder ser requisitado
em determinadas circunstâncias em processos
civis e criminais. Para adultos, contudo, esse
não é um procedimento padrão e as vítimas e
testemunhas normalmente têm sua identidade
exposta durante o processo legal, não recebendo
nenhum suporte especial, sentindo-se, portanto,
inseguras e apreensivas.
O Impacto das Iniciativas de Enfrentamento
ao Tráfico de Pessoas nas Comunidades
Indígenas
O Brasil é um país cujas dimensões territoriais do Brasil causam preocupação no que diz
respeito ao tráfico de seres humanos, especialmente considerando as remotas comunidades
indígenas. Apesar da falta de informações específicas sobre tráfico envolvendo pessoas de comunidades indígenas brasileiras, algumas questões
têm recebido certa atenção. A exploração sexual
62
e prostituição de jovens mulheres e adolescentes
indígenas, por exemplo, têm provocado algumas
poucas reações por parte de instituições oficiais
como a FuNAI (Fundação Nacional do índio)
e FuNASA (Fundação Nacional de Saúde). O
Conselho Indigenista Missionário (CIMI) destaca casos de exploração sexual em diferentes
Estados, como Paraíba, Mato Grosso do Sul e
Paraná. “Na Paraíba, o crescimento desordenado do turismo no território indígena favorece a
infiltração do crime organizado e o aliciamento
de meninas para a exploração sexual” (CIMI,
2006). De acordo com o Comitê de Prevenção
e Enfrentamento ao Tráfico de Seres Humanos/
MS, o problema é particularmente sério na
região Centro-Oeste do Mato Grosso do Sul,
onde mulheres e adolescentes indígenas estão
se prostituindo e sendo usadas para o tráfico
internacional de drogas.
Constituí-se em uma enorme preocupação
o recrutamento de crianças indígenas pelos
traficantes de drogas e outras organizações criminosas. “Em Dourados (MS), uma jovem de
15 anos foi aliciada por traficantes e obrigada
a se prostituir para pagar pelas drogas que usa”
(CIMI, 2006). Recente reportagem publicada
em um dos mais importantes jornais do Brasil
denuncia o recrutamento de crianças brasileiras
da fronteira da Amazônia com Colômbia. Pelo
menos 03 (três) municípios (Santo Antônio de
Iça, Atalaia do Norte e São Gabriel da Cachoeira), reportaram o recrutamento de adolescentes
brasileiros para as guerrilhas colombianas. O
Coordenador de Operações Especiais de fronteira da Polícia Federal (COESF) declarou inadequadamente que “os adolescentes não foram
forçados a se juntar às FARC (Forças Armadas
Revolucionárias da Colômbia), mas sim seduzidos pelo dinheiro oferecido pela organização,
pelo que sabemos, as FARC não pagam o que
prometem” (Coordenador da COESF in Gripp,
19 de dezembro, 2006)
Diante do acima exposto pode-se concluir
que o tráfico e a exploração de pessoas de comunidades indígenas continuam sem merecer a
devida atenção do poder público – e muito menos
da comunidade acadêmica por se tratar de uma
questão tão marginalizada quanto às próprias
comunidades indígenas no Brasil.
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 47-66, fevereiro/2010
O ENFRENTAMENTO AO TRáFICO DE PESSOAS NO BRASIL
Conclusão
“Não é suficiente declarar solenemente
os direitos”. humanos, é necessário
promovê-los, ensiná-los e protegê-los...”
Proteger os direitos humanos, prevenindo e enfrentando o tráfico de seres humanos é
uma tarefa extremamente difícil e ambiciosa.
Principalmente no que diz respeito ao tráfico de
mulheres, por ensejar lucros altíssimos, superados somente – em termos de atividade criminosa
– pelo tráfico de armas e de drogas (dados da
uNODCP). Além disso, as pessoas traficadas
na maioria dos casos não se consideram vítima,
quer por não possuir a verdadeira noção de que
estão praticando contra elas um crime, ou, ainda,
por sentir-se francamente seguras de que foi livre
sua opção de aceitar as sedutoras propostas. Por
oportuno, vale salientar que dada à situação de
ilegalidade das vítimas no país de destino, não
tem elas condições de reivindicar seus direitos.
Os seres humanos vítimas do Tráfico de
Pessoas, ao chegar ao país de destino, têm os documentos confiscados e são forçados a trabalhar
em condições miseráveis, mediante pagamento
irrisório a pretexto de que devem quitar uma
dívida pretensamente contraída com passagens,
roupas entre outros objetos. Em breve espaço de
tempo, percebem que jamais irão conseguir pagar
tais dívidas, transformando-se em verdadeiras
escravas dos aliciadores, inclusive impedidas de
sair do local em que se encontram confinadas,
bem como proibidas de manter qualquer tipo de
comunicação com amigos e/ou familiares.
O incremento na prática desses tipos de
crime revela que não há limites à violência contra pessoas frágeis e indefesas do poderio das
organizações criminosas globalizadas.
“O drástico nível de desigualdades social
no Brasil e a falta de oportunidade de emprego
são fatores que impulsionam brasileiros a deixar suas casas e seu país” (tradução não oficial,
Almeida; Leite e Nederstigt, 2006,34). Essa
causa natural deveria ser a primeira e central
observação de qualquer conclusão sobre tráfico
interno e internacional de pessoas. Não somente
por ser uma questão óbvia, mas por nos lembrar
que os esforços antitráfico poderão, na verdade,
não ter nenhum efeito real, mas apenas um efeito
paliativo, promovendo pouca assistência, sem
nenhuma providência tomada contra a contínua
exploração do ser humano.
Estes são os resultados, em grande parte,
das atuais políticas macroeconômicas e sociais
que se aglutinam ao crescimento ilimitado
do capitalismo e da globalização, baseada no
princípio do mercado livre e de políticas de nãointervenção pelo Estado. Sugere-se, portanto,
que o foco na discussão sobre a efetividade das
medidas de enfrentamento ao tráfico de pessoas
esteja voltado para as contradições entre os esforços antitráfico, por um lado, e as macro-políticas
que fertilizam as causas do tráfico humano, por
outro – causas que podem diluir as ações de
enfrentamento ao tráfico em meros simbolismos.
Pessoas sem acesso a educação, saúde e
especialmente emprego ou segurança social
naturalmente procuram soluções práticas. Elas
podem optar corajosamente pela migração com
forma legítima de procurar melhores condições
de vida, necessariamente aceitando os riscos,
incluindo aqueles relacionados à migração
irregular, à contratação de contrabandistas e
possivelmente acabando no tráfico de pessoas.
Prevenir pessoas de migrar, além de ser iniciativa
um tanto ingênua no mundo globalizado, viola
os direitos de liberdade de locomoção e o direito
de deixar qualquer país (artigo13 da Declaração
Universal de Direitos Humanos).
um dos maiores desafios para o governo
brasileiro será a implementação da Política e
do Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico
de Pessoas no sentido de garantir a eficácia das
ações planejadas com vistas à estruturação de
uma política pública e de direitos humanos a ser
desenvolvida em parceria entre sociedade civil
e poder público.
Os esforços governamentais e não-governamentais no enfrentamento ao tráfico de pessoas
estão diretamente ou indiretamente financiados
e programados por organismos governamentais
internacionais, governos estrangeiros ou por
organizações não-governamentais. O interesse
internacional frente aos esforços antitráfico no
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 47-66, fevereiro/2010
63
MARREY, A. G. - RIBEIRO, A. B.
Brasil se tornou evidente apenas há alguns anos,
e pode ser bem-vindo quando envolve o intercâmbio de informações, boas práticas, acordos
bilaterais, capacitações e recursos financeiros,
a serem gastos de acordo com as prioridades
brasileiras.
um grande desafio a ser enfrentado é o fato
de algumas instituições brasileiras, bem como a
mídia, ignorarem a diferença entre prostituição
forçada e exploração sexual de um lado, e a
prostituição voluntária de outro. Essa questão
torna-se mais complicada se misturada com o
turismo sexual e exploração sexual comercial de
crianças e adolescentes. Além disso, conceitos
associados, porém diferentes, como contrabando
de pessoas e a imigração irregular permeiam a
discussão, nem sempre contribuindo para um
debate produtivo. Essas confusões têm um impacto negativo no desenho e implementação de
estratégias adequadas e pertinentes no enfrentamento ao tráfico de pessoas. Isto é, deve-se ter
em mente que medidas de proteção para crianças e adolescentes explorados sexualmente ou
traficados, como as iniciativas da uSAID, não
podem ser aplicadas automaticamente a adultos
traficados, uma vez que adultos devem ser assistidos de forma diferenciada. Certamente, deve-se
reconhecer e apreciar que o tráfico internacional
de pessoas e o contrabando de pessoas foram
retratados recentemente na televisão brasileira,
pela primeira vez, pelas populares e influentes
telenovelas. No entanto, a diferença existente
entre essas duas questões ainda não está clara
para o público geral.
Destaca-se também, como uma excelente
prática a ser replicada a atuação do Instituto
Latino-americano de Promoção e Defesa dos
Direitos Humanos – ILADH na implantação
de Comitês interinstitucionais formados pela
sociedade civil e pelo poder público nos estados indicados pela Interpol como sendo rota
do tráfico de seres humanos no Brasil, além da
formação de uma rede de suporte psicosocial as
vítimas desse tipo de modalidade criminosa. O
ILADH vem evidenciando esforços no sentido
de fortalecer a base social e política desse Sistema, objetivando a consolidação de uma política
pública de Estado, e não de governos.
64
Trata-se, portanto, de uma construção coletiva, edificada com consagração de uma política
pública que vem propiciando a preservação da
integridade física e psicológica das vítimas que
exercem a sua cidadania, ajudando a elucidar
ações do crime organizado transcontinental,
considerados relevantes para a história mundial
dos Direitos Humanos.
Finalizando, vale destacar uma conclusão
significativa, no tocante às questões migratórias,
o fato de que quando há poucas oportunidades
de migração regular e um excesso de fatores que
impulsionam a migração, pessoas em situação de
vulnerabilidade serão mais facilmente rendidas
por redes de tráfico humano e contrabando.
Portanto, o Brasil como um país de origem e
de destino, ao promulgar o novo Estatuto do
Estrangeiro baseado na afirmação dos direitos
humanos, a livre locomoção dentro da região do
MERCOSuL e a rápida ratificação da Convenção Internacional sobre a proteção dos Direitos
de Todos os Trabalhadores Migrantes e Membros
de suas Famílias, deu um grande passo no enfrentamento ao Tráfico de Pessoas.
Desafios/Perspectivas
O atual cenário político brasileiro vem
investindo na construção de políticas voltadas
à prevenção e ao enfrentamento ao tráfico de
seres humanos. E a sociedade civil tem um papel
de destaque nesse cenário. O tráfico de pessoas
voltou à agenda política pelo Plano Nacional de
Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. O aspecto
multidimensional do tráfico de pessoas é reconhecido, bem como ministérios são convidados
a participar da elaboração das iniciativas acima
referidas. Todas as formas de exploração ao
tráfico de pessoas e mencionadas no Protocolo
Antitráfico Humano, incluindo o trabalho forçado e práticas similares à escravidão, e a remoção
de órgão, são oficialmente consideradas tráfico
de pessoas.
É importante destacar, também, que o Brasil vem se tornando uma referência internacional,
de acordo com a OIT, no combate ao trabalho
escravo, o que poderá facilitar a implementação
de boas práticas (assim com a prevenção de más
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 47-66, fevereiro/2010
O ENFRENTAMENTO AO TRáFICO DE PESSOAS NO BRASIL
práticas). O conhecimento brasileiro acerca da
erradicação do trabalho escravo, apesar das críticas plausíveis, é um grande trunfo no desenvolvimento de ações conjuntas para o Plano Nacional
de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas.
A prostituição forçada e o trabalho escravo
são problemas distintos, porém, com muitos
elementos em comum; portanto, as estratégias
de enfrentamento poderão também ter pontos em
comum, evitando, entretanto, a fragmentação e
superposição de ações. O Protocolo Antitráfico
Humano claramente considera os dois tipos de
exploração de pessoas. A existência de dados
indiscutíveis acerca de que tais problemas se
desenvolvem em terreno de atuação de redes
criminosas transnacionalmente organizadas leva
à constatação de que a responsabilidade pelo
seu enfrentamento deve ser assumida em nível
global, com a colaboração de toda a comunidade
com maior ênfase para os países diretamente
envolvidos, quer na condição de exportadores,
quer na de destinatários.
Vale destacar a relevância para o Brasil
de um projeto de lei que tipifique o tráfico de
pessoas como crime, além da criação de um
Sistema Nacional de Enfrentamento ao Tráfico
de Pessoas. Tais iniciativas ao serem adotadas
pelo Governo Federal por certo consolidarão a
democracia pautada pelo estreito compromisso
com a efetivação dos Direitos Humanos.
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POLíTICA CRIMINAL CARCERáRIA NO BRASIL E POLíTICAS PúBLICAS
Artigo
PoLítiCA CriminAL CArCEráriA no BrASiL
E PoLítiCAS PúBLiCAS
Antonio Roberto xavier*
rESumo: Neste artigo, num primeiro momento, discuto sobre os principais problemas
existentes nas prisões brasileiras em relação ao
tratamento desumano e degradante dispensado
aos apenados. Num segundo momento, demonstro a realidade das prisões no Brasil com relação
ao contingente e os tipos sociais que mais são
pegos pela lei penal. Por último, alerto sobre a
possibilidade constante de rebeliões nas prisões
em todo País.
Palavras-chave: Política criminal. Prisões. Lei
penal
ABStrACt: In this article, at a first moment,
I argue on the main existing problems in the
Brazilian prisons in relation to the inhuman and
degraded treatment excused the imposed a fine
on ones. At as a moment, I demonstrate to the
reality of the prisons in Brazil with regard to the
contingent and the social types that more are to
catch for the criminal law. Finally, I alert on the
constant possibility of rebellions in the prisons
in all Country.
Keywords: Criminal policy. Prisons. Criminal
law.
1. introdução
A política criminal carcerária no Brasil
sempre ocorreu de maneira descolada das políticas públicas de inclusão ou de ressocialização
dos apenados. A história do tratamento desumano, degradante, criminalizador e fossilizador
*SGT da PMCE 5ª CIA/1ºBPM; Mestre em Políticas Públicas e Sociedade – uECE (2008), Mestre em Planejamento e Políticas Públicas – uECE
(2007); Especialista em História e Sociologia – uRCA (2006) e Graduado em História – uECE (2002).
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 67-73, fevereiro/2010
67
xAVIER, A. R.
no sistema carcerário brasileiro vêm de longe.
Sob as concepções do Direito Penal postivistalegalista, a política criminal e o Sistema Penal
Brasileiro – SPB padece de políticas públicas
voltadas para o respeito e a dignidade da pessoa
humana.
Vivemos atualmente diante de duas questões cruciais no País com relação à violência
criminal: a primeira diz respeito ao aumento
descontrolado dessa violência em todos os espaços. A segunda questão que também é derivada
da primeira paira na adoção de política criminal
sempre mais dura aumentando cada vez mais a
superlotação carcerária. Na realidade é possível
se dizer que no Brasil nunca houve política criminal planejada, estudada, direcionada e atualizada
para a área carcerária. Como conseqüência mais
visível, vez por outra, há erupções de megarebeliões e o avanço do Crime Organizado se torna
uma ameaça à soberania do Estado Democrático
de Direito a partir das penitenciárias. Foi o caso
das rebeliões em quase todos os presídios dos
Estados brasileiros e os ataques a alvos civis e a
agentes do poder público ocorridos em (2006),
comandados pelas duas maiores organizações
criminosas do Brasil: Primeiro Comando da Capital – PCC, em São Paulo e Comando Vermelho
– CV no Rio de Janeiro. Neste sentido, a função
das prisões no Brasil não é ressocializar apenados, mas, castigar desumanamente e transformar
delinqüentes de pequenos delitos em criminosos
em potencial. É preciso saber qual o sentido das
prisões respondendo a três perguntas básicas: por
que punir? A quem punir? Como punir?
2. modelo do sistema penitenciário
na sociedade disciplinar
Segundo Foucault (2001a), o modelo do
novo sistema penitenciário surgiu na Europa na
passagem do século xIII para o século xIx e
serviu, entre outras coisas, como um laboratório
para constituição de um corpo de saber sobre o
criminoso e seus delitos. As prisões desse novo
modelo carcerário são tecnologias políticas típicas do novo modelo de Sociedade: a Disciplinar,
surgida no final do século xVIII, por ocasião da
68
instalação do Estado-Nação (pós-Revoluções
Americana e Francesa) em substituição a Sociedade de Soberania do Estado Absolutista.
Segundo ainda Foucault, inicialmente, as
prisões foram criadas para vigiar, punir e registrar continuamente o indivíduo e sua conduta,
limitar seus espaços e controlar o seu tempo. Para
cumprir esse objetivo, as prisões necessitavam
de um projeto arquitetônico elaborado pelo empirista e jurista inglês Jeremy Bentham, em fins
do século xVIII, descrito por Foucault:
Façamos uma breve revisão do funcionamento arquitetônico do panopticon. Ele
consiste num amplo terreno com uma
torre no centro e, em sua periferia, uma
construção dividida em níveis e celas.
Em cada cela, duas janelas que permitem
a vigilância das celas. As celas são como
‘pequenos teatros’, onde cada ator está
sozinho, perfeitamente individualizado e
constantemente visível. O detento, deste
modo, torna-se visível ao supervisor,
porem apenas a este, ele é privado de
qualquer contato com as celas contíguas.
Ele é ‘objeto de uma informação, jamais
sujeito numa comunicação’.... Foucault
ressalta que isto se dava através da indução
do detento a um estado de objetividade, de
permanente visibilidade. O detento não
pode ver se o guarda está ou não na torre,
portanto, deve se comportar como se a
vigilância fosse constante, infinita e absoluta. A perfeição arquitetônica é tal que,
mesmo que o guarda não esteja presente,
o aparelho de poder continua a funcionar
(apud DREYFuS & RABINOW, 1995,
p. 207).
O poder panóptico de Bentham é contínuo,
disciplinar e anônimo podendo ser acionado por
qualquer um que esteja na condição de fazê-lo
e qualquer um pode estar sujeito a seus mecanismos. Se esse poder panóptico funcionasse
infalivelmente não haveria violência nas prisões, pois os presos, por não saberem quando
estão sendo vigiados tornar-se-iam guardiões
de si próprios. Conforme Foucault, o panóptico
produz, ao mesmo tempo, saber, poder, controle
do corpo e controle do espaço, numa tecnologia
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 67-73, fevereiro/2010
POLíTICA CRIMINAL CARCERáRIA NO BRASIL E POLíTICAS PúBLICAS
disciplinar integrada. É um esquema de poder de
constante vigilância de seus habitantes. É uma
tecnologia do poder disciplinar. Sem dúvida, o
panóptico sendo, ao mesmo tempo, vigilância
e observação, segurança e saber, isolamento e
transferência, encontrou, na prisão, o lugar ideal
para sua realização. No entanto,
Uma dimensão extremamente importante
do funcionamento do sistema de prisão é
o fato de que ele nunca conseguiu cumprir
suas promessas. Desde o seu nascimento e
até o presente, as prisões não funcionaram.
A descrição de Foucault do número de
reincidências e a uniformidade da reforma
retórica é tocante. As prisões não corresponderam às exigências para as quais eram
as únicas qualificadas: produzir cidadãos
normais a partir de criminosos empedernidos (idem, p. 214).
Na visão Foucaultiana a análise deve girar não em torno do fracasso das prisões, mas
a que objetivos ou lições se pode tirar com os
supostos fracassos (que ao final nem fracassos
são). Neste caso, seria necessário supor que
a prisão e os castigos não sejam destinados a
suprir as infrações, mas antes, a “distingui-las,
distribuí-las, utilizá-las; que eles visem, nem
tanto a tornar dóceis aqueles que estão prontos
para transgredir as Leis, mas que eles tentem
organizar a transgressão das Leis numa tática
geral das sujeições” (idem, ibidem). Com efeito,
conforme Deleuze (1981), a partir, sobretudo da
2ª Guerra Mundial consolidou-se um novo modelo de Sociedade, a de controle em razão das crises
dos estabelecimentos de confinamento (escola,
fábrica e prisões). Neste sentido, nesta sociedade
o controle social terá que acompanhar os avanços
tecnológicos podendo, inclusive, o apenado ser
acompanhado no cumprimento de sua sanção por
meio de chips, coleras eletrônicas, etc.
3. A realidade das prisões no Brasil
A indistinção de infrações penais: a falta
de distribuição eqüitativa e justa e a falta de
aproveitamento de infratores menos periculosos
nas prisões brasileiras vêm, ao longo do tempo,
transformando o Sistema Penitenciário Brasileiro
numa constante escola de aperfeiçoamento para
violência criminal em todos seus aspectos. A
prática indiscricionária de amontoar presos nas
prisões no Brasil vem de longe. Na década de
1930 e durante o Regime Militar, por exemplo, o
autoritarismo político dos governantes permitiu
jogar nos cárceres pessoas que tinham ideologias
partidárias (presos políticos) junto com os presos condenados por infrações penais ou presos
comuns. O contato dos presos políticos com os
condenados comuns contribuiu e muito para
conscientização e reconhecimento de direitos
sempre negados aos reclusos comuns.
Aqui no Brasil, por exemplo, a massa carcerária extraiu muitas lições do contato havido na década de 1930 com os membros
da Aliança Nacional Libertadora encarcerados na Ilha Grande. quando os presos
políticos se beneficiaram da anistia que
marcou o fim do Estado Novo, deixaram
nas cadeias presos comuns politizados,
questionadores da causas da delinqüência
e conhecedores dos ideais do socialismo
(LIMA, 1991, p. 27).
A história do presídio Cândido Mendes
situado na Ilha Grande no Estado do RJ demonstra a dura realidade do Sistema Penitenciário no
País. A cadeia havia sido criada durante a primeira República, ainda no contexto das Sociedades
Disciplinares analisadas por Michel Foucault.
Nela existia um posto de fiscalização sanitária
para detectar males em navios que vinham da Europa e da áfrica, como a febre tifóide. Na década
de 1920, o presídio Cândido Mendes servia para
presos idosos e para aqueles que estavam prestes
a terminar suas penas. Porém, a partir de 1964,
com o advento do regime militar o presídio foi
transformado em prisão de segurança máxima
onde se juntou o bandido dito irrecuperável com
o velho presidiário, que trabalhava como colono
nas lavouras em torno do presídio. Isto contraria tanto o projeto panóptico arquitetônico de
Bentham como as intenções de possível justiça.
A situação carcerária no Brasil não somente
se constitui num caos, mas tende a se transformar numa erupção constante de megarebeliões.
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 67-73, fevereiro/2010
69
xAVIER, A. R.
As freqüentes rebeliões e motins que ora estão
ocorrendo nos presídios e cadeias públicas no
Brasil continuarão acontecendo com maior força,
ainda. quando em 1971, na França, Foucault
diagnosticou que as prisões iriam “pegar fogo”,
muitas autoridades e estudiosos da época o ignoraram. Porém,
O início de uma onda de motins que se
estendeu pelos estabelecimentos penitenciários franceses durante o inverno
de 1971-1972. Mais de trinta canais de
detenção e centrais tornaram-se palco de
greves, de motins, de sit-in. Esses movimentos que serão sucedidos pelos de 1973,
estão na origem da reforma penitenciária
de meados dos anos 1970.... Os detentos
exatamente porque detentos e humilhados
e usados e explorados, tornaram-se uma
força coletiva em face da administração.
Para Foucault, esta força dava testemunho
do início de um processo, essa sublevação
era a primeira manifestação de ‘uma luta
política encetada contra todo o sistema
penal pela camada social que era sua primeira vítima’ (GROS, 2004, pp. 17 e 19).
Esses fatos demonstraram o quanto Foucault estava correto em sua análise e quanto
acreditava que o poder, mesmo sendo o de
dominação sobre apenados precisa ser dosado
coordenadamente. Para Foucault o que se tem
de analisar não é uma teoria ou um conceito
sobre o poder, mas como ele opera. Para ele a
dominação não é a essência do poder, mas que
o poder se exerce tanto sobre o dominado como
sobre o dominante. É possível perceber que há
nas relações de poder um processo dialético que é
transferido às relações sociais proporcionando a
auto-formação ou a auto-obediência. Nesta ótica,
as relações de poder operam de forma objetiva,
intencional, estratégica, gradual, lógica e articulada. É desta forma que o panoptismo de Jeremy
Bentham (1791), tomado por Foucault, constituise numa forma geral e definidora das relações de
poder com a vida cotidiana nas Instituições Disciplinares, especificamente nas prisões. quando
não se compreende e não se segue as normas de
como o poder deve ser operado este pode causar
grandes resistências, superiores as suportáveis e
70
aí o exercício do poder não produz, mas provoca
o caos. É nesse aspecto que o autoritarismo das
leis e do poder público no Brasil tem proporcionado megarebeliões e motins constantes nas
penitenciárias e cadeias por todo o País.
O poder não é uma mercadoria, uma posição, uma recompensa ou um trauma, é a
operação de tecnologias políticas através
do corpo social.... Para compreender o
poder e sua materialidade, seu funcionamento diário, devemos nos remeter ao
nível das micro-práticas, das tecnologias
políticas onde nossas práticas se formam.... O poder não estar restrito às instituições políticas. O poder representa um
‘papel diretamente produtivo’, ‘ele vem de
baixo’, é multidirecional, funcionando de
cima para baixo e também de baixo para
cima.... Na prisão, tanto os guardas quanto
os prisioneiros são alocados sob as mesmas operações específicas de disciplina
e vigilância, sob as restrições concretas
da arquitetura da prisão (DREYFuS &
RABINOW, pp. 203-204).
O Brasil administra um dos maiores
sistemas penais do mundo ficando entre os
dez. A população carcerária está distribuída em
vários estabelecimentos carcerários, incluindo
penitenciárias industriais terceirizadas, presídios
e cadeias públicas, casas de detenção, distritos e delegacias policiais, colônias agrícolas,
centros de observação e recuperação, casas de
albergados, hospitais de custódia e tratamento
psiquiátrico e os núcleos para menores.
As cadeias públicas, que parecem mais
verdadeiros calabouços, estão repletas de presos.
As penitenciárias, presídios públicos ou terceirizados, casas de albergados e até as colônias
agrícolas estão com excedentes de apenados.
Segundo pesquisa divulgada pelo Departamento
Penitenciário Nacional – DEPEN, no último ano
do governo de FHC, 2002, o sistema carcerário brasileiro abrigava 239.345 pessoas, entre
homens e mulheres. Em dezembro de 2006, o
registro era de 401.236 apenados, entre homens
e mulheres. Isto significa um aumento de 67%
a mais de presos. Na variável homem/mulher
verificou-se uma estabilidade, ou seja, em 2002,
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 67-73, fevereiro/2010
POLíTICA CRIMINAL CARCERáRIA NO BRASIL E POLíTICAS PúBLICAS
95,7% dos presos eram homens, enquanto em
2006, eram 94,25%. A pesquisa começou em
2000 e o crescimento foi constante, mas a partir
de 2003, segundo Maurício Kuehne, diretor
do DEPEN, o aumento foi significante. Isso
ocorre, segundo Kuehne, porque entram mais
presos do que saem no sistema. É registrado, em
média mensal, um excedente de 3.000 (três mil)
presos no sistema carcerário. Atualmente, em
razão do aumento do fluxo carcerário, o sistema
penitenciário do Brasil abriga 103.433 presos a
mais do suportável (DIáRIO DO NORDESTE,
27/03/2007, P.16.)
Apesar das garantias de proteção e respeito
à pessoa humana relativa à população carcerária
constar na Constituição Federal (art.5º), de 1988,
incluindo respeito e proteção à integridade física
e moral, na prática isto não ocorre. Bem antes da
CF de 1988, o CPB, que é de 1940, em seu artigo
38 estabelece: “Aos presos serão assegurados
todos os direitos não atingidos pela lei”.
Além desses instrumentos legais existe
uma Lei específica destinada, exclusivamente,
ao sistema carcerário, a Lei de Execuções Penais
– LEP (Lei Nº 7.210, de 11 de 07 de 1984). Esta
Lei, em tese, é o guia essencial à Administração
penal e regulamenta, normatiza e prevê direitos
e deveres dos apenados e dá outras providências. Em seu artigo 10, a LEP estabelece que a
assistência ao preso e ao internado é dever do
Estado, objetivando prevenir o crime e orientar
o retorno à convivência em sociedade. A LEP
foi criada com o objetivo de proteger os direitos
substantivos e processuais daqueles que estão no
cárcere cumprindo penas, garantindo-lhes, inclusive, assistência jurídica, de saúde, educacional,
sócio-cultural, religiosa, material e trabalhista. A
assistência material prevista nos artigos 12 e 13
da LEP prevêem que ao preso e ao internado será
fornecido alimentação, vestuário e instalações
higiênicas e o cárcere disporá de instalações e
serviços que atendam aos presos nas suas necessidades pessoais, além de locais destinados
à venda de produtos e objetos permitidos e não
fornecidos pela Administração carcerária. Vale
ressaltar que é assegurado ao detento, no artigo
28 da LEP, o trabalho remunerado, porém, este
trabalho não está sujeito ao regime da Consoli-
dação das Leis do Trabalho – CLT. As normas
da LEP foram inspiradas no modelo das regras
mínimas para o tratamento de prisioneiros estabelecido pela ONU.
Com efeito, o preceituado nesses dispositivos legais não é aplicado na prática no cotidiano
das prisões em todo o Brasil. Devido a isto, o sistema penal no País e sua administração têm sido
focos de ferrenhas críticas por órgãos ligados aos
Direitos Humanos e pela imprensa nacional e
internacional. São inúmeros os pressupostos de
que o sistema penitenciário brasileiro encontrase em crise e chegando à beira do caos. Essas crises vão desde as incompatibilidades do sistema
legislativo punitivo ao sistema de administração
carcerária. Deste modo, a questão carcerária tem
preenchido páginas e está sempre em constante
debate por estudiosos e autoridades do poder
público na tentativa de se encontrar solução. O
Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária – CNPCP, por exemplo, adotou ações
complementares para a administração criminal
e penitenciária estabelecidas nas resoluções Nºs.
016, de dezembro de 2003 e 03, de setembro de
2005. O objetivo do CNPCP é regulamentar com
eficiência a administração da Justiça Criminal na
execução das penas e de medidas de segurança
aos presos, prevenindo a violência criminal
dentro dos presídios e realizando inspeção e fiscalização para que presos de dentro das prisões
não comandem ações criminosas extramuros dos
diversos presídios espalhados pelo Brasil.
Com efeito, o sistema carcerário no Brasil
padece de carências que têm se acumulado ao
longo do tempo começando pela falta de construção de presídios, sobretudo na esfera federal.
Além disso, as celas dos presídios brasileiros não
estão de acordo com as normas regulamentares.
Ao invés da construção de celas presidiárias individuais, com 6 (seis) metros quadrados, com pia,
ventilação, acompanhamento individualizado do
preso, parlatório e trabalho o cárcere no Brasil,
em regra geral apresenta um flagrante quadro
de violação dos direitos da pessoa humana. São
celas esburacadas, úmidas, fedidas, sem qualquer higiene que comportam dezenas de seres
humanos apenados, quando deveria comportar
4 (quatro) ou 5 (cinco) presos, no máximo. É
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 67-73, fevereiro/2010
71
xAVIER, A. R.
possível dizer que o apenado no Brasil é punido
duplamente: quando sua sentença é selada nos
Tribunais extramuros, significa apenas a primeira
porque a outra e mais cruel lhe aguarda nos intramuros dos famigerados cárceres de todo o País.
Existem, em regra geral, 5 (cinco) problemas
graves na situação carcerária no Brasil: superlotação, tratamento desumano, falta de trabalho,
corrupção e Crime Organizado.
O sistema penal, em um significativo
número de casos, especialmente em relação aos delitos patrimoniais – que são
a maioria -, promove condições para a
criação de uma carreira criminal. Particularmente, dentre as pessoas originárias
das camadas mais humildes da sociedade,
o sistema seleciona aqueles que, tendo
caído em uma primeira condenação, surgem como bons candidatos a uma segunda
criminalização, levando-os ao ingresso
no rol dos desviados, como resultado
do conhecido fenômeno psicológico do
“bode expiatório”. Induvidosamente, isto
constituiu uma inqualificável violação dos
Direitos Humanos, e o sistema penal, ao
insistir com a pena, nada mais faz do que
engrossar esse rol, e até leva o indivíduo à
destruição (ZAFFARONI & PIRANGELI,
1997, p. 76).
Apesar de a política criminal ter por objetivos: desenvolver efetiva política de promoção
do homem no plano social; defender a instituição
das penas alternativas; apoiar a descriminalização e a despenalização; atentar para as avançadas
modalidades criminosas, como poluição sonora,
do ar, das águas, crimes digitais e Crime Organizado; disciplinar eticamente os programas de
televisão que banalizam a violência e o sexo;
ampliar as vagas do sistema penitenciário, evitando o recolhimento de condenados e presos
provisórios em delegacias policiais; construir
mini-prisões para abrigar no máximo 300 reclusos; construir presídios de segurança máxima em
regiões fronteiriças ou em zonas de grande concentração de criminalidade violenta; promover
permanentemente assistência jurídica aos condenados, aos presos provisórios, aos internados e
aos egressos, através das Defensorias Públicas,
72
dos Serviços de Assistência Judiciária mantidos
pela OAB, assim como Escritórios de Prática
Forense dos Cursos ou Faculdades de Direito;
e outros, a realidade é justamente o contrário.
Os condicionamentos do Sistema Penal no
Brasil, além de promover a destruição psíquica e
física da pessoa humana, não somente sujeita-a a
um processo de criminalização, mas, submete-a
a um processo de fossilização. Isto é feito na
medida em que esse sistema
... se vale de uma seleção de pessoas dos
setores mais humildes e, .... Este condicionamento, ainda muito pouco estudado,
é, todavia, gravíssimo. utiliza-se de um
grupo de pessoas de baixa condição social,
que perde o seu grupo de identificação originário e o leva à adoção de permanentes
atitudes de desconfiança, que se corrompa,
e essa corrupção o obrigue a uma solidariedade incondicional para com o grupo
artificial e se veja submetido a um regime
quase militar: e, conseqüentemente, à
arbitrariedade em relação às condições e
estabilidade laborativa, serve como “bode
expiatório” para os excessos do sistema, e,
por fim, torna-se mais exposto à violência
física que esse mesmo sistema cria (ZAFFARONI & PIRANGELI, 1997, p. 76).
No Brasil, as prisões e as detenções, muitas
vezes ilegais, apesar das restrições constitucionais, continuam ocorrendo banalizadamente
contra a maioria da população trabalhadora,
pobre e não branca. A forma indiscriminada de
detenção e prisão que são realizadas no País
configura-se um desrespeito deliberado, apesar
do Estado Democrático de Direito, dos preceitos
constitucionais e dos Direitos Humanos. Nas prisões, apesar de haver uma lei que regularmente
a administração penal, a LEP, as atrocidades de
violências continuam ocorrendo contra presos,
sendo suprimido destes direitos e garantias
constitucionais. Neste sentido a prisão no Brasil é uma instituição ineficiente, beligerante e
degradante, com recursos mal administrados e
dominados pela corrupção. Se os organismos
policiais e o Judiciário não sofreram reformas
muito menos o sistema penitenciário.
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 67-73, fevereiro/2010
POLíTICA CRIMINAL CARCERáRIA NO BRASIL E POLíTICAS PúBLICAS
4. Considerações finais
Bibliografia
Não sou adepto de nenhuma impunidade.
Todavia, não se pode esquecer que a pena,
para ser justa precisa ter apenas o grau de rigor
suficiente para afastar o homem da vontade do
impulso ao crime. É válido acreditar que não
existe homem que em sua sã consciência hesite
entre o crime, apesar das vantagens que este anseie, e o risco de perder para sempre a liberdade.
Devemos está cônscios de que nenhum tormento
pode ir além da capacidade da resistência humana, limitada pela sensibilidade e a organização
do corpo humano e que os castigos mais cruéis,
podem provocar, às vezes, a impunidade. Se
as leis são tão cruéis, correm o risco de serem
modificadas rápido ou não poderão mais vigorar
e punir o crime.
Destarte, é preciso repensar a realidade das
prisões no Brasil de modo a dispensar políticas
públicas no sentido de não mais tratar seres
humanos como lixo ou coisa parecida. Se quisermos avançar no almejado Estado Democrático
de Direito teremos que começar por respeitar os
Direitos da pessoa humana que constantemente
estão sendo desrespeitados nas prisões por todo
este imenso País. Advirto também que apesar
de termos tido uma certa calmaria de rebeliões
após os episódios de 2006, sobretudo em São
Paulo e no Rio de Janeiro, é bom começarmos a
discutir outras estratégias visando não só conter
as rebeliões, mas evitá-las em seu nascedouro.
O fim do ano se aproxima e nesse período poderemos ter, talvez, megarebeliões nunca visto
antes. Não estou querendo fazer profetismo
algum, porém nunca é demais a prevenção,
principalmente quando tratamos de tão complexa questão. É oportuno citar o ex-presidiário
e romancista russo Fiódor Dostoievski (2003),
quando afirmava que é possível julgar o grau
de civilização de uma sociedade visitando suas
prisões. Indubitavelmente, qualquer pessoa ao
visitar uma das prisões brasileiras concluirá sem
qualquer hesitação: o Brasil está mergulhado
numa imensa barbárie social.
I – Livros e periódico
DELEuZE, Gilles. Conversações – 1972 –
1990. Rio de Janeiro: ed. 34, 1992.
1981.
DIáRIO DO NORDESTE, 27/03/2007.
DOSTOIÉVSKI, Fiódor Mikháilovitch. Crime
e Castigo. São Paulo: nova Cultural, 2003.
DREYFuS, Hubert & RABINOW, Paul. Michel
Foucault, uma trajetória filosófica: para além
do estruturalismo e da hermenêutica. Tradução
de Vera Porto Carreiro. Rio de Janeiro: Forense
universitária, 1995.
FOuCAuLT, Michel. Vigiar e Punir. História
da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes,
2001a.
__. Sobre a Prisão. In: Microfísica do poder.
Rio de Janeiro: Graal, 2001b.
GROS, Fredéric et. al. (Orgs.). A coragem da
verdade. Tradução de Marcos Marciónico. São
Paulo: Parábola editorial, 2004 (Episteme; I).
LIMA, Wiliam da Silva. Quatrocentos contra
um – uma história do Comando Vermelho. Petrópolis: Vozes, 1991.
ZAFFARONI, Eugênio Raúl & PIRANGELI, José Henrique. Manual de direito penal
brasileiro parte geral. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1997.
II - Legislação/Doutrina
BRASIL. Ministério da Justiça. CONSELHO
NACIONAL DE POLíTICA CRIMINAL E
PENITENCIáRIA – CNPCP, resoluções Nºs.
016, de dezembro de 2003 e 03, de setembro de
2005 (Estabelece ações complementares para a
administração criminal e penitenciária).
Lei 2.848/ 40 (Estabelece o Código Penal Brasileiro).
__. 7.210/ 84 (Lei de Execução Penal).
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 67-73, fevereiro/2010
73
74
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, fevereiro/2010
A BuSCA PELA REPARAÇÃO POR DANOS AMBIENTAIS CAuSADOS POR ATIVIDADES PETROLíFERAS DA TRANSNACIONAL
Artigo
CHEVRON-TExACO EM TERRITóRIOS INDíGENAS NO CASO “MARIA AGUINDA E OUTROS AUTORES VERSUS TEXACO: ANáLISE
DA ATuAÇÃO DA CORTE NORTE-AMERICANA DE APELAÇõES DO SEGuNDO CIRCuITO
A BuSCA PELA rEPArAção Por DAnoS
AmBiEntAiS CAuSADoS Por AtiviDADES
PEtroLífErAS DA trAnSnACionAL
ChEvron-tExACo Em tErritórioS
inDígEnAS no CASo “Maria aguinda
e outros autores versus texaco:
AnáLiSE DA AtuAção DA CortE nortEAmEriCAnA DE APELAçõES Do SEgunDo
CirCuito
Carol Manzoli Palma1
rESumo: O presente artigo pretende trazer ao
conhecimento da comunidade jurídica, estudo de
caso sobre uma ação proposta por grupos indígenas Equatorianos contra a companhia petrolífera Texas Company, acusada de causar danos
ambientais às terras indígenas na Amazônia. A
análise recairá sobre os argumentos da sentença
da Corte Norte-Americana de Apelações de Segundo Circuito, que determinou seu julgamento
através da doutrina do forum non conveniens.
Palavras-chave: povos indígenas, petróleo,
Equador, Estados Unidos, Texaco, transnacionais, forum non conveniens, jus cogens, Alien
Torts Claims Act.
ABStrACt: This article intends to bring to the
attention of the legal community, a case study of
a lawsuit filed by Ecuadorian indigenous groups
against Texas Company, accused of causing
environmental damage to indigenous lands in
the Amazon region. The analysis will rely upon
the arguments of the u.S. Court of Appeals for
1
A autora é advogada, consultora ambiental e mestranda em Direito pela universidade Metodista de Piracicaba (uNIMEP). Este trabalho é fruto
de uma pesquisa bem mais ampla que vem desenvolvendo para sua dissertação de mestrado sobre os aspectos jurídico-ambientais das atividades
petrolíferas.
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 75-81, fevereiro/2010
75
PALMA, C. M.
Second Circuit sentence, which ordered its trial
by the forum non conveniens doctrine.
Keywords: indigenous people, petroleum,
Ecuador, United States, Texaco, transnational,
forum non conveniens, jus cogens, Alien Torts
Claims Act.
1. introdução
O processo de colonização, criação e transformação de muitos países, embora moldado com
características peculiares de cada região, tem
um quadro em comum que até hoje o arcabouço
jurídico internacional esforça-se para proteger,
priorizar, regulamentar e discutir: a possibilidade
de coexistência dos povos, e o respeito às suas
culturas e tradições.
No Equador, os povos indígenas sofreram
dominação pelo Império Inca, e depois pelos colonizadores Espanhóis. No entanto, mesmo com
a extinção de certas populações indígenas por
estes acontecimentos históricos, no século xIx,
por volta das décadas de 50 e 60, algumas delas
ainda viviam no isolamento em meio à floresta
amazônica, na região oriental Equatoriana, com
sua cultura totalmente preservada.2
Neste período, duas leis foram aprovadas
pelo Governo Equatoriano com o propósito de
abrir a região amazônica para o desenvolvimento, as Leis de Colonização e de Reforma
Agrária de Terras Baldias, abrindo espaço para
um novo processo de “dominação” destes povos,
mas agora pelas grandes empresas que lá se
estabeleceriam. 3
como os Achuar, Cofán, Huaorani, Siona-Secoya
e Shuar.
A TexPet operou através de um consórcio
distribuído em partes iguais para ela e a Gulf
Oil Corporation. No ano de 1974, o Governo
da República do Equador, através da empresa
estatal PetroEcuador, adquiriu 25% do direito de
exploração neste consórcio. No transcorrer dos
dois anos seguintes, a PetroEcuador adquiriu a
parte que cabia à Gulf Oil, e se tornou a maior
interveniente no consórcio.
Na década de oitenta, a TexPet ainda operava uma dutovia, que em 1989 passou a ser de
responsabilidade da PetroEcuador, a qual também assumiu a função de perfuração de poços
na região.
Em junho de 1992, a TexPet abandonou
todos os seus interesses no consórcio, deixando
tudo o que ainda lhe era de direito para a PetroEcuador.5
No ano seguinte à saída da TexPet, reclamantes Equatorianos entraram com a primeira de
duas ações contra a Texaco em Nova Iorque, em
nome de trinta mil habitantes da região amazônica. Em 1994, residentes do Peru que moravam na
região a jusante de onde a TexPet praticava suas
atividades, entraram com uma outra ação contra
a Texaco, também na Corte Nova Iorquina, em
nome de vinte e cinco mil habitantes Peruanos.
Segundo Tamara Jezic aput Isabela Figueiroa,
2. As atividades petrolíferas da
texaco no Equador
Devido aos incentivos para o desenvolvimento da região amazônica no Equador,4 a
empresa petrolífera Texaco Petroleum Company (TexPet), subsidiária da Texas Company
(Texaco) iniciou suas atividades de exploração
e perfuração de poços de petróleo. Nesta localidade viviam algumas comunidades indígenas,
76
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 75-81, fevereiro/2010
Os efeitos ambientais, sociais, culturais
e econômicos das atividades da Texaco
foram devastadores. A Texaco derramou
diariamente mais de 4,3 milhões de galões
de águas de produção altamente tóxicas,
em poços sem proteção em todo o Leste,
em vez de enterrar os resíduos tóxicos em
covas de grande profundidade, como faz
nos Estados unidos. A Texaco também foi
responsável por trinta derramamentos importantes do oleoduto Trans-equatoriano
de 498 quilômetros, que se estende desde
o Leste até a costa oeste do Equador,
derramando 16,8 milhões de galões de
petróleo diretamente no meio ambiente,
mais de 1,5 vezes os 10,8 milhões de
galões derramados pela Exxon Valdez
A BuSCA PELA REPARAÇÃO POR DANOS AMBIENTAIS CAuSADOS POR ATIVIDADES PETROLíFERAS DA TRANSNACIONAL
CHEVRON-TExACO EM TERRITóRIOS INDíGENAS NO CASO “MARIA AGUINDA E OUTROS AUTORES VERSUS TEXACO: ANáLISE
DA ATuAÇÃO DA CORTE NORTE-AMERICANA DE APELAÇõES DO SEGuNDO CIRCuITO
no estuário Príncipe William do Alaska.6
Yana Curi estudou as comunidades afetadas
pelas atividades petrolíferas e suas conclusões
revelaram que as mulheres de comunidades próximas aos poços e estações de
petróleo apresentaram um risco de aborto
espontâneo 2,5 vezes mais alto, ou seja
150% maior que as mulheres que vivem
em comunidades não contaminadas.7
Doenças como cânceres de laringe, fígado,
pele e estômago também foram registradas em
maior quantidade pela estudiosa.8
Neste ínterim, em 1995, a despeito do
processo que já corria na Corte Americana, a
Texaco celebrou um acordo com o Governo
Equatoriano, no qual a transnacional pagou
quarenta milhões de dólares para remediação de
áreas contaminadas.
3. A alegação dos reclamantes9
A reclamação das comunidades indígenas
Equatorianas foi apresentada perante a Corte
Distrital da região sul de Nova Iorque, em nome
de Maria Aguinda e outros, e por este motivo o
caso ficou conhecido como “Maria Aguinda e
outros autores versus Texaco”. O juiz do caso era
Vincent Broderick, e em resumo, os peticionários
alegavam que as operações da Texaco poluíram
as florestas e os rios da região, resultando em
danos ambientais e danos à saúde dos habitantes. Sobre a possibilidade de enfrentamento da
questão pela Corte Americana, os peticionários
trouxeram como argumento a lei americana
chamada de Alien Torts Claims Act.
Buscavam a responsabilidade objetiva da
empresa, com o pagamento de indenização em
dinheiro, pagamento por acompanhamento médico dos cidadãos doentes e a limpeza do ambiente
para acesso à água potável; argumentos como
a contaminação do local ter causado a impossibilidade de realizarem pesca e caça, também
permearam a petição. Dentre os demais pedidos,
o de fechamento dos dutos que, segundo alega-
vam, estavam abertos e abandonados; a criação
de um fundo de monitoramento ambiental e o
estabelecimento de padrões ambientais para
futuras operações petrolíferas no Equador.
Vale destacar que os reclamantes afirmaram
que a remediação realizada pela corporação foi
ineficiente, uma vez que apenas colocaram terra
por cima dos locais afetados, continuando assim,
a contaminação no solo e nos lençóis freáticos.
A transnacional defendeu-se apresentando
uma carta do então Embaixador do Equador nos
Estados unidos, onde o mesmo afirmava que o
processo apresentado nos Estados Unidos era
uma afronta à soberania nacional do Equador. O
argumento prioritário da Texaco, no entanto, foi
a doutrina do forum non conveniens.10
Com a morte do juiz Broderick, o caso
passou ao Juiz Jed Saul Rakoff que declinou da
análise dos pedidos feitos por Maria Aguinda e
outros, com base na doutrina trazida pela transnacional. A justificativa da Corte também foi a
de que a empresa PetroEquador e a República do
Equador eram atores indispensáveis no processo,
e que, como não quiseram participar da demanda,
esta lacuna traria soluções não equitativas.
Neste contexto, o Equador entrou com uma
moção para intervir a favor dos reclamantes, e
submeteu através do Procurador Geral da Republica, uma declaração de que o país buscava
proteger os interesses dos cidadãos indígenas do
Equador, os quais foram seriamente afetados pela
contaminação ambiental atribuída pela companhia Texaco. Segundo o Procurador, a intenção
do Equador era a de “buscar a indenização necessária para aliviar os danos ambientais causados
pela Texaco.”11 A Corte negou todos os pedidos
de reconsideração feitos pelos reclamantes, e
também a moção do Equador, que negava-se a
se submeter às regras das Cortes Americanas,
e recusava-se a abandonar sua imunidade soberana.12
Os peticionários recorreram à Corte de
Apelações do Segundo Circuito para que a mesma solicitasse a apreciação de seus pedidos em
primeira instância; a Corte de Apelações instruiu
a Corte Distrital a sopesar independentemente os
fatores relevantes que dispensariam a doutrina do
forum non conveniens e reexaminar a questão, “à
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 75-81, fevereiro/2010
77
PALMA, C. M.
luz de todas as circunstâncias atuais, incluindo a
posição do Equador com relação à manutenção
do litígio”13 nos Estados Unidos.
Após novos recursos e moções por ambos
os litigantes, em 30 de maio de 2001, a Corte
Distrital da região sul de Nova Iorque concedeu
a moção à Texaco, declinando assim, dos pedidos dos reclamantes; destacamos na decisão da
Corte, o argumento de que “os Estados Unidos
não têm nenhum interesse público em acolher
uma ação internacional contra uma entidade
americana que pode adequadamente ser buscada
no local onde a violação ocorreu.”14
A discussão seguiu novamente para a
Corte de Apelações do Segundo Circuito, tendo
o órgão decidido não apreciar o mérito dos pedidos, pela doutrina do forum non conveniens.
Balanceando os interesses públicos e privados,
a Corte entendeu que, entre outras razões: a)
seria oneroso para a Corte articular a tradução
de testemunhos de grupos indígenas variados,
com dialetos próprios; b) seria mais viável um
tribunal Equatoriano visitar as áreas poluídas;
c) dados médicos estão arquivados no Equador.
No ano de 2003, os reclamantes endereçaram sua petição à Corte Superior de Nueva Loja,
no Equador. Dezessete anos já se passaram desde
que iniciaram a persecução da vitória nas Cortes judiciais, e as comunidades indígenas ainda
aguardam o desfecho de sua trágica história.
4. Análise dos argumentos da
sentença da Corte Americana de
Apelações do Segundo Circuito
As sociedades mercantis expandiram-se
a ponto de tornarem-se presentes em diversos
países, com lucros bilionários. Sabemos que
com relação às transnacionais, existe o chamado
“Estado de origem”, ou seja, o local onde se situa
a cabeça de uma empresa, e onde decisões são
tomadas. Nascida neste local, a corporação vai
crescendo e se instalando em diferentes países.
Para Marcel Sinkondo
as empresas transacionais são hoje consideradas, por alguns, como sujeitos auxi78
liares do Direito Internacional Público, interferindo, por sua importância econômica
e pelo poder político internacional de fato,
no organograma das instituições oficiais e
impondo-se, com maior relevância do que
a grande maioria dos Estados, como atores de peso no processo internacional de
decisões políticas, sociais e econômicas.15
Se de um lado temos esta crescente atuação
das empresas no mercado a nível internacional,
juntamente com sua poderosa influência nas
políticas e normas nacionais e internacionais, de
outro, temos mecanismos para soluções equitativas de controvérsias.
Chama atenção neste estudo a negativa
pelas Cortes Americanas de apreciarem os
pedidos dos reclamantes. José Cretella Neto
já denunciou prática parecida, apontando que
o Estado de origem “poderá alegar que a prevenção e a repressão a atos danosos ao Estado
que reclamar a atuação de uma transnacional é
tarefa que incumbe às autoridades onde o fato
ocorreu.” 16 Completa que inexistem no plano
internacional, normas primárias de cumprimento
obrigatório sobre a conduta das transnacionais,
com exceção das convenções sobre prevenção e
combate à corrupção – sendo estas insuficientes
pelas possibilidades de prejuízos resultarem de
diversos atos – e a maioria das normas de conduta
apenas trazidas como recomendação. 17
Muito embora existam estes obstáculos,
podemos enumerar sólidas bases que reiteram o
posicionamento dos Equatorianos na escolha da
Corte Americana. Em primeiro lugar, a nível nacional, os Estados Unidos possuem a lei nomeada
de Alien Torts Claims Act, a qual prevê jurisdição
original às Cortes distritais para julgarem uma
ação civil proposta por um estrangeiro caso haja
um ilícito civil, cometido em violação aos direitos das nações (Law of nations - jus gentium)18
ou a um Tratado Norte-Americano.
O direito das nações, originalmente chamado de direito das gentes, fundamentou-se em
Roma, quando da chegada de estrangeiros da
Gália, Ilíria, Germânia e Mauritânia, entre outras
localidades. Tal realidade deu espaço a um direito
natural materializado não mais pelo formalismo,
mas sim por costumes e leis que regem os povos
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 75-81, fevereiro/2010
A BuSCA PELA REPARAÇÃO POR DANOS AMBIENTAIS CAuSADOS POR ATIVIDADES PETROLíFERAS DA TRANSNACIONAL
CHEVRON-TExACO EM TERRITóRIOS INDíGENAS NO CASO “MARIA AGUINDA E OUTROS AUTORES VERSUS TEXACO: ANáLISE
DA ATuAÇÃO DA CORTE NORTE-AMERICANA DE APELAÇõES DO SEGuNDO CIRCuITO
pelo direito que lhes é próprio, ou seja, comum
a todos os homens; digamos que ele é instituído
por razões naturais, diferentemente de outros que
são gerados por fatores mercantis, familiares ou
religiosos.19
A sentença da Corte de Apelações do Segundo Circuito aponta que delitos de natureza
ambiental não necessariamente violam o “direito
das nações” e que o Alien Torts Claims Act não
compele os Estados Unidos a fornecerem um
fórum quando existir um fórum estrangeiro mais
adequado.
Embora o forum non conveniens seja um
princípio notadamente reconhecido, entendemos
que não poderia ter sido um principio hierarquicamente superior na apreciação da reclamação,
porque o direito internacional possui uma abordagem com valores mais universais. Não falamos
de valores que, embora inerentes ao homem,
surjam como justificativa para atitudes, guerras
e apropriações ilegítimas e ilegais.
O problema da doutrina do forum non
conveniens é, como o próprio nome já anuncia,
uma questão de conveniência. Para quem não é
conveniente que o julgamento seja realizado na
Corte Americana? A Conveniência das grandes
empresas detentoras de poderio econômico e
influência política.
É cediço que a questão ambiental está inserida no direito internacional, pois como sobreviveriam os povos, que outros direitos poderiam
se desdobrar de sua existência, se sem um meio
ambiente sadio e equilibrado a continuação da
espécie humana não é possível? Teríamos um
direito sem nações. um direito para ninguém,
e o direito propriamente não existiria mais também, pois ele foi criado pelo homem para reger a
vida humana, como fundamento da convivência
harmoniosa dos seres humanos.
Princípios tradicionais poderiam endossar
a apreciação Norte-Americana da ação civil,
pois estão inseridos em declarações universais,
reconhecidas por todas as nações, justamente
por conterem valores absolutos. O Artigo 16 da
Declaração universal dos Direitos dos Povos,
aprovada em 1976, na Argélia, elucida que “todo
povo tem direito à conservação, à proteção e ao
melhoramento de seu meio ambiente.” E para
esta finalidade, caso haja violações, o Artigo
30 dispõe que “o restabelecimento dos direitos
fundamentais de um povo, quando gravemente
desconsiderados, é dever que se impõe a todos
os membros da comunidade internacional.”
Vale destacar ainda, que ações como as
formuladas por Maria Aguinda e outros, podem ser um importante veículo de modificação
do comportamento corporativo na obtenção de
soluções judiciais para um número grande de
pessoas. Por isso o julgamento é tão importante, já que demonstra a tendência dos países na
solução de controvérsias deste tipo, destacando
a atuação dos atores como as organizações não
governamentais, os grupos étnicos, os governos
e as transnacionais.
Para o direito internacional, seria preciso
um acordo que estabelecesse um limite de tempo para o julgamento de ações desta natureza,
para que não aumente a insegurança e que haja
uma decisão equitativa e efetiva. A reparação do
dano ambiental não é uma discussão meramente
financeira, mas também moral para aqueles afetados pelas atividades poluidoras, e que estão
aguardando por um resultado justo.
O uso do direito para impor o desenvolvimento das indústrias petrolíferas, mas não
para controlar ou remediar as injúrias que elas
causam, é injusto e reflete e reforça a necessidade
de trabalhar o direito e a governança global. As
corporações e os governos já exercitam o consentimento informado quando negociam contratos
de desenvolvimento; é preciso tornar esta realidade possível no papel e na prática também aos
povos indígenas, às minorias, e às diversas etnias
que por diferenças culturais podem necessitar de
maior atenção e proteção e que - sem coerção e
manipulação - possam ter o direito de negar a
criação de projetos abusivos ou que danifiquem
suas terras, seus lares, suas culturas e o ambiente
em que vivem.20
5. Considerações finais
Em Copenhague, na reunião nações para
a criação de um possível instrumento jurídico
vinculante sobre mudanças climáticas, o Equador
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 75-81, fevereiro/2010
79
PALMA, C. M.
pediu a quantia de doze bilhões de reais para
deixar de explorar mais petróleo nas regiões
amazônicas. O projeto de exploração de petróleo encontra-se, em parte, localizado no Parque
Nacional Yasuní, considerado um dos locais mais
ricos em biodiversidade do mundo; na região
também vivem comunidades indígenas com sua
cultura preservada.
Sabemos que existem mecanismos na indústria petrolífera que são muito mais modernos
do que os existentes há vinte anos, mas projetos
desta magnitude causam enormes impactos
ambientais.
Em 2007, após vinte anos de negociação,
a Assembléia Geral da Organização das Nações
Unidas aprovou a Declaração sobre os Direitos
dos Povos Indígenas, mas os Estados unidos
não assinaram. A Declaração enfatiza, em seu
artigo 29 que os povos indígenas têm direito à
conservação e à proteção do meio ambiente e da
capacidade produtiva de suas terras ou territórios
e recursos, cabendo aos Estados o estabelecimento e a execução de programas de assistência aos
povos indígenas para assegurar essa conservação
e proteção, sem qualquer discriminação.
A Declaração destaca, no artigo 40, que os
povos indígenas têm direito a “procedimentos
justos e equitativos para a solução de controvérsias com os Estados ou outras partes e a uma
decisão rápida sobre essas controvérsias”, bem
como a “recursos eficazes contra toda violação
de seus direitos individuais e coletivos”. Essas
decisões deverão levar em conta “os costumes,
as tradições, as normas e os sistemas jurídicos
dos povos indígenas interessados e as normas
internacionais de direitos humanos.”
No mesmo momento em que alguns membros da comunidade internacional esforçam-se
para a promoção e melhoria da globalização
jurídica, e reconhecem a necessidade de proteção do meio ambiente e dos direitos humanos,
destacando a interdependência e a cooperação
como solução para os conflitos políticos, sociais,
culturais, ambientais e financeiros, outros países
andam na contramão, fechando-se para este tipo
de institucionalização. O resultado será sentido
quando perceberem que nos tempos atuais, não
80
há como viver de forma isolada no combate ao
crime organizado, às mudanças climáticas, às
catástrofes, ao terrorismo e ao desrespeito aos
direitos humanos.
Enquanto os países disputam poder e
eficiência econômica, aquelas comunidades
indígenas seguem perquirindo um resultado
justo e equitativo que alivie um pouco de seu
sofrimento. Cabe a nós, cidadãos e operadores
do direito, a promoção de uma justiça social e
ambiental que impeça novos acontecimentos
como estes.
6. notas
2
BERNALl, Angelica. Power, Powerlessness and Petroleum: Indigenous Environmental Claims and the Limits of
International Law. Paper presented at the annual meeting
of the American Political Science Association, Marriott,
Loews Philadelphia, and the Pennsylvania Convention
Center, Philadelphia, PA, Aug 31, 2006. p. 7 e segs..
Disponível em: <http://www.allacademic.com/meta/
p152630_index.html.> Acesso em 05 nov. 2009.
3
Ibid.
4
Veja localização no Anexo 1.
5
Informações retiradas de united States Court Of Appeals
For The Second Circuit. Archive: Aguinda x Texaco (Decision). Texaco in Equador. Disponível em: <http://www.
texaco.com/sitelets/ecuador/docs/aquin da_v_texaco_d.
pdf.> Acesso em 05 nov. 2009.
6
Ecuador: La campaña contra Texaco Oil, in: David Cohen
et.al., Incidencia para la Justicia Social - Guía global de
acción y reflexión, quito, Abya Ayala, 2001, p. 209 e
segs. Apud FIGuEROA, Isabela. Povos indígenas versus
petrolíferas: controle constitucional na resistência. Sur,
Rev. Internacional de Direitos Humanos. São Paulo, v. 3,
n. 4. Junho, 2006. Disponível em: <http://www.scielo.br/
scielo.php?pid=S1806-64452006000100004&script=sci_
arttext>
7
Apud Isabela Figueroa. Op. cit. p. 73.
8
Ibid.
9
united States Court Of Appeals For The Second Circuit.
Archive: Aguinda x Texaco (Decision). Texaco in Equador.
Disponível em: <http://www.texaco.com/sitelets/ecuador/
docs/aquin da_v_texaco_d.pdf.> Acesso em 05 nov. 2009.
10
A doutrina do forum non conveniens possibilita que
uma Corte decline de sua jurisdição se entender que seja
inconveniente ou que um exista um fórum alternativo o
qual possa melhor analisar a questão suscitada perante o
mencionado órgão.
13
Vide sentença, Op. cit., p. 8. Minha tradução e adaptação.
14
Vide sentença, Op. cit., p. 10. Minha tradução e adaptação.
15
apud CRETELLA NETO, José. Empresa Transnacional e o
Direito Internacional: exame do tema à luz da globalização.
Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 28.
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 75-81, fevereiro/2010
A BuSCA PELA REPARAÇÃO POR DANOS AMBIENTAIS CAuSADOS POR ATIVIDADES PETROLíFERAS DA TRANSNACIONAL
CHEVRON-TExACO EM TERRITóRIOS INDíGENAS NO CASO “MARIA AGUINDA E OUTROS AUTORES VERSUS TEXACO: ANáLISE
DA ATuAÇÃO DA CORTE NORTE-AMERICANA DE APELAÇõES DO SEGuNDO CIRCuITO
16
CRETELLA NETO, José. Op.Cit. p. 191
Ibid., p. 193.
18
Hoje esta assertiva designa o Direito Internacional.
19
ROLIM, Luiz Antonio. Instituições de Direito Romano.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 55.
20
KIMERLING, Judith. Indigenous Peoples and The Oil
Frontier In Amazonia: The Case of Ecuador, Chevron
Texaco, and Aguinda v. Texaco. n/c.: n/c. 2006. p. 663.
17
7. Agradecimento
A autora agradece o apoio financeiro da
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de
São Paulo – FAPESP. (processo nº 2009/032838).
8. Bibliografia
BERNAL, Angelica. Power, Powerlessness and
Petroleum: Indigenous Environmental Claims
and the Limits of International Law. Paper presented at the annual meeting of the American
Political Science Association, Marriott, Loews
Philadelphia, and the Pennsylvania Convention
Center, Philadelphia, PA, Aug 31, 2006. 42p.
Disponível em: <http://www.allacademic.com/
meta/p152630_index.ht ml.>
CRETELLA NETO, José. Empresa Transnacional e o Direito Internacional: exame do tema à
luz da globalização. Rio de Janeiro: Forense,
2006. 521p.
Ecuador Judicial Site Inspections. A Detailed
Look at Texaco’s Remediation Efforts and Judicial Site Inspections. Disponível em: <http://
www.texaco.com/sitelets/inspections/en/ >
FIGuEROA, Isabela. Povos indígenas versus petrolíferas: controle constitucional na resistência.
Sur, Rev. Internacional de Direitos Humanos.
São Paulo, v. 3, n. 4. Junho, 2006. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S180664452006000100004&script=sci_arttext> Acesso em 07 nov. 2009.
KIMERLING, Judith. Indigenous Peoples and
The Oil Frontier In Amazonia: The Case of
Ecuador, Chevrontexaco, and Aguinda v. Texaco.
n/c.: n/c. 2006. 664 p.
ROLIM, Luiz Antonio. Instituições de Direito
Romano. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2000. 296p.
united States Court Of Appeals For The Second
Circuit.. Archive: Aguinda x Texaco (Decision).
Texaco in Equador. Disponível em: <http://
www.texaco.com/sitelets/ecuador/docs/aquin
da_v_texaco_d.pdf.>
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 75-81, fevereiro/2010
81
82
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, fevereiro/2010
SExuALIDADE E DIREITOS HuMANOS
Artigo
SExuALiDADE E DirEitoS humAnoS
Clara Silveira Belato 1
Eduardo Baker Valls Pereira 2
RESUMO: O presente artigo busca introduzir
uma discussão acerca da relação entre Direitos
Humanos e Sexualidade frente ao atual paradigma de normatização dessas temáticas no plano
nacional e internacional escolhendo algumas
temáticas específicas para trabalhar, partindo da
discussão de Foucault acerca do que é a sexualidade. Se enfatizam os Princípios de Yogyakarta
como possível instrumento internacional nesta
discussão e algumas iniciativas nacionais de
tratar a matéria.
Palavras-chave: Sexualidade. Direitos humanos. Direitos fundamentais
ABSTRACT: The present article aims to
introduce a discussion about the relationship
between Human Rights and Sexuality taking
into account the current paradigm of regulation
of these themes at national and international
level; One will work with some specific issues,
building on Foucault’s discussion on what is
sexuality. It will be emphasized the Yogyakarta
principles as a possible international instrument
in this discussion and some national initiatives
to address the matter.
Keywords: Sexuality. Human Rights. Fundamental rights.
1. introdução
O presente artigo se propõe a discutir
alguns aspectos dos direitos humanos no que
diz respeito à sexualidade. Para tal, sentimos
a necessidade de nos colocar primeiramente as
seguintes questões: O que seria a sexualidade?
1
Estudante de Direito na Faculdade Ibmec/Faculdade de Direito Evandro Lins e Silva
2 Estudante de Direito na Faculdade Ibmec/Faculdade de Direito Evandro Lins e Silva
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 83-95, fevereiro/2010
83
BELATO, C. S. - PEREIRA, E. B. V.
Que papel ela representa na sociedade e qual a
sua relação com o Direito?
Conscientes de que não existe uma resposta
única para tais questões, nem um conceito definido e universal que esgote todo o significado
da palavra, escolhemos como referencial teórico
a obra de Michel Foucault ‘História da Sexualidade, volume I’.
Em seguida, passamos ao exame de alguns
mecanismos legais existentes que podem ser
utilizados para a proteção dos direitos sexuais,
tanto internacionalmente quanto nacionalmente,
constatando que há, ainda, uma precariedade
neste tipo de produção normativa nesse sentido.
Em seguida e por último, achamos oportuno trazer à tona alguns casos concretos, como
projetos de lei e jurisprudências, para evidenciar
hipóteses de proteção e de violação de direitos
humanos e aprofundarmos um pouco mais o
debate.
Foucault afirma que, ao contrário, nunca se
falou tanto sobre a sexualidade. Nunca foi tão
importante conhecê-la, falar sobre ela, descobrila, confessá-la a duras penas. O sexo, ao longo
dos últimos dois séculos, se ligou expressamente
à noção de subjetividade, foi figura incorporada
ao homem, de tal modo que ele não mais concebe
a si mesmo sem ela. Para entender a si próprio,
para ter acesso a seu corpo e a sua identidade
o homem passou, através de uma construção
histórica, a necessariamente ter que descobrir a
“verdade” sobre sua sexualidade.
“É pelo sexo efetivamente, ponto imaginário fixado pelo dispositivo de sexualidade,
que todos devem passar para ter acesso à
sua própria inteligibilidade (já que ele é,
ao mesmo tempo, o elemento oculto e o
princípio produtor de sentido), à totalidade
de seu corpo (pois ele é uma parte real e
ameaçada desse corpo do qual constitui
simbolicamente o todo), à sua identidade
(já que ele alia a força de uma pulsão à singularidade de uma história) (...) Chegamos
ao ponto de procurar nossa inteligibilidade
naquilo que foi, durante tantos séculos,
considerado como loucura; a plenitude de
nosso corpo naquilo que, durante muito
tempo, foi um estigma e como que a ferida
nesse corpo; nossa identidade, naquilo
que se percebia como obscuro impulso
sem nome. Daí a importância que lhe
atribuímos, o temor reverente com que o
revestimos, a preocupação que temos de
conhecê-lo. Daí o fato de ter se tornado, na
escala dos séculos, mais importante do que
nossa alma, mais importante do que nossa
vida; e daí todos os enigmas do mundo nos
parecerem tão leves comparados a esse
segredo, minúsculo em cada um de nós,
mas cuja densidade o torna mais grave do
que todos. O pacto faustiano cuja tentação
o dispositivo de sexualidade inscreveu em
nós é, doravante, o seguinte: trocar a vida
inteira pelo próprio sexo, pela verdade e
a soberania do sexo. O sexo bem vale a
morte.” (FOuCAuLT, 2006, p. 169-170)
2. Sexualidade ou Sexualidades?
Procuremos entender melhor o que efetivamente está envolvido quando se fala na proteção
e violação de direitos humanos no que diz respeito à sexualidade. que sexualidades são essas
que se busca proteger e às quais freqüentemente
se discrimina?
As sexualidades, as condutas, as identidades recriminadas são as que se identificam
ou que pelo menos por um bom tempo foram
identificadas como desvios, perversões e doenças. Alguns comportamentos que ainda hoje são
definidos como patologias pelo discurso médico,
psicológico e jurídico. Buscamos respostas para
entender qual a função que o discurso sobre essas
sexualidades exerce dentro das relações de poder
contemporâneas e qual seria a função do Direito
nessa conjuntura.
Nosso ponto de partida é o discurso de
uma teoria da repressão. Haveria uma repressão
generalizada à sexualidade. Ela deveria então
calar-se, omitir-se. Através da interdição ela
seria condenada ao silêncio e à não existência.
Seria esse o interesse ou objetivo nas relações de
poder que se colocam, o mutismo e a repressão.
84
Para essa importância excessiva que passa
a ter o sexo, contribuiu a discussão nos últimos
séculos sobre a sexualidade. O sexo se tornou ob-
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 83-95, fevereiro/2010
SExuALIDADE E DIREITOS HuMANOS
jeto do conhecimento, criou-se toda uma análise
minuciosa e exaustiva sobre ele na Medicina, na
Psicologia, na Jurisprudência, no âmbito administrativo e da política de Estado. Aos poucos foi
confeccionada uma ciência do sexo.
Essa ciência sexual foi uma das construções fundamentais dos últimos dois séculos,
fruto de uma mudança estrutural na sociedade.
De uma sociedade em que o soberano tinha o
poder de tirar a vida de seus súditos se passou
a uma sociedade na qual o poder está focado na
vida, e não na morte. O poder deve organizar
e gerir a vida, e nesse sentido dois pólos de
controle principais se desenvolveram. O controle sobre os corpos (através dos mecanismos
de adestramento, disciplina e docilização dos
mesmos, buscando a maior utilidade possível –
o que é trabalhado na obra ‘Vigiar e Punir’ do
autor) e o controle dos corpos como espécie, no
sentido de organizar a sua função biológica e a
questão populacional, através de critérios como
natalidade, mortalidade, longevidade, e outros.
O sexo constitui um elemento fundamental,
pois é o elo entre esses dois pólos de controle. E
é através da análise desses mecanismos de poder
que nós buscamos entender a relação entre direito
e sexualidade.
A principal característica atribuída à sexualidade pelo discurso científico foi a sua capacidade eminentemente patológica. O sexo foi
considerado como algo que, por suas características inerentes poderia ser acometido por doenças.
Passou a ser vigiado por diversas instâncias,
desde a sexualidade da criança, observada de
perto pelos pais, pedagogos, pediatras e babás.
Do saber que foi construído, o que nos
interessa para a discussão é a chamada psiquiatrização do prazer perverso. Isso implica,
principalmente, no seguinte: o instinto sexual foi
isolado, conceituado como instinto meramente
biológico. Vincularam o sexo a uma finalidade
reprodutiva, pois a lógica era ter o controle do
corpo como espécie. Com isso, toda conduta que
não se encaixasse nesse critério biológico, todo
prazer que não tivesse utilidade, ou fosse um
prazer estéril, foi classificada como distúrbio.
Aí entram desde a sodomia até, por exemplo,
a masturbação. É feita uma categorização dos
indivíduos, uma especificação de acordo com
sua “doença”, esse indivíduos que seriam os
“perversos”, muitas vezes associados às doenças
mentais.
Como tal, a Medicina estava disposta a
oferecer tratamentos, buscando a “cura”, buscando a normalização. Essas sexualidades errantes, desviantes, improdutivas, cumprem uma
função importante nesse sistema, embora não
sejam desejadas, em tese, elas são estimuladas,
pois são elas que justificam toda a intervenção
normalizadora médico-clínica-psiquiátricalegal-administrativa. Nesse contexto, poder e
prazer não se anulam, funcionam numa estrutural
espiral eterna.
No início essas pessoas eram isoladas nas
clínicas, A “ciência” difundia, na época, a teoria
da degenerescência: o perverso sempre tinha
parentesco com doentes, e seus descendentes
seriam raquíticos e estéreis. Sustentava-se a tese
da hereditariedade. Com base nela sustentou-se
a eugenia e o racismo de Estado, com inúmeras
atrocidades cometidas e extensas violações aos
direitos humanos.
A psicologia, que tem o mérito histórico
de ter se oposto a essa lógica da hereditariedade,
também cumpriu e cumpre sua função normalizadora. As confissões não são feitas apenas no
ambiente clínico ou nos consultórios médicos,
mas também nos divãs. O indivíduo sente-se
liberto ao confessar-se e preso ao continuar silente. Na busca da verdade de seu sexo detalha
seus desejos mais íntimos mas é o ouvinte, por
ser o sexo considerado obscuro e fugidio que irá,
além de julgá-lo, dizer-lhe qual é a sua verdade.
É o psicólogo, portanto, que determinará para o
indivíduo qual a verdade sobre sua sexualidade.
Falemos, finalmente, sobre o papel do
Direito. O Direito não funciona, nesse contexto,
como a lei que proíbe, que estabelece o lícito e
o ilícito e impõe condutas e sanções. Embora
nós apresentemos, mais adiante, alguns casos
de leis de outros países que agem nesse sentido, acreditamos que pelo reduzido número de
casos levados a juízo que elas possuem uma
característica muito mais simbólica. Essa visão
do Direito como interdição se relaciona com a
tese de repressão generalizada da sexualidade.
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 83-95, fevereiro/2010
85
BELATO, C. S. - PEREIRA, E. B. V.
Para Foucault a teoria da repressão é apenas
um discurso para aceitarmos mais facilmente o
poder. Se nos sentimos reprimidos, os mecanismos de poder que são mais sutis, mais amplos
e mais criativos passam desapercebidos. Para
ele, enxergar o poder apenas como interdição é
enxergá-lo como algo extremamente limitado.
O poder assim só poderia proibir, através da
lei, dizer não, determinar o ilícito. quando na
verdade tem uma função positiva e construtiva
nas subjetividades.
Numa sociedade em que as técnicas de
poder se centram na vida, na saúde, na longevidade, o direito tem uma função normalizadora,
se integra aos aparelhos médicos e administrativos para melhor regular a vida humana. Mas
existe também a resistência, que possui um
caráter plural tanto quanto o poder. Ela também
parte da vida, reivindica a vida no que tem de
fundamental, questiona, se manifesta, exige seus
direitos e a legitimação de suas sexualidades
como condição sine qua non para a dignidade
humana, revertendo a situação, utilizando a linguagem médico-jurídica contra o poder. É aqui
que entra a luta universal de diversos grupos pelo
reconhecimento de seus direitos.
Essa intervenção do direito na vida possui,
portanto, um caráter dúplice: enquanto classifica,
determina, controla sob a jurisdição e a tutela
estatal; enquanto reduz o sujeito ao nome e ao
gênero que lhe atribui, bem como à sexualidade
regrada que lhe impõe, também é questionado;
subitamente se vê obrigado a proteger o que
gostaria de normalizar; em seguida, conforma-se
e normaliza.
Os movimentos, as pessoas, também pautam o direito: nele incluem suas sexualidades que
este busca não admitir e não tutelar. E este, por
sua vez, se apropria e a normaliza, contendo-a.
3. Sexualidade como direito
humano e o plano internacional
Em primeiro lugar, é importante deixar
claro, no momento em que foi escrito o presente
artigo, não há no plano internacional nenhum
tratado que trate especificamente da questão da
86
sexualidade. Por exemplo, não temos nenhum
acordo internacional que proíba explicitamente
a discriminação contra os homossexuais.
Entretanto isto não significa que exista
uma absoluta lacuna no plano internacional.
Exatamente tendo em vista as constantes violações de Direitos Humanos perpetradas contra
esses grupos sociais, a Comissão Internacional
de Juristas e o Serviço Internacional de Direitos
Humanos, representando diversas organizações
de defesa dos direitos humanos, elaboraram os
chamados Princípios de Yogyakarta.
Os Princípios são o produto da reunião
de vinte e nove especialistas na questão da
sexualidade e Direitos Humanos, de vinte e
cinco países diferentes, na universidade Gadjah
Mada, em Yogyakarta, Indonésia, em novembro
de 2006. Os Princípios de Yogyakarta tratam da
“aplicação da legislação internacional de Direitos Humanos em relação à orientação sexual e
identidade de gênero”. 3
Os Princípios, na verdade, não são em si
novos. O que foi feito foi a resignificação de
princípios já consagrados de Direitos Humanos, muitos desde a Declaração Universal dos
Direitos Humanos, sobre o prisma da sexualidade. Dando uma nova dimensão aos Direitos
Humanos já positivados na esfera internacional.
Com isso, seria possível trabalhar esta temática
no plano internacional – quiçá até na área de
litígio internacional – mesmo frente à lacuna
normativa existente.
O texto dos Princípios de Yogyakarta
apresenta vinte e nove destes Direitos Humanos
clássicos e mostra como a questão da orientação
sexual e da identidade de gênero se encontram
já protegidas por ela, o que não é objeto de
consenso4.
Seria demasiado exaustivo fazer uma análise de cada uma dos princípios, portanto selecionamos alguns que nos parecem proporcionar
uma discussão relevante para apresentação.
Direito à Igualdade: Os Princípios de
Yogyakarta relacionam esse direito ao da nãodiscriminação ao afirmar que
A discriminação com base na orientação
sexual ou identidade de gênero inclui qualquer
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 83-95, fevereiro/2010
SExuALIDADE E DIREITOS HuMANOS
distinção, exclusão, restrição ou preferência
baseada na orientação sexual ou identidade de
gênero que tenha o objetivo ou efeito de anular
ou prejudicar a igualdade perante a lei ou proteção igual da lei, ou o reconhecimento, gozo
ou exercício, em base igualitária, de todos os
direitos humanos e das liberdades fundamentais.
(PRINCíPIOS, p. 11-12)
Tal princípio pode ser lido como o veto
principal da discussão acerca da orientação sexual e identidade de gênero, pois uma das grandes
lutas destes grupos sociais é exatamente por um
tratamento igual ao dispensados a, por exemplo,
aos heterossexuais. Neste sentido, qualquer legislação que criminalize a atividade consensual
entre pessoas do mesmo sexo deve ser revogada,
pois afrontaria a igualdade de tratamento perante
a lei protegida internacionalmente. Assim como
o simples fato da lei proporcionar um tratamento
mais restritivo a alguma minoria sexual constituiria uma violação ao princípio da igualdade.
Embora a noção de igualdade já parece
conter tal exigência, o argumento utilizado por
parte dos defensores de um tratamento desigual
é que não se pode tratar os desiguais igualmente
e que as minorias sexuais não estariam na mesma
posição que os arranjos familiares tradicionais.
O que o texto dos Princípios faz é dizer que tal
fator não pode ser um critério para a criação de
distinções e tal noção ainda não foi incorporada
ao cenário internacional de maneira sólida. Por
exemplo, se poderia citar a presença de leis antisodomia nos Estados Unidos.
Direito à Liberdade de Opinião e Expressão: Nesse sentido, nunca poderá uma pessoa ter
seu direito à palavra tolhido pelo simples fato
dela(e) ser homossexual ou transgênero ou por
defender os direitos desses grupos.
Porém, um ponto muito importante levantado pelos Princípios é fato de que se deve
garantir “que o exercício da liberdade de opinião
e expressão não viole os direitos e liberdades das
pessoas de orientações sexuais e identidade de
gênero diversas” (idem, p. 26). O texto é aberto
e não aponta especificamente para o tipo de restrição seria legítimo, porém uma interpretação
possível seria no sentido de que manifestações
que violem o direito à honra e à dignidade de
pessoas em razão dos parâmetros acima expostos não estariam protegidas pela liberdade de
expressão da mesma maneira que outras formas
de manifestar-se.
Neste sentido, não se poderia defender
abertamente que a homossexualidade é um
absurdo e que todo homossexual deveria ser
normalizado, pois isso estaria ferindo a honra e
a dignidade de toda pessoa homossexual, direitos
esses também protegidos pela normatividade
internacional. Entretanto, o texto como foi redatado poderia dar margem à interpretação de que
alguma espécie de censura prévia seria necessária, o que conflitaria com parte da normativa
internacional acerca da liberdade de expressão,
como por exemplo a Convenção Americana
de Direitos Humanos, o que apenas reforça a
noção de que tal temática ainda precisa e deve
ser melhor trabalhada no cenário internacional.
Direito de Constituir Família: Essa talvez
seja uma das questões mais controversas da questão da sexualidade e direitos humanos. Todos
nós sabemos da forte resistência que existe na
sociedade em relação ao reconhecimento de um
conceito de família mais amplo, que inclua, por
exemplo, as relação homoafetivas. Os Princípios
nos dizem que:
Toda pessoa tem o direito de constituir uma
família, independente de sua orientação sexual
ou identidade de gênero. As famílias existem
em diversas formas. Nenhuma família pode ser
sujeita à discriminação com base na orientação
sexual ou identidade de gênero de qualquer de
seus membros. (idem, p. 29)
Nesse sentido, todos países deveriam reconhecer a legitimidade das uniões entre pessoas do
mesmo sexo, dando a elas os mesmos direitos e
possibilidades de arranjo familiar que a legislação dá para os casais heterossexuais, permitindo
inclusive a adoção de crianças por esses casais.
É interessante apontar que diversos países
do mundo já reconhecem o direito do homossexual de constituir família, principalmente
nos últimos dez anos. Por exemplo, apesar de
poucos países permitirem o casamento entre
pessoas do mesmo sexo (Dinamarca, áfrica do
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 83-95, fevereiro/2010
87
BELATO, C. S. - PEREIRA, E. B. V.
Sul, Espanha, Canáda, Bélgica e Holanda; por
exemplo), mais de dez países admitem a união
civil, também chamada de união estável, dentre
eles: Irlanda, Eslovênia, França, Alemanha e
Noruega.
Pela lista de direitos humanos elencadas
acima e pela breve explicação da correlação
entre alguns deles e o tema da sexualidade já
ficou evidente que muitos desses direitos estão
protegidos por diversos tratados internacionais.
Isto que significa que se pode pleitear a garantia e
a proteção da esfera dos mesmos relativa à sexualidade em juízo, seja no plano interno – no casos
de tratados nos quais o Brasil é signatário –, seja
no plano internacional – no caso dos sistemas
internacionais de proteção de Direitos Humanos.
Neste sentido, por exemplo a Convenção
Americana de Direitos Humanos apresenta um
largo rol de direitos humanos que abordados
pelos Princípios de Yogyakarta, o que significa
que seria possível, em tese, trabalhar a questão
dos direitos sexuais através do referido diploma.
Entretanto, cabe levar uma pequena ressalva. O artigo 27 declara que é “reconhecido
o direito do homem e da mulher de contraírem
casamento e fundarem uma família”, o que, a
primeira vista, nos dá a impressão de estarmos
diante de uma visão estritamente heterossexual
do casamento e que outros arranjos familiares
não estaria protegidos pela Convenção.
uma possível saída interpretativa para a
restrição imposta pela Convenção é admitir que a
instituição do casamento só se refere à união entre pessoas de sexos diferentes, porém a família
não precisa se resumir a isso. O ponto 1 do artigo
27 prevê a proteção da unidade familiar, não da
família heterossexual, e família e casamento são
dois institutos distintos. Logo, para que se posso
proteger a família, enquanto “elemento natural
e fundamental da sociedade”, é necessário reconhecer a diversidade de modelos familiares que
existem, incluindo a união homoafetiva.
Portanto, para poder se efetivar esse dispositivo da Convenção Americana de Direitos
Humanos seria necessária a criação em seus
países signatário, incluindo no Brasil, formas
alternativas de se permitir o florescimento e o
88
reconhecimento de núcleo familiares diversos da
tradicional família pai, mãe e filhos. Essa leitura
não viola o texto da norma, pelo contrário, busca
dar máxima efetividade ao seu conteúdo, ao
mesmo tempo que a harmoniza com os demais
princípios consagrados pelo pacto, como a da
igualdade de tratamento perante à lei.
4.Sexualidade como direito humano
e o direito brasileiro
No que diz respeito à normatividade nacional, ainda não temos nenhuma lei federal que
promova os direitos de gays, lésbicas, bissexuais
e transgêneros. O casamento entre pessoas do
mesmo sexo não é, ainda, expressamente regulamentado e nenhuma lei especifica claramente
a discriminação baseada em orientação sexual
ou identidade de gênero como uma violação dos
Direitos Humanos. Todavia, isto não significa
que o Direito Brasileiro não forneça nenhuma
espécie de proteção nestes casos
Em primeiro lugar, tudo o que foi dito
acima acerca da aplicação dos Princípios de
Yogyakarta na esfera internacional pode perfeitamente ser utilizado no âmbito da legislação
nacional. Todos os princípios presentes em Yogyakarta são protegidos de forma expressa pelo
nosso ordenamento jurídico, principalmente pela
nossa Constituição. Ademais, os tratados internacionais ratificados pelo Brasil também fazem
parte do ordenamento jurídico nacional – como
é o caso da Convenção Americana – e, portanto,
podem ser utilizados internamente.
Por exemplo, o inciso IV do artigo 3º da
Constituição diz que é objetivo fundamental
da República Federativa do Brasil “promover
o bem de todos, sem preconceitos de origem,
raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas
de discriminação”. Assim como o inciso xLI
do artigo 3 determina que “a lei punirá qualquer
discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais” é evidente que a questão da
sexualidade pode ser perfeitamente enquadrada
nessas normas.
O caput do artigo 5º diz que: “Todos são
iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 83-95, fevereiro/2010
SExuALIDADE E DIREITOS HuMANOS
natureza”, logo, aos homossexuais e transgêneros não pode ser dado um tratamento pior do
que aquele reservado aos demais cidadãos, o que
nos remete diretamente à questão do casamento,
da adoção e da união estável; caso utilizemos a
noção de direito à igualdade esboçada nos Princípios de Yogyakarta.
Tradicionalmente se entende que o casamento e a união estável entre pessoas do
mesmo sexo é proibida no Brasil. O parágrafo
3º do artigo 226 diz que a união estável só se
dá entre homem e mulher, o que impediria que
casais homossexuais conseguissem ingressar
nesse regime.
Quanto ao casamento, apesar da Constituição não dizer expressamente que só se limita a
homem e mulher, o artigo 1.514 do Código Civil
diz expressamente que esse instituto está reservado para homem e mulher. Sem querermos entrar
no mérito da inconstitucionalidade do referido
do dispositivo da lei cível, ou da tentativa de se
explicar porque poderia se considerar inconstitucional o parágrafo 3º do artigo 226 da própria
Constituição, podemos voltar um pouco no texto
constitucional, para o caput do artigo 226.
Diz ele que: “A família, base da sociedade,
tem especial proteção do Estado”. Ora, família e
casamento, ou união estável, não se identificam,
como já vimos. Existe família e diversidade
familiar fora desses institutos e é dever do Estado, conforme se depreende da leitura do artigo
acima, proteger esses núcleos familiares não convencionais. Portanto, mesmo que não se permita
aos casais homossexuais contrair casamento ou
união estável, o comando constitucional exigiria
que o Estado criasse mecanismos que permitam
a proteção dessas famílias.
O fato de uma família ser composta por
dois homens não retira o dever de tutela do
Estado, talvez pelo contrário. Pelo fato deste
tipo arranjo familiar não possuir o mesmo grau
de proteção legal por parte do Estado, além da
questão da rejeição por parte da sociedade, é que
o Estado dispense uma atenção especial a essa
situação de vulnerabilidade, buscando formas
efetivas de se resolver essa questão.
Nesse sentido, temos o Projeto de Lei 1.151
de 1995, da então deputada Marta Suplicy. Tal
projeto buscou criar a figura da união Civil entre Pessoas do Mesmo Sexo, ou Parceria Civil
Registrada, conforme o substitutivo proposto
pelo então deputado Roberto Jefferson. Assim,
aos homossexuais seria dada um novo instituto
familiar, dando aos cônjuges proteção quanto
à partilha de bens, herança, planos de saúde,
direitos previdenciários, dentre outros direitos
e deveres. Porém, o substitutivo do deputado
Roberto Jefferson buscou impedir a adoção de
crianças por parte de casais homossexuais, em
total contramão em relação aos recentes avanços
da jurisprudência.
Tal proposta, entretanto, é insuficiente. Ao
criar uma classe especial de união para aqueles
arranjos familiares não tradicionais, ainda não
se estaria dando plena efetividade ao princípio
da igualdade. Não se pode negar o avanço que
representaria a regulação da união civil para
os casais homossexuais, porém esta mesma
proposta também demonstra que ao menos
parte da sociedade ainda não estaria disposta a
reconhecer as distintas formas familiares em pé
de igualdade.
É importante notar que, apesar de tudo
isso, parte da jurisprudência vem reconhecendo
uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo, se
valendo dos princípios constitucionais e métodos
hermenêuticos tradicionais como a analogia.
Ademais das possibilidades de atualização
via interpretação e projetos de lei, nós temos leis
e normas que, de forma ainda um pouco tímida
e restrita, dão proteção aos Direitos Humanos
relativos à sexualidade. Por exemplo, no Estado
do Rio de Janeiro nós temos a Lei Estadual 3.406
de 2000, que “estabelece penalidades aos estabelecimentos que discriminem pessoas em virtude
de sua orientação sexual”. No Município do Rio
de Janeiro nós temos a Lei Municipal 2.475 de
1996, que “determina sanções às Práticas Discriminatórias na Forma que Menciona e dá outras
providências”, determinando que “Os estabelecimentos comerciais, industriais e repartições
públicas municipais que discriminarem pessoas
em virtude de sua orientação sexual, na forma
do parágrafo 1o do art. 5º da Lei Orgânica do
Município, sofrerão as sanções previstas nesta
lei”, sanções estas que vão desde advertência
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 83-95, fevereiro/2010
89
BELATO, C. S. - PEREIRA, E. B. V.
até cassação de alvará, progressivamente. O
parágrafo 1º do artigo 5º da Lei Orgânica do
Município determina que “Ninguém será discriminado, prejudicado ou privilegiado em razão
de (...) orientação sexual”, o que evidencia o
entendimento de que a questão da sexualidade
está compreendida dentro da problemática dos
Direitos Humanos, tanto que o Título no qual
se insere tal artigo se chama “Dos Princípios e
Direitos Fundamentais” e todos nós sabemos
da estreita relação entre Direitos Humanos e
Direitos Fundamentais, sendo, de forma geral,
os segundos a positivação dos primeiros.
Ainda no Rio de Janeiro, temos a Lei 3.786,
graças a qual “os parceiros homossexuais passam
a ser reconhecidos pelo mesmo estatuto dos companheiros em uniões estáveis homossexuais”,
para questões previdenciárias. Na mesma linha,
temos a Instrução Normativa nº 57 do INSS, que
foi criada em reposta a uma ação judicial que
determinou, no caso concreto, o mesmo direito
previsto no seu artigo 20, que determina que:
“O companheiro ou a companheira homossexual de segurado inscrito no RGPS passa
a integrar o rol dos dependentes e, desde que
comprovada a união estável, concorrem, para
fins de pensão por morte e de auxílio-reclusão,
com os dependentes preferenciais de que trata
o inciso I do art. 16 da Lei no 8.213, de 1991,
independentemente da data do óbito, ou seja,
mesmo tendo ocorrido anteriormente à data da
decisão judicial proferida na Ação Civil Pública
n. 2000.71.00.009347-0.”
Uma das leis que mais expressamente trata
a questão da sexualidade e dos Direitos Humanos
é a Lei Estadual 11.872 de 2002, promulgado no
Estado do Rio Grande do Sul. Ele dispõe “sobre
a promoção e reconhecimento da liberdade de
orientação, prática, manifestação, identidade,
preferência sexual” e expressamente declara que
a Administração
reconhece o respeito à igual dignidade
da pessoa humana de todos os seus cidadãos,
devendo para tanto, promover sua integração e
reprimir os atos atentatórios a esta dignidade,
especialmente toda forma de discriminação
fundada na orientação, práticas, manifestação,
identidade, preferências sexuais, exercidas den90
tro dos limites da liberdade de cada um e sem
prejuízos a terceiros.
Em seguida a lei apresenta um rol exemplificativo de que tipos de conduta poderiam ser
consideradas atentatórias à dignidade em razão
de orientação sexual ou identidade de gênero e
apresentando diversas sanções para os estabelecimentos nos quais tal atitude se deu. Além de
prever diversos tipos de punição adaptadas ao
porte e ao caráter público ou privado do estabelecimento violador. Se o caso se referir, por
exemplo, a um servidor público, pode haver a
exoneração do mesmo.
Se poderia recorrer a outros exemplos
de legislação estadual ou municipal, porém o
importante é ficar claro que estas são iniciativas
isoladas e que abordam apenas questões específicas. Não há, ainda, um tratamento abrangente
para questão e tal solução não poderia ser dada
a nível local ou regional – seja pelo fato de que
a organização normativa brasileira que restringe
o tratamento de certas matérias ao nível federal,
seja devido a ausência de vontade política por
parte de alguns entes federados – fazendo com
que a responsabilidade da União em formular
políticas e práticas aplicáveis ao pais como um
todo aumente de importância.
Neste sentido, temos os Programas Nacionais de Direitos Humanos. Em 2002, a Secretaria Especial de Direitos Humanos publicou
a segunda versão do Programa Nacional de
Direitos Humanos (PNDH) que deveria ter sido
implementado com os recursos orçamentários
previstos no Plano Plurianual de 2000-2003 e na
lei orçamentária anual. O PNDH deveria servir
também como pauta de discussão do Plano Plurianual 2004-2007, sendo que nesse último ano
seria feita uma nova revisão do mesmo, que o que
somente veio a ocorrer no final de 2009, sendo
que o plano ainda está pendente de aprovação
quando da redação deste artigo.
O programa de 2002 representou um significativo avanço em relação ao Programa anterior,
em relação à temática da sexualidade, incluindo
o tema da orientação sexual dentro da questão
da garantia do Direito à Liberdade e as questões
relativas a gays, lésbicas, travestis, transexuais e
bissexuais dentro das problemáticas do Direito à
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 83-95, fevereiro/2010
SExuALIDADE E DIREITOS HuMANOS
Igualdade. Cabe aqui apresentar alguns dos pontos apresentados no programa mais relevantes
para a nossa discussão:
“114. Propor emenda à Constituição Federal para incluir a garantia do direito à livre
orientação sexual e a proibição da discriminação
por orientação sexual.
“115. Apoiar a regulamentação da parceria
civil registrada entre pessoas do mesmo sexo e a
regulamentação da lei de redesignação de sexo e
mudança de registro civil para transexuais.
“117. Excluir o termo ‘pederastia’ do Código Penal Militar.
“241. Implementar programas de prevenção e combate à violência contra os GLTTB,
incluindo campanhas de esclarecimento e divulgação de informações relativas à legislação que
garante seus direitos.
“242. Apoiar programas de capacitação
de profissionais de educação, policiais, juízes
e operadores do direto em geral para promover
a compreensão e a consciência ética sobre as
diferenças individuais e a eliminação dos estereótipos depreciativos com relação aos GLTTB.
“244. Apoiar a criação de instâncias especializadas de atendimento a casos de discriminação e violência contra GLTTB no Poder
Judiciário, no Ministério Público e no sistema
de segurança pública.”
Infelizmente, boa parte das diretrizes traçadas no plano em questão não produziram os
resultados esperados. Por exemplo, podemos
destacar que o Código Penal Militar não foi alterado e que ainda não há uma regulamentação
para a parceria civil de pessoas do mesmo sexo.
Dois anos depois, em 2004, o Ministério
da Saúde junto com a Comissão Provisória de
Trabalho do Conselho Nacional de Combate à
Discriminação da Secretaria Especial de Direitos
Humanos publicou o documento “Brasil Sem
Homofobia: Programa de Combate à Violência
e à Discriminação contra GLTB e de Promoção
da Cidadania Homossexual”.
O Programa apresenta uma longa lista de
ações a serem desempenhadas e realizadas pelo
Estado e pela sociedade. Isso porque, apesar
da Secretaria Especial de Direitos Humanos da
Presidência da República ser o órgão formalmente responsável pela implementação, articulação e avaliação da integralidade do Programa
apresentado, “a responsabilidade pelo combate
à homofobia e pela promoção da cidadania de
gays, lésbicas e transgêneros se estende a todos
os órgãos públicos, federais, estaduais e municipais, assim como ao conjunto da sociedade
brasileira” (COMISSÃO, p. 27).
Não é pertinente aqui pormenorizar as propostas do Programa, mas vamos apontar alguns
pontos relevantes:
“Estabelecer e implantar estratégias de sensibilização dos operadores de Direito, assessorias
legislativas e gestores de políticas públicas sobre
os direitos dos homossexuais;
“Apoiar a criação da Convenção Interamericana de Direitos Sexuais e Reprodutivos,
em consulta permanente com a sociedade civil;
“Elaborar diretrizes que orientem os Sistemas de Ensino na implementação de ações
que comprovem o respeito ao cidadão e à nãodiscriminação por orientação sexual;
“Discussão com vista na atualização dos
protocolos relacionados às cirurgias de adequação sexual;
“Apoiar elaboração de uma agenda comum
entre movimento negro e movimento de homossexuais e a realização de seminários, reuniões,
oficinas de trabalho sobre a temática do racismo
e da homofobia.”
Mais recentemente assistimos à discussão
em torno do PnDH 3, apresentado no final de
2009. O texto apresenta um objetivo estratégico
em relação à orientação sexual e à identidade de
gênero, como já fazia o PnDH 2. Infelizmente,
a leitura do texto nos mostra que as pautas presentes são muito semelhantes as já desenhadas
em 2004. Ademais, é importante destacar que o
Programa mencionado se encontra sob intensa
critica por parte de diversos setores da sociedade
brasileira, como no que diz respeito à união civil
de casais homossexuais . Em conseqüência, o
Governo, no momento da redação deste artigo,
acenava a possibilidade de alterar algumas das
partes criticadas, o que poderia fragilizar ainda
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 83-95, fevereiro/2010
91
BELATO, C. S. - PEREIRA, E. B. V.
a parca proteção que o Programa dispensa à
questão da sexualidade.
Destaca-se, ainda, que há questões que se
repetem – como apoiar projeto de lei acerca da
união civil entre pessoas do mesmo sexo – e
retrocesso – o texto anterior apoiava a regulamentação da mudança no registro civil para
transexuais e o presente texto apenas fala do uso
no nome social.
Tal fato nos leva à questão dos transgêneros
(chamados de transexuais pelo PnDH), último
ponto a ser discutido neste trabalho. Tal temática comporta principalmente duas discussões:
a cirurgia de adequação sexual e a mudança de
nome e sexo no assento civil. Analisemos cada
uma separadamente
O Conselho Federal de Medicina (CFM)
possui competência, outorgada pela Lei nº 3.268,
de 1957, para determinar quais procedimentos
são éticos e quais não são. Na realização daqueles
considerados antiéticos pelo Conselho, o médico
poderá sofrer uma variedade de sanções administrativas, incluindo a cassação da sua licença
médica. Durante a primeira metade dos anos 90,
o CFM ainda considerava a operação de adequação de sexo como antiética5, partindo da noção de
que é ao médico é proibida a prática ou indicação
de procedimentos médicos desnecessários ou
proibidos pela legislação, de acordo com o Código de Ética Médica. O Conselho considerava
a operação de adequação sexual crime tipificado
no artigo 129, parágrafo 2º, inciso II, do Código
Penal, ou seja, lesão corporal grave por “perda
ou inutilização de membro, sentido ou função”.
Felizmente, em 1997, o CFM mudou sua
posição com a edição da Resolução nº 1.482,
que passou a considerar a cirurgia de adequação sexual como um “tratamento” adequado
à transexualidade, estabelecendo uma série de
critérios para que a pessoa possa ser submetida
a tal cirurgia. Esse entendimento se sedimenta
principalmente em dois dispositivos legais. O
parágrafo 4º do artigo 199 da Constituição Federal, que prevê a remoção de “órgãos, tecidos
e substâncias humanas para fins de transplante,
pesquisa e tratamento” e o artigo 13 do nosso
Código Civil que diz que “salvo por exigência
médica, é defeso o ato de disposição do próprio
92
corpo, quando importar diminuição permanente
de integridade física, ou contrariar os bons costumes”. A partir dessas duas normas e do entendimento que “a cirurgia de adequação de sexo
é uma solução terapêutica para um fenômeno
psíquico específico” (BELATO; PEREIRA, p. 9)
permite-se a cirurgia de adequação sexual, pois
haveria um excludente de ilicitude, proveniente
da lei cível e constitucional, para a conduta tipificada na norma penal.
Apesar de essa solução resolver, teoricamente6, o problema prático, a resposta não parece de todo adequado. Isso porque se continua
vendo a transexualidade como um distúrbio, algo
a ser curado, daí a noção de tratamento, cura.
Argumenta-se que se o transexual não passar pela
operação ele poderá criar um quadro crônico de
depressão, chegando até ao suicídio e à auto-mutilação. Logo, “dos males o menor”. A operação
salva a integridade psíquica do transexual, porém
reconhece seu próprio quadro psicológico como
anormal e errado. Não nos aprofundaremos aqui
nos inúmeros problemas dessa tese, algo que já
foi, de certa forma, trabalhado na primeira parte
desse texto.
Em seguida, temos a questão da mudança
de nome e sexo do Registro Civil. É evidente a
importância desse passo para que o transexual
possa desfrutar plenamente de uma vida digna e
normal. Caso seu nome continue correspondendo
ao do seu sexo biológico originário, ele(a) continuará sendo vítima de agressões, humilhações
e discriminações, o que não pode ser aceito. A
Lei de Registros Públicos não permite expressamente a mudança de nome e sexo nos casos de
cirurgia de adequação sexual. A lei é de 1973,
logo fica evidente que não poderíamos esperar
algo assim da mesma. Porém, há uma saída possível. Permitam-nos emprestar as palavras de um
trabalho anterior de nossa lavra para apresentar
uma possível solução:
O artigo 55, parágrafo único, da Lei 6.015
declara que os “oficiais do registro civil não
registrarão prenomes suscetíveis de expor ao
ridículo os seus portadores” e o artigo 57 da
mesma lei postula que apenas “após audiência do
Ministério Público, será permitida por sentença
do juiz” a alteração posterior do nome, “somente
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 83-95, fevereiro/2010
SExuALIDADE E DIREITOS HuMANOS
por exceção e motivadamente”. Já encontramos
um problema inicial, a lei só faz menção à exposição ao ridículo quando se refere ao momento
do registro inicial do nome da pessoa, por outro
lado, a mesma lei dá poderes ao juiz de efetuar
tal alteração em caso excepcional e com motivos
suficientes. Conforme encontramos em nossa
pesquisa, a jurisprudência e a doutrina reconhecem o direito do requerente de mudar seu nome
em caso de exposição ao ridículo, fato mais do
que notório, já tendo sido objeto de reportagens
na grande mídia. Sendo reconhecida como legítima a demanda acerca desses casos, considera-se,
por conseqüência lógica e direta, que os casos
de transexualidade também devem ter acesso ao
mesmo direito, mas pretendemos aprofundar um
pouco mais o tema.
Tendo em vista a falta de previsão legal
expressa, contra ou a favor da questão, somos levados aos artigos 4º e 5º do Decreto-Lei nº. 4.657
de 1942, a “Lei” de Introdução ao Código Civil,
que declaram que permitem ao interpretador da
norma utilizar-se da analogia e princípios gerais
de direito para resolver uma dada lacuna legal.
Podemos considerar que, atualmente, o
artigo 55 da Lei de Registros Públicos serve para
salvaguardar a dignidade da pessoa humana, que
esse é seu fim social à luz do atual texto constitucional. Logo, da mesma forma que se tenta
proteger o recém-nascido de futuras situações
vexatórias, deve-se, por analogia, proteger o
transexual da mesma situação, já que o juiz deve
considerar o fim social da lei. Tal raciocínio é
semelhante ao utilizado na questão dos nomes
esdrúxulos.
Da mesma forma que o nome pode expor
ao ridículo, o sexo que consta nos documentos
legais do transexual também pode expô-lo a isso.
Por isso, mesmo que não haja previsão legal para
a mudança de sexo, acreditamos que se deve
aplicar um raciocínio análogo àquele utilizado
na mudança de nome no registro civil. Quanto
a isso a jurisprudência diverge bastante: temos
decisões que não permitem a mudança; decisões
que permitem a mudança, desde que conste o
termo transexual em locais diversos, tais como
a Carteira de Identidade ou outros documentos
utilizados publicamente; e, por fim, aquelas
que permitem a mudança de sexo sem que a
mesma fique notificada nos documentos de uso
corrente. Tendo em vista a lógica utilizada para
sustentar a necessidade da mudança, o respeito
à dignidade da pessoa humana e seu direito à
privacidade (ambas garantias constitucionais), a
última solução nos parece mais condizente com
as necessidades do transexual e com a realidade
que ele irá enfrentar.
Contudo, a mudança deve constar no registro civil do operado ou operada, por razões de
segurança jurídica7 e para se preservar a função
do registro civil, que é de relatar “fatos históricos
da vida do indivíduo”. (idem, p. 5)
5. Conclusão
A questão da sexualidade já há muito tempo
é objeto do poder do Estado e das instituições
sociais. O corpo e a subjetividade, instância
indissociáveis do homem, são constantemente
trabalhados para se formar um determinado
tipo de sexualidade. Mas o corpo e seu dono
reagem e contra-fluxos surgem, reivindicando
reconhecimento e construindo novas formas de
sexualidade.
Na sociedade contemporânea a questão da
sexualidade não pode ser corretamente analisada
se não tivermos sempre em mente os Direitos
Humanos. A autodeterminação, a liberdade e
a não-discriminação são direitos fundamentais
para que se possa ter uma visão acurada dessa
questão. A luta por essas novas, e velhas, sexualidades é uma luta respaldada por todo o arcabouço jurídico construído em torno dos direitos
individuais e coletivos de todo homem, mesmo
que resignificados sobre essa nova ótica, e pela
construção de direitos novos.
Não cabe ao Estado ou a nenhum grupo
social ou de moralidade determinar como as
pessoas lidarão com sua própria sexualidade.
Todos devem ser tão livres quanto possível para
construir a sua própria sexualidade, sem que haja
imposição violenta de padrões de conduta ou de
formas de pensar.
Todavia, necessariamente passamos pelo
Direito ao tratar desta questão, portanto é impor-
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 83-95, fevereiro/2010
93
BELATO, C. S. - PEREIRA, E. B. V.
tante destacar novamente a importância dos Princípios de Yogyakarta. Ao fazer esta releitura dos
Direitos Humanos clássico, o trabalho realizado
por esses especialistas instrumentaliza qualquer
ativista da área de Direitos Humanos que queira
militar nos temas relativos à sexualidade. Porém,
não podemos nos satisfazer com isso. É muito
importante que se consiga a aprovação de ao
menos um tratado internacional que trate explicitamente da questão da sexualidade, por exemplo,
proibindo a discriminação por motivos de orientação sexual. O valor simbólico da ratificação de
tal acordo seria incontestável, representando a
vitória de grupos sociais historicamente perseguidos e massacrados, como os gays, lésbicas e
transgêneros, afirmando para todo o mundo que
essa não é uma questão que possa ser mantida
sob o arbítrio das soberanias nacionais e que se
deve respeitar sim a diversidade sexual. Mas
enquanto esse tempo não chega os Princípios de
Yogyakarta podem nos ser muito úteis.
Gostaríamos de terminar com uma citação
que acreditamos exprime o papel que os Direitos
Humanos, e seu reconhecimento e defesa, deve
desempenhar nessa luta:
“Em se tratando de direitos humanos, não
há espaço para omissões.
“Os Estados se vêem confrontados ante
uma escolha crucial: afirmar a universalidade dos direitos humanos ou (...) implicitamente endossar as constantes violações e
abusos dos direitos humanos regularmente
perpetrados contra as pessoas lésbicas,
gays, bissexuais e transgêneros, nos diversos países e regiões de todo o mundo.
“Sabemos, de antemão, que para alguns
países esta não será uma decisão fácil;
contudo, a proteção aos direitos humanos
requer coragem, integridade e liderança.
(FISHER, p. 24)”
6. notas
3
O nome do trabalho é exatamente “Princípios de Yogyakarta sobre a Aplicação da Legislação Internacional
de Direitos Humanos em relação à Orientação Sexual e
Identidade de Gênero”.
94
4
Nesse sentido, basta ver que em torno de 90% da população brasileira que considera homossexualismo errado,
conforme o estudo realizado por Alberto Carlos Almeida
revela em seu livro “A Cabeça do Brasileiro”.
5
Processo Consulta CFM nº 0617/90 – PC/CFM/Nº11/1991
e Processo Consulta CFM nº 0817/90 – PC/CFM/
Nº12/1991, ambos disponíveis no sítio eletrônico da
entidade
6
Dizemos teoricamente pois uma contestação possível
seria afirmar não ser competência do Conselho Federal
de Medicina estipular o que é lícito ou ilícito, logo não
importa o que suas resoluções digam, ele não pode criar
um excludente de ilicitude. Porém, não é ele que cria o
excludente. Ele já está na norma civil e constitucional, que
são, porém, incompletas de conteúdo. O que é exigência
médica ou tratamento médico só pode ser determinado
pelos médicos, não faria sentido esperar que o legislador
editasse portarias regulamentando quais procedimentos
médicos se encaixam nos dois dispositivos citados acima.
7
“É importante lembrar que os números dos documentos,
tais como CPF e RG, do transexual continuam os mesmos,
portanto, a segurança jurídica já estaria, ao menos em boa
parte, salvaguardade através disso”. (idem, p. 9)
7. Bibliografia
BELATO, Clara; PEREIRA, Eduardo B. V.
Transexualidade e direito brasileiro: uma visão
panorâmica. In: II JORNADA CARIOCA DE
INICIAÇÃO CIENTíFICA, 2006. Rio de Janeiro: IBMEC, 2006.
BRANNEN, Daniel E.; Hanes, Richard C.. Supreme Court drama: cases that changed America.
Canada: Elizabeth M. Shaw, 2001.
BRASIL. Secretaria de Estado de Direitos Humanos. Programa nacional de direitos humanos
2. Brasília: Ministério da Justiça, 2002.
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Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 83-95, fevereiro/2010
95
96
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, fevereiro/2010
Artigo
CRIMES DE PESCA NO PANTANAL: DE quEM É A COMPETÊNCIA PARA LEGISLAR?
CrimES DE PESCA no PAntAnAL: DE quEm
É A ComPEtÊnCiA PArA LEgiSLAr?
Fabio Marques Barbosa1
Lamartine Ribeiro2
José Manfroi3
rESumo: Fundamentado nos preceitos Constitucionais, o presente artigo teve a intenção de
investigar a competência da defesa do bioma
Pantanal em território sul-mato-grossense. Foi
constatado, que alguns princípios constitucionais não estão sendo obedecidos. Entretanto, a
pesquisa não proporcionou uma resposta precisa
à indagação inicial. Dessa forma, fez-se necessário uma construção de raciocínio baseado na
hermenêutica constitucional, com referência às
atuais concepções sobre a matéria, alcançando,
assim, uma possibilidade de resposta ao questionamento.
Palavras-chave: Pantanal. Crimes de pesca.
Normas Penais em Branco. Conflito de Competência.
ABStrACt: Based on the Constitutional provisions, this article was intended to investigate
the competence of the defense of the Brazilian
Pantanal, located in the state of Mato Grosso
do Sul. It was found that some constitutional
principles are not being obeyed. However, the
research did not provide a precise answer to the
initial inquiry. As consequence, it was necessary
to build na argument based on constitutional
hermeneutics, with reference to the current understanding of the matter, achieving a possibility
to anwer the question.
Keywords: Pantanal. Fishing crimes. Blank
Criminal Laws. Jurisdiction Conflict.
Bacharel em Direito pela universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Pós-graduado em Direito Criminal pela uCDB/ Campo Grande/MS (lato sensu)
e mestrando bolsista (FuNDECT) em Estudos Fronteiriços pela universidade Federal de Mato Grosso do Sul. E-mail: [email protected].
2
Professor, especialista e advogado. Orientador do Trabalho de Conclusão do Curso de pós-graduação lato sensu da uCDB/ Campo Grande/MS.
E-mail: [email protected].
3
Graduado em filosofia (FuCMT/MS), Mestre em Educação (uFMS) e Doutor em Educação (uNESP/Marília/SP). Orientador do Trabalho de
Conclusão do Curso de Pós-graduação lato sensu da uCDB/Campo Grande/MS. E-mail: [email protected].
1
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 97-106, fevereiro/2010
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BARBOSA, F. M. - RIBEIRO, L. - MANFROI, J.
introdução
O Pantanal sul-mato-grossense é a maior
área alagável do mundo. É considerado um
grande delta interno e um grandioso santuário
ecológico, onde se acumulam as águas da bacia
do Rio Paraguai, originando uma enorme diversidade de fauna e flora. O turismo contemplativo e
a prática da pesca trazem, todos os anos, milhares
de pessoas do Brasil e do mundo. No meio desse
santuário, assenta-se Corumbá, que segundo a
língua tupi-guarani (curupah), significa “lugar
distante”. Banhado pelo rio Paraguai e por
alguns afluentes do Estado de Mato Grosso do
Sul, o município é um atrativo turístico, sendo
a exploração da pesca um fator importante para
a sua economia.
A fiscalização das águas pantaneiras, predominantemente de interesse da União, é realizada pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente
e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA)
e pela Polícia Militar Ambiental do Estado de
Mato Grosso do Sul, através de convênio.
Os enquadramentos legais diante de um
ato ilícito de pesca são baseados nas legislações
federal e estadual. De acordo com a gravidade
da infração, são imputadas ao autor da ilicitude
sanções administrativas ou penais: estas seguem
a tipificação constante na Lei 9.605/98 (Lei dos
Crimes Ambientais) e aquelas, além do Decreto
6.514/08, as legislações estaduais. Todavia, para
a maioria dos delitos ambientais, a tipificação
constante na Lei 9.605/98 necessita da complementação de outras normas federais, estaduais
ou municipais, dependendo da predominância
da competência constitucional. Essas normas
complementadas são denominadas normas penais em branco.
A questão em estudo no presente artigo é,
então, analisar as normas em vigor no tocante
aos crimes de pesca cometidos no Pantanal,
para, ao final, tentar apontar a quem compete
legislar sobre a matéria, observando se os princípios norteadores do direito ambiental estão
sendo respeitados. Para isso, serão apresentados
tópicos sobre os fundamentos da lei de pesca, a
98
competência legislativa em matéria ambiental,
as normas penais em branco, o poder de polícia
do estado e a legislação pesqueira vigente.
Embora esta seja uma discussão com pouca
jurisprudência e escassos posicionamentos doutrinários, ela é bastante relevante para o universo
acadêmico, e para a população regional, sobretudo devido à iminente reforma na legislação pesqueira do Estado, o que certamente, importará na
transformação das vidas daqueles que dependem
da exploração desses recursos naturais.
1. fundamentos da lei de pesca
Para que seja dada efetividade à proteção
da natureza, o legislador brasileiro utiliza-se,
além da tutela constitucional, da tutela civil,
administrativa e penal.
A Constituição Federal, em seu art. 225,
§ 3º, estabelece que as condutas e atividades
consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão aos infratores, pessoas físicas ou jurídicas,
sanções penais e administrativas, independente
da obrigação de reparar os danos causados.
Tratando-se de crime de pesca, foram
sancionados três artigos da Lei 9.605/98 (lei dos
crimes ambientais), que embora relevantes, têm
sua eficácia contestada, devido ao grande índice
de reincidência. Tais dispositivos, doravante
analisados, protegem de forma expressa a fauna
ictiológica4 e tipificam condutas que caracterizam a prática da pesca predatória, prevendo
penas restritivas de liberdade ou de direitos,
cumuladas ou não com multas.
É preciso evidenciar que, embora exista
previsão legal para a aplicação de penas restritivas de liberdade, cumuladas ou não com a
pecuniária, as penas aplicadas no Direito Penal
Ambiental, na prática, acabam sendo restritivas
de direitos, em observância ao disposto no art.
7º, I, da Lei 9.605/98, que prevê a substituição
quando aquelas não ultrapassarem quatro anos.
Como são poucos os casos em que a pena alcança quatro anos de detenção e, normalmente, no
Brasil, as penas são aplicadas no mínimo legal,
dificilmente, alguém terá sua liberdade cerceada
por uma ilegalidade ambiental.
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 97-106, fevereiro/2010
CRIMES DE PESCA NO PANTANAL: DE quEM É A COMPETÊNCIA PARA LEGISLAR?
Ao lado dos dispositivos até aqui mencionados, existem ainda outros, na esfera Estadual,
que suplementam a legislação Federal e regulamentam os procedimentos administrativos,
como o estabelecimento de cota de pescado, o
tamanho mínimo das espécies para a captura, o
período de defeso5, etc., que devem ser aplicados observando normas diretivas peculiares ao
Direito Ambiental.
2. tipo penal aberto
Em observância aos princípios constitucionais da reserva legal ou do contraditório, é consignado ao agente o direito de se defender. Por
esse motivo, em tese, as normas penais devem
descrever completamente todas as características
do fato típico. Todavia, as condutas lesivas ao
meio ambiente, que possuem formas múltiplas e
mudam freqüentemente, nem sempre permitem
uma descrição direta e objetiva, como ocorre nos
delitos comuns.
Para Heleno Cláudio Fragoso (1958),
alguns tipos penais não descrevem de forma
expressa ou completa a transgressão do agente
delituoso, dependendo da violação de normas
especiais que o tipo pressupõe. Dessa maneira,
a ilicitude deve ser estabelecida pelo juiz, que
verificará se houve ou não a transgressão das
normas que a incriminação pressupõe.
Por esse e por outros motivos, temas referentes aos tipos penais ambientais são amplamente discutidos pela doutrina. Por serem, algumas vezes, demasiadamente abertos, recorre-se,
em muitos casos, às normas penais em branco.
3. normas penais em branco
É através de ato administrativo emanado
de órgãos ambientais integrantes do SISNAMA6
que melhor se protegerá o meio ambiente. Estes
órgãos definem os locais, períodos e condições
em que os recursos naturais devem ser explorados de forma sustentável.
Como anteriormente mencionado, em
determinados momentos, a lei faz remissões da
norma à outros dispositivos, para que as complementem, devido à sua complexidade técnica.
Para Fernando Capez (2003), tais normas,
denominadas normas penais em branco, são
dispositivos nos quais o preceito secundário (cominação da pena) está completo, permanecendo
indeterminado o seu conteúdo. “Trata-se, portanto, de uma norma cuja descrição da conduta está
incompleta, necessitando de complementação
por outra disposição legal ou regulamentar” (p.
32). O autor classifica-as em “sentido lato ou
homogêneas; sentido estrito ou heterogêneas;
norma penal em branco ao avesso” (p. 32).
Segundo Arthur Migliari Junior (2003),
normas penais em branco são aquelas que não
possuem conteúdo incriminador por si só, exigindo complementação por outra norma jurídica,
como a edição de uma lei, um decreto, um regulamento, uma portaria de determinado Departamento do Estado, etc., a fim de que possam ser
aplicadas ao fato concreto.
Analisando especificamente os artigos
34 e 35 da Lei 9.605/98, observa-se que o tipo
penal é remetido a outros dispositivos, que regulamentarão tais condutas. A expressão “autoridade competente”, que regulamentará a pesca,
por exemplo, se refere ao IBAMA ou ao órgão
estadual que desempenhe funções delegadas.
Assim, essa complementação não ofende o
princípio da reserva legal. Entretanto, um óbice
que, eventualmente, poderia ser suscitado contra
essa afirmação, seria a disposição estampada no
art. 22, inciso I, da Carta Constitucional. Conforme esse artigo, compete privativamente à união
legislar sobre direito penal. Nessa esteira, atos
emanados de autoridade estadual não deveriam
integrar os preceitos incriminadores de normas
penais em branco, ou amparar juízo valorativo
referente a elementos normativos, sob pena de
inconstitucionalidade formal. Porém, os mencionados atos estaduais ou municipais não inovam o
direito penal e nem criam novas condutas típicas.
São, na verdade, uma disposição meramente
complementar.
4. Competência em matéria ambiental
A Constituição de 1988 adotou como forma
de Estado o federalismo7, determinando a capital
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 97-106, fevereiro/2010
99
BARBOSA, F. M. - RIBEIRO, L. - MANFROI, J.
federal em Brasília. A organização políticoadministrativa compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos
autônomos nos termos da Constituição Federal.
Essas entidades federativas se manifestam sobre
a mesma população e sobre o mesmo território,
e, por esse motivo, a repartição de competências entre os entes governamentais constitui um
dos núcleos fundamentais do Estado Federal
Brasileiro e um dos temas mais conflituosos em
matéria ambiental.
José Afonso da Silva (2007), considera
que a “competência é a faculdade juridicamente
atribuída à uma entidade ou a um órgão ou agente
do Poder Público para emitir decisões. [...] são
as diversas modalidades de poder de que se servem os órgãos ou entidades estatais para realizar
suas funções” (p. 71). A autonomia federativa,
segundo o autor, “assenta-se em dois elementos
básicos: a existência de órgãos governamentais
próprios e a posse de competências exclusivas”.
(p. 72)
De acordo com o magistério de Alexandre
de Moraes (2004), o princípio geral que norteia a
repartição de competências é o da predominância
do interesse. Ele explica:
Pelo principio da predominância do interesse, à união caberá aquelas matérias e
questões de predominância do interesse
geral ao passo que aos Estados referemse as matérias de predominante interesse
regional, e aos Municípios concernem os
assuntos de interesse local. Em relação
ao Distrito Federal, por expressa disposição constitucional (CF, art. 32, § 1º),
acumulam-se, em regra, as competências
estaduais e municipais, com a exceção
prevista no art. 228, xVII, da Constituição.
(p. 290)
Estados – Poderes remanescentes (CF,
art. 25, § 1º);
Município – Poderes enumerados (CF,
art. 30);
Distrito Federal – Estados + Municípios
(CF, art. 32, § 1º)
2. Possibilidade de delegação (CF, art. 22,
parágrafo único) – Lei complementar federal poderá autorizar os Estados a legislar
sobre questões específicas das matérias de
competência privativa da União.
3. áreas comuns de autuação administrativa
paralela (CF, art. 23).
4. áreas de autuação legislativa concorrente
(CF, art. 24). (p. 291)
Em relação à classificação das competências, FERREIRA (2007), posiciona-se da
seguinte forma:
I - quanto à natureza:
a) executivas: reserva a determinada esfera do poder o direito de estabelecer e
executar diretrizes, estratégias e políticas
relacionadas ao meio ambiente;
b) administrativas: traz o sentido de implementação e fiscalização, ou seja, remete
ao exercício do poder de polícia pelas
entidades federativas com o propósito
de proteger e preservar o meio ambiente;
c) legislativa refere-se à capacidade outorgada a um ente da Federação para legislar
sobre questões referentes à temática
ambiental.
II – quanto à extensão:
a) exclusivas: exclui os demais entes federativos do seu exercício;
Adotando o referido princípio, o legislador
constituinte estabeleceu quatro pontos básicos
no regramento constitucional para a divisão
de competências administrativas e legislativas
(MORAES, 2004):
1. Reserva de campos específicos de competência administrativa e legislativa:
b) privativa: embora seja também específica de determinado nível de governo,
admite delegação ou suplementariedade;
união – Poderes enumerados (CF, arts,
21 e 22);
d) concorrente: prevê a possibilidade de
disposição sobre determinada matéria
100
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 97-106, fevereiro/2010
c) comum: também denominada cumulativa ou paralela, é exercida de forma
igualitária por todos os entes que compõem a Federação;
CRIMES DE PESCA NO PANTANAL: DE quEM É A COMPETÊNCIA PARA LEGISLAR?
por mais de um ente federativo, havendo
entretanto, uma primazia por parte da
união quanto a fixação de normas gerais;
e) suplementar: indica a possibilidade de
edição de normas que pormenorizem
normas gerais existentes ou supram a
sua ausência ou omissão. (p. 204-206)
Posto isso, pode-se dizer que compete à
União a elaboração de normas gerais, restando
aos demais entes políticos a especificação das
condutas, observando-se a realidade local.
5. Conflitos de competências
A distância do poder central e uma possível
disputa pelo poder entre os órgãos ambientais,
muitas vezes, podem gerar dificuldades na aplicação das normas em casos concretos. Essas
dificuldades têm influência direta no que se refere
à repartição de competências. São invocados,
então, os princípios constitucionais, a doutrina
e a jurisprudência, para estabelecer a predominância das normas.
Para Fernando Capez (2003), há conflito
quando duas ou mais normas pretendem regulamentar, aparentemente, o mesmo fato. No entanto, apenas uma delas acaba sendo aplicada. Para
o autor, o caso fica configurado com a presença
dos seguintes elementos:
a) unidade do fato (há somente uma infração
penal);
b) pluralidade de normas (duas ou mais
normas pretendendo regulá-lo);
c) aparente aplicação de todas as normas à
espécie ( a incidência de todas é apenas
aparente);
d) efetiva aplicação de apenas uma delas
(somente uma é aplicável, razão pela qual
o conflito é aparente). (p. 67)
Freitas (2007) estabelece alguns posicionamentos nas situações mais comuns:
Em princípio: a) quando a competência for
privativa da união, a eventual fiscalização
de órgão estadual ou municipal com base
na competência comum de proteção ao
meio ambiente não retira a prevalência federal; b) quando a competência for comum
(por exemplo, preservação de florestas),
deve ser verificada a existência ou não de
interesse nacional, regional ou local e, a
partir daí, definir a competência material
(por exemplo, a devastação de grandes
proporções na Serra do Mar configura
interesse federal, em face do contido no
art. 225, § 4º, da Constituição Federal); c)
quando a competência for do Estado, por
não ser a matéria privativa da União ou do
Município (residual), a ele cabe a prática
dos atos administrativos pertinentes, como
fiscalizar ou impor sanções (por exemplo,
controle da pesca em rio municipal); d) no
mar territorial a fiscalização cabe à Capitania dos Portos, do Ministério da Marinha;
e) cabe ao Município atuar apenas em
caráter supletivo quando a matéria for do
interesse comum e houver ação federal
ou estadual; f) cabe ao Município atuar
privativamente quando a matéria for do
interesse exclusivo local (por exemplo,
poda de árvores nas vias públicas). (p. 80)
FERREIRA (2007), assinalando também
normas conflitantes, aponta três possibilidades
de análise:
a) pode ocorrer que, mesmo observando os
seus campos de atuação, União e Estados
legislem de forma conflitante. Nesse caso,
entende-se que deverá predominar a regra
mais restritiva, uma vez que se busca a
satisfação de um interesse público; b)
uma segunda possibilidade consiste na
inobservância dos limites constitucionais
impostos ao exercício da competência
concorrente. A invasão do campo de atuação alheio implica a inconstitucionalidade
da lei, seja ela federal, seja ela estadual;
c) finalmente, pode ainda o conflito entre
leis resultar da impossibilidade de definir
precisamente o que são normas gerais e
normas especiais. Tais conflitos devem ser
solucionados tendo por base o princípio
in dúbio pro natura, devendo prevalecer
a norma que melhor defenda o direito
fundamental tutelado, ou seja, o meio
ambiente. (p. 215).
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I – as águas superficiais ou subterrâneas,
fluentes, emergentes e em depósito, ressalvadas, neste caso, na forma da lei, as
decorrentes de obras da União;
Observa-se, segundo a autora, que, sendo
a norma mais restritiva ao homem, ela será mais
benéfica ao meio ambiente, devendo assim, ter
prevalência diante da norma mais permissiva.
[...]
Art. 225. Todos têm direito ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado,
bem de uso comum do povo e essencial
à sadia qualidade de vida, impondo-se ao
Poder Público e à coletividade o dever de
defendê-lo e preservá-lo para as presentes
e futuras gerações.
6. o pantanal mato-grossense e o
conflito de competências
A região do Pantanal ocupa uma área
aproximada de 250 mil km2, formando a maior
planície inundável do planeta, localizada em
território brasileiro, argentino, boliviano e paraguaio. Considerado um patrimônio nacional
e constituído por rios de interesse da união e
dos estados de Mato Grosso e Mato Grosso do
Sul, o Pantanal ocupa uma área de 138 mil km2,
distribuído entre estes dois estados.
O fato de constituir um patrimônio nacional
deixa explícito o interesse da união em tutelar
tal ecossistema. Porém, o Pantanal, como outros
patrimônios nacionais, ainda não possuem uma
legislação própria para a sua proteção.
O art. 225, da Constituição Federal, impõe
ao Poder Público o dever de defender e preservar
o meio ambiente, tomando todas as medidas
para assegurar a efetividade da tutela ambiental.
Cada ente federado deverá atuar respeitando os
limites de sua competência. Como evidenciado,
há casos excepcionais, em que a competência
administrativa comum poderá ser exercida por
um ente distinto daquele que editou a norma.
A Carta Magna traz dispositivos que enumeram os bens pertencentes aos entes federados,
distribuídos da seguinte forma:
Art. 20. São bens da união:
[...]
III – os lagos, rios e quaisquer correntes
de água em terrenos de seu domínio, ou
que banhem mais de um Estado, sirvam de
limites com outros países, ou se estendam
a território estrangeiro ou dele provenham,
bem como os terrenos marginais e as
praias fluviais;
[...]
Art. 26. Incluem-se entre os bens dos
Estados:
102
[...]
§ 4º. A Floresta Amazônica brasileira, a
Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal
Mato-Grossense e a Zona Costeira são
patrimônio nacional, e sua utilização farse-á, na forma da lei, dentro de condições
que assegurem a preservação do meio
ambiente, inclusive quanto ao uso dos
recursos naturais.
[...]
Dessa forma, é notória a constatação de
que o Pantanal é um patrimônio nacional, permanecendo, assim, o interesse da União em sua
tutela, embora seja permitido aos Estados de
Mato Grosso e Mato Grosso do Sul suplementar
a legislação federal.
7. Legislação vigente
Como registrado, além da lei 9.605/98 e
demais normas federais, existem, no Estado de
Mato Grosso do Sul, outros dispositivos que
suplementam a legislação federal, seja para
regulamentar a pesca no Estado ou para atribuir
sanções administrativas pela prática da pesca
ilícita.
O Decreto nº 5.583, de 16 de novembro de
2005, autoriza o IBAMA a estabelecer normas
para a gestão do uso sustentável dos recursos
pesqueiros. O art. 93, da Constituição do Estado
de Mato Grosso do Sul, atribui a mesma competência à SEMAC9, na esfera estadual. Vinculada
a essa Secretaria, foi instituído, no ano de 2007,
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 97-106, fevereiro/2010
CRIMES DE PESCA NO PANTANAL: DE quEM É A COMPETÊNCIA PARA LEGISLAR?
pelo Decreto nº 12.231/2007, o IMASuL10, com
a finalidade de coordenar e executar a política
de meio ambiente em todo o território do Estado
de Mato Grosso do Sul e fazer cumprir as legislações federal e estadual sobre essa atividade.
Para praticar a pesca no Estado de Mato
Grosso do Sul, além dos dispositivos já comentados, o pescador, residente ou não no estado,
deverá se atentar para as seguintes normas:
• Decreto-lei 221, de 1967, Código de
Pesca: dispõe sobre a proteção e estímulos à pesca e dá outras providências.
• Decreto nº 6.514/2008: dispõe sobre a
especificação das sanções aplicáveis às
condutas e atividades lesivas ao meio
ambiente.
• Lei Estadual nº 3.329, de 19 de Dezembro de 2006: estabelece normas para a
exploração de recursos pesqueiros no
Estado de Mato Grosso do Sul.
• Decreto Estadual nº 11.724, de 05 de
novembro de 2004.
• As portarias do IBAMA, que fixam
anualmente o período de proibição da
pesca e dão outras providências para
todo território nacional, como cota e
tamanho mínimo para a captura das
espécies, local e petrechos permitidos
para a pesca, etc.
• As resoluções da SEMAC, que fixam
anualmente o período de proibição da
pesca e dão outras providências para
todo território do Estado de Mato
Grosso do Sul, como cota e tamanho
mínimo para a captura, locais e períodos permitidos para a pesca, etc.
Devido à complexidade das normas e
a necessidade de complementação destas, se
nota, constantemente, alguns conflitos entre as
legislações federal e estadual, principalmente no
tocante à regulamentação das cotas, petrechos
permitidos e tamanho mínimo para a captura.
Impende destacar que a cota de captura
permitida aos pescadores amadores no Estado
de Mato Grosso do Sul, até julho de 1995, foi
equivalente à cota estabelecida pela legislação
federal, que era de 30kg e mais um exemplar. O
Estado passou a adotar, a partir daí, cotas mais
restritivas, reduzindo-as progressivamente. Tal
procedimento fez com que o turismo de pesca,
segundo a Embrapa11, sofresse uma acentuada
evasão. Com isso, a partir de 2004, a cota estadual igualou-se novamente à federal - 10kg e
mais um exemplar (Portaria IBAMA nº 30, de
23 de maio de 2003). No ano de 2006, a cota foi
estabelecida com dois exemplares (um de couro
e um de escama) voltando a ser equiparada no
ano seguinte.
Para demonstrar o conflito das normas regulamentadoras federal e estadual, duas tabelas
são apresentadas abaixo. Em pleno vigor, esta
portaria e decreto fixam o tamanho mínimo das
espécies para a captura nos rios da Bacia do
Paraguai, no Estado de Mato Grosso Sul.
NOME COMuM
MíNIMO
NOME CIENTíFICO
TAMANHO
Armado
Pterodoras granulosus
Barbado
Pinirampus pirinampu
Corvina
Plagioscion spp
Curimatã, sábalo
Prochilodus lineatus
Dourado
Salminus brasiliensis
Jaú
Zungaro zungaro
Jurupensen
Surubim cf. lima
Jurupoca
Hemisorubim platyrhynchos
Pacu caranha, pacu
Piaractus mesopotamicus
Pati
Luciopimelodus pati
Piau- açu, boga
Leporinus macrocephalus
Piau verdadeiro, piau Leporinus aff obtusidens
Piau verdadeiro, piau Leporinus aff elongatus
Piraputanga
Brycon hilarii
Surubim, cachara
Pseudoplatystoma.fasciatum
Surubim, pintado
Pseudoplatystoma coruscans
35 cm
60 cm
30 cm
38 cm
65 cm
95 cm
35 cm
40 cm
45 cm
65 cm
38 cm
25 cm
30 cm
30 cm
80 cm
85 cm
(PORTARIA IBAMA Nº 3, DE 28 DE FEVEREIRO DE 2008 )
NOME COMuM
MíNIMO
NOME CIENTíFICO
Jaú
Pintado
Cachara
Dourado
Pacu
Curimbatá
Piau-uçú
Barbado
Piraputanga
Paulicéia luetkeni
Pseudoplaystoma coruscans
Pseudoplaystoma fasciatum
Salminus maxilosus
Piractus mesopotamicus
Prochilodus lineatus
Leporinus sp
Pinirampus pirinampu
Brycon Microlepis
TAMANHO
95 cm
85 cm
80 cm
65 cm
45 cm
38 cm
38 cm
60 cm
30 cm
(DECRETO ESTADuAL Nº 11.724, DE 05 DE NOV DE 2004)
Acompanhando as tabelas acima, facilmente se constata que na Portaria do IBAMA existem
04 (quatro) espécies de peixes não tabelados no
Decreto Estadual. Isso permite que os pescadores
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capturem tais espécies em qualquer tamanho,
pois a Polícia Militar Ambiental do Estado de
Mato Grosso Sul segue apenas o Decreto Estadual, um equívoco danoso para a fauna ictiológica
pantaneira.
8. Do poder de Polícia do Estado
Para dar efetividade às normas ambientais, o poder público utiliza-se do poder de
polícia. Com tal prerrogativa, o Estado garante
a preservação da ordem pública, limitando o
exercício dos direitos individuais em benefício
da coletividade.
Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2006) aduz
que “o fundamento do poder de polícia é o princípio da predominância do interesse público sobre
o particular, que dá à Administração posição de
supremacia sobre os administrados”. (p. 126)
Nesse passo, é através do poder de polícia
que os órgãos fiscalizadores ambientais, efetivamente, garantem a tutela do meio ambiente. Esse
poder se manifesta através das licenças, permissões, proibições, autorizações e fiscalizações.
Sobre o tema, segue a lição de Toshio
Mukai (2004):
estaduais, pelos respectivos aparelhos regionais.
Todavia, considerando as dificuldades de infraestrutura, a falta de agentes e principalmente
a grande área a ser fiscalizada, sobretudo em
território sul-mato-grossense, tal fiscalização, no
tocante à pesca, é efetuada através de convênio
entre o IBAMA e a Polícia Militar Ambiental do
Estado de Mato Grosso do Sul.
9. Delitos de pesca
A objetividade jurídica dos dispositivos
constantes na Lei de Crimes Ambientais, referentes à pesca, está na tutela do equilíbrio ecológico,
tendo como sujeito passivo toda a coletividade.
Trata-se de crimes formais12, salvo melhor juízo,
pois o tipo penal não exige a produção do resultado para a consumação do delito, embora seja
possível a sua ocorrência.
Transcrevendo os aduzidos dispositivos,
in verbis, se tem:
Art. 34. Pescar em período no qual a pesca
seja proibida ou em lugares interditados
por órgão competente:
O poder de polícia, police power, em
sentido amplo, compreende um sistema
total de regulamentação interna, pelo qual
o Estado busca não só preservar a ordem
pública, senão também estabelecer para
a vida de relações dos cidadãos aquelas
regras de boa conduta e de boa vizinhança
que se supõem necessárias para evitar conflitos de direitos e para garantir a cada um
o gozo ininterrupto de seu próprio direito,
até onde for razoavelmente compatível
com o direito dos demais. (p. 89)
Posto isto, denota-se que o poder de polícia possui três funções: preventiva, repressiva e
fiscalizadora.
Como analisado, o Pantanal é constituído
por rios de interesse da União e dos Estados de
Mato Grosso e Mato grosso do Sul. As águas de
interesse da União, teoricamente, deveriam ser
fiscalizadas por órgãos federais e, as de instâncias
104
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 97-106, fevereiro/2010
Pena - detenção de um ano a três anos
ou multa, ou ambas as penas cumulativamente.
Parágrafo único. Incorre nas mesmas
penas quem:
I - pesca espécies que devam ser preservadas ou espécimes com tamanhos inferiores
aos permitidos;
II - pesca quantidades superiores às
permitidas, ou mediante a utilização de
aparelhos, petrechos, técnicas e métodos
não permitidos;
III - transporta, comercializa, beneficia ou
industrializa espécimes provenientes da
coleta, apanha e pesca proibidas.
Art. 35. Pescar mediante a utilização de:
I - explosivos ou substâncias que, em
contato com a água, produzam efeito
semelhante;
II - substâncias tóxicas, ou outro meio
proibido pela autoridade competente:
CRIMES DE PESCA NO PANTANAL: DE quEM É A COMPETÊNCIA PARA LEGISLAR?
Pena - reclusão de um ano a cinco anos.
Art. 36. Para os efeitos desta Lei, considera-se pesca todo ato tendente a retirar,
extrair, coletar, apanhar, apreender ou
capturar espécimes dos grupos dos peixes,
crustáceos, moluscos e vegetais hidróbios,
suscetíveis ou não de aproveitamento
econômico, ressalvadas as espécies ameaçadas de extinção, constantes nas listas
oficiais da fauna e da flora.
Importa mencionar a admissibilidade do
crime tentado, pois a pesca poderia não ocorrer
por circunstâncias alheias à vontade do agente.
O núcleo do tipo é pescar e o elemento
subjetivo das condutas típicas é o dolo, que
consiste na vontade livre e consciente de pescar,
utilizando-se dos meios ilícitos ou em desacordo
com as normas regulamentares.
Considerações finais
Especificamente, este trabalho se limitou a
apresentar apenas os fundamentos da tutela da
ictiofauna pantaneira, discorrendo sobre o art.
225, § 3º da Carta Maior e artigos 34 e 35, da
Lei nº 9.605/98 (Lei dos Crimes Ambientais).
Tratou-se da competência constitucional
em matéria ambiental e de sua repartição entre os
entes federados de forma sintetizada. Em termos
gerais, foi registrado que tal repartição, segundo
posicionamentos doutrinários, deverá obedecer
à predominância do interesse, sendo o interesse
geral de competência da União, o interesse regional de competência dos Estados membros e o
interesse local de competência dos municípios.
Notou-se que a competência privativa da
União não é absoluta, podendo os Estados legislarem em matérias específicas enumeradas pela
Constituição, desde que haja Lei complementar
nesse sentido.
Observou-se que pertence ao estado-membro o “poder-dever” de editar dispositivos regulamentares, completando as normas penais em
branco e disciplinando a proteção da natureza ou
a exploração e utilização dos recursos naturais.
Exercendo o poder de polícia ambiental, cabe
a ele adotar as medidas tendentes a combater a
poluição e preservação do meio ambiente. Cabe
ressaltar que não há dúvida quanto à constitucionalidade ou à juridicidade das normas estaduais
ou municipais que complementem as normas
penais em branco ou fundamentem o juízo valorativo dos elementos normativos, desde que
tal complementação seja mais benéfica à natureza. Entretanto, não raras vezes, duas ou mais
normas, em pleno vigor, podem regulamentar a
mesma conduta típica, se apresentando de forma
conflituosa.
Assim, para a aplicação da norma ao caso
concreto, o aplicador da sanção se recorre aos
princípios constitucionais para definir como
proceder. um desses princípios norteadores,
como visto, é o da predominância da norma mais
restritiva a ação humana. Porém, o mencionado
preceito não está sendo lembrado em pleno
patrimônio nacional. Tentar-se-á esclarecer tal
assertiva com as seguintes considerações:
• O Pantanal é um patrimônio nacional,
devendo prevalecer assim, o interesse
geral de sua tutela, qual seja, o da União.
• Os Estados Federados não possuem
competência legislativa em matéria penal, pertencendo privativamente à união
tal competência.
• Sabe-se que a aplicação da conduta
criminosa pesqueira depende de normas
que regulamentem o tamanho mínimo
para a captura, a cota de pescado por
pescador, os petrechos, períodos e locais
permitidos para a prática da pesca, etc.
• As normas regulamentares do IBAMA
são aplicáveis em todo o território nacional, especialmente nos rios de interesse
da União (interesse geral).
• As normas da SEMAC são aplicadas no
Estado de Mato Grosso do Sul, nos rios
de interesse regional.
• Existe, como observado, uma contradição nas tabelas de pescado fixadas para
a mesma região (Pantanal sul-matogrossense) entre o IBAMA e a SEMAC.
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 97-106, fevereiro/2010
105
BARBOSA, F. M. - RIBEIRO, L. - MANFROI, J.
Posto isso, pode-se dizer que, ao não
compatibilizar suas normas com as Portarias do
IBAMA, o Estado de Mato Grosso do Sul está
sendo mais permissivo à exploração da pesca.
Agindo assim, está consentindo na retirada de
espécies que ainda não atingiram o tamanho
mínimo para a reprodução, o que pode levar a
extinção dessas espécies do bioma pantaneiro,
afetando toda a cadeia alimentar dessa fauna.
Portanto, pode-se afirmar que as normas
regulamentares estaduais, neste caso, devem
acompanhar sistematicamente a legislação federal ou, no mínimo, serem mais restritivas ao
homem, pois o Pantanal, como determinado pela
constituição, é um Patrimônio Nacional, devendo
prevalecer o interesse geral de sua tutela. As normas regulamentares estaduais devem ter eficácia
somente nas águas de interesse ou competência
regional. Assim, a melhor solução para compatibilizar tais normas, de forma que permaneçam
em plena harmonia, seria a elaboração de uma
Lei Ordinária para a tutela ambiental do Pantanal. Com isso, possivelmente, se dissipariam
quaisquer dúvidas sobre a prevalência de interesses, beneficiando a natureza e todos aqueles que
contemplam ou exploram os recursos naturais
desse “patrimônio mundial”.
notas
Fauna ictiológica: fauna aquática.
Período de defeso: época em que os peixes sobem os rios
para o ciclo da reprodução (piracema).
6
Sistema Nacional do Meio Ambiente
7
Federalismo: é a união permanente e indissolúvel de
Estados autônomos, mas não soberanos, sob a égide
de uma Constituição, sendo certo que, entre eles, já há
uma repartição interna de atribuições governamentais,
sendo-lhes vedada, porém, a secessão. José Geraldo Brito
(FILOMENO, 1997, p. 89)
8
Art. 22, xVII, CF/88: Compete privativamente a união
legislar sobre: [...] xVII – organização judiciária, do
Ministério Público e da Defensoria Pública do Distrito
Federal e dos territórios, bem como organização administrativa destes [...].
9
SEMAC: Secretaria de Estado do Meio Ambiente, das
Cidades, do Planejamento, da Ciência e da Tecnologia.
10
IMASuL: Instituto de Meio Ambiente de Mato Grosso
do Sul.
11
Embrapa: Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária
(A pesca no Pantanal Sul: Situação atual e Perspectivas,
2004, p. 17).
4
5
106
12
Crimes formais: São aqueles em relação aos quais a lei
descreve uma ação e um resultado, mas a redação do dispositivo deixa claro que o crime consuma-se no momento
da ação, sendo o resultado mero exaurimento do delito.
(GONÇALVES, 2003, p. 10)
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Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 97-106, fevereiro/2010
OS FuNDAMENTOS TEóRICOS E PRáTICOS DO GARANTISMO NO
STF
Artigo
oS funDAmEntoS tEóriCoS E
PrátiCoS Do gArAntiSmo no Stf
Grupo do Ativismo Judicial
IBMEC-RJ, UFU E PUC-RIo*
rESumo: O estudo objetiva contrapor as categorias de judicialização e de ativismo judicial
importantes para delimitar as decisões do STF
com a concepção de garantismo. A jurisdição
constitucional brasileira com certa freqüência
tem adotado nos seus julgamentos tal parâmetro
teórico-prático. Propõe-se a análise da sua origem no pensamento doutrinário de Luigi Ferrajoli. O garantismo na análise proposta não é visto
no sentido estrito ao campo do Direito Penal.
A escolha de dois julgados garantistas do STF
leva a conclusões, também, de que ele não pode
ser resumido apenas a garantias constitucionais.
Há, dessa forma, a necessidade permanente de
contextualizar numa complexidade institucional
prática como é a do Supremo Tribunal Federal.
Palavras chave: Ativismo Judicial. Judicialização. Garantismo.
ABStrACt: The aim of this study is to compare the categories of judicialization and judicial
activism that are important to evaluate the decisions of the STF (meaning Brazilian Supreme
Court in Portuguese) based on the conception of
civil rights’ protection. The Brazilian constitutional jurisdiction has often adopted, in its trials,
this abstract and practical concept. The proposal
is to analyze its origin in Luigi Ferrajoli doctrinal
thought. The conception of civil rights’ protection is not taken in the strict sense of Criminal
Law. The choices of two civil rights’ protection
trials also lead us to the conclusion that it cannot
*
O Grupo do Ativismo Judicial é integrado pelo professor Alexandre Garrido da Silva, universidade Federal de uberlânida, Anna Federici Araujo,
Bacharel em Direito pela PuC-Rio, Bernardo Medeiros, Mestre em Direito pela PuC-Rio, Daniella Peçanha, graduanda de Direito do Ibmec-RJ,
Eduardo Pereira Vals, graduando em Direito do Ibmec-RJ, Fermando Gama, universidade Federal Fluminense, Havine Santos Muri Rodrigues,
Bacharel em Direito pelo Ibmec-Rio, Jorge Chalub, Mestre em Direito pela PuC-Rio, José Ribas Vieira, Ibmec, PuC-Rio, Julliano Castro, graduanda de Direito do Ibmec-RJ, Karine Souza, graduanda de Direito do Ibmec-RJ.
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 107-123, fevereiro/2010
107
GRuPO DO ATIVISMO JuDICIAL - IBMEC-RJ, UFU E PUC-RIo
be limited to constitutional guarantees. Therefore, there is the permanent need of understanding
the institutional complexity context, a common
practice in STF.
Keyword: Judicial Activism. Judicialization.
Civil Rights’ Protection.
1. introdução
A adoção de um modelo constitucional
com uma ampla carta de direitos fundamentais
ensejou na Corte Constitucional brasileira um
movimento que prega, essencialmente, a sua
efetivação: o garantismo. A este cenário agregase a mudança de composição desta Corte, a partir
do primeiro mandato do Presidente Luis Inácio
Lula da Silva, em 2003, e a reforma do Poder
Judiciário, por meio da Emenda Constitucional
nº 45/04, contribuindo para uma mudança de postura das instituições judiciárias. Observa-se um
novo desenho institucional, sob qual o Supremo
Tribunal Federal adquire o papel de protagonista.
A aproximação com o sistema de tais
garantias constitucionais provoca um questionamento, na expectativa de compreender a sua
fundamentação teórica. O presente trabalho,
nesse sentido, tem por fim analisar esta postura
da jurisdição constitucional brasileira vinculada
a um debate do garantismo, principalmente como
é formulado pelo jurista italiano Luigi Ferrajoli.
Pretende-se, pois, identificar a origem e definição
deste fenômeno, de modo que se faça possível
avaliar as manifestações dos Ministros do STF,
em especial diante de dois outros fenômenos que
acometem esta Corte, a saber: o ativismo judicial
e a judicialização da política.
De fato, paralelamente à expansão de uma
política garantista, também se fazem presentes os
movimentos do ativismo judicial e da judicialização da política. Estes, contudo, embora dotados
de semelhanças, também comportam diferenças.
A judicialização da política envolve um processo
de todo o Poder Judiciário, de cunho essencialmente procedimental. O ativismo judicial, ao
contrário, direciona-se aos atores deste Poder.
A judicialização da política, tal qual defendida
por Tate e Vallinder1, pode ser identificada por
108
meio de instrumentos de proteção judicial, da
migração de discussões do Legislativo para o
Judiciário através de impugnações ou, ainda, pela
adoção de procedimentos tipicamente judiciais
no Legislativo e no Executivo. Em contra partida, o ativismo judicial, também descrito pelos
autores, seria um fenômeno no qual os juízes
passam a se interessar por uma atuação política,
isto é, de participar do policy-making2. Em uma
escala comparativa, a judicialização da política
seria um fenômeno maior dentro do qual poderia
ser encontrado o ativismo judicial.
Diante de tal perspectiva, este trabalho
propõe-se a desvendar se haveria uma articulação
do garantismo com os demais fenômenos hoje
identificados no STF. Deste modo, pretendese verificar se, independentemente do lastro
doutrinário de Ferrajoli, estaria a aplicação das
garantias constitucionais articulada a uma instrumentalização de ativismo judicial. Há, pois,
a seguinte situação-problema: poder-se-ia aferir
que o Poder Judiciário brasileiro adota a linha
de garantismo ou seria algo distinto do perfil
institucional decisório do STF?
Vale dizer, a respeito desta temática de
garantias constitucionais, com a sua possível
interface com o ativismo judicial, este artigo
não se limita apenas ao parâmetro estabelecido
pelo Supremo Tribunal Federal. Há um direcionamento desta análise para o fato de que a sua
efetivação contribui para compreender o debate
atual na sociedade brasileira no tocante a teoria
constitucional contemporânea.
Assim, seguindo a leitura de Rosalind Dixon3, registra-se que as denominadas sociedades
anglo-saxônicas passaram nesses últimos anos
pelo “novo constitucionalismo da commonwealth”, caracterizado pela aproximação do Poder
Legislativo com o Judicial Review. Isto é, por
um processo de sedimentação de “weak-judicial
review” com a efetivação de direitos.
A teoria constitucional contemporânea,
recepcionada no Brasil por influência dos constitucionalismos alemão, italiano e espanhol, vivenciou duas discussões doutrinárias relevantes,
a saber: o neoconstitucionalismo4 e o garantismo.
Por conseqüência, há aqui a intenção de descrever essa presença garantista no Brasil e suas
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 107-123, fevereiro/2010
OS FuNDAMENTOS TEóRICOS E PRáTICOS DO GARANTISMO NO STF
especificidades, como é o caso de uma possível
interlocução com o ativismo judicial.
Para tanto, o estudo realizado divide-se
em dois conjuntos, quais sejam, 1) qualificar
e tipificar o garantismo proposto por Luigi
Ferrajoli e suas interações com o pensamento
jurídico brasileiro contemporâneo; e 2) aplicar
essa análise a determinadas decisões do STF no
período de 2008-2009, considerando as garantias
constitucionais especiais. Há, dessa forma, um
entendimento ampliado a respeito do espectro
do garantismo envolvendo inclusive questões
políticas.
2. Democracia e direitos
fundamentais em ferrajoli
O início do século xxI aponta para uma
maior ênfase à teoria democrática. Destarte, da
leitura do texto Las Garantías Constitucionales
de los Derechos Humanos5, pode ser constatada
uma estrutura político-institucional, articulando
o conceito de democracia com a efetivação dos
direitos fundamentais. Tal direcionamento significa uma perspectiva doutrinária com o objetivo
de agrupar teoria do estado, teoria do direito e
teoria da democracia.
Ferrajoli observa que, normalmente, a concepção de democracia é reduzida a um arranjo
institucional na forma de tomada de decisões
políticas que se limita a uma mera expressão de
“vontade da maioria”. O delineamento formulado nesse quadrante é uma preocupação, como
se traduz numa força majoritária rousseauniana
ou, nos Estados unidos, de caráter madisoniano.
Assim, o jurista italiano aproxima-se de um debate contemporâneo de relevância que objetiva,
sobretudo, definir o processo democrático.6
Partindo à sistematização de Ferrajoli, a
forma de democracia por ele questionada pode
ser denominada formal ou procedimental. Isso
em razão da sua legitimação residir apenas na
simples manifestação da soberania popular, no
sentido de que somente há obrigação para o
indivíduo na linha de ser a decisão o resultado
de quem a toma e se traduzir como o próprio
destinatário da norma, enquanto maioria.
É inegável que a dimensão formal expressa um componente inalienável da democracia,
mas não é o único elemento a ser considerado,
segundo a lição do italiano. Nesse sentido, o
autor central do garantismo destaca determinados argumentos para que a democracia não seja
abreviada a sua dimensão formal, quais sejam:
1) a concepção formal falha em explicar as
democracias contemporâneas, pois estas trazem a noção de Estado de Direito e Estado
Constitucional. Em ambos os casos, a soberania popular não é ilimitada, pois o Poder
Legislativo passa a estar restringido por certas
normas constitucionais, como o princípio da
igualdade e os direitos fundamentais;
2) uma democracia não estará apta a sobreviver
sem um mínimo de limite substancial necessário, independentemente de serem ou não
apenas pressupostos. Caso contrário, poderse-ia suprimir os mecanismos democráticos
através da vontade da maioria;
3) a democracia formal se baseia na noção de
vontade popular, mas esta só surge quando a
liberdade de expressão se concretiza em todas
as suas modalidades. Num outro aspecto, os
direitos de liberdade só se tornam realmente
efetivos se houver a presença dos demais
direitos fundamentais garantindo um mínimo existencial, principalmente no tocante à
educação e à informação. Em outras palavras,
a vontade só é manifestada de forma plenamente livre, quando o locutor possui como
base todo um conjunto de direitos básicos
garantidos.7
Como objeção às afirmativas de Ferrajoli,
cabe ponderar, a título de reflexão, que não há
propriamente uma quebra da vontade da maioria.
Ao contrário, o poder constituinte originário seria exatamente a expressão mais próxima desta
soberania popular, daí resultando o fato do Poder
Legislativo estar vinculado à Constituição, justamente em maior respeito à democracia formal.
Faz-se importante assomar, ainda no tocante aos direitos fundamentais, que a posição de
Ferrajoli revela certa limitação. Como pano de
fundo, está o estudioso do garantismo afirmando que os que não tem acesso a estes direitos
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 107-123, fevereiro/2010
109
GRuPO DO ATIVISMO JuDICIAL - IBMEC-RJ, UFU E PUC-RIo
fundamentais não são aptos a decidir o que é
melhor para eles. Ora, seria o caso de ponderar
se a falta de educação formal impede alguém
de avaliar perspectivas e propostas. Todavia, a
questão é ainda mais complexa e, não é que se
afaste totalmente do jurista defensor do garantismo, apenas destaca-se que este ponto deveria ser
tratado com mais cuidado. Se assim fosse, traria
como consequência lógica a ideia de que não há
democracia até que todos tenham acesso a certos
direitos sociais fundamentais, o que, apesar de
discursivamente impactante, não parece uma
afirmativa suficientemente adequada.
Ademais, no meio tempo, entre ter e não
ter democracia, haveria o sério risco de afirmar
que não há, propriamente, uma expressão da
vontade popular, mas da parte informada e
daquela ainda não apta a decidir. Nessa linha,
os últimos não se mostram capazes de apontar
o que seria melhor para eles e para o coletivo, o
que é um passo distante de afirmar que a melhor
decisão seria aquela materializada pelo grupo
dos que tem acesso à informação, visto que tal
conclusão ocasionaria perigosas implicações
óbvias8. Evidentemente, não se cogita a hipótese
desta acarretar um tênue retorno a um regime
totalitário. Esse raciocínio contraria os pressupostos acima e traduz, como resultado, uma
visão técnica do governo; algo próximo de uma
tecnocracia aos moldes de Weber. É certo que
se trata de um exagero que parte do pressuposto
das inferências do autor, mas serve para apontar
que talvez tal argumento apresentado seja frágil
em termos prático-teóricos.
quanto à natureza social da democracia,
lembra Ferrajoli, a noção de vontade da maioria
como verdadeira expressão da soberania popular
está baseada numa visão organicista e comunitária da sociedade. Por conseguinte, na verdade,
apagaria a diversidade e o conflito inerente a todo
grande agrupamento social, sublinhando que a
vontade da maioria é a manifestação de todos,
quando, de fato, é apenas a vontade da maioria.
Algo que pode servir para mascarar um componente ideológico que busca exatamente suprimir
essas diversidades culturais e sociais, em prol de
um determinado ideal de povo.9
110
Ao ser destacado o sentido social da maioria no pensamento de Ferrajoli, cabe indagar
acerca de certa proximidade de sua argumentação com a crítica ao fundamento meramente
majoritário expressa em Jürgen Habermas. O
então teórico alemão assevera, nitidamente,
contra a limitação do ideário democrático à homogeneidade resultante da maioria e opta por
uma visão discursiva de sentido consensual.10
Exatamente para coibir possíveis abusos,
surge o constitucionalismo como forma de garantir a democracia, entendida agora não mais como
algo apenas formal. O constitucionalismo retira
da maioria o poder de dificultar ou impedir que a
minoria um dia se torne maioria, o que apresenta,
necessariamente, um componente substancial.
A soberania popular pode ser, desse modo,
entendida de duas formas: 1) em sentido literal,
ou seja, a soberania como pertencente ao povo
como um todo. Logo, ninguém, nem mesmo o
Legislativo, possui o direito de se considerar
como expressão da vontade do povo. É um
princípio de legitimação da democracia; 2) em
sentido figurado, a soberania popular é composta
exatamente pelos direitos fundamentais de cada
um dos cidadãos individualmente, de modo que
a violação do direito fundamental de uma pessoa,
é uma violação da soberania popular.
Vale observar, no entanto, que é passível
de crítica esta última modalidade de soberania
popular, visto que não se compreende, com
exatidão, como se articula com o universo dos
direitos fundamentais. um aspecto é afirmar que
os direitos fundamentais possibilitam o exercício pleno da soberania popular ou que eles são
pressupostos dela. Posição muito diferente é
afirmar que a soberania popular resulta da soma
dos poderes e contrapoderes de todos, entendidos
estes como os direitos fundamentais de cada um.
A partir dos argumentos acima, deduz-se
que as garantias constitucionais dos direitos
fundamentais, em suas quatro dimensões, são,
também, instrumentos de defesa da democracia. Portanto, o garantismo é tanto uma face do
constitucionalismo, quanto um pressuposto da
democracia.
A rigidez constitucional não é garantia,
mas característica inerente à posição que ocupa
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 107-123, fevereiro/2010
OS FuNDAMENTOS TEóRICOS E PRáTICOS DO GARANTISMO NO STF
a Constituição na hierarquia das normas. Esta
característica confere aos direitos fundamentais
uma dimensão negativa (impedimento de violação) e uma positiva (expectativa de execução).
Argumenta-se, no entanto, que esta rigidez
acaba por limitar os próprios princípios da democracia para as gerações futuras, já que estas
estarão impedidas de escolher que normas são
melhores para elas, estando o “povo” de mãos
atadas, frente a normas já possivelmente datadas.
Segundo o autor examinado no presente
estudo, em realidade, o que estas garantias fazem
é impedir que a geração atual impeça as gerações
futuras de exercer uma soberania popular plena,
pois como já dito, os direitos fundamentais são
garantias da própria democracia. Logo, o que
eles deixam fora do campo decisório é para se
possibilitar a própria democracia.
Assim, as mãos estão atadas em parte para
que não se permaneçam dessa forma ainda mais
no futuro. A única maneira de o povo romper
com esse processo institucional, ao descartar
os direitos fundamentais é rompendo com a
ordem constitucional e instaurando este regime
autoritário.
A título de reflexão, registre-se que essa
postura de Ferrajoli não resolve o problema
principal, isto é, de saber o que são direitos
fundamentais. Como os direitos sociais, o rol
de direitos fundamentais aumentou muito, o
que pode levar a uma banalização dos mesmos,
sobretudo em tempo onde o discurso acerca
da dignidade da pessoa humana eleva tudo ao
patamar de direito fundamental.
Em relação às garantias constitucionais,
estas podem ser divididas em duas formas: negativas e positivas. As garantias negativas impedem
a produção de normas contrárias a elas, como as
normas sobre alteração constitucional e controle
de constitucionalidade. As primeiras (garantias
negativas primárias) incluem limites absolutos e
limites relativos, assim como limites explícitos e
implícitos. As segundas (garantias negativas secundárias) podem estabelecer um modelo difuso
ou concentrado, sendo o segundo o mais eficaz.
As garantias positivas obrigam o legislador
a promulgar uma legislação que dê efetividade
a estes direitos. Segundo o autor, na ausência de
garantias de efetividade para estes direitos, não
temos lacunas, mas sim a efetiva inexistência do
direito, pois, seguindo a concepção de Kelsen, só
é direito aquilo a que corresponde um dever, logo
se não há meio de se exigir do Estado o cumprimento do direito, já que não se trata de direito.
Tal aspecto contradiz os pressupostos do
positivismo, porque limita a positividade de
certas normas jurídicas, e do constitucionalismo.
Outrossim, retira o patamar elevado das normas
constitucionais que carecem deste tratamento de
efetividade.
Vale, porém, pensar que há uma garantia
concreta acerca destes direitos: a garantia de que
se produza a norma reguladora. Mas esta é uma
garantia fraca, pois é difícil assegurar a efetividade mediante uma garantia positiva secundária
- controle de constitucionalidade nos casos de
omissão - e porque está é uma meta-garantia
- garantia de se introduzir uma garantia forte.
Pode afirmar-se, ponderando, que toda
norma constitucional possibilita a eficácia negativa que impede a produção de normas em
sentido contrário. Assim, mesmo que a garantia
positiva não esteja efetivamente garantida (não
seja direito), ela ainda produzirá efeitos desta
forma, logo, será algo.
O ponto é que este algo não é direito, mas
mera garantia negativa – o que é bem diferente.
É mister registrar que na posição do autor – e, de
fato, aplica-se a noção kelseniana de direito – não
haveria, propriamente, direitos nesse ponto, mas
meras enunciações. Tal fato não está retirando a
força normativa dos direitos fundamentais de caráter positivo. Pelo contrário, está evidenciando
a deficiência legislativa e indicando ainda mais
fortemente a necessidade de mudanças. Esta
posição não diminui a eficácia negativa, nem a
possibilidade de se exigir em juízo o direito, mas
apenas busca um rigor maior no uso do termo
“direito”.
É exatamente na lacuna ou na inefetividade
das garantias legislativas (leis que garantiriam
a efetividade dos direitos constitucionais) que
reside o principal fator de ilegitimidade constitucional dos nossos ordenamentos. Carece-se
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 107-123, fevereiro/2010
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GRuPO DO ATIVISMO JuDICIAL - IBMEC-RJ, UFU E PUC-RIo
de garantias primárias para os direitos sociais e
de técnicas jurídicas que constranjam o poder
público a introduzir tais normas.
Pontuando de uma forma global a proposta
reflexiva sobre a democracia e os direitos fundamentais ao sublinhar a respeito dessa articulação
dessas duas variáveis identificando o grau de
legitimidade do ordenamento constitucional.
Pois este se traduz pela efetividade das garantias
dos direitos constitucionalmente estabelecidos
e identificando a sua ilegitimidade com suas
violações ou – pior – com sua lacuna11
3. o garantismo e o Direito Penal
A compreensão do pensamento de Ferrajoli expressa que sua concepção de garantismo
se ocupou, primeiramente, da matéria penal,
preocupando-se em delimitar uma doutrina
jurídica menos interessada na punição cega dos
alvos preferenciais do sistema punitivo e mais
com uma compreensão global do fenômeno
criminoso, sensíveis às particularidades deste
ramo do Direito.
Nesta linha, deve ser destacada uma das
primeiras obras que tratou diretamente do tema,
ensaiando uma explicação do garantismo profundamente comprometida com os direitos fundamentais, exatamente como prelecionava Ferrajoli
na sua obra primeira, conforme visto acima. As
interpretações do quadro teórico desse jurista italiano mereceram de Amilton Bueno de Carvalho
e de Salo de Carvalho na obra Aplicação da pena
e Garantismo, mais especificamente, no primeiro
capítulo redigido pelo segundo autor, intitulado
“Estado Democrático de Direito e Garantismo:
considerações a partir do princípio da secularização”, no qual Salo aponta essa possibilidade
de demarcar o garantismo no tratamento penal.
O garantismo penal é entendido como
forma de se racionalizar a intervenção penal,
afastando o uso do direito penal como controle
social em detrimento dos direitos e garantias
individuais. O garantismo, então, cria um “instrumental prático-teórico idôneo à tutela dos
direitos contra a irracionalidade dos poderes,
sejam públicos ou privados”.12
112
O direito penal e o processual penal são
vistos como formas de se proteger o mais fraco da relação, que, no momento do delito, é o
ofendido, mas que, durante o processo, é o réu.
Nesta linha, portanto, o garantismo representa
principalmente um limitador do arbítrio estatal,
pois os direitos fundamentais, ao estarem fora da
esfera de decisão, impedem certas posturas por
parte do Estado. A garantia desses direitos são,
pois, condições básicas de convivência.
O ponto de partida do garantismo é o
princípio da legalidade, mas isto não faz com
que legalidade e legitimidade se identifiquem.
Aqui, pelo contrário, se cria uma clara cisão entre
os dois conceitos, assim como entre vigência e
validade, pois a última subordina a norma aos
“valores materiais” expostos na Constituição.
Daí, não há presunção de que os atos estatais
são sempre regulares, pois não basta o respeito
ao formalismo legislativo para que a norma seja
tida como válida.
Com isso, o garantismo destaca a responsabilidade ética que envolve a função do
que aplica o direito, pois este passa a ter como
dever a constante verificação da validade das
normas, a partir destes direitos fundamentais
constitucionais.
Recuperando a herança do movimento
italiano da magistratura livre, da qual foi um
dos principais representantes, Ferrajoli nos
ensina que:
A interpretação judicial da lei é também
sempre um juízo sobre a própria lei, que
corresponde ao juiz, junto com a responsabilidade de eleger apenas os significados válidos, ou seja, compatíveis com
as normas constitucionais substanciais
e com os direitos fundamentais por elas
estabelecidos.
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 107-123, fevereiro/2010
Era isto, e não outra coisa - diga-se de
passagem - o que entendíamos há vinte
anos com a expressão ‘direito alternativo’,
recordado por Perfecto Ibañez, e em torno
da qual se produziram tantos equívocos:
interpretação da lei conforme a Constituição e, quando o contraste for insanável,
dever do juiz de declarar a invalidade
constitucional; portanto, nunca sujeição
a lei de forma acrítica e incondicionada,
OS FuNDAMENTOS TEóRICOS E PRáTICOS DO GARANTISMO NO STF
mas sujeição sobretudo a Constituição,
que impõe ao juiz a crítica das leis inválidas através da reinterpretação em sentido
constitucional e a denúncia de sua inconstitucionalidade.13
Como no processo penal o mais fraco
é o réu, o garantismo visa criar uma série de
limites e freios ao exercício arbitrário do poder
de punir, com o intuito de garantir os direitos
fundamentais do réu, sobretudo no que tange aos
direitos individuais. Daí a criação de requisitos
como legalidade, necessidade, lesividade, dentre
outros, pois aqui sempre se está buscando uma
racionalização do poder de punir, tendo como
principal garantia as garantias fundamentais positivadas na Constituição, mas, principalmente,
o primado da liberdade.
4. o garantismo e seu
dimensionamento constitucional
Na leitura do texto Garantismo jurídico,
Estado Constitucional de Direito e Administração Pública, de autoria de Adriano De Bortoli14,
apresentado no xVI CONPEDI, depreende-se
uma reflexão mais detalhada dessa relação entre
o Estado Constitucional e o garantismo.
Segundo Ricardo Guastini, jurista citado
pelo autor, é delimitada a seguinte conceituação
da função garantista:
uma organização jurídica diz-se garantista
quando inclui estruturas e instituições aptas a manter, oferecer proteção, defender
e tutelar algumas liberdades individuais
bem definidas. Dessa forma, um jurista
legitima-se como garantista quanto dirige
suas atividades para o aumento ou eficácia
das estruturas e dos instrumentos oferecidos pela organização jurídica para tutelar,
defender, etc, as liberdades individuais.15
Acrescente-se a lição Eligio Resta:
(O garantismo é) um liberalismo sui generis. A motivação é que, de uma parte,
ele adere a um modelo de “Estado social
de Direito”, “ou seja, a um ordenamento
que confere e garante não só direitos de
liberdade, mas principalmente direitos
sociais”, contudo, “não se estende ao
direito de propriedade e nem mesmo por
esta razão à liberdade econômica” que o
pressupõe. Por esse raciocínio - é a conclusão de Guastini - o Garantismo é, por
assim dizer, “incompleto”.16
Para Ferrajoli, cotejando com as observações anteriores, o garantismo possui sentidos
diversos: 1) modelo normativo de Direito (mais
garantista é o sistema que se aproxima mais das
garantias previstas no texto constitucional); 2) teoria jurídica de validade, vigência e eficácia (só é
válida a norma que se adequar a certos requisitos
substancias; vigência e validade conferem justiça
interna, mas apenas a concordância do ordenamento com valores políticos externos confere
justiça externa); 3) teoria política (o garantismo
é uma forma de positivismo, pois vincula todo
exercício de poder à lei, mas se distancia dele,
pois não iguala vigência à validade, nem validade
à eficácia); 4) e filosofia política (o Estado deve
buscar justificação externa).
A partir deste universo, deduz-se que
o garantismo tem como características: 1) a
vinculação de todo o funcionamento estatal à
normatividade; 2) a divergência entre validade e
vigência; 3) e uma ilegitimidade jurídica irredutível (pois o juízo feito pelo juiz, quando da análise
da validade, insere um componente valorativo.
Pondera-se, contudo, certa limitação, pois esse
procedimento, por si próprio, confere certo grau
de ilegitimidade, visto que toda decisão judicial
possui um componente valorativo inerente a
ela. Se não existe juiz neutro e imparcial, logo
toda decisão possui certo tanto de ilegitimidade;
o que afasta a crítica. Entretanto, poder-se-ia
argumentar que no garantismo este componente
valorativo é mais forte e mais decisivo).
O Estado Garantista não está só vinculado
pelo princípio da legalidade em todos os planos,
mas também pela funcionalização do próprio
Estado, no sentido de garantir os direitos fundamentais. Todo poder se encontra limitado por
deveres jurídicos. O Estado Liberal limita-se às
garantias negativas, enquanto o Estado Social
inclui prestações positivas como parte da ação
estatal.
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GRuPO DO ATIVISMO JuDICIAL - IBMEC-RJ, UFU E PUC-RIo
O garantismo se insere na tradição positivista, mas tem um olhar crítico sobre a mesma,
pois não identifica vigência com validade. Ao
fazer tal separação, abre-se para o juiz a possibilidade de um juízo valorativo que negará a
validade a certar normas.
O SG só pode se concretizar com a articulação do ordenamento como um todo e com
a dissociação entre vigência e validade, que
permite a crítica das normas através do juízo de
validade, que compara a norma analisada a certos
parâmetros de hierarquia superior.
Todavia, ressalta que ao assumir tal postura não está negando a separação entre
Direito e moral e entre juízos de validade
e juízos de justiça, mas reafirmando a
tarefa do jurista – não só cívica e política,
mas, acima de tudo, científica, de valorar a
validade ou invalidade das normas conforme parâmetros de validade tanto formais
quanto substanciais estabelecidos pelas
normas de hierarquia superior.17
O jurista ao criticar o direito vigente (e
para Ferrajoli isto é fazer ciência) assume
os valores constitucionalmente positivados como parâmetros do próprio discurso
jurídico, independentemente da sua adesão
moral. (…) Assim, os juízos de validade
são científicos e desempenham um controle da produção normativa, comum ao
Estado de Direito.18
Esta análise de validade compara a norma a
certos critérios provenientes de níveis superiores
(principalmente de natureza constitucional), mas,
exatamente devido ao componente valorativo,
não é possível estabelecer critérios de verdade
acerca do juízo.
A coerência do sistema jurídico não seria
característica inerente, mas sim um ideal limite
que o jurista deve ter em mente quando for realizar este juízo de validade, sendo este exatamente
o principal papel do mesmo.
Sublinhe-se, ainda, que o garantismo exige
a justificação externa do Estado por meio dos
direitos vitais dos cidadãos. Assim, só é legítimo
o Estado que cumpre este seu papel. Daí a aporia
da irredutível ilegitimidade política do Estado,
pois os direitos fundamentais nunca estarão
plenamente satisfeitos para todos.
Também na linha que expande a preocupação do garantismo para além da doutrina penal,
podemos destacar a produção de Sérgio Cademartori, um dos pioneiros neste tipo de abordagem no Brasil. Seu texto Apontamentos iniciais
acerca do Garantismo auxilia para delimitar com
precisão a concepção do garantismo. O garantismo não é uma teoria formal, pois não nega seu
caráter prescritivo. O Sistema Garantista (SG) se
funda no positivismo e no constitucionalismo.
A mera legalidade é condição necessária para o
Garantismo, mas não esgota seus pressupostos.
114
Os direitos fundamentais servem como
critério de deslegitimação do poder, antes de
servir como critério de legitimação.
Os direitos fundamentais não se confundem com direitos patrimoniais, pois são sempre
universais, indisponíveis e seu exercício não
implica que outro abdique de nada, mas há de
se levar em consideração que a concretização de
direitos fundamentais depende de orçamento e
que o orçamento é finito. A última assertiva só faz
sentido num plano abstrato, que é exatamente o
que o garantismo busca evitar, meras abstrações.
Refuta-se o legalismo ético, que aproximaria Direito e Moral, por meio da necessidade
de um ponto de vista externo; um modelo heteropoiético do Direito que faz com que se exija a
legitimação no lado de fora do próprio direito.
Exatamente pelo fato de Moral e Direito
não se identificarem, não há uma obrigação
moral de se respeitar o Direito, assegurando o
direito de resistência que surgirá exatamente
quando o SG não mais for capaz de prover os
direitos fundamentais.
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 107-123, fevereiro/2010
Sendo a discricionariedade a essência do
poder, a sua sujeição ao direito é a maior
conquista das instituições jurídicas liberais. Neste sentido, o Sistema Garantista
pode ser definido como uma técnica de
diminuição da discricionariedade e maximização das expectativas garantidas como
direitos fundamentais.19
OS FuNDAMENTOS TEóRICOS E PRáTICOS DO GARANTISMO NO STF
Isto aproxima o Garantismo de Dworkin,
que também queria reduzir a arbitrariedade das
decisões judiciais no caso das chamadas lacunas,
daí a criação do conceito de princípio como
norma dotada de positividade suficiente para
vincular a decisão do julgador.
Seu texto A relação entre Estado de Direito e Democracia no pensamento de Bobbio
e Ferrajoli já demonstra uma preocupação em
entender o garantismo em consonância com um
determinado conceito de democracia, se alinhando, assim, à produção mais recente de Ferrajoli,
conforme visto acima. Sendo assim, a utilidade
da leitura de Cadematori instrumentaliza-se de
modo a acentuar a presença de um projeto de
Estado e de sociedade por parte do jurista italiano
examinado.
Segundo o professor da UFSC, para Ferrajoli, os poderes do Estado se legitimam formal
(princípio da legalidade e sujeição do juiz à
lei) e substancialmente, por meio da função
judicial e sua capacidade de tutelar os direitos
fundamentais, sendo que a segunda pressupõe a
primeira. Logo, na ausência completa de lei, o
juiz não possui outra saída que não a denegação
da justiça, mesmo que acredite que o pedido
deveria estar abarcado dentro do rol dos direitos
fundamentais.
O garantismo leva à democracia substancial ou social, pois passa a exigir a efetivação
dos direitos fundamentais positivos, como as
questões de moradia, saúde e educação. Assim
esta democracia se funde ao Estado de Direito.
Ferrajoli cria quatro classes de direitos fundamentais: 1) direitos humanos (reconhecidos a
todas as pessoas, como vida, integridade, saúde,
etc.); 2) direitos públicos (concedidos apenas aos
cidadãos, como direito ao trabalho, residência,
assistência pública); 3) direitos civis (apenas para
aqueles com capacidade de fato, como poder
negocial e liberdade de iniciativa empresarial);
4) e direitos políticos (somente para cidadãos
com capacidade de fato).
Ferrajoli leciona:
Precisamente, se a regra do Estado Liberal
de Direito é que nem sobre tudo se pode
decidir, nem sequer por maioria, a regra do
Estado Social de Direito é que nem sobre
tudo se pode deixar de decidir, nem sequer
por maioria; sobre questões de sobrevivência e subsistência, por exemplo, o estado
não pode deixar de decidir, inclusive ainda
que não interessem à maioria.20
Assim, no Garantismo, a expansão da democracia não se resume ao aumento dos espaços
decisórios e de debate público, mas exige, necessariamente, “la tutela sustancial de derechos
vitales siempre nuevos y, a la vez, mediante la
elaboración de nuevas técnicas garantistas aptas
para asegurar una mayor efectividad” (Ferrajoli).
Sérgio Cademartori também nos traz uma
importante contribuição para o pensamento
brasileiro acerca do garantismo no seu livro Estado de Direito e Legitimidade: uma abordagem
garantista.21 Tendo como principal referencial
teórico a obra Direito e Razão de Ferrajoli, o
livro de Cademartori tem como principal objeto a
compreensão de como a teoria garantista propõe
uma diferente forma de legitimação do Estado
de Direito:
O Estado e o Direito não são vistos como
valores em si mesmos ou absolutos, que
se autojustificam, mas sim são vistos
como meios ou instrumentos que de fato
perseguem (ou não) , em cada caso concreto, fins extrajurídicos úteis, desejáveis,
axiológica ou politicamente “justos”.22
A teoria de Ferrajoli introduz a importante
distinção entre ponto de vista interno e ponto de
vista externo, quando da análise da ordem jurídica. Enquanto que o primeiro se limita a analisar a
concordância das normas existentes com a lógica
do próprio sistema, a segunda abordagem exige
uma visão distanciada do ordenamento jurídico,
partindo da compreensão de um conjunto axiológico extrajurídico, portanto, ético e moral,
tornando a teoria garantista essencialmente
democrática, pois serão as próprias pessoas que
poderão fazer tal avaliação e não algum órgão
centralizado, como no caso do ponto de vista
interno, que sempre nos remete aos tribunais
superiores.
Ainda na esteira da legitimação, o autor
brasileiro ressalta a importância da noção de
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 107-123, fevereiro/2010
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GRuPO DO ATIVISMO JuDICIAL - IBMEC-RJ, UFU E PUC-RIo
legitimação substancial, segundo a qual o Estado só se legitima na medida em que garante
os direitos fundamentais, seja refreando-se de
medidas que violem os direitos de liberdade, seja
promovendo positivamente políticas em prol da
implementação dos direitos sociais. Apenas o
Estado capaz de dar conta destas duas exigências
poderá ser visto como legítimo substancialmente
– sendo, porém, que tal legitimação exige que
previamente já haja uma legitimação formal, que
é o respeito ao governo sub leges, ou seja, deve
haver respaldo legal para tais políticas.
Tal noção aliada a de ponto de vista externo, cria um forte mecanismo teórico de verificação da legitimidade de qualquer Estado, mas
aqui Cademartori visualiza uma distinção entre
Estado de Direito e Democracia Política, pois o
primeiro impediria que na segunda se fosse possível gerar a supressão dos direitos fundamentais,
mesmo que por vontade da ampla maioria. Logo,
o Estado de Direito, na visão garantista, serviria
como um freio aos abusos da vontade da maioria, impedindo que os direitos fundamentais de
quaisquer minorias pudessem ser violados.
No marco contemporâneo, o Estado de
Direito com que trabalhamos não é o liberal, mas
sim o Estado Social de Direito. Isto aliado com
o raciocínio acima, faz com que surja a noção de
democracia substancial, na qual a Democracia
Social e o Estado Social de Direito fazem parte
de um todo garantista, no qual vigora “um estado
liberal mínimo (pela minimização das restrições
das liberdades aos cidadãos) e estado social máximo (pela maximização das expectativas sociais
dos cidadãos e correlatos deveres de satisfazê-las
por parte do estado)”23.
Cademartori destaca, de forma interessante, algumas passagens da Constituição que
demonstram de que forma podemos afirmar que
o Brasil é sim, teoricamente, um Estado Constitucional de Direito, enquanto um sistema de
garantias. Dentre elas podemos ressaltar:
1) o art. 5º, §2º, que apresenta uma cláusula de
abertura para que direitos e garantias não positivadas na Constituição também sejam tidos
como parte integrante do regime jurídico e;
2) o art. 23, I, que atribui aos diferentes entes
federativos a responsabilidade de zelar pelas
116
leis e instituições democráticas, evidenciando o caráter sub leges do Estado de Direito
brasileiro.
Como podemos ver, então, o conceito de
democracia ainda não cumpre uma função central nesta etapa do pensamento de Cademartori.
Apesar de importantes passagens como: “Já nos
direitos sociais, são determináveis os conteúdos,
mas não os limites (sempre poderão surgir novos
direitos deste tipo (…)). E é pelo grau e quantidade das garantias adscritas a esses direitos que
se pode medir a qualidade de uma democracia.”24
De maneira geral, devido ao fato de ainda
estar vinculado apenas à obra Direito e Razão, a
doutrina brasileira que pudemos destacar ainda
falha em ressaltar a importância do conceito de
Democracia para a construção de uma teoria
geral garantista. Evidentemente que, ao ressaltar a importância do Estado de Direito e suas
manifestações, a doutrina nacional já aponta na
direção das publicações mais atuais do mestre
italiano, como fica claro pela síntese que Cademartori faz do que é a legitimidade do ponto de
vista garantista, como “adequação da produção
normativa e da ação administrativa aos valores
plasmados nas cartas de Direito fundamentais”25.
Da mesma forma, podemos notar uma aproximação dos estudos mais recentes do autor italiano
na parte final do livro do autor brasileiro onde o
mesmo afirma que:
Graças a essa dimensão substancial, o
Direito vincula as maiorias não somente
quanto à forma de seu exercício (ou seja,
os processos de tomada de decisões), mas
também em sua substância (referente aos
conteúdos que as decisões devem ter ou
não ter). Em suma, enquanto o princípio da
maioria nos declara quem decide, o princípio da democracia substancial nos diz o
que se deve e o que não se deve decidir.26
Assim, o garantismo se torna uma ferramenta para se avaliar concretamente ações
governamentais, no que Cademartori já se
aproxima muito da produção mais recente de
Ferrajoli. Todavia, ainda há um salto a ser feito
que pode ajudar qualitativamente na cultura
jurídica nacional no que diz respeito a uma
discussão mais ampla do Estado de Direito e do
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 107-123, fevereiro/2010
OS FuNDAMENTOS TEóRICOS E PRáTICOS DO GARANTISMO NO STF
próprio conceito de democracia na sociedade
contemporânea brasileira.
O garantismo, como posto em Ferrajoli, nos
aponta claramente para uma discussão do próprio
Estado, sua atuação concreta, razões e processo
de legitimação. uma análise de tal forma plural
ainda não foi adequadamente empreendida na
doutrina nacional. Apesar de serem encontrados
alguns autores que esboçam ideias próximas às
do mestre italiano, uma utilização mais direta da
produção bibliográfica mais recente de Ferrajoli
e sua aplicação na realidade brasileira, não só
apenas no ordenamento jurídico, mas também
práticas efetivas dos governos.
5. Estudo de casos: o garantismo
no Brasil
O procedimento do quadro analítico a
respeito das decisões do Supremo Tribunal Federal fundamentou-se numa leitura mais ampla
do garantismo não se restringindo somente ao
universo penal. Assim, a reflexão a ser materializada privilegiou o tema das políticas públicas
dos medicamentos. Para cotejar a postura do
Tribunal Maior sobre essa forma de garantismo,
houve a contraposição com um contexto mais
centrado no campo dos Direitos Fundamentais
e no direito à liberdade em termos de prisão
cautelar (HC 100574/MG). Para tanto, este
estudo pode avançar na delimitação desses dois
casos na medida em que foram estabelecidas
as seguintes questões: no quadro brasileiro, o
garantismo viabiliza-se com a presença de ativismo judicial?; em caso afirmativo, esse citado
ativismo teria uma natureza meramente formal
ou estaria sob o abrigo de uma preocupação de
efetivar Direitos Fundamentais?
5.1. O caso dos medicamentos
5.1.1. Metodologia
O Constituinte lançou mão do direito à
saúde no rol de “Direitos e Garantias Fundamentais”, da Lei Maior (art. 6º, CRFB/88),
posicionando-o no ordenamento jurídico, sem
limitá-lo a um simples ideal.
Há quem diga que as normas constitucionais relativas à saúde são meramente programáticas, o que as limitaria à determinação
de princípios e da finalidade pública do ditame
legal que estão atreladas, sem especificar o meio
pelo qual o ente público as colocaria em prática;
retirando-lhes qualquer pretensão de garantir
um direito.
O Estado do Rio de Janeiro, ao longo
desses anos, quando se viu confrontado,
em Juízo, com pedidos de fornecimento de
medicamentos, encaminhou a sua resposta
apoiado no argumento de que o direito à
saúde é um direito social que não faz nascer, em contrapartida, uma obrigação, uma
relação jurídica, um vínculo obrigacional
(no sentido jurídico do termo) entre os
cidadãos e as pessoas jurídicas de direito
público.27
(...)
22. O direito à saúde, previsto no artigo
196 da Constituição Federal é de aplicação
imediata a teor do que dispõe o parágrafo
primeiro do artigo 5o. A interpretação daquele artigo não deve transformar o seu
conteúdo em promessa constitucional,
haja vista a magnitude do direito à vida.
Nesse sentido, leia-se a seguinte ementa:
A INTERPRETAÇÃO DA NORMA
PROGRAMáTICA NÃO PODE TRANSFORMá-LA EM PROMESSA CONSTITuCIONAL INCONSEqÜENTE.
O caráter programático da regra inscrita
no art. 196 da Carta Política – que tem
por destinatários todos os entes políticos
que compõem, no plano institucional,
a organização federativa do Estado
brasileiro – não pode converter-se em
promessa constitucional inconseqüente,
sob pena de o Poder Público, fraudando
justas expectativas nele depositadas pela
coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável
dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina
a própria Lei Fundamental do Estado. (...)
(grifos aditados)28
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GRuPO DO ATIVISMO JuDICIAL - IBMEC-RJ, UFU E PUC-RIo
Quando lidamos com direitos fundamentais, as normas programáticas devem ter aplicação imediata, haja vista que a sua positivação e
função estão intimamente ligadas a sua eficácia
e aplicabilidade.
Ao aceitarmos, pacificamente, a existência
de direitos sem garantias, alinhamo-nos,
conscientemente ou inconscientemente,
entre aqueles que concebem – inconsciente ou conscientemente, também – esteja
a Constituição integrada por fórmulas
vazias, desprovidas de valor jurídico.
Em que pese as concessões de liminares,
os entes públicos argumentam que tais medidas
prejudicam as finanças públicas e contrariam a
legislação ordinária, que veda a concessão de
liminar contra o Estado, sem a instauração do
contraditório. O que se coloca em xeque é a
“saúde financeira” do Poder Público, em nome
“saúde física” de um cidadão.
Quanto a esta questão da liminar, o Superior Tribunal de Justiça já decidiu que:
“(...) Assegurar-se o direito à vida a
uma pessoa, propiciando-lhe medicação específica que lhe alivia até mesmo
sofrimentos e a dor de uma moléstia ou
enfermidade irreversível, não é antecipar
a tutela jurisdicional através de medida
cautelar, mas garantir-lhe o direito de
sobrevivência. (...)”30
Cumpre reconhecer, assim, que a Constituição é, toda ela, norma jurídica e, como
tal, todos os direitos nela contemplados
têm aplicação direta, vinculando tanto
o Judiciário, quanto o Executivo, como
Legislador.
Sustento, nestas condições, que as normas constitucionais programáticas, sobretudo – repita-se – as atributivas de
direitos sociais e econômicos, devem ser
entendidas como diretamente aplicáveis e
imediatamente vinculante do Legislativo,
do Executivo e do Judiciário.29
Com base em informações coletadas na
audiência pública sobre saúde, o Presidente do
Supremo Tribunal Federal, Ministro Gilmar
Mendes, entendeu que medicamentos requeridos
para tratamento de saúde devem ser fornecidos
pelo Estado. Esta é a primeira vez que o Supremo
utiliza subsídios da audiência para fixar orientações sobre a questão.
Os dados foram utilizados na análise de
Suspensões de Tutela Antecipada (STAs). As
STAs 175 e 178 foram formuladas, respectivamente, pela união e pelo Município de Fortaleza
para a suspensão de ato do Tribunal Regional
Federal da 5ª Região que determinou à união,
ao Estado do Ceará e ao Município de Fortaleza,
o fornecimento do medicamento denominado
Zavesca (Miglustat), em favor de C.A.C.N.
Já na STA 244, o Estado do Paraná pediu
a suspensão da decisão da 1ª Vara da Fazenda
Pública de Curitiba, que determinou o fornecimento do medicamento Naglazyme (Galsulfase)
por tempo indeterminado.
118
5.1.2. O caso e a decisão
Após ouvir os depoimentos prestados na
audiência pública convocada pela Presidência
do STF, para a participação de diversos setores
da sociedade envolvidos com o tema, o Ministro
Gilmar Mendes entendeu ser necessário redimensionar a questão da judicialização do direito
à saúde no Brasil. Para isso, destacou pontos
fundamentais a serem observados na apreciação
judicial das demandas de saúde, na tentativa de
construir critérios ou parâmetros de decisão.
Segundo o Ministro, deve ser considerada
a existência, ou não, de uma política estatal que
abranja a prestação de saúde pleiteada pela parte. Para ele, ao deferir uma prestação de saúde
incluída entre as políticas sociais e econômicas
formuladas pelo Sistema único de Saúde (SuS),
o Judiciário não está criando política pública,
mas apenas determinando o seu cumprimento.
“Nesses casos, a existência de um direito subjetivo público a determinada política pública de
saúde parece ser evidente”, entendeu Mendes.
De acordo com o Presidente do STF, “se a
prestação de saúde pleiteada não estiver entre as
políticas do SuS, é imprescindível distinguir se a
não prestação decorre de uma omissão legislativa
ou administrativa, de uma decisão administrativa
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 107-123, fevereiro/2010
OS FuNDAMENTOS TEóRICOS E PRáTICOS DO GARANTISMO NO STF
de não fornecê-la ou de uma vedação legal à sua
dispensação”. Ele observou a necessidade de
registro do medicamento na Agência Nacional
de Vigilância Sanitária (ANVISA), além da exigência de exame judicial das razões que levaram
o SUS a não fornecer a prestação desejada.
5.1.3. Tratamento diverso do SUS
O Ministro salientou que obrigar a rede pública a financiar toda e qualquer ação e prestação
de saúde geraria grave lesão à ordem administrativa e levaria ao comprometimento do SUS,
“de modo a prejudicar ainda mais o atendimento
médico da parcela da população mais necessitada”. Dessa forma, considerou que deverá ser
privilegiado o tratamento fornecido pelo SUS,
em detrimento de opção diversa escolhida pelo
paciente, “sempre que não for comprovada a
ineficácia ou a impropriedade da política de
saúde existente”.
Entretanto, o Presidente destacou que
essa conclusão não afasta a possibilidade do
Poder Judiciário, ou da própria Administração,
decidir que medida diferente da custeada pelo
SUS deve ser fornecida a determinada pessoa
que comprove que o tratamento fornecido não é
eficaz no seu caso. “Inclusive, como ressaltado
pelo próprio Ministro da Saúde na Audiência
Pública, há necessidade de revisão periódica dos
protocolos existentes e de elaboração de novos
protocolos. Assim, não se pode afirmar que os
Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas
do SuS são inquestionáveis, o que permite sua
contestação judicial”, finalizou.
5.1.4. A questão Mínimo existencial vs.
Reserva do possível
Outro ponto que faz com que o Judiciário
tenha uma posição menos passiva, é o argumento
da reserva do possível. Diante da realidade do
nosso país, ou seja, da constante ausência de condições mínimas de sobrevivência, o juiz não só
pode, como deve decidir sobre políticas públicas.
O importante é que, mesmo que se aceite
a teoria do mínimo existencial, deve-se tentar
ampliar ao máximo o núcleo essencial do direito,
de modo a não reduzir o conceito de mínimo
existencial à noção de mínimo vital. Afinal, se
o mínimo existencial fosse apenas o mínimo
necessário à sobrevivência, não seria preciso
constitucionalizar os direitos sociais, bastando
reconhecer o direito à vida.
Apesar da reserva do possível ser uma
limitação lógica à possibilidade de efetivação
judicial dos direitos socioeconômicos, o que se
observa é uma banalização no seu discurso por
parte do Poder Público, quando se defende em
juízo sem apresentar elementos concretos a respeito da impossibilidade material de se cumprir
a decisão judicial.
Assim, o argumento da reserva do possível somente deve ser acolhido se o Poder
Público demonstrar suficientemente que
a decisão causará mais danos do que
vantagens à efetivação de direitos fundamentais. Vale enfatizar: o ônus da prova
de que não há recursos para realizar os
direitos sociais é do Poder Público. É ele
quem deve trazer para os autos os elementos orçamentários e financeiros capazes de
justificar, eventualmente, a não-efetivação
do direito fundamental.31
5.1.5 Pontos de reflexão
Os argumentos centrais alegados pelos
Estados, são basicamente a falta de registro dos
medicamentos na ANVISA, não podendo, dessa
forma, ser comercializados no Brasil, além, é
claro, da reserva do possível.32
A partir dessas considerações, e ao verificar que os medicamentos estão registrados na
ANVISA, o Ministro Gilmar Mendes concluiu
que, nos casos em questão, as provas juntadas
atestavam que os medicamentos são necessários
para o tratamento das respectivas patologias.
De acordo com ele, os entes federados não
teriam comprovado ocorrência de grave lesão
à ordem, à saúde e à economia públicas, capaz
de justificar a excepcionalidade da suspensão
de tutela.
Neste sentido, o Presidente do STF entendeu que medicamentos requeridos para
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 107-123, fevereiro/2010
119
GRuPO DO ATIVISMO JuDICIAL - IBMEC-RJ, UFU E PUC-RIo
tratamento de saúde devem ser fornecidos, sim,
pelo Estado. E mais, na decisão, tentou estabelecer critérios que devem ser observados pelo
Judiciário, ao apreciar questões semelhantes,
quais sejam:
1) deve ser considerada a existência, ou
não, de política estatal que abranja a prestação
de saúde pleiteada pela parte;
2) é necessário que haja registro do medicamento na Agência Nacional de Vigilância
Sanitária (ANVISA);
3) e é exigido exame judicial das razões
que levaram o SUS a não fornecer a prestação
desejada.
O campo de políticas públicas é ambiente
da discricionariedade administrativa, mas, baseado na teoria de garantismo jurídico de Luigi
Ferrajoli, só será permitido ao agente público
fazer uso dessa discricionariedade a partir do
momento em que a Administração Pública tiver
satisfeito o mínimo existencial, representado
pelos direitos fundamentais, dos quais a saúde é
um dos principais.
A discussão que surge dessas conclusões
é a seguinte: se a saúde, assim como outros
direitos sociais, estão incluídos naquele âmbito
de direitos que devem ser implementados, prioritariamente, pelos Poderes Executivo e Legislativo, mediante programas de políticas públicas,
qual seria a legitimidade de decisões judiciais
ordenando o fornecimento de medicamentos a
determinadas pessoas?
É essa intervenção que se denomina, nos
termos da decisão do Ministro Gilmar Mendes,
de judicialização das relações políticas e sociais, ou seja, a este movimento, realizado pelo
Judiciário, de impor ao Estado Administração a
concretização de direitos sociais.
Tais decisões podem até ser vistas como
judicialização da política, mas não como ativismo judicial, dado que essa parcela da população
não dispõe de outro modo que não a ação judicial
para defender seus direitos. Assim, não resta
outra opção aos nossos Magistrados e Tribunais,
a não ser a de acolherem os pedidos e determinarem a correção da situação de extrema gravidade,
urgência e justiça.
120
Do ponto de vista de uma visão garantista
do controle da Administração, já que esta deve
atuar em todos os momentos, tendo a pessoa
como centro de suas realizações, cabe ao Judiciário a avaliação dos atos administrativos, sempre
sob a perspectiva dos direitos fundamentais
constitucionais.
A Emenda Constitucional nº 26 à Constituição Federal de 1988 inseriu um novo direito
social (“assistência aos desamparados”), impondo ainda maior compromisso ao Judiciário com
as camadas pobres da população, de modo que
estão legitimados pela Carta à defesa daquele
direito, quando seus titulares não são contemplados com as prestações às quais o Estado está
obrigado. E essa tarefa enquadra-se na teoria
garantista mediante dois princípios: o da legalidade, pois as garantias dos direitos fundamentais
devem estar asseguradas na legislação, e o da
submissão à jurisdição, ou seja, tais direitos
devem ser acionáveis em juízo, em relação aos
sujeitos responsáveis por suas violações, ações
ou omissões.
5.2 O caso da prisão cautelar por tempo
excessivo
5.2.1 Metodologia
A análise dos elementos teóricos já explanados é melhor visualizada se redirecionada a
uma perspectiva prática. Nesse sentido, é possível estudar a recente manifestação do STF (HC
100574 MC/MG, informativo nº 562 do STF),
cujo conteúdo mescla características próprias
do garantismo de Ferrajoli como do conceito de
ativismo judicial. Assim, de modo que se perceba
a relação entre estes dois fenômenos, o presente
estudo apresentará uma discussão sobre a manifestação da Corte Constitucional brasileira,
indicando os possíveis desdobramentos de sua
observância.
5.2.2 O caso e a decisão
O legislador processual penal, identificando a necessidade de proteger o curso da instrução
criminal, estabeleceu ser possível a decretação
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 107-123, fevereiro/2010
OS FuNDAMENTOS TEóRICOS E PRáTICOS DO GARANTISMO NO STF
de uma prisão cautelar ao acusado. Esta, contudo, não é auferível de modo arbitrário, devendo
seguir determinados pressupostos, sobretudo a
necessidade e a inexistência de outro meio hábil
a proteção do curso do processo. Deste modo,
apenas excepcionalmente poderá ser verificada
prisão antes da completa cognição sobre a lide,
de forma que se preze tanto pelo processo quanto
pelas garantias do acusado.
É calcado em tal perspectiva que se verificou o voto do Min. Rel. Celso de Mello diante
da duração excessiva de uma prisão nomeada
como cautelar. O caso transposto ao STF diz
respeito a um indivíduo que teve sua liberdade
restringida desde dezembro de 2003 por meio de
uma decisão que decretou a sua prisão cautelar.
Não bastasse a impropriedade do prolongamento
da prisão, o processo ao qual este se sujeitava foi
invalidado sem qualquer indicação de soltura,
obrigando-o a permanecer recluso. O caso, em
verdade, é marcado por diversas impropriedades formais e materiais, instigando a Corte à
realização de uma análise baseada não apenas
em garantias substanciais, mas também sob a
razoabilidade de suas decisões.
De fato, é sob estes dois aspectos (princípios substanciais e razoabilidade) que se funda
a discussão do caso. Por um lado observa-se o
discurso pautado na grave ofensa às garantias
constitucionais em virtude de um prolongamento excessivo (quase seis anos) de uma prisão
cautelar. Por outro, verifica-se a necessidade de
utilização do princípio da razoabilidade para o
afastamento da súmula nº 691 do STF, segundo
a qual o STF não poderia conhecer de habeas
corpus já indeferido liminarmente por Tribunal
Superior, no caso o Tribunal Superior da União.
Há, pois, a discussão de efetividade de garantias, processuais e materiais, e a necessidade de
revisão de precedente sumulado diante do caso
concreto.
No que se refere à defesa das garantias,
notam-se os absurdos cunhados ao longo do
processo. Primeiramente aborda-se, por óbvio,
o tempo de acautelamento a que se encontra submetido o indivíduo, que totaliza quase seis anos.
Para além da violação a própria dignidade da
pessoa humana, são suscitados os princípios da
presunção da inocência e da resolução do litígio,
bem como a própria inconformidade legal, que
já tornaria, por si só, abusiva a prisão, sujeitando
o seu relaxamento. Nessa perspectiva, também
se desconstitui o argumento de prolongamento
da prisão em razão da apresentação repetida de
recursos, levantado pelo juízo de primeira instância. Aqui se destacou o princípio do devido
processo legal, dentro do qual se extrai o direito
de recorrer que, em nenhuma hipótese, poderá
ser justificativa para a extensão de uma prisão.
Nas palavras do Ministro:
“O excesso de prazo [...] traduz situação
anômala que compromete a efetividade
do processo, pois além de tornar evidente
o desprezo estatal pela liberdade do cidadão, frustra direito básico que assiste a
qualquer pessoa: o direito à resolução do
litígio, sem dilações indevidas (CF, art.
5º, LxxVIII) e com todas as garantias
reconhecidas pelo ordenamento constitucional”
“O fato inquestionável, neste caso, é um
só: o paciente não deu causa a qualquer
procrastinação [...] limitando-se, ao contrário, a exercer, regularmente, os direitos
que derivam da cláusula constitucional
do “due process”, notadamente o direito
de recorrer”
Sob o espectro da competência, é com
base na problemática que envolve o caso que se
manifesta o Ministro. Segundo ele, embora haja
entendimento já sumulado de impossibilidade
de apreciação do habeas corpus indeferido por
Tribunal Superior, é manifesta a necessidade de,
diante do caso concreto, propor um afastamento
de cunho excepcional do precedente. Isto porque
aqui haveria um “abuso de poder ou de manifesta
ilegalidade” que autorizaria a supressão deste
comando. Assim, a fim de que não se perdurem
ou consagrem as violações às garantias e/ou
direitos conferidos ao sujeito, possibilita-se o
afastamento da súmula nº 691, fazendo-se possível a proteção do então paciente.
O caso, deste modo, conjuga aspectos
tanto garantistas como ativistas. O garantismo
se insere na defesa da efetivação de direitos
fundamentais, isto é, de garantias elencados no
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 107-123, fevereiro/2010
121
GRuPO DO ATIVISMO JuDICIAL - IBMEC-RJ, UFU E PUC-RIo
corpo constitucional. É, em alguma medida,
também um positivismo, sob o qual se prega a
aplicação daquilo declarado pelo próprio ordenamento jurídico. O ativismo judicial, por sua
vez, se manifesta sob a modalidade, descrita por
Marshall, de ativismo de precedentes, no qual
há uma resistência do magistrado em aplicar o
entendimento já consagrado na Corte.
Em verdade, o caso remete a importante
consideração sobre tais fenômenos. Observa-se
que o ativismo judicial só fora suscitado em razão da necessidade de se garantir a aplicabilidade
de direitos fundamentais. Vale dizer, neste caso,
o ativismo judicial é viabilizado pelo próprio
garantismo, que, abrigando uma base valorativa, possibilita ao magistrado uma posição mais
atuante no próprio caso, quer invalidando atos
de outro Poderes, quer invalidando o próprio
entendimento construído no Judiciário.
5.2.3. Pontos de reflexão
Em termos analíticos, constata-se descompasso constitucional acompanhando a prisão
de um paciente, o STF vê-se, assim, diante da
necessidade de compor dois dos importantes
fenômenos que hoje cerceiam o Judiciário: o
garantismo e o ativismo judicial. Como forma
de assegurar o direito à liberdade o paciente, de
fato, utilizou-se uma postura ativista (afastando a súmula vigente ao caso examinado) para a
consecução de um tratatmento garantista de base
num “senso comum liberal” como foi expressa
no voto do Ministro Celso de Mello.
6. Conclusão
O estudo apontou que a compreensão das
decisões prolatadas pelo STF, com fundamento
em uma perspectiva de garantismo, diante dos
casos examinados, passa naturalmente por dois
balisamentos: (i) O garantismo traduzido numa
leitura do quadro teórico de Ferrajoli, como foi
recepcionado pela doutrina brasileira, como um
modelo de efetivação de direitos pautados por
um alargamento do conceito de garantismo não
mais vinculado a um mero alinhamento no uni122
verso penal. (ii) E, sob outro desdobramento, o
garantismo corrente na sociedade brasileiro foi o
que se abrigou na atuação do Supremo Tribunal.
Deve ser sublinhado que o seu direcionamento
foi mais em parâmetros de “um senso comum
liberal”. Além dessas observações, não pode
ser omitida a crítica de Roberto Gargarella a
respeito do garantismo de Luigi Ferrajoli contido na sua obra Democracia y Constitución.33
Lembra Gargarella no seu blog “Seminário de
Teoria Constitucional y Filosofia Política”34
que a linha teórica de Ferrajoli está lastreada
“los deficitis de argumentación”. Isto é, numa
filosofia política anti-majoritária e de raízes
elitistas. Imputa a cidadania, assim, a produção
de decisões opressivas. Há, segundo o citado
estudioso argentino, uma defesa de Ferrajoli
sobre o controle judicial demaisada imperfeita.
Pois, “os juízes de qualquer Corte Suprema dissentirão como nós frente a dilemas de direitos”.
Gargarella não apóia um afastamento do controle
judicial e nem formas plebiscitárias. Mas quer
destacar as insuficiências do quadro teórico de
Ferrajoli, principalmente, diante de experiências
constitucionais de mais de duzentos anos que
ainda não estão, devidamente, consensuadas e
compartilhadas.
Ao ser enfrentado esse direcionamento do
garantismo no Supremo Tribunal Federal num
universo de certos “padrões liberais”, examinados nos dois casos, e acatada a crítica de Gargarella ao quadro teórico de Ferrajoli, percebe-se
a impossibilidade de reduzir esse debate a uma
mero universo formal de aplicação das denominadas garantias constitucionais individuais
traduzidas ao longo do artigo 5º da C.F. vigente.
Impõe-se, pelo percurso analítico materializado,
considerando a atuação institucional do Tribunal
Maior, um compromisso constante de delimitar
um contexto teórico e prático de caracteristicas
complexas como se revela nessa concepção de
“garantismo”.
notas
TATE, C., VALLINDER, T. The Global Expansion of Judicial Power. New York university Press, New York, 1997.
2
Os autores Tate e Vallinder destacam um processo conhe1
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 107-123, fevereiro/2010
OS FuNDAMENTOS TEóRICOS E PRáTICOS DO GARANTISMO NO STF
cido como policy-making, no qual haveria uma interação
entre os valores dos juízes e a vontade de participar da
construção política da sociedade.
3
Designing Constitutional Dialogue: Bills of Rights & the
New Commonwealth Constitucionalism (mimeo sem ano
de circulação).
4
É importante a leitura da obra Legitimidade da Jurisdição
Constitucional organizada por BIGONHA, Antonio Alpino
e MOREIRA, Luiz. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris/
ANPR. 2010. Na parte introdutória os dois organizadores
acentuam que, após a CF. de 1988, o debate constitucional
brasileiro ficou preso ao tema de pricnípios. Acentuou mais
o jurídico do que o político
5
Revista Doxa, v. 29, p. 15-31.
6
Conferir a obra de AGAMBEN, Giorgio; e outros autores.
Démocratie, dans quel état? Paris; La Fabrique éditions,
2009. Neste estudo, há uma reflexão importante sobre
quais são os alinhamentos hoje a respeito da democracia.
A recente obra publicada Teoria y Critica de del Derecho
Constitucional, Tomo I - Democracia sob a coordenação
de GARGARELLA, Roberto no seu texto « Constitucionalismo versus Democracia », capítulo III, páginas 23 a
40. Buenos Aires : Abeledo Perrot 2009 discute a questão
de pensar hoje o processo democrático.
7
Assim corrobora Miguel Reale em sua obra Pluralismo e
Liberdade, pág. 58: “(...), cada experiência particular de
valores não está em função da liberdade exclusiva de um
sujeito isolado, dependendo, ao contrário, necessariamente, de sua intersubjetividade, pois, sendo um valor, a
liberdade não pode deixar de possuir, como sua qualidade
essencial, liames de solidariedade ou de co-participação
com todos os demais valores.” (grifo do autor)
8
Poder-se-ia aqui ensejar uma discussão acerca de um dos
alicerces da democracia: a igualdade. Com o pretexto de
alcançar o melhor resultado, transforma-se a igualdade
numa mera formalidade, o que equivaleria a uma espécie
de retorno à teoria igualitária de que lançou mão o Estado
liberal.
9
Sejamos francos, então, ainda que pessimistas: é quimera
dizer que somos todos iguais, quando apenas alguns se
fazem ouvir. Portanto, igualdade jurídica não implica,
necessariamente, igualdade de fato. Há que se considerar,
entretanto, o entendimento de alguns no tocante à realização de uma igualdade absoluta, quando alegam ser este
um objetivo além das possibilidades humanas; algo que se
poderia observar ao longo do curso histórico.
10
HABERMAS. Direito e democracia: entre faticidade e
validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro.
11
Vide sobre esta síntese da reflexão de FERRAJOLI,
Luigi “La Democracia Constitucional“ in Democracia y
garantismo edição de Miguel Carbonell Madrid: Editorial
Trotta S.A. 2008 páginas 25 a 40
12
CARVALHO, Amilton Bueno de; CARVALHO, Salo
de. Aplicação da pena e garantismo penal. 2. ed. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2002. p. 19. Veja, também, capítulo
xLIII La deriva neopunitivista de organismos y activistas como causa Del despretigio actual de los Derechos
Humanos de autoria de PASTORE, Daniel R., in op, cit,
GARGARELLA, Roberto, tomo II, páginas 1162 a 1206.
A leitura é importante porque procede a um questionamen-
to dos Direitos Humanos. Isto é que, em razão de reparar a
vitima, há um excesso neopunitivo no sistema acusatório.
13
FERRAJOLI, Luigi. El derecho como sistema de garantías.In: Jueces para la democracía, Barcelona, 1992 apud
CARVALHO, 2002, p. 24.
14
Disponível em: < http://www.conpedi.org/manaus/arquivos/anais/bh/adriano_de_bortoli.pdf > Acesso em: ?
15
BORTOLI, Adriano de. Garantismo jurídico, estado de
direito e administração pública. In: Conselho Nacional de
Pesquisa e Pós-Graduação em Direito, 16., 2007. Anais...
Belo Horizonte: CONPEDI, 2007, p. 6000.
16
RESTA, Eligio. La ragione del diritti apud BORTOLI,
idem..
17
BORTOLI, idem, p. 5997.
18
CADEMARTORI, Sérgio. Apontamentos iniciais acerca
do garantismo. Disponível em: <http://www.buscalegis.
ufsc.br/revistas/index.php/buscalegis/article/viewFile/14035/13599> Acesso em: 13 jul 2009.
19
Idem.
20
FERRAJOLI, Derecho y razón apud CADEMARTORI,
Daniela Mesquita Leutchuk; CADEMARTORI, Sérgio. A
relação entre estado de direito e democracia no pensamento
de Bobbio e Ferrajoli. In: Revista Seqüência, Florianópolis, n. 53, dez. 2006, p.150.
21
CARDEMATORI, Daniela Mesquisa Leutchuk e CARDEMATORI, Sérgio, op.ci
22
CADEMARTORI, Sérgio. Estado de direito e legitimidade: uma abordagem garantista. 2. ed.. Campinas:
Millenium, 2007, p. 93-94.
23
Ibidem, p. 212.
24
Ibidem, p. 109.
25
Ibidem, p. 230.
26
Ibidem, p. 232.
27
TAVARES, Lúcia Lea Guimarães. O Fornecimento de
Medicamentos pelo Estado. In: Revista de direito da
Procuradoria-Geral 55:109-10, 2002, p. 43.
28
Ação Ordinária n.º 2006.72.00.010914-6/SC – TRF04 –
Juiz Carlos Alberto da Costa Dias – j. 20.11.06.
29
GRAu, Eros Roberto. Direitos, conceitos e normas
jurídicas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998. p. 88.
30
REsp n.º 97.912/RS, 1T - STJ, Min. Garcia Viera,
j. 27.11.1997.
31
MARMELSTEIN, George. Curso de Direitos Fundamentais. Ed. Atlas: São Paulo, 2008, p. 194.
32
As alegações de negatividade de efetivação de um direito
social com base no argumento da reserva do possível devem ser sempre analisadas como desconfiança. Não basta
simplesmente alegar que não há possibilidades financeiras
de se cumprir a ordem judicial; é preciso demonstrá-la.
O que não se pode é deixar que a evocação da reserva
do possível converta-se “em verdadeira razão de Estado
econômica, num AI-5 econômico que opera, na verdade,
como uma anti-Constituição, contra tudo o que a Carta
consagra em matéria de direitos sociais (...)”. (http:conjur.
estadao.com.Br/static/text/26851,1)
33
FERRAJOLI, Luigi. Democracia y Constitucion, op.cit.
34
Disponível em: < http://seminariogargarella.blogspot.
com/2009/11/criticando-ferrajoli.html> Acesso em: 8 de
nov 2009.
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 107-123, fevereiro/2010
123
124
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, fevereiro/2010
A EFICáCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS FuNDAMENTAIS NAS RELAÇõES PRIVADAS ESPANHOLAS
Artigo
A EfiCáCiA horizontAL DoS DirEitoS
funDAmEntAiS nAS rELAçõES PrivADAS
ESPAnhoLAS
Jonathas Fortuna Gomes*
rESumo: É de imprescindível importância,
antes de compreendermos como a eficácia dos
direitos horizontais na relações privadas Brasileiras se manifestou, entender o alcance desse
instituto no Direito Espanhol, haja vista sua
Forte influencia, para formação doutrinaria e
legislativa Brasileira. A eficácia horizontal dos
Direitos Fundamentais, entre nós, nasceu no seio
Espanhol e Alemão. Pela Leitura desse texto, inevitavelmente serão notadas varias semelhanças
Palavras-chave: Direitos fundamentais. Eficácia
Direita e imediata. Julgamentos TC e TS Espanhóis. Constituição espanhola.
ABStrACt: It is vital importance, before
understanding the effectiveness of horizontal
rights in private relations Brazilian manifested
itself, understand the scope of this Law Office in
Spanish, due their strong influence and doctrinal
training to Brazilian legislation. The horizontal
effectiveness of Fundamental Rights, among
us, born of the Spanish and German. Reading
the text that will inevitably be noticed several
similarities.
Keywords: Fundamental Rights. Direct and Immediate Effectiveness. Trials CT and TS Spanish.
Spanish Constitution.
Advogado. Pós-Graduando em Direito Civil pela uFBA(universidade Federal da Bahia).Pós graduando em Direito Civil pela FACuLDADE
BAHIANA DE DIREITO.
*
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 125-131, fevereiro/2010
125
GOMES, J. F.
misma de la relación laboral causó en el
recurrente la vulneración de su derecho
a expresar libremente sus pensamientos,
ideas y opiniones por cuanto el ejercicio
de dicho derecho fundamental fue la única
causa de su despido.
Tampoco la Sentencia de suplicación reparó la vulneración del derecho fundamental
del recurrente a su libertad de expresión
producida por el acto extintivo empresarial
al declarar el despido improcedente con
opción empresarial entre indemnización
o readmisión.
Lo antes razonado nos lleva derechamente
al otorgamiento del amparo con la ineludible consecuencia de declarar la nulidad
del despido disciplinario al incurrir éste en
violación del invocado derecho fundamental, con los efectos legalmente previstos
(art. 56.5 LET) de readmisión forzosa
del trabajador despedido y abono de los
salarios dejados de percibir.
1. Constituição Espanhola e
Aplicabilidade dos Direitos
fundamentais
1.1 A eficácia direta e imediata dos Direitos
fundamentais:
Na Espanha, os direitos fundamentais se
aplicam as relações jurídicas, sem nenhuma necessidade de mediação legislativa, apresentando
uma eficácia direta e imediata. É o juiz do caso
concreto quem vai aplicar a norma de Direito
Fundamental, estabelecendo uma regulação legal especifica de acordo com as nuances fáticas
apresentadas no conflito.
Juan ubillos, adepto da teoria da eficácia
vinculante dos Direitos Fundamentais pelos particulares, transcreve o entendimento do Tribunal
Constitucional Espanhol, na STC 18/1984:
[...] no debe interpretarse en el sentido de
que sólo se sea titular de los derechos fundamentales y libertades públicas en relación con los poderes públicos, dado que en
un Estado social de Derecho como el que
consagra el artículo 1° de la Constitución
no puede sostenerse con carácter general
que el titular de tales derechos no lo sea
en la vida social, tal y como evidencia la
Ley 62/1978[…]
Prosseguindo o entendimento, o referido Tribunal no STC 20/2002 proferiu aplicação
direta à liberdade de expressão prevista no artigo
20 da Constituição Espanhola:
Siendo esto así, es decir, producido el
despido con vulneración del expresado
derecho fundamental, es claro que la
respuesta dada por la Sentencia ahora recurrida del Juzgado de lo Social no respetó
el necesario equilibrio entre las obligaciones dimanantes del contrato de trabajo y
el ámbito del derecho fundamental del
trabajador en juego, ni la restricción del
ejercicio de dicho derecho efectuada por
el contrato de trabajo fue la estrictamente
imprescindible, proporcional y adecuada
a la satisfacción de legítimos intereses
empresariales, puesto que la existencia
126
Nessa linha, ainda que a teoria da eficácia
imediata não tenha prevalecido na
Alemanha, a qual até hoje adotou o entendimento do caso Lüth, optando pela teoria
mediata, tornou-se dominante em vários países,
como Espanha, Portugal, Itália, Argentina e, no
Brasil, tendo como autores aliados Daniel Sarmento, Ingo Sarlet e Wilson Steinmetz
A doutrina jus fundamental da Espanha
também acolhe, via de regra, sem receios a teoria da eficácia direta, levando em consideração
reiteradas decisões do Tribunal Constitucional
que evidenciam essa tendência.
Pedro de Vega García, renomado doutrinador espanhol, não vê motivos para receio,
salientando que a aceitação da eficácia direta
não é mais que uma necessidade decorrente das
transformações operadas na concepção teórica
dos direitos fundamentais, pois foram elas que
abriram caminho à Drittwirkung no plano jurisprudencial e doutrinal. Sem a projeção desses
direitos em todos os setores do ordenamento
jurídico, não há que se falar em “igualdade”,
em suas palavras:
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 125-131, fevereiro/2010
“La igualdad formal ante la ley (como
norma jurídica general que regula las
A EFICáCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS FuNDAMENTAIS NAS RELAÇõES PRIVADAS ESPANHOLAS
relaciones entre particulares) sólo tiene
sentido en la medida en que esa igualdad
abstracta no queda destrozada socialmente
por la desigualdad material y econômica
de las posiciones de los indivíduos que
deberían ejercitarla. Aparece así la Drittwirkung como correctivo de unas formas
de organización social que, en el plano
real, chocan frontalmente con el sistema
de valores que, en el plano ideal, definen al
ordenamiento constitucional. Lo que a la
postre significa dar el salto de un Derecho
constitucional de la libertad a un Derecho
constitucional concebido, ante todo, como
Derecho de la igualdad”.
Mais contundente é Bilbao ubillos, que
relata em sentido inverso aos “partidários da
eficácia mediata”, que a mediação do legislador
não pode ser considerada “um trâmite indispensável”, pois não tem um “caráter constitutivo,
senão meramente declarativo”. E dilata seu raciocínio, afirmando que “um direito fundamental
cujo reconhecimento depende do legislador, não
é um direito fundamental, e sim um direito de
cunho legal, simplesmente. O direito fundamental se define justamente pela indisponibilidade
de seu conteúdo ao legislador”. E vai além o
autor espanhol:
si nos atenemos, pues, a los estrictos
términos en que se formula, esta teoría
niega en realidad la ‘Drittwirkung’. Al
interponerse necesariamente la ley o la
cláusula general, lo que se aplica como
regla de decisión del litigio es una norma
de Derecho Privado.
uma Minoria ainda presente de doutrinadores espanhóis se contrapõe a eficácia direta e
imediata dos direitos fundamentais, indo de contra as premissas de Drittwirkung, afirmando que
esta se ferindo frontalmente a autonomia privada
que deve permeia as relações sociais, conforme
afirma Juan Maria Bilbao ubillos, in verbis:
“ Late em El fondo de estas posturas La
convicción de que La Drittwirkung puede
ser uma espécie de “caballo de Troya” que
destruya El sistema construído sobre La
base de La autonomia privada”
1.2 A eficácia horizontal dos direitos
fundamentais nas relações privadas
espanholas:
“O art. 53º, n.1 “da constituição espanhola
estabelece em linhas gerais que:” Os direitos e
liberdades reconhecidos no capitulo II do presente titulo vinculam todos os Poderes Públicos”.
Partindo desse pressuposto, nota-se, claramente, que o legislador espanhol atribui à titularidade dos direitos fundamentais as autoridades
publicas, mas cabe enfatizar que em momento
nenhum o legislador excluiu da qualidade de
destinatários desses direitos os indivíduos, já
que nas relações entre particulares não deve
permeia só o principio da autonomia privada,
mas, também o direito fundamental a igualdade
e não-discriminação.
Nessa esteira, não devemos esquecer o
art.11 nº1 da Constituição Espanhola que prima
entre os valores mais elevados pela igualdade e
o art.9 nº2 dessa mesma constituição que outorga
atribuição a todas as autoridades publicas para
promover condições hábeis para se estabelecer a
igualdade entre os indivíduos dos mais variados
grupos sociais de maneira real e eficaz. Fortalecem esse entendimento, as palavras de Juan
Maria Bilbao ubillos, ao defender a aplicação
horizontal dos direitos fundamentais nas relações
privadas, dizendo:
“Ciertamente El artículo 53.1 del Texto
Constitucional tan sólo establece de manera expressa que los derechos fundamentales vinculam a los poderes públicos, pero
elo no implica una exclusión absoluta de
outros posiblés destinatários”
Para o doutrinador espanhol Freixes Sanjuan, em seu livro a Constituição e dos direitos
fundamentais, Barcelona, 1992, é preceito
consagrado no ordenamento jurídico espanhol,
o eficácia horizontal dos direitos fundamentais.
Registre-se que, evidentemente, que os
direitos fundamentais são aplicados de maneira
diferenciada a cada relação privada, daí Drittwikung , defender uma aplicação casuística ,
estabelecendo a ponderação dos direitos confli-
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 125-131, fevereiro/2010
127
GOMES, J. F.
tantes e dos interesses subjacentes numa linha
horizontal, com o que titula “julgamento de
razoabilidade”
inadmitiam a postulação eleitoral de servidores
governamentais.
O TC assinalou que a configuração do
Estado como Social culmina:
1.3 Um breve Histórico sobre decisões
que consolidam a eficácia horizontal dos
direitos fundamentais nas relações entre
particulares no Tribunal Constitucional (TC)
e no Tribunal Supremo (TS) da Espanha:
No órgão de cúpula da jurisdição constitucional ibérica, também foi considerável a
influência provocada pelo Bundesverfassungsgericht. A eficácia entre particulares dos direitos
fundamentais começou a ser analisada pela Corte
ainda em meados dos anos 80, quando duas
decisões tomadas pelo Tribunal Constitucional
(TC) ergueram as balizas teóricas que norteariam
o assunto na jurisprudência espanhola.
Em 1982, o litígio versava sobre uma
manifestação realizada por trabalhadores em
protesto contra a demissão de uma funcionária.
Eles se concentraram em frente à loja de frutas
em que laborava portando faixas pedindo sua
readmissão, gritando palavras de ordem. Chegaram inclusive a conclamar os passantes a não
entrar no estabelecimento, o que levou à natural
queda no movimento da clientela e perda de
produtos perecíveis.
O Tribunal Constitucional entendeu que:
nem a liberdade de pensamento nem o
direito de reunião e manifestação compreendem a possibilidade de exercer sobre
terceiros uma violência moral de alcance
intimidatório, porque isso é contrário
a bens constitucionalmente protegidos
como a dignidade da pessoa e seu direito
à integridade moral (arts. 10 e 15 da Constituição espanhola), que não só os poderes
públicos devem respeitar, mas também os
cidadãos, de acordo com os artigos 9 e 10
da Norma Fundamental (STC 2/1982).
Dois anos mais tarde, a questão de mérito
versava sobre a rejeição, pelo órgão eleitoral
competente, da candidatura de pessoas vinculadas ao Conselho de Administração da Caixa
Econômica (Caja de Ahorros) das Astúrias. O
indeferimento baseara-se em precedentes que
128
[...] una evolución en la que la consecución
de los fines de interés general no es absorbida por el Estado, sino que se armoniza
en una acción mutua Estado-Sociedad, que
difumina la dicotomia Derecho PúblicoPrivado y agudiza la dificultad tanto de
calificar determinados entes, cuando no
existe una cualificación legal, como de
valorar la incidencia de una nueva regulación sobre su naturaleza jurídica.
En el campo de organización, que se el que
aqui interesa, la interpenetración entre Estado
y Sociedad se traduce tanto en la participación
de los ciudadanos en la organización del Estado
como en una ordenación por el Estado de entidades de carácter social en cuanto a su actividad
presenta un interés público relevante.
O aspecto mais relevante do pronunciamento em estudo, porém, foi de natureza processual. Admitiu-se que, se por um lado existem
direitos que só podem ser invocados perante os
poderes públicos, por outro a vinculação desses
poderes à Constituição “se traduz em um dever
positivo de dar efetividade a tais direitos quanto
à sua vigência da vida social, dever que afeta ao
legislador, ao executivo e aos juízes e tribunais”.
Em conseqüência:
el recurso de amparo se configura como
un remedio subsidiario de protección de
los derechos y libertades fundamentales
cuando los poderes políticos han violado
tal deber. Esta violación puede producirse
respecto de las relaciones entre particulares cuando no cumplen su función
de restablecimiento de los mismos, que
normalmente corresponde a los Jueces y
Tribunales.
Segundo Bilbao ubillos, as decisões
mais significativas do TC – aquelas em que
se reconheceu de forma mais nítida a eficácia
entre particulares dos direitos fundamentais
– foram emitidas quase sempre em conflitos
de caráter laboral. A STC 88/1985, em que se
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 125-131, fevereiro/2010
A EFICáCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS FuNDAMENTAIS NAS RELAÇõES PRIVADAS ESPANHOLAS
discutia a licitude de ato demissional imposto
a trabalhador que havia criticado publicamente
o funcionamento da empresa em que laborava,
foi “marcante na jurisprudência constitucional”.
O decisório estabeleceu que o contrato
de trabalho “não implica, de modo algum, a
privação para uma das partes, o trabalhador, dos
direitos que a Constituição lhe reconhece como
cidadão, dentre outros o direito a expressar e
difundir livremente os pensamentos, idéias e
opiniões”. E concluiu:
Ni las organizaciones empresariales
forman mundos separados y estancos,
respecto del resto de la sociedad, ni la
libertad de empresa que establece el art.
38 de la C.E., legitima el que quienes
prestan servicios en aquéllas por cuenta
y bajo la dependencia de sus titulares
deban soportar despojos transitorios o
limitaciones injustificadas de sus derechos
fundamentales y libertades públicas, que
tienen un valor central y nuclear en el
sistema jurídico constitucional. Las manifestaciones de «feudalismo industrial»
repugnan al Estado social y democrático
de Derecho y a los valores superiores de
libertad, justicia e igualdad a través de los
cuales ese Estado toma forma y se realiza
(art. 1.1).
Sobre o exercício dos direitos fundamentais
no campo do direito obreiro, a STC 90/1997 pode
ser vista como um resumo da evolução jurisprudencial do Tribunal Constitucional:
la jurisprudencia de este Tribunal ha
insistido reiteradamente en la plena efectividad de los derechos fundamentales
del trabajador en el marco de la relación
laboral, ya que ésta no puede implicar
em modo alguno la privación de tales
derechos para quienes prestan servicios
en las organizaciones productivas, que
no son ajenas a los principios y derechos
constitucionales que informan el sistema
de relaciones de trabajo. [...] el ejercicio
de tales derechos únicamente admite
limitaciones o sacrificios en la medida
que se desenvuelve en el seno de una
organización que refleja otros derechos
reconocidos constitucionalmente en los
arts. 38 y 33 CE y que impone, según los
supuestos, la necesaria adaptabilidad para
el ejercicio de todos ellos”
Para o tribunal, portanto, do contrato de
trabalho se derivam “equilíbrios e limitações
recíprocas” para ambas as partes, de sorte que
“também as faculdades organizativas empresariais se encontram limitadas pelos direitos
fundamentais do trabalhador, ficando obrigado
o empregador a respeitá-los”. A limitação desses
direitos só seria admissível se a própria natureza
do trabalho contratado implicar tal restrição,
aliada a um acentuado interesse empresarial; a
simples invocação do poder diretivo patronal não
basta para sacrificá-lo.
Por outro lado, na ATC 625/1987, a corte
constitucional espanhola estabeleceu que a
demissão motivada pela realização de trabalho
religioso (proselitismo, captação de voluntários
para a igreja, etc.) por parte do obreiro, durante
período de inatividade laboral transitória, não
representa violação aos direitos de não-discriminação, liberdade religiosa e livre expressão do
pensamento, pois neste caso “lo que se sanciona
no es la realización en sí de la actividad, sino el
perjuicio que ella ocasionaba en el proceso de
recuperación de la capacidad para el trabajo del
demandante”.
No plano jurídico civil, interessante caso
de 1995 faz-se digno de menção. Os recorrentes haviam feito uma doação de bens imóveis a
sua filha, mas depois intentaram procedimento
judicial objetivando a revisão do ato por ingratidão. Sucede que a donatária, casada e mãe de
dois filhos, iniciara relacionamento afetivo com
homem marroquino, e chegou a ponto de abandonar sua família para viver com ele. Para os pais
(doadores), a humilhação gerada pela situação
era causa suficiente para o reconhecimento da
ingratidão.
As instâncias inferiores rejeitaram o
pleito, ao argumento de que a atitude dos pais
demonstrara intolerância e racismo, vez que a
gravidade da conduta por eles apontada residia
essencialmente no fato de o amante ser de origem
“magrebí”. O Tribunal Supremo manteve tal opi-
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 125-131, fevereiro/2010
129
GOMES, J. F.
nião, aduzindo que a insistência dos recorrentes
em enfatizar este fato provava que agiam “com
apoio em componentes claramente xenófobos,
contrários à dignidade da pessoa humana e ao
princípio da igualdade perante a lei”.
Em decisão polêmica, o Tribunal Constitucional manteve, na STC 73/1985, decisum
prolatado pelo Tribunal Supremo e negou recurso
de amparo manejado por pessoa que tivera sua
entrara proibida em um cassino. O recorrente
fundamentara seu pedido no art. 14 da Constituição, morada do princípio da igualdade, que, em
sua ótica, lhe asseguraria o direito de ingressar na
casa de jogo. O TS havia decidido que o caso não
era de violação a direito fundamental, pois que
a admissão de não-sócios dependia do consentimento dos encarregados do estabelecimento.
O TC considerou que a proibição de acesso
é decisão adotada por particulares com base em
fundadas suposições, não se podendo nela vislumbrar uma violação ao princípio da igualdade,
já que “constitui uma atividade protetiva dos
interesses da própria entidade privada”. Avaliou,
outrossim, que os cassinos são entidades “sobre
as quais não se pode predicar aos cidadãos um
direito ilimitado de livre acesso”.
Bilbao Ubillos demonstrou preocupação
com os impactos negativos da decisão. Soa
procedente seu argumento de que
[...] o direito de admissão que o proprietário pode invocar na defesa de seus
interesses econômicos não pode amparar
uma política sistemática de discriminação
racial por parte dos estabelecimentos
abertos ao público.
Com apoio na doutrina de J. Alfaro pondera que:
quem abre um lugar público afirma sua
vontade de contratar, em princípio, com
quem quer que aceite seus preços e
condições de venda; a abertura do local
implica, ao menos, a renúncia a selecionar
a clientela sobre bases individuais.
Mais recentemente, o Tribunal Constitucional, na apreciação de outro recurso de amparo,
firmou posição no sentido de que o ato de banir
130
sócio de cooperativa é suscetível à plena cognição judicial, e que a submissão do mérito e da legitimidade desse ato à revisão pelo Judiciário não
fere o direito fundamental de auto-organização
que assiste a tais entidades.
Certo sócio cooperativista fora expulso
por desancar verbalmente os integrantes da
Junta Diretiva da mesma, acusando-os de estar
lucrando às custas da referida associação. Inconformado, promoveu ação que mereceu guarida
nas instâncias de base, que consideraram que sua
falta não era de gravidade passível de extrusão. A
cooperativa recorreu ao TC alegando violação ao
direito fundamental de associação reconhecido
no art. 22 da Constituição.
Na STC 96/1994, o tribunal rechaçou o
amparo. A argumentação contida no decisório
levou em conta que a expulsão implicava “não
apenas a simples perda da condição de sócio
ou membro da cooperativa, senão também dos
direitos de conteúdo econômico inerentes a tal
condição”. Destacou-se, ainda, que esse “significativo prejuízo econômico” justificava que
os tribunais possuíssem “uma plena cognição”
desses atos. A liberdade estatutária que permite a
tais entidades se auto-regularem não resulta que
as sanções por elas aplicadas fiquem ao abrigo de
ter suas causas judicialmente apreciadas.
Segundo Ignacio Gutiérrez Gutiérrez, a
não-instrumentalização do ser humano é tema
que tem permitido ao Tribunal Constitucional
prolatar notáveis decisórios, mormente no que
respeita à dignidade da pessoa humana. Dentre
as importantes conclusões a que chegou a corte,
destaca:
a) a pessoa não pode ser patrimonializada; é
sujeito, não objeto de contratos patrimoniais
(STC 212/1996);
b) o trabalhador não pode ver subordinada sua
liberdade pela sua consideração de “mero fator de produção” ou “mera força de trabalho”
(STC 192/2003);
c) a pessoa não pode ser, enquanto tal, mero
instrumento de diversão e entretenimento
(STC 231/1998);
d) a pessoa é convertida em mero objeto nos
casos de agressão sexual (STC 53/1985 e
STC 224/1999);
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A EFICáCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS FuNDAMENTAIS NAS RELAÇõES PRIVADAS ESPANHOLAS
e) a dignidade impõe que a assunção de compromissos e obrigações tenha em conta a
vontade do sujeito, ao menos quando são de
transcendência peculiar, como a maternidade
(STC 53/1985); do mesmo modo, a dignidade
da pessoa humana impõe que seja reconhecida ao sujeito a possibilidade de participar de
processos judiciais nos quais se lhe atribuem
responsabilidades penais, sem que figure
como mero objeto desses procedimentos
(STC 91/2000).
À guisa de conclusão, o que exsurge claro
da análise dos precedentes ora transcritos é que
o Tribunal Constitucional, desde os anos 80, não
tem se furtado a proclamar a eficácia inter privatos dos direitos fundamentais regulamentados na
Constituição espanhola, seja em sede de litígios
trabalhistas, seja em conflitos civis.
No que tange ao modo como se dá essa
incidência, todavia, existe alguma vacilação na
jurisprudência da alta corte, que em algumas
ocasiões parece se inclinar a favor da eficácia
direta, e em outras demanda a mediação estatal.
O problema é agravado porque inexiste, até
o presente momento, qualquer manifestação
expressa da corte sinalizando a adoção da Mittelbare, da unmittelbare Drittwirkung ou de
qualquer outra teoria.
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132
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, fevereiro/2010
A CONDENAÇÃO DA COMuNIDADE quILOMBOLA DA OLARIA EM IRARá, BAHIA: 05 DE MAIO DE
1890
Artigo
A ConDEnAção DA ComuniDADE
quiLomBoLA DA oLAriA Em irArá, BAhiA:
05 DE mAio DE 1890
Jucélia Bispo dos Santos1
rESumo: Os ancestrais dos atuais moradores
que residem na comunidade da Olaria, em IraráBahia, tinham um estilo de vida bem diferente
dos dias atuais. Os presentes grupos, vivendo
situações variadas e complexas, apresentam elementos comuns no que diz respeito à relação com
a terra, à consangüinidade, ao passado histórico,
às alianças e aos confrontos com a sociedade do
entorno. Antes do século xx, esse povo tinha
terras e, conseqüentemente, trabalho, que lhe
garantia o mínimo para sobreviver. No entanto, a
raiz histórica dessa mudança remonta ao final do
século xIx, quando os antepassados dos atuais
moradores perderam suas terras para um homem
branco da região, de nome Antônio Moura, um
advogado que morava na cidade de Irará.
Palavras-chave: condenação, quilombos, identidade.
ABStrACt: The ancestors of today’s residents
residing in the community of pottery, IraráBahia, had a different lifestyle of today. These
groups, living varied and complex situations
have common elements regarding the relationship with the Earth, consangüinidade, history, alliances and clashes with the surrounding
society. Before the 20th century, this nation had
land and thus work, to guarantee the minimum
to survive. However, the historical root of this
change back to the late 19th century, when the
ancestors of today’s residents lost their land for
1
Mestre em Estudos Étnicos e Africanos pela universidade Federal da Bahia, professora de História do Ensino Médio da rede estadual da Bahia, e
professora das disciplinas de Teorias Sociológicas I e II da Faculdade Nobre de Feira de Santana.
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 133-144, fevereiro/2010
133
SANTOS, J. B.
a white man in the region, Antonio Moura name,
a lawyer who lived in the city of Irará.
Key words: condemnation, quilombos, identity.
introdução
O lócus desta investigação é a comunidade
da Olaria a qual, portanto, faz parte do município
de Irará-Bahia. Atualmente, Irará possui 25.531
habitantes e uma área total de 271,7 km², distando sua sede cerca de137 km de Salvador, capital
do Estado. Como vias de acesso destacam-se as
rodovias de ligação à capital do estado, a BA084, via Coração de Maria, à Feira de Santana,
via Santanópolis a BA-504.
Localizada a 4 km do distrito sede, a região
da Olaria foi fundada no final do século xIx por
famílias de ex-escravos que resistiram à escravidão. A origem da ocupação inicial data de mais
de cem anos, segundo a memória dos moradores
mais antigos, que aponta que as referidas terras,
nas quais os atuais moradores residem, foram
ocupadas num período anterior à Lei áurea,
em 1888. A recordação dos nativos mais velhos
abaliza que os primeiros moradores desse lugar
chagaram à região por volta do século xVIII.
Conforme a memória de Sr João, a vida na
Serra de Irará era mais tranqüila na época dos
seus ancestrais. Ele já nasceu nos tempos difíceis
século xx, e conta que tudo mudou depois que
as pessoas perderam suas terras. Na memória
dos moradores mais velhos dessa região tem-se
o registro de que as terras foram tomadas de
seus parentes, ainda no século xIx2. Assim, Sr.
João narra:
Foi assim... Um dono fazendeiro daqui
disse que meu avô roubou o boi dele. Depois disso ele levou a questão adiante. Aí,
o meu avô já ficou com medo... Depois que
ele deu queixa e ganhou a questão, disse
que meu avô tinha que pagar o boi, seno
que ele não tomou a rez dele. Aí depois
disso, o meu avô pediu para Antônio Moura guardar o documento da terra. Aí, esse
advogado Moura morreu. Depois disso, o
meu avô foi lá ver as terras com a viúva.
Mas, a viúva disse que as terras não era
134
mais dele, porque ele tinha vendido para
o marido dela. Com isso, o documento
sumiu e ninguém mais tem terras.
Uma das lembranças mencionadas pelos
moradores que está em torno da perda das terras coletivas, pode ser encontrada nos registros
oficiais. Esta história que fortemente presente na
memória de Sr. João, também está presente na
ação de condenação de 1890, qual condenou as
pessoas da região a perder a sua pose das terras3.
É possível verificar nesses termos um processo
de autuação, queixa/denúncia, inquirição das testemunhas, auto de perguntas aos réus, juntadas,
datas, conclusões, libelo acusatório, contestação
do libelo, sentença, apelação, recursos, entre outros. Assim, como todo processo se desencadeou
numa condenação coletiva.
1- o Contexto da Condenação
O conteúdo apresentado nesse documento
apresenta fragmentos que registram relações
conflituosas entre sujeitos de cor e homens
brancos. Parte desse processo representa o perfil
dos controles que eram estabelecidos para com
as comunidades de ex-escravos que estavam
saindo da escravidão. Essas condutas cotidianas
faziam parte dos comportamentos que deveriam
prevalecer na relação entre indivíduos distintos e
grupos socialmente delimitados mediante o perfil
de raça. De um lado, um fazendeiro branco; e
do outro, negros quilombolas. Assim, é possível
identificar o perfil das partes e quais foram os
procedimentos jurídicos adotados para julgar
réu e suplicante. Embora se tratem de fontes
oficiais, produzidas pelos agentes de repressão,
o que de certa forma condiciona o tipo de informação disponível, é possível entrever na fala dos
implicados aspectos e particularidades do seu
cotidiano e das relações sociais estabelecidas.
Nesse processo criminal os réus, negros,
são acusados de roubarem um boi de carro de um
homem branco. Notadamente, nas partes definidas como auto de perguntas aos réus e inquirição
das testemunhas, é possível perceber o perfil do
cotidiano do ex-escravo que residia nas comunidades livres e como esses eram perseguidos pelas
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 133-144, fevereiro/2010
A CONDENAÇÃO DA COMuNIDADE quILOMBOLA DA OLARIA EM IRARá, BAHIA: 05 DE MAIO DE 1890
elites brancas locais. Essa documentação traça
a linha genealógica das famílias que se criaram
a partir da formação dos quilombos na região.
Com esse documento, foi possível comprovar a
presença centenária das localidades dos descendentes de escravos fugidos, e acelerar o processo
de transferência de posse definitiva das áreas.
Foi na fatídica tarde do dia 05 de maio
de 1890 que tudo aconteceu. A princípio, tudo
parecia transcorrer sem maiores sobressaltos
nas malhadas da comunidade da Olaria. Possivelmente, esse foi um dia comum, como outros
dias árduos de trabalhos4, em que a lida dos
trabalhadores rurais começava cedo. Antes das
cinco horas da manhã, homens e mulheres já
estavam de pé para começarem a “lida” diária.
Todo trabalho era conduzido em torno da roça,
onde as famílias plantavam gêneros alimentícios
como feijão, milho e mandioca e criavam animais, como galinhas, jegues e porcos.
Depois de um intenso dia de trabalho, Francisco Chagas das Neves, juntamente com o seu
filho Hermenegildo Chagas das Neves, quando
os últimos raios do sol desapareciam na Serra
de Irará, deparavam-se com um boi que ansiava
para morrer, ao lado de suas propriedades, assim
como narrou a testemunha do processo, Manoel
Gomes da Silva:
Manoel Gomes da Silva, lavrador morador de um lugar denominado Olaria,
natural da freguesia de Nossa Senhora da
Purificação dos Campos estado casado da
idade de 28 anos testemunha jurada sob
palavra de honra prometeu dizer a verdade
do que soubesse e perguntado lhe fosse.
Aos costumes disse nada. Perguntado
sobre o primeiro item da petição inicial,
respondeu que na tarde de cinco do corrente mês passava , ele testemunha, pela
parta da Fazenda de Francisco das Chagas
Oliveira e viu junto a cerca das malhadas
de Hermanegildo, um boi ansiando para
morrer e vendo ele que aquele boi de carro
poderia ser de algum fazendeiro vizinho,
que pudesse ter notícia para vir aproveitálo, aconselhou a Francisco Chagas para
mandar dar parte para o Capitão Jacob
Cavalcante de Almeida, ou outro vizinho
a quem o boi pudesse pertencer.Chagas
não tinha por quem mandar dar parte
do ocorrido.Entretanto, no dia seguinte,
apareceu em casa dele, Jacob Cavalcante
de Almeida convidando para testemunhar
para irem a casa de Chagas junto com
outras pessoas da vizinhança verificarem
a causa que deu motivo a morte do boi
nas malhadas de Francisco das Chagas ...
Naquele tempo, carne bovina fresca era
privilégio de poucos que moravam no centro
da cidade. As famílias rurais comiam animais
de carne de caça, galinhas de quintal, carne de
porcos. Quando comiam carnes bovinas, geralmente essas eram secas, em forma de carne de
sertão. Não tendo como avisar para a polícia
local, pois já era tarde e não havia possibilidade
de alguém dessa família encarar a noite para
prestar queixa na delegacia local, os familiares
Chagas das Neves resolveram aproveitar a carne
do boi. Afinal, um boi inteiro poderia ser visto
com um presente dos deuses, como fruto da
providência. A carne bovina era muito cara nessa
época. Assim, a carne que fosse aproveitada do
boi que estava quase morto ajudaria essa família
a se sustentar de carne por vários dias. Pois, não
só a carne seria aproveitada, como também todas
as vísceras, que sempre foram o alimento básico
das comunidades pobres da Irará. Nessa região,
a alimentação consumida era sinônimo de status
social; existiam consideráveis desníveis sociais,
no que diz respeito à condição de sobrevivência
dos moradores rurais. Na área rural havia, por
um lado, pequeno número de médios e grandes
proprietários com elevado padrão de vida, eram
os pequenos fazendeiros que possuíam criação
de gado e terras. Por outro lado, existia um
considerável número de pequenos proprietários
que dependiam exclusivamente do precário
trabalho da roça. As famílias dos pequenos
proprietários rurais caracterizaram como várias
as necessidades, sobretudo no que diz respeito
ao sustento básico. Nos períodos de escassez de
chuvas, as chamadas necessidades aumentavam,
comprometendo a sobrevivência da família rural
iraraense, especialmente no que se refere ao
suprimento alimentar.
A fome era uma constante nas famílias dos
pequenos agricultores da zona rural de Irará,
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135
SANTOS, J. B.
independentemente da época do ano. Tudo o que
as pessoas produziam girara em torno do sustento
básico da família. uma jornada de trabalho na
pequena roça representava o sustento de todos.
Portanto, mulheres, homens, jovens e crianças
se mobilizavam para garantir a sobrevivência
familiar. Não havia distribuição do lucro do
trabalho, pois esse era movido com o único
objetivo de saciar as necessidades básicas de
todos. O controlador dos recursos da produção
era o pai de família, que exercia a autoridade do
pater familiae sobre os filhos. Assim, prevalecia
o poder do chefe do domicílio, que dotado de um
poder tradicional, controlava a todos conforme a
necessidade de continuação do núcleo familiar5.
As famílias rurais descendentes de exescravos negros que tinham recebido recentemente a liberdade eram ameaçadas de perder
suas terras. Com isso, esses grupos tentavam se
proteger das diversas possibilidades de ataques
que vinham das ações dos fazendeiros. Assim
sendo, as pessoas passavam por diversas dificuldades de sobrevivência e lutavam pelo mínimo
de que necessitavam para sobreviver, que era
a terra. Com a posse das terras, essas pessoas
garantiam o sustento mínimo, como o direito
de sanar a fome.
As dificuldades eram vencidas mediante a
articulação de uma rede de solidariedade entre os
iguais. Dessa forma, a família consolidava suas
formas de organização, enquanto uma organização entre os humanos do mesmo sangue, ou
parentes por afinidades, que se estruturavam em
prol de uma relação que visionava ao arremate
das necessidades materiais de sobrevivência. Em
torno do grupo familiar, as pessoas vivenciavam
situações de alegrias e tristezas. Os momentos
de alegria, como o nascimento de uma criança,
eram movidos por festas. Os momentos de tristezas eram compartilhados também com grande
pesar. Quando alguém morria, todos deixavam
os seus afazeres para velar o morto.
Entretanto, seria perfeito, se o dono do boi
não procurasse seu animal e movesse uma ação
judicial contra a família Chagas. O processocrime foi instaurado a partir da denúncia de
Jocob Cavalcante de Almeida, um senhor de
terras da região de Irará, que possuía carro de
136
boi. No dia 16 de maio de 1890, as malhadas
da comunidade da Olaria serviram de palco ao
trágico acontecimento que, no plano da história,
representou um marco no processo de segregação
social dos seus atuais moradores. A família de
Francisco Chagas das Neves foi movida por uma
situação que conduziu seus membros e parte dos
homens da comunidade para resolver o litígio na
comarca da Vila da Purificação.
Naquele dia, 16 de maio de 1890, o juiz
Joaquim Menezes de S”Antana, com o apoio do
escrivão Rogarciano Ermelino de Carvalho, conduziu o julgamento de uma família que morava
na comunidade da Olaria. A família de Francisco
Chagas foi acusada de ter roubado um boi do
capitão Jocab Cavalcante de Almeida. Segundo
consta da ação de condenação, a família acusada
desempenhou o seguinte ato6:
Diz o cidadão Jacob Calvacante de Almeida, residente nesta vila, que Francisco
das Chagas Oliveira, mancomunado com
os seus filhos Hermenegildo Chagas e
Domingas, moradores na terra, tendo na
tarde de seis de corrente mês, espancaram
um boi de carro do domínio do suplicante,
tendo das malhadas de Hermenegildo,
causando a morte imediata, consta que,
antes de avisarem ao suplicante afim de
visitar seu capital de forma que entendesse
evitar o seu prejuízo, foi a carne, como
tudo consumida pela casa de Francisco
das Chagas, utilizando-se de tudo sem
dar satisfação de espécie alguma [...]p.5
Francisco das Chagas foi julgado acusado
e foi para o tribunal acompanhado de seu filho
Hermenagildo. Como testemunhas, o Juiz de Paz
da vila da Purificação ouviu os senhores:
Tabela 1: Perfil das testemunhas de acordo com as categorias
de trabalho e raça.
Miguel da Rocha
Lavrador
Negro descendente
Morador da
de ex-escravos
Olaria
Fazendeiro
Pardo
Morador da Pedra
üüüü
Negro descendente
Morador da Olaria
Vieira
Antonio Justino
de Souza
Manuel Gomes
da Silva
Branca
de ex-escravos
Primeira testemunha, Miguel da Rocha
Vieira, 36 anos, lavrador, morador do lugar denominado Olaria, natural da Freguesia de Nossa
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A CONDENAÇÃO DA COMuNIDADE quILOMBOLA DA OLARIA EM IRARá, BAHIA: 05 DE MAIO DE 1890
Senhora da Purificação dos Campos, solteiro. O
Sr. Miguel era um negro ex-escravo, que morou
na região de Inhambupe, quando ainda era cativo.
Depois que alcançou a liberdade formou família
e foi morar na região da comunidade Olaria.
Segunda testemunha, Antônio Justino de
Souza, 50 anos, proprietário de pequena fazenda,
natural desta Freguesia, no lugar denominado
Pedra Branca, casado. De acordo com a documentação da ação de condenação, em análise,
apresenta que esse senhor possuía gado. No
século xIx, em Irará, quem possuía terras e gado
possuía prestígio e era visto como um sujeito de
posses. Essa testemunha, em seu depoimento,
sempre se colocou a disposição de defender o
suplicante, o fazendeiro branco.
Terceira testemunha: Manuel Gomes da
Silva, 28 anos, lavrador, morador no lugar denominado Olaria, casado, natural da Freguesia
de Nossa Senhora da Purificação dos Campos.
Esse senhor foi um dos fundadores da Olaria.
Ele é filho de Marcelino, conhecido como Março, que residia no Quilombo do Espanto. Das
testemunhas envolvidas no processo, esta foi a
única que assinou o nome. Subentende-se que
ele era alfabetizado.
Os réus eram Francisco Chagas das Neves e
seu filho Hermenegildo Chagas das Neves. Todos
eles, réus e duas testemunhas, eram ex-escravos
ou descendentes, acusados de praticarem delitos
que, por motivos aparentemente fúteis, tiveram
de enfrentar a justiça e seus procedimentos formais. No final do século 19, todo cidadão “de
cor” corria o risco de ser confundido com um
sujeito perigoso, caso não tivesse sua posição
social largamente reconhecida pela sociedade
vigente. Nesse caso, possuidor de uma propriedade de terras. Por conta disso, sujeitos como
os Chagas eram perseguidos. Por outro lado, os
fazendeiros disputavam as terras dos pequenos
proprietários rurais. Os homens brancos queriam
aumentar seus domínios e, por isso, muitos deles
invadiam as propriedades dos homens de cor.
Os descendentes dos ex-escravos, como
os sujeitos que moravam na comunidade da
Olaria, passavam por muitas dificuldades no
final do século xIx, dentre as quais pode-se citar
a questão de perseguição nos meios urbanos e
rurais. Essas pessoas não tiveram acesso ao trabalho e às condições mínimas de dignidade. Na
zona rural, o trabalho adivinha da terra. Todos
os descendentes de escravos sonhavam com a
posse da terra. Depois de 1850, a posse foi à
única via de acesso à apropriação legítima das
terras públicas. Era uma via que estava aberta
tanto para os pequenos quanto para os grandes
proprietários. Com essa lei, as aquisições de
terras públicas só poderiam ocorrer através da
compra, ou seja, só poderiam ser adquiridas por
aqueles que tivessem condições de pagar por
elas. Um dos objetivos dessa lei foi exatamente
impedir que negros libertos e mestiços tivessem
acesso à terra. Com isso, os grupos de pequenos
produtores, posseiros e sitiantes negros não tiveram a garantia de permanência sobre suas terras.
Alguns negros que conquistaram a posse
das terras por meio da ocupação eram constantemente ameaçados de perder sua posse para
senhores brancos. No final do século xIx,
registravam-se diversos conflitos movidos por
interesses de apropriação e de desapropriação de
terras nas regiões rurais de Irará. Os ex-escravos
e seus descendentes eram reprimidos por ações
de discursos advindos de uma mentalidade que
configurava uma rigorosa discriminação e preconceito. Os negros eram assim perseguidos e
discriminados por pertencerem às classes sociais
mais desfavorecidas que são, por isso mesmo,
entendida como as classes perigosas7. A escritora
inglesa M. Carpenter (1840), utiliza a expressão
“classes perigosas” como “um grupo social
formado à margem da sociedade civil.”, e ainda
“... eram constituídas pelas pessoas que já houvessem passado pela prisão, ou as que, mesmo
não tendo sido presas, haviam optado por obter
seu sustento e o de sua família através da prática
de furtos e não do trabalho.” As comunidades
de quilombos concentravam famílias pobres,
mestiças, descendentes de escravos, enfim:
uma população que, em meados do século xIx,
começou a se marginalizar pelo cercamento das
terras, que se desencadeou a partir da criação da
Lei de Terras. Dava-se início a um processo de
extinção e eliminação de pequenas propriedades
rurais. Na demarcação dos novos limites rurais,
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SANTOS, J. B.
começava a se organizar uma elite fundiária que
se utilizava do código criminal para vigorar a sua
perspectiva de comando.
Na expectativa de se livrarem das perseguições, os ex-escravos criavam comunidades
por meio de vínculos que foram articulados por
marginalizados, mediante às questões relacionadas com: a identidade, as suas tradições e a cultura. Dentro das estratégias de sobrevivência no
campo, passaram a existir múltiplas articulações
e significados da comunidade negra. As solidariedades eram tecidas entre os próprios negros,
visando à garantia da proteção da vizinhança
contra as violências dos senhores.
Os crimes têm sido crescentemente utilizados por historiadores como fonte para os mais
diversos temas de pesquisa. A documentação rica
em vários aspectos, presta-se como uma janela
através da qual é possível enxergar indícios e
sinais das diferentes imagens da vida social e
das relações que predominavam na sociedade
em determinada época8. Portanto, essa ação de
condenação, em análise, traz o perfil do modo
de vida do negro camponês iraraense que saíam
da escravidão.
Depois da abolição, negros, pardos e brancos se envolviam em conflitos visando à posse
de terras. Habitantes de um mesmo espaço social
parecem ter vivido em uma espécie de área de
“fricção interétnica”, na qual os conflitos eram
constantes e suas motivações freqüentemente
se relacionavam à necessidade de manutenção
de uma hierarquia social definida pela cor,
atributo de uma posição social. Observa-se que
as partes envolvidas no processo emergiam nas
mais variadas situações sociais, envolvendo
freqüentes disputas em torno da hierarquia social
que deveria regular as relações entre brancos e
a “gente de cor”.
Por meio de uma hierarquização que
fora construída em torno da categoria de raça e
posse de terras, no final do século xIx pode-se
perceber qual foi o lugar social designado para
o negro que tem sua história estrelaçada com o
cativeiro. À medida que os depoimentos vão se
somando, começa a ser desvendada uma história
que, reconstruindo os antecedentes da briga, vai
138
apontando os responsáveis pelo trágico acontecimento e o modo como as testemunhas os julgam,
com sutis diferenças.
No desenrolar da condenação os réus ouviram calados as testemunhas falarem dos fatos
ocorridos em torno do litígio. E, assim, conta-se
no seguinte depoimento:
Miguel da Rocha Vieira, lavrador, morador no lugar denominado Olaria, natural de Freguesia de Nossa Senhora da
Purificação dos Campos, solteiro, com
trinta e seis anos de idade, testemunhas
jurada sob uma palavra de honra, prometendo dizer a verdade do que sabe e lhe
perguntado lhe fosse de costume disse
nada a perguntar do que sabia a respeito
do primeiro motivo da petição do autor?
Respondeu que no dia seis de corrente
mês achou-se ele testemunha, fazendo
uma casa... Quando passou o capitão Jacob Cavalcante de Almeida e convidara
e ele testemunha para verificar se ele viu
um boi que encontrava-se morto junto as
cercas de Francisco Chagas das Neves.
Bem como o lugar é de subida havia mais
de uma braça de cerca de varas derrubada
pelo impulso da força do boi que tangido
para fora pelo filho de Chagas de nome
Hermenagildo, no mesmo lugar, notou
ele testemunho que o boi esquartejado,
tratando-se do fato, conforme presenciou
os vestígios encontrados, sabendo mais
que foi isto feito pelas filhas de Francisco
das Chagas, em cuja casa ele testemunha
viu a carne na sala de dentro, bem como
o couro do boi em questão...
Nesse depoimento, notam-se como as evidências da culpa ou da inocência dos acusados
eram atribuídas por um vizinho que fazia parte do
mesmo status social que a família julgada. uma
visão sobre o certo e o errado é perceptível nesse discurso e, dentro dela, uma percepção mais
específica da justiça une os homens de cor. Os
depoimentos de vizinhos, parentes e agregados,
os iguais das partes envolvidas, constroem uma
espécie de perfil pregresso, um quadro de referências sobre como os sujeitos viviam em comunidade. Quando a testemunha fora questionada
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sobre o caso, as mesmas tentaram afirmar que
os Chagas não foram responsáveis pela morte
do boi, em questão. Isso implica uma questão
que presume a relação afetiva entre acusados
e testemunhas. Para a testemunha, o animal
estava passando, na região da Serra de Irará,
moído e cansado, quando os filhos de Francisco
decidiram sacrificar o boi, a fim de que esse não
morresse. Como os Chagas não sabiam a quem
pertencia o bovino, decidiram, então, usufruir
da carne do animal.
Porém, no depoimento do fazendeiro, a
família Chagas era vista como um grupo que
pretendeu tomar posse do boi do senhor Jacob
Cavalcante:
Antonio Justino de Souza, lavrador, de um
lugar denominado Pedra Branca , casado,
com cinqüenta anos de idade, testemunha
jurada sob sua palavra de honra, prometendo dizer só a verdade do que soubesse e
lhe perguntando fosse; perguntado o sabia
a respeito da petição do autor Jacob Cavalcante de Almeida respondeu que na tarde
do dia cinco do corrente mês achando-se
ele testemunha em sua casa próxima a de
Francisco Chagas fora avisado por uma
filha deste, disse-lhe que achava-se na malhada de Hermenagildo, filho de Francisco
das Chagas, cuja malhadas acha-se antiga,
aos do réu Francisco chagas, achavase caída uma rez de cor branca com as
fontes feridas e que a filha de Chagas lhe
perguntara se este rez não lhe pertencia,
no que ele testemunha respondera que a
referida rez era da propriedade do Capitão
Jacob Cavalcante de Almeida, na manhã
do dia seis dirigira ele testemunha a casa
de Chagas , vira quatro quartos da carne
sobre a mesa, assim como, o couro enrolado encostado dentro de uma parede da
casa; e verificou a cor branca o dito couro
; assim como soube por diversas pessoas
da vizinhança
que as vísceras fora
tratada e aproveitado tudo por uma filha
de Chagas...
De todo modo, esses depoimentos acabam
por definir um consenso que condena os “causadores da desordem”, sobretudo a Francisco
Chagas das Neves, o principal acusado. Com
esse depoimento, pode-se perceber como os
processos são montados, no que diz respeito ao
papel atribuído às testemunhas chamadas pelas
autoridades judiciais, que é o que revelarem uma
espécie de perfil sociocomportamental do réu.
Assim, fica claro o sofrimento com intensidade
calculada e ritual para a marcação das vítimas
do poder penal. Essas representações do poder
vigiavam, disciplinavam e ordenam a vida do
grupo dos indivíduos que lhes eram subordinados. O indivíduo é fixado dentro do sistema de
produção, construindo sua visão de mundo dentro das normas e saberes constituídos. Opera-se
uma inclusão por exclusão9.
No depoimento desse fazendeiro, pode-se
notar como esse grupo visava à constituição de
sociedade disciplinar configurada por uma modalidade de poder que perduraria até os dias atuais
e que tem como viés em relação ao direito penal
a preocupação com o intuito de vigiar e disciplinar. Desde os períodos das primeiras entradas
da colonização, a região de Irará foi dominada
pelos homens brancos. Durante os períodos da
colônia e do império, o poder local estava sob
o comando dos fazendeiros (curraleiros) e dos
representantes da Igreja. Esses formavam a elite
local. Os grupos dominantes valeram-se uma
estratégia de comando dos grupos racializados,
através de ideologias impostas cientificamente
pelas instituições do conhecimento e através de
normas jurídicas. Neste último caso, o direito é
estabelecido nas relações sociais, enquanto uma
inclusão normativa que estabelece e sistematiza
as regras necessárias para assegurar o equilíbrio
das funções do organismo social e a obediência
coercitivamente imposta pelo poder público10. As
instituições passam a funcionar em arquiteturas
planejadas para favorecer a vigilância, com
planejamento.
2-A república em irará
Tanto no Império (1822-1889), quanto na
República, as várias constituições a que fora submetido o país modificaram a situação, quer das
Províncias/Estados, quer dos Municípios. Depois
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SANTOS, J. B.
que a república foi instalada, o cenário do poder
regional foi alterado nas diversas regiões do
Brasil. O perfil do poder republicano era firmado
nos ideais positivistas. O pensamento de Comte
baseava-se numa idéia evolutiva de sociedade,
em que a humanidade deveria passar, primeiramente, por dois estágios: o teológico e o militar.
O terceiro seria o ápice da evolução social: o
estágio positivo. Dentro desta perspectiva, acreditava-se que o Estado seria o grande responsável
por patrocinar o bem social. A influência desse
pensamento no período monárquico promoveu
uma compreensão de que o regime que mais se
aproximaria do ideal positivista não poderia ser
a Monarquia, mas sim a República. Entretanto,
a apropriação patrimonialista do Estado pelos
grupos oligárquicos frustrou muitos positivistas.
A república era governada pelos líderes
militares que criaram o conselho de intendência
para os diversos municípios. A 8 de agosto de
1895, a Vila da Purificação foi elevada à categoria de cidade com o nome de Irará, pela lei Estadual de número 100. A sede, formada freguesia
tinha a denominação de Nossa Senhora da Purificação dos Campos. Com isso, os representantes
do poder local exigiam do Governo da Província
uma segurança maior através do policiamento.
Ao atender a essas necessidades, o poder local
passou a ser controlado pela Câmara Municipal
que era administrada pelos Intendentes Gerais
de Polícia. Assim, Pedro Nogueira Portela foi
codecorado como o primeiro intendente de Irará.
Estes eram os ricos proprietários que definiam
os rumos políticos das vilas e cidades. O povo
não podia participar da vida pública nesta fase.
O conselho de intendência de Irará foi
formado pelos senhores de terras do lugar, os
grandes fazendeiros. Esse era composto por três
titulares: de Higiene, de Fazenda e de Obras,
através de funções executivas, exercidas simultaneamente. Os componentes do Conselho
tinham privilégios importantes, pois não podiam
ser presos, processados ou suspensos, senão por
ordem régia, dentre outros. quanto à autoridade
dos juízes ordinários, só deixavam de ser acatados quando vinham juízes de fora nomeados pelo
El-rei11. Aos vereadores competia a organização
das posturas e vereações, bem como a nomeação
140
de um almotacel, que era um encarregado das
posturas, e que tinha, inclusive, a incumbência de
zelar pelo asseio e policiamento das povoações e
da fiscalização e aferição dos pesos e medidas. A
partir da implantação do conselho de intendência,
surgia em Irará a idéia de poder da norma, do
perfil positivo moderno.
Os intendentes tinham como missão construir hospitais a fim de organizar a ação médica
no município. Os republicanos agiram em nome
da higiene, da moral e dos bons costumes, do progresso e da civilização. Eles exerciam o controle
da observação do doente, e coordenação dos cuidados que impediam o contágio. Os intendentes
de Irará criaram as Escolas Reunidas. Nesse período, os processos crimes em Irará eram movidos
visando a controlar e civilizar a sociedade. No
Arquivo Público Municipal de Irará encontramse processos do final do século xIx que tratam de
punições voltadas para a falta de zelo, grosseria,
desobediência, tagarelice, insolência, gestos não
conformes, sujeira, imodéstia e indecência. Essas
punições eram executadas através de pequenas
humilhações e privações, e prisão.
O sistema de poder dos intendentes trabalhava de acordo com uma lógica que estimulava
a gratificação-sanção para o sucesso do treinamento e da correção da população. Portanto, o
sistema era posto numa hierarquização que determinava as relações dos “bons” e dos “maus”,
visando estabelecer o poder da Norma. Quando
Irará era vila, não havia o Conselho de Intendência e sim o Conselho Municipal, também
formado pelos Vereadores, e seu presidente era
quem administrava o Município. Esse governo
acarretou modificações na natureza e nas espécies documentais produzidas pela Câmara.
Toda a documentação referente a este período
está presente no Arquivo Público Municipal de
Irará. Por meio dessa documentação, é possível
encontrar descrições sobre o trabalho dos agentes
da política. Durante essa fase, existiam disputas
acirradas pelo poder. Em épocas de eleições, os
políticos locais utilizavam diversas estratégias
para mobilizar o eleitorado. Conforme, o seguinte relato12:
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 133-144, fevereiro/2010
Eles brigavam muito, tinha ocasiões aqui,
que a feira era sempre mudada por motivos
A CONDENAÇÃO DA COMuNIDADE quILOMBOLA DA OLARIA EM IRARá, BAHIA: 05 DE MAIO DE 1890
das rixas dos coronéis. Pedro Nogueira
botava a feira aqui em cima na Praça da
Bandeira. Pedro de Lima vinha da roça
com o pessoal dele e perguntava: Quem
mudou a feira? – Foi Pedro Nogueira!
Então, bota lá pra baixo! Todo mundo lá
pra baixo! E ai, mudava a feira... Ele tinha
jagunços essas coisas! Pedro de Lima se
dizia um homem curado, que tinha negócio de corpo fechado. Certa feita ele estava
na Prefeitura reunido e o Jacó- aquele do
Campo Limpo, lá em Coração de Maria,
veio aqui fazer política. Pedro de Lima
soube de tudo isto e desafiou Jacó. Teve
um dia que Jacó foi lá na Prefeitura, meteu a porta dentro e atirou balas em todo
mundo, mas nenhuma pegou em Pedro
de Lima, porque ele tinha corpo fechado,
e por isso todo mundo aqui tinha medo
dele...
Assim, os poderosos brigavam pelo poder
estabelecendo alianças e rupturas13. Apesar das
desavenças entre si, os conselheiros da intendência teriam de promover o desenvolvimento local.
No século xIx, a função militar dos intendentes
desmembrava-se do Serviço Administrativo em
Intendência e Intervenção (Fiscalização). As novas competências são gradativamente atribuídas
ao conselho geral, entre as quais a possibilidade
de votar um orçamento e cobrar impostos. A fim
de explicitar quais eram as preocupações do poder público, no governo dos intendentes em Irará,
são apresentados aqui alguns temas que eram
abordados com maior freqüência nas discussões
da Intendência Municipal14:projeto de Regimento Interno da Câmara Municipal;Saneamento da
cidade; Impostos sobre transporte e propriedade;
Posturas relativas às doenças infecciosas.
Dentre as perspectivas do desenvolvimento
surgiam medidas que estavam direcionadas aos
processos de civilização da cidade, tais como:
organização das ruas; medidas sanitárias de controle da higiene pública; construção de prédios
públicos, avenidas ruas e praças; e, especialmente, o combate ao crime e a formação de bandos15.
uma das missões dos intendentes era combater a
circulação de negros na região, pois, as pequenas
rebeliões existentes e outras que não chegaram
a ser concretizadas16, as fugas, os roubos e as
atitudes violentas contra proprietários de terras
e seus familiares, e a formação de quilombos
contribuíram decisivamente para a legitimidade
desses discursos. A vida social dos marginalizados era evidenciada por várias circunstâncias de
precariedades, sobretudo as mínimas possibilidades de construção da cidadania.
A condenação das classes perigosas foi
uma postura que as elites do poder público estabeleceram, com o propósito de combater o crime
e promover o desenvolvimento da nação. As
ideologias republicanas eram positivistas e evolucionistas: viam o negro como vadio, incapaz,
proveniente da própria impossibilidade da sociedade da época de aceitá-lo. Assim, o ex-escravo
se tornou um indivíduo visto como desordeiro e
ameaçador17, uma vez que, a civilização só poderia existir caso promovesse a educação moral
do povo. Somados a esses temores, os ideais de
calma e de desenvolvimento confluíram para a
concepção de uma representação de desigualdades e conflitos que eram condicionados pelas
às hierarquias estabelecidas nos embasamentos
étnicos.
3- o negro em irará depois da Abolição
O negro não ocupou um espaço importante
na vida social da sociedade iraraense. O único
momento em que a presença negra é visível e
enaltecida é retratado nas descrições dos costumes e das manifestações culturais, produzidas
principalmente pelos folcloristas, registrando
aspectos da música, da dança ou da religiosidade.
Assim, conforme pontua o fazendeiro Sóstenes Flores, os negros não tinham “capacidade”
de assumir o poder18:
Os pretos não... Eles não participavam do
poder em Irará na época dos intendentes.
Eles não participavam de suas festas,
samba... Porque eu penso assim: que os
pretos gostam mais é de festa e de samba.
Não é? Porque se der a obrigação, peso
pesado, eles não vão lá onde eu fui não...
Não dá não! Agora eu acho que são trabalhadores, mas gostam mesmo é de festa.
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 133-144, fevereiro/2010
141
SANTOS, J. B.
Tanto assim, que eles brilham assim como
Martinho da Vila e o outro Timóteo...
A idéia de não ter capacidade de assumir o
poder já insinua que o espaço do poder era demarcado pela categoria de raça. Os ex-escravos
foram marginalizados. Eles, geralmente moravam em comunidades rurais com poucas condições de sobrevivência, possuíam vulnerabilidade
humana, insegurança, desproteção social e, de
maneira mais ampla, a fragilidade da vida, que
são dimensões objetivas das iniqüidades porque
atravessavam essa comunidade.
As falas fazendeiro do branco expressam a
opressão dispensada pelas elites dominantes aos
negros que recém-saídos do cativeiro e os demais
sujeitos racializados, como os indígenas. Entram
nesse rol as iniciativas de resistência dos índios
e dos negros no Brasil colonial. Ou seja, toda
essa coletividade que vivia uma exclusão social
e que foi condenada a não possuir as condições
mínimas de sobrevivência no Estado brasileiro.
A aplicação da ação de condenação da
família Chagas, segundo os discursos do poder
do século xIx, poderia ser vista como um procedimento burocrático que tinha como objetivo
maior a justiça positiva neutra. O direito penal
da época considerava que se deveria tomar certa
distância do julgamento dos crimes, para se fazer
crer que seu objetivo seria o de corrigir, reeducar,
“curar”, passando a execução da pena para outras
instâncias19. A ação de condenação da família
Chagas pressupõe que, nesta época, existia um
perfil de identidade forjada numa experiência
negativa do trabalho cativo que levara tais trabalhadores a se recolherem, depois da abolição,
numa estratégia de autodefesa. Esta atitude traduzia mais do que a definição de um território.
Ela tendia a restituir para aqueles trabalhadores
negros, nalguma medida, a autonomia sobre o
trabalho e o tempo de trabalho, tornando difícil
o exercício de algum tipo de controle da classe
dominante sobre aquela força de trabalho ainda
não convertida ao trabalho “livre”.
Apesar dos depoimentos de defesa cedidos
pelas testemunhas, os Chagas foram condenados.
O escrivão finalizou com a seguinte sentença:
“Vistos e examinados esses autos, pede que o
142
autor cidadão Jacob Cavalcante de Almeida, que
o réu Francisco Chagas das Neves, lhe pague a
quantia de oitenta mil réis, importância de um
boi manso.” Assim foi feito!
Essa condenação resultou das ações que
eram constantemente promovidas na região de
Irará, no século xIx. Essa ação serve como
exemplo dos conflitos que foram estabelecidos
entre os estamentos da elite local e os sujeitos
racializados. As elites brancas locais perseguiam
os sujeitos racializados que não estavam ligados
a eles, na condição de agregados, ou dependentes. De acordo com Foucault, as formas que os
aparelhos do Estado julgam os delitos penais
foram, e são formas de exercer o poder20. Ou seja,
o criminoso é tratado conforme os ideais dos dominantes que os julgam. Ou seja, de acordo com
as normas jurídicas de cada época o criminoso
será sempre o subjugado.
Porém, essa ação de condenação não
finalizou com a sentença do juiz. A família de
Francisco era uma família que possuía uma pequena propriedade de terras, a qual sustentava
a todos com o trabalho familiar. Todavia, essas
pessoas plantavam e colhiam a fim de garantirem
a sobrevivência. Depois de condenados, eles não
tiveram condição de pagar a quantia de dinheiro
estipulada pela pena. Assim, suas terras foram
tomadas por Jacob Cavalcante de Almeida. Com
o passar dos anos, a organização das roças, das
fazendas e comunidades negras rurais sofreu a
divisão entre muitos herdeiros. Assim, esta estrutura produziu a alteração do quadro fundiário
da Serra de Irará, ao longo do século xIx. A
subdivisão das fazendas entre muitos herdeiros
pode ter contribuído para a alteração do quadro
dessa região. Com isso, os atuais moradores da
Olaria, comunidade que foi palco desse conflito,
não tem terras para trabalhar.
Considerações finais
Ao levar em conta a origem da comunidade da Olaria, é possível considerar que essas
surgiram mediante às relações que foram estabelecidas no local através da união de famílias de
ex-escravos que saíram do cativeiro no final do
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A CONDENAÇÃO DA COMuNIDADE quILOMBOLA DA OLARIA EM IRARá, BAHIA: 05 DE MAIO DE 1890
século xIx. As primeiras famílias dessa região
tinham uso comum das terras e praticavam uma
agricultura baseada na mão de obra familiar. O
uso comum da terra era engendrado através da
noção de ancestralidade, o que formou a base
física desses grupos. Segundo considera o senhor
João dos Santos21:
Na época do povo mais veio, a gente não
tinha posse de terra. Quem comandava
tudo era o pai de família. quando ele
morria o fio mais veio que passava cuida
dos negócio da família. Ninguém tinha má
querência com isso. O povo não brigava,
porque respeitavam os pai de família...
Quando aparecia qualqué desavença, logo
logo, se resolvia... As questão não ia adiante. Todo mundo tinha o mesmo direito da
terra. Podia tirar lenha no mato, pescar no
ri, pegar barro para fazer loiça...
quando as primeiras famílias que fundaram
a comunidade ocuparam essa região, viviam da
agricultura familiar, do extrativismo animal, vegetal e mineral e, do lucro advindo da produção
de objetos de cerâmica. Existia, nessa época, o
extrativismo e a criação solta de animais, como
cabras e ovelhas. Todas essas formas de uso da
terra combinavam democraticamente áreas de
exploração familiar e de uso comum. Assim, as
pessoas conseguiam a segurança alimentar a preservação da biodiversidade e a sustentabilidade
dos agroecossistemas.
Nos dias atuais, pode-se fazer uma comparação entre o passado e o presente. Nessa relação,
que compara o modo de vida atual, com o que
os primeiro ancestrais da comunidade organizaram, entende-se que os atuais moradores da
comunidade da Olaria vivem de especificidades
que divergem do passado. De acordo com as
pessoas que atualmente residem no lugar, a vida
no passado é vista como mais tranqüila. Hoje,
os moradores sofrem por conta de vários fatores de ordem socioeconômica; mas o que mais
prejudica a sobrevivência na região é a falta de
terras para o trabalho agrícola. O cultivo de gêneros alimentícios e o artesanato em barro e em
palha sempre mantiveram esse grupo. Grande
parte da produção estava voltada para o próprio
consumo, mas sempre houve intercâmbios com
os mercados próximos.
Segundo alguns anciãos da comunidade,
a razão da pobreza dos indivíduos que residem
nesse lugar está racionada com à falta de terras
para trabalhar. O senhor João dos Santos, afirma
que sua família não têm terras porque os seus
pais perderam toda a propriedade que possuíam
num processo. Ao recordar esse passado amargo,
ele destaca que:
O finado meu pai contava que meu avô
não teve como pagar esse depo... aí ele foi
obrigado a passar a posse de suas terras.
Toda essa região aqui pertencia ao meu
avô. Começava de lá do Açougue Véio até
na cerca de pedras. Depois disso, minha
sinhá, a gente ficou sem terras. Hoje eu
moro aqui no berço dessa estrada, não
tenho terras para trabaiá... Vivo do salário
do governo...
Depois desse episódio, a vida dos sujeitos
que moram na Olaria alterou-se bruscamente.
Com o processo, a família foi obrigada a pagar
a quantia equivalente a 80 mil réis, o valor
equivalente ao preço do boi, na época. O senhor
João dos Santos, afirma que Francisco Chagas
foi condenado e a sua família não tive condição
de quitar a dívida. Dessa forma, toda a comunidade também foi condenada, uma vez que as
terras eram coletivas. Eles tinham uma única
documentação que comprovava a posse22.
Quase a totalidade das terras ocupadas até
o século xIx, era agrupada em torno de uma
terra de uso comum. No passado, a dinâmica da
vida coletiva era diferente da dos dias atuais. Os
sujeitos viviam dos recursos naturais de forma
harmônica, consumiam, produziam e comercializavam o excedente adquirido na própria terra.
Como já foram consideradas, esta comunidade
era constituída por terras de uso comum, e por
uma diversidade de apropriação dos recursos
naturais (solos, hídricos, e florestais) em que
diferentes categorias de trabalhadores e trabalhadoras rurais trabalham e mantêm a vida,
reproduzindo práticas e saberes dos ancestrais
e produzindo novos conhecimentos e formas
de existência. Os nativos alegam que antes da
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 133-144, fevereiro/2010
143
SANTOS, J. B.
instalação da propriedade privada na região, os
recursos naturais eram explorados comunitariamente e, assim havia um limite, de extração que
a área suportava. Porém, os atuais “donos das
terras” exploram em demasia os recursos naturais
da região, sobretudo: lenha, madeira, pedras que
são transformadas em britas, argila, entre outros.
Essas pessoas viviam do uso comum das
terras, onde praticavam a agricultura baseada
na mão-de-obra familiar. As localidades eram
herdadas em linha agnática, assegurando aos
parentes lineares o “controle” sobre o território.
As residências se estabeleciam em determinado
setor tendo por foco aglutinador as parentelas
agnáticas de parentes mais próximos, os quais se
constituíam na unidade social de maior densidade, a comunidade em si. A principal característica
desse trabalho era a vivência solidária entre
seus membros, evidenciando saberes que a luta
pela sobrevivência somente tem força quando é
feita coletivamente. A produção da farinha de
mandioca e de seus derivados, como o beiju,
é um exemplo claro da produção coletiva. Por
conta da perca das terras, esse povo construiu
naquele território, no decorrer do tempo, relações
conflituosas entre si e com os outros que estão
ao se redor.
Depois que os quilombolas da comunidade da Olaria perderam suas terras surgiram
na região efeitos indesejáveis, sobretudo, no
equilíbrio ecológico que em muitos casos, já se
faz perceptível. Atualmente, a região sofre com
problemas de degradação ambiental. Muitos são
os processos relacionados ao uso e ocupação
dos espaços que podem influenciar os recursos
hídricos, tais como: desmatamentos, queimadas e
o manejo inadequado ou uso intensivo dos solos.
O que mais acelerou esse processo de degradação
ambiental foi a alta taxa de abertura de novas
fronteiras agrícolas e de áreas para pastagens.
Almeida(prestor) contra o réu Franscisco Chagas das
Neves. Purificação,1890.
4
Idem.
5
Poder tradicional, em virtude da fé na santidade dos ordenamentos e dos poderes senhoriais desde sempre presentes.
O tipo mais puro é a dominação patriarcal. WEBER, Max.
Os tipos de dominação. In: Economia e Sociedade. Editora
unB, vol. 1. Brasília,1991.
6
ARquIVO PúBLICO MuNICIPAL DE IRARá.
Ação de condenação (Capitão Jacob Cavalcante de
Almeida(prestor) contra o réu Franscisco Chagas das
Neves. Purificação,1890.
7
COIMBRA, Cecília. Operação Rio: O mito das classes
perigosas. Rio de Janeiro, Oficina do Autor; Niterói,
Intertexto, 2001.
8
ARquIVO PúBLICO MuNICIPAL DE IRARá.
Ação de condenação (Capitão Jacob Cavalcante de
Almeida(prestor) contra o réu Franscisco Chagas das
Neves. Purificação,1890.
9
FOuCAuLT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes,
2004.
10
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. João Batista
Machado; rev. Silvana Vieira. 3. ed., São Paulo: Martins
Fontes, 1991. p.65-73.
11
LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, Enxada e Voto. O
município representativo no Brasil. 2º Ed. São Paulo:
Alfa-Omega. 1975
12
TRANSCRIÇÃO DA GRAVAÇÃO DO DEPOIMENTO
DO SR. SóSTENES PAES COLHO. Projeto História Oral
de Irará. 12/julho de 1985.
13
Idem
14
ARquIVO PúBLICO MuNICIPAL DE IRARá. Maços
referentes ao conselho de intendência desse município.
15
LIVRO DE ACTAS DA INTENDÊNCIA MuNICIPAL
– de 12 de junho de 1892 a 9 de abril de 1894 – Vila de
Nossa Senhora da Purificação – Bahia.
16
REIS, João José & GOMES, Flávio dos Santos. (orgs.)
Liberdade por um fio; história dos quilombos no Brasil.
São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
17
SODRÉ, Nelson Werneck. Panorama do Segundo Império. 2ª ed., Rio de Janeiro: Graphia, 1998, p. 54.
18
TRANSCRIÇÃO DO DEPOIMENTO DO SR. SóSTENES PAES COELHO. Em colaboração para o projeto de
história oral de Irará-12/07/1985.
19
Idem.
20
FOuCAuLT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes,
2004.
21
ENTREVISTA: João dos Santos Ramos, morador da
Olaria, nascido em 1912, negro, da localidade de Olaria,
cedida no dia 14/08/2005.
22
ENTREVISTA: João dos Santos Ramos, morador da
Olaria, negro, da localidade de Olaria, cedida no dia
14/08/2005.
notAS
ENTREVISTA: João dos Santos Ramos, morador da
Olaria, negro, da localidade de Olaria, cedida no dia
14/08/2005.
3
ARquIVO PúBLICO MuNICIPAL DE IRARá.
Ação de condenação (Capitão Jacob Cavalcante de
2
144
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 133-144, fevereiro/2010
EL uSO “TRANSNACIONAL” DE PRuEBA OBTENIDA POR MEDIO DE TORTuRA
Artigo
EL uSo “trAnSnACionAL” DE PruEBA
oBtEniDA Por mEDio DE torturA*
Kai Ambos**
ABStrACt: The article examines the “transnational” use of torture evidence, i.e., the use
of evidence obtained by torture by third states
or parties in national criminal trials. It starts,
on a theoretical level, from Beling’s doctrine of
“prohibited evidence” (“Beweisverbote”) (infra
A.). First, the “supranational” use of torture evidence, i.e. the use before international criminal
tribunals (ICTY, ICTR, ICC), is analysed (B.) as
it may influence national practice. It is concluded that such evidence is always inadmissible
since it is unreliable and, more importantly, its
use is antithetical and damaging to the integrity
of the proceedings (B. III.). Second, the same
conclusion must be drawn for the transnational
use of torture evidence (C.). The exclusion of
such evidence follows from international law,
in particular Art. 15 UNCAT (C. I.), and from
the national law of Germany and England &
Wales as two representative jurisdictions for
“inquisitorial” and “adversarial” criminal
procedure (C. II.). Third, the burden to prove
that such evidence was not obtained by torture
rests with the state and the standard is one of a
real, serious risk (D.).
rESumEn: El artículo examina el uso “transnacional” de prueba obtenida por medio de
tortura, es decir, el uso de prueba obtenida por
medio de tortura por parte de Estados o Partes
en juicios criminales nacionales. Comienza, en
un nivel teórico, desde la doctrina de Beling de
*
*
Artigo publicado originalmente no livro Terrorismo, Tortura y Derecho Penal, Editorial Atelier, 2009, p.67 e seguintes.
Catedrático de derecho penal, derecho procesal penal, derecho comparado y derecho penal internacional en la universidad Georg-August de Göttingen; juez del Tribunal estadual de Göttingen (Landgericht). [[email protected]]. Agradezco a mi asistente Maria Laura Böhm y mi colaborador
estudiantil Szymon Swiderski por su ayuda.
Agradezco a los Profs. Paul Roberts (Nottingham) y Dr. Richard Vogler (Sussex) por sus comentarios críticos y constructivos e igualmente al
revisor anónimo del Israeli Law Journal por sus críticas observaciones.
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 145-172, fevereiro/2010
145
AMBOS, K
la “prueba prohibida” (“Beweisverbote”) (infra
A.). Primero, el uso “supranacional” de prueba
obtenida mediante tortura, es decir, el uso frente
a tribunales penales internacionales (Tribunal
Penal Internacional para la Antigua Yugoslavia,
“TPIY”, Tribunal Penal Internacional para
Ruanda, “TPIR”, y Corte Penal Internacional,
“CPI”), es analizado (B.) en cuanto a su posible
influencia en las prácticas nacionales. Se concluye que tal prueba es siempre inadmisible ya
que no es confiable y, más importante, porque su
uso es antitético y perjudicial a la integridad de
los procedimientos (B. III). Segundo, la misma
conclusión debe ser extraída para el uso transnacional de prueba obtenida mediante tortura
(C.). La exclusión de tal prueba se sigue de la
ley internacional, en particular del Art. 15 de la
Convención contra la Tortura de la ONU, “CTONU” (C.I), y de las leyes internas de Alemania
e Inglaterra y Gales como dos jurisdicciones
representativas del proceso penal “inquisitorial”
y “adversarial” (C. II.). Tercero, la carga de la
prueba en cuanto a que tal material probatorio
no fue obtenido mediante tortura recae en el
Estado y el criterio es que se trate de un riesgo
real y serio (D.).
introducción
Desde la perspectiva del derecho penal
(internacional) la cuestión de la tortura tiene dos
aspectos. El primero es material: ¿es ilícito el
uso de la tortura en todas las situaciones, incluso
en las más extremas en donde ella es aplicada
para salvar vidas de inocentes (llamada tortura
preventiva), y el torturador debe siempre ser
castigado? He intentado encontrar una respuesta
diferenciada a esta cuestión en otro lugar.1 El
segundo aspecto es procesal: ¿la prueba obtenida
por medio de tortura puede ser utilizada en procesos penales? En países regidos por el reinado
del derecho (rule of law) y el juicio justo (fair
trial) la respuesta es simple y clara: “no”, si la
tortura fue aplicada por autoridades nacionales
y la prueba obtenida con la tortura sería usada
en un proceso penal posterior. Para tal situación,
que podríamos llamar “uso directo de prueba
obtenida por medio de tortura”, las normas de
146
procedimiento nacionales establecen claras prohibiciones.2 Estas prohibiciones nacionales están
basadas en el derecho de los derechos humanos,
en particular el art. 15 de la Convención contra la
Tortura de la ONu (“CT-ONu”).3 una cuestión
más compleja, que será analizada en este trabajo,
es la de si tales prohibiciones también son aplicables al uso transnacional de prueba obtenida por
tortura, esto es, a situaciones en que la tortura
es aplicada en un país y la prueba obtenida es
utilizada en otro. Es posible distinguir aquí dos
situaciones. Primero, el Estado A que tiene una
clara prohibición de utilizar prueba obtenida por
tortura traslada a un sospechoso al Estado B –conocido por sus prácticas de tortura– para obtener
tal prueba. Segundo, el Estado A en una investigación (conjunta) en el Estado B consigue prueba
por medio de tortura y sus investigadores traen
la prueba al país para presentarla en un proceso
penal. La diferencia entre estos casos es obvia: en
el primer caso, la práctica de tortura en el Estado
B es usada conciente e intencionalmente para
sortear las prohibiciones de tortura del Estado A;
en el segundo caso, el Estado A consigue prueba
por medio de tortura accidentalmente, sin utilizar
intencionalmente las prácticas de tortura del Estado B. El uso transnacional de prueba obtenida
por medio de tortura debe ser distinguido del uso
supranacional de tal prueba, esto es, el uso ante
tribunales penales internacionales. Luego de una
breve explicación del punto de partida teórico
relativo al uso de prueba obtenida ilegalmente,
comenzaremos con el análisis de nuestra cuestión
a nivel supranacional, dado que puede producir
algunas conclusiones importantes respecto del
uso transnacional en los tribunales nacionales
de prueba obtenida mediante tortura.
A. El punto de partida teórico
El enfoque positivista y desligado de los
principios del Estado de Derecho en el uso de
prueba obtenida ilegalmente solo fue superado en
Alemania, y en los sistemas procesales influenciados por el pensamiento alemán, a comienzos
del siglo xx con la teoría de las “prohibiciones
probatorias” de Ernst Beling (Beweisverbote),
publicada en 1903.4 La idea fundamental de esta
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 145-172, fevereiro/2010
EL uSO “TRANSNACIONAL” DE PRuEBA OBTENIDA POR MEDIO DE TORTuRA
teoría es que la búsqueda de la verdad dentro de
la investigación procesal penal tiene limitaciones
debidas a los intereses contrapuestos de índole
colectiva e individual.5 La determinación de estas
limitaciones depende principalmente de la posición que el ordenamiento jurídico otorga al individuo frente al poder estatal.6 En una democracia
liberal constitucional, ordenada de acuerdo a los
principios del Estado de Derecho, esta posición
encuentra su expresión más significativa en
los derechos fundamentales, especialmente en
la dignidad humana y el libre desarrollo de la
personalidad, garantizados constitucionalmente
o por los tratados de Derechos Humanos aplicables.7 En esta clase de ordenamiento hay áreas
que el legislador constitucional ha protegido de
la injerencia estatal; por lo tanto, en principio, el
esclarecimiento de hechos a través de determinados medios probatorios resulta inadmisible y
prohibido.8 Como lo expuso el Tribunal Supremo
de Justicia alemán (Bundesgerichtshof): “Si bien
el fin del tribunal penal es descubrir la verdad,
en un Estado constitucional la verdad no puede
ser perseguida a cualquier precio”.9 Por lo tanto,
el acusado es reconocido y respetado como un
sujeto activo y no simplemente como el objeto de
los procesos penales.10 Su libertad de decisión y
de acción es intangible e invulnerable; no puede
ser menoscabada ni manipulada.11 La manipulación de la libre voluntad del acusado mediante
amenazas, coerción, engaño u otros métodos
similares debe ser prohibida, y esta prohibición
debe ser hecha efectiva mediante las sanciones
correspondientes. Sin embargo, las prohibiciones
de prueba no tienen solo el componente individual de proteger los derechos individuales12 y
vengar su violación mediante la exclusión de la
prueba obtenida ilegalmente en contra13 del acusado.14 Las prohibiciones probatorias conllevan
también una dimension colectiva al preserver
la integridad constitucional del orden legal,15
especialmente mediante la garantía y realización de un juicio justo.16 Esto fue reconocido en
1961, mucho después de Beling, por la Suprema
Corte de Justicia de uSA cuando al explicar la
regla de exclusión – equivalente a la doctrina de
las “Beweisverbote” – por “el imperativo de la
integridad judicial”,17 developed by others to “integridad moral”.18 Un efecto colateral (positivo)
de las reglas de exclusión podría ser el impacto
disciplinario que estas reglas podrían tener en
las autoridades investigadoras, pero éste no
puede ser su propósito principal ya que existen
procedimientos administrativos específicos para
sancionar la conducta ilegal de los agentes oficiales.19 En resumen, el interés público o estatal
en descubrir la verdad en un juicio penal puede
ser outweighed por los intereses privados protegidos como garantías fundamentales o derechos,
o incluso por el interés colectivo en la integridad
de los procesos criminales y, en definitiva, por
el orden constitucional. Este enfoque doble
individual-colectivo también es seguido en el
nivel internacional, en particular al considerarse
el posible efecto del uso de prueba “tainted” en
la integridad de los procesos (véase infra B.).
El sistema en cuestión de las prohibiciones
probatorias o de reglas de exclusión puede generar tensiones entre la justicia material (realización del ius puniendi) y la justicia procesal (protección de derechos y de la integridad judicial).20
En otras palabras, esto podría acarrear una
relación conflictiva entre, por una parte, el interés
en el funcionamiento de una administración de
justicia penal encaminada a la investigación y
sanción efectiva de delitos, y, por otra parte, la
protección de los derechos fundamentales del
acusado y la integriad del sistema en su conjunto.21 Esto no permite una “regla simple, algorítmica, apta para todo fin” inflexible,22 sino que
muchas veces requiere de un balance delicado
de intereses que conduce a decisiones que muy
pocas veces satisfacen a ambas partes – fiscal y
defensor –equitativamente. En todo caso, reglas
basadas en principios constitucionales rigen el
uso de la prueba obtenida ilegalmente, y sus
consecuencias son el precio que un Estado constitucional regido por los principios del Estado de
Derecho, un verdadero Rechtsstaat, debe estar
dispuesto a pagar si quiere estar a la altura de la
letra de su propia ley.
B. El uso supranacional de prueba
obtenida por tortura
Aunque los procesos ante los Tribunales
ad-hoc de la ONu (Tribunal Penal Internacional
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 145-172, fevereiro/2010
147
AMBOS, K
para la Antigua Yugoslavia, “TPIY”, y Tribunal
Penal Internacional para Ruanda, “TPIR”) están fuertemente influenciados por la tradición
de common law,23 con respecto a la admisión
de prueba ha sido adoptada una postura liberal
más típica de la tradición de civil law.24 No
hay reglas técnicas estrictas. Esto se debe, por
un lado, a la necesidad que tiene un Tribunal
internacional de “combinar las tradiciones jurídicas de muchos países”;25 por otro lado, es el
resultado del hecho de que los tribunales penales
internacionales, debido al violento contexto de
sus casos, se confrontan a menudo con falta de
evidencia que debe ser compensada con reglas
probatorias flexibles.26
i. tPiY/tPir
Las reglas para la admisión de pruebas se
encuentran en las Reglas de Procedimiento y
Prueba de ambos tribunales, que han sido establecidas por los jueces (cfr. art. 15 del Estatuto
del TPIY y art. 14 del Estatuto del TPIR). Dado
que ambas normativas son esencialmente idénticas nos concentraremos en las RPP del TPIY e
indicaremos las diferencias cuando sea necesario. Hasta ahora, ni el TPIY ni el TPIR tuvieron
que decidir sobre la admisión de prueba obtenida
por medio de tortura.
La regla 89, la “Carta Magna” del derecho
probatorio,27 contiene el principio general de que
“una Sala puede admitir toda prueba relevante
que estime con valor probatorio” (regla 89 (C)
RPP del TPIY y TPIR) y que “puede excluir
prueba si su valor probatorio es sustancialmente
superado por la necesidad de asegurar el juicio
justo”28 (regla 89 (D) RPP del TPIY). Si bien las
RPP del TPIR no contienen tal regla de exclusión
específica en la correspondiente sección sobre
reglas de pruebas (reglas 89 ss.), la regla 70 (F)
RPP del TPIR confirma el poder inherente de las
Salas de juicio del TPIR de excluir prueba “si
su valor probatorio es sustancialmente superado
por la necesidad de asegurar un juicio justo”.29
Si bien, en el resultado, la regla 89 (D) concede
una amplia discreción con respecto a la exclusión
de prueba –sin sujeción a las reglas probatorias
148
nacionales (regla 89 (A))–, la regla 95 es más
específica con respecto a prueba obtenida a
través de ciertos métodos (prohibidos) y por
consiguiente es aplicable específicamente a la
prueba obtenida por medio de tortura. Ella reza
como sigue:
“Ninguna prueba será admisible si es
obtenida a través de métodos que arrojen
una duda sustancial sobre su fiabilidad o
si su admisión es antitética a y dañaría
gravemente la integridad del proceso.”30
Si bien es controvertido si esta regla es
una lex specialis respecto de la regla 89 (D)31
o sólo clarifica su contenido,32 es claro que ella
excluye prueba obtenida por medio de métodos
prohibidos sin ninguna ponderación ulterior
(como expresado, por el contrario, en la regla 89
(D): “superado por la necesidad …”).33 Esta regla
deja a los jueces la decisión sobre qué métodos
arrojan “una duda sustancial sobre su fiabilidad”
o cuando la admisión de prueba sería “antitética
a” y “dañaría gravemente” el proceso.34 Por lo
tanto, si cierta prueba ha de ser admitida o excluida depende de las circunstancias de cada caso.35
De modo interesante, la versión original de
la regla era más clara con respecto a nuestra cuestión. Ella excluía la admisión de prueba obtenida
por medios “que constituyen una grave violación
a los derechos humanos internacionalmente protegidos”.36 Dada la protección contra la tortura
en varios instrumentos de derechos humanos y
el estatus de la prohibición de tortura como ius
cogens (véase infra 2.), la prueba obtenida por
medio de tortura constituiría “una grave violación a los derechos humanos internacionalmente
protegidos”37 y en consecuencia tendría que ser
excluida. Sin embargo, con la modificación de
la regla 95 la exclusión no es más “una cuestión de medios, sino una de resultado”.38 Como
establece la regla, aun si son violados derechos
humanos internacionalmente protegidos, como
la libertad frente a la tortura, los jueces cuentan
aún con discreción para admitir prueba obtenida
por medio de tortura, en tanto y en cuanto ellos
la consideren confiable y no gravemente dañina
para la integridad del proceso. Por consiguiente,
estas condiciones de admisibilidad deben ser
analizadas con más detalle.
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 145-172, fevereiro/2010
EL uSO “TRANSNACIONAL” DE PRuEBA OBTENIDA POR MEDIO DE TORTuRA
1. ¿Es la tortura un método que arroje
dudas sustanciales sobre la fiabilidad de
dicha prueba?
La no fiabilidad de la prueba obtenida
por tortura fue, además de consideraciones
humanitarias, la razón principal de su abolición
de los códigos de procedimiento penal de la
Europa continental por la reforma ilustrada postrevolucionaria.39 La doctrina coincide en que
la imposición de tortura es más adecuada para
evaluar la capacidad del sospechoso a soportar
el dolor que su lealtad a la verdad.40 Claramente,
la mayoría de los interrogados bajo tortura admitiría casi todo para frenar la imposición de dolor
adicional. En el viejo procedimiento criminal
inquisitivo de la época medieval la cuestión de
la fiabilidad a menudo conducía a limitar el uso
de información que podría ser verificada posteriormente, por ejemplo, registrando el lugar
donde el sospechoso torturado había indicado
que estaba el arma homicida.41 La no fiabilidad
de la prueba obtenida por tortura fue también una
de las razones para la introducción de la regla de
exclusión del art. 15 CT-ONu, que será discutida
luego con más detalle (C. I. 1.). Se consideró que
invocar tal declaración no fiable ante un tribunal
sería contrario al principio del “juicio justo”.42
En definitiva, aunque la Sala de juicio debería
siempre excluir la prueba obtenida por tortura
en vista de la “duda sustancial” en cuanto a su
fiabilidad, podrían existir aún casos en donde tal
prueba pueda ser verificada por investigaciones
posteriores y pueda probarse que era correcta.
Por consiguiente, la cuestión crucial en cuanto
a su admisibilidad es la siguiente
2. ¿La admisión de prueba obtenida por
medio de tortura sería antitética y dañaría
gravemente la integridad del proceso?
Aunque esta parte de la regla 95 no se
refiera al método a través del cual la prueba es
obtenida, sino a la consecuencia (resultado) de
su admisión para el proceso en su conjunto, una
Sala de Juicio debe aún evaluar la prueba a la luz
de la manera y las circunstancias que rodearon
su obtención. Si la admisión de la prueba sería
“antitética a” y “dañaría gravemente la integridad
del proceso” depende de la gravedad de la violación cometida para obtener la prueba.43 Como
regla es posible decir que con el incremento
del nivel de gravedad de la violación aumenta
también la probabilidad de que la admisión sea
“antitética a” y “dañ[e] gravemente la integridad
del proceso”.44
En cuanto a la prueba obtenida por medio
de tortura es posible distinguir entre aquella obtenida por los investigadores del tribunal y aquella
lograda por terceros. En el primer caso, puede
haber pocas dudas acerca de que tal prueba será
considerada como altamente antitética a y dañina
para la integridad del proceso y en consecuencia
tendría que ser excluida. Esto se sigue, antes
que nada, de la importancia de la prohibición de
tortura que el mismo TPIY ha reconocido en su
frecuentemente citada decisión en el caso Furundzija en donde consideró a esta norma como de
ius cogens45 y como “uno de los estándares más
fundamentales de la comunidad internacional”.46
En Nicolic, la Sala de juicio incluso consideró
en un obiter que graves maltratos o torturas de
un sospechoso pueden constituir un obstáculo a
la jurisdicción del Tribunal:
“En circunstancias en que un acusado
ha sido gravemente maltratado, quizás
incluso sometido a (…) tortura, antes de
ser entregado al Tribunal, esto puede constituir un impedimento jurídico al ejercicio
de la jurisdicción sobre tal acusado. Éste
sería ciertamente el caso, si personas que
actúan en nombre de la Fuerza de Estabilización en Bosnia y Herzegovina o el
Procurador estuvieren involucrados en
tales muy graves maltratos (…).47 (…) No
sería apropiado para una Corte de justicia
juzgar a una víctima de esos abusos”.48
De esto se sigue, a fortiori, que la prueba
obtenida por medio de tortura sería antitética a y
dañina para la integridad del proceso y en consecuencia debería ser excluida. Esto es aplicable no
sólo a la prueba obtenida por los investigadores
del Tribunal, sino también a aquella obtenida
por personas que actúan en nombre del Tribunal,
por ejemplo, las fuerzas de mantenimiento de la
paz de la ONu. Otra cuestión es, sin embargo,
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 145-172, fevereiro/2010
149
AMBOS, K
cómo debe ser tratada la prueba obtenida por
otros terceros independientes, en particular, las
autoridades nacionales, que actúan sin ninguna
vinculación con los tribunales. Esta cuestión
tiene una gran importancia práctica para todo
tribunal penal internacional, dado que normalmente éstos no cuentan con suficiente personal
para obtener toda la evidencia y dependen de
la cooperación de las autoridades nacionales.49
Como ha sido dicho antes, los tribunales no
han tomado una decisión sobre la admisión de
prueba obtenida por medio de tortura. Sin embargo, ellos tuvieron que tratar con prueba obtenida
por autoridades nacionales en violación de los
derechos de los sospechosos aplicables ante esos
tribunales. Así, la Sala en Celebici se enfrentó
con la cuestión de si podía admitir prueba que
había sido obtenida durante un interrogatorio llevado a cabo por la policía austriaca en ausencia
del abogado del sospechoso. Aunque el derecho
nacional aplicable (austriaco) de la época no
preveía un derecho a la defensa técnica durante
el interrogatorio policial y, en consecuencia, la
prueba había sido legalmente obtenida según el
derecho austriaco,50 la Sala de Juicio sostuvo que
el procedimiento austriaco lesionaba el derecho a
la defensa técnica según el art. 18 (3) del Estatuto
del TPIY y que, en consecuencia, las declaraciones hechas ante la policía eran inadmisibles en el
proceso.51 una posición similar parece haber sido
tomada en la primera decisión de apelación del
TPIR en el caso Barayagwiza.52 La cuestión era
si la excesiva duración de la detención provisional del acusado en Camerún (sin ser informado
inmediatamente sobre los cargos en su contra)
convertiría a su arresto, de otro modo legítimo,
en ilegítimo y podría constituir un obstáculo a la
jurisdicción (personal) del Tribunal sobre la base
de la “doctrina del abuso de proceso”. La Sala
de Apelación respondió esta cuestión de manera
afirmativa, separando la cuestión del órgano
responsable por la duración de la detención del
efecto de la violación como tal:
“Incluso si la culpa es compartida entre
los tres órganos de los tribunales – o es el
resultado de la acción de un tercero, como
Camerún–, esto socavaría la integridad del
proceso judicial para proceder. Además,
150
sería injusto para el apelante enfrentar un
juicio sobre esas acusaciones si sus derechos fueron abiertamente violados. Por
consiguiente, para la doctrina del abuso
de proceso es irrelevante qué entidad o
entidades fueron responsables por las
alegadas violaciones de los derechos del
apelante.”53
Aunque esto se sigue, otra vez a fortiori,
de que la prueba obtenida por medio de tortura
nunca puede ser admitida, una Sala de Apelación
diferente modificó posteriormente esta decisión,
centrándose sobre las responsabilidades (organizacionales) por la duración de la detención
y denegando un recurso por una lesión de los
derechos del acusado, pues esto era responsabilidad principal de terceros.54 De manera similar,
en Brdjanin, una Sala de Juicio admitió transcripciones de conversaciones telefónicas interceptadas (ilegalmente) por fuerzas de seguridad
de Bosnia y Herzegovina con el argumento de
que la “función de este Tribunal no es disuadir y
sancionar la conducta ilegal de las autoridades de
investigación domésticas, excluyendo la prueba
obtenida ilegalmente”.55 En otras decisiones el
TPIR se ha abstenido de supervisar la legalidad
de los actos de autoridades nacionales.56
Resumiendo esta jurisprudencia, es claro
que los tribunales no admitirían prueba obtenida
mediante tortura por sus propios investigadores o
por fuerzas que actúan en su nombre (como, por
ejemplo, la Fuerza de Estabilización –SFOR- en
Nikolic), pero no es claro cómo tratarían a tal
prueba si fuera producida por terceros actuando
de manera completamente independiente. Voy
a sostener que la prueba obtenida por medio
de tortura no debe ser admitida bajo ninguna
circunstancia, independientemente de su proveniencia. Dado el estatus de la prohibición de la
tortura como “uno de los estándares más fundamentales de la comunidad internacional”,57 ésta
no puede ser comparada con lesiones ordinarias
o menores de reglas de procedimiento. Incluso
en estos casos los tribunales no ignoran la infracción, pero, en ciertas ocasiones, conceden
preeminencia a la importancia de la prueba para
el proceso concreto; en este contexto, el hecho
de que la prueba fue cometida por un tercero
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 145-172, fevereiro/2010
EL uSO “TRANSNACIONAL” DE PRuEBA OBTENIDA POR MEDIO DE TORTuRA
puede jugar un papel a favor de su admisión.
En otras palabras, la responsabilidad personal o
de la organización por la infracción, esto es, la
cuestión de si la infracción puede ser imputada a
los tribunales es sólo un aspecto a tener en cuenta
en la ponderación de intereses.58 Claramente,
el resultado de esta ponderación cambia con la
gravedad de la infracción procesal en cuestión
y las consideraciones a favor de la admisión de
pruebas no pueden superar a una violación de una
prohibición tan importante como la prohibición
de tortura.59 En otras palabras, la regla procesal
-in casu la prohibición de obtener prueba mediante tortura- puede adquirir una importancia
tal que impide cualquier ponderación de intereses
y que, en consecuencia, su infracción importa
necesariamente la exclusión de la prueba respectiva. Del mismo modo, la “doctrina de la
bandeja de plata” de la Corte Suprema de los
EE.UU.,60 sobre cuya base la prueba obtenida
por particulares o por un gobierno extranjero
estaba generalmente permitida,61 ha sido limitada
cuando la infracción procesal, como en el caso de
la tortura, “conmueve la conciencia de la Corte
americana”.62
Hay consideraciones adicionales, basadas
en el derecho de los tribunales, que hablan en
contra de admitir prueba obtenida por medio de
tortura aun cuando fuera obtenida por terceros.
Primero, la obligación de los tribunales establecida en sus Estatutos de asegurar que el proceso
sea justo y rápido (art. 20 (1) TPIY, art. 19 (1)
TPIR) se extiende a violaciones de reglas procesales anteriores al juicio, dado que ellas pueden
afectar el carácter de justo del proceso como
tal. Esto significa que tales violaciones deben
ser consideradas y no pueden ser despachadas
con consideraciones meramente organizacionales relacionadas con la responsabilidad por
la violación.63 Segundo, la regla 95 debe ser
interpretada a la luz de su versión original que,
como fue explicado arriba, claramente prohibía
la admisión de prueba obtenida mediante tortura.
La modificación de la regla no tuvo el propósito
de limitar, sino de ampliar los derechos del acusado.64 Tercero, la misma Sala en el caso Brdjanin
emitió el 15 de febrero de 2002 una decisión sobre los estándares que gobiernan la admisibilidad
de la prueba (“Order on the Standards Governing
the Admissibility of Evidence”) donde estableció
que las “declaraciones que no son voluntarias,
sino que son obtenidas de los sospechosos por
medio de una conducta opresiva, no pueden pasar
el examen de la regla 95”.65 De manera similar,
dentro del marco del procedimiento de admisión
de culpabilidad (guilty plea) (regla 62bis), la
admisión debe ser hecha voluntariamente para
que sea aceptada como una confesión.66 Esto
muestra que la voluntariedad, que siempre es
anulada con la tortura, es un presupuesto para que
la declaración sea admitida.67 Cuarto, hay un argumento teleológico con respecto a los crímenes
de competencia de los tribunales: si la tortura es
parte de esos crímenes (como un crimen contra
la humanidad o un crimen de guerra, art. 2 (b),
art. 5 (f) Estatuto del TPIY y art. 3 (f), art. 4 (a)
Estatuto del TPIR) sería contradictorio que los
tribunales pudieran admitir prueba obtenida por
una conducta que ellos mismos deben juzgar.68
El argumento no puede ser refutado con el razonamiento de que los tribunales tienen que juzgar
los “crímenes más graves conocidos a la humanidad”69 y de que, en consecuencia, está justificado
un enfoque más flexible para la admisión de la
prueba obtenida (por medio de tortura).70 Éste
no es un argumento material, sino el procesal
discutido arriba con respecto a la ponderación
de intereses. Por consiguiente, son aplicables
los mismos contra-argumentos: hay un límite a
la ponderación si uno de los valores en juego es
absoluto, esto es, in casu el valor absoluto de la
prohibición de tortura.
ii. La Corte Penal internacional
La situación ante la CPI es esencialmente
la misma. El artículo 69 (7) del Estatuto de la
CPI -lex specialis respecto de la regla general
de admisibilidad del apartado (4) del mismo
artículo71- repite la (nueva) regla 95 de las RPP
de los TPIY/TPIR y establece:
“No serán admisibles las pruebas obtenidas como resultado de una violación
del presente Estatuto o de las normas de
derechos humanos internacionalmente
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 145-172, fevereiro/2010
151
AMBOS, K
reconocidas cuando: (a) Esa violación
suscite serias dudas sobre la fiabilidad
de las pruebas; o (b) Su admisión atente
contra la integridad del juicio o redunde
en grave desmedro de él.”
De este modo, en principio, la prueba obtenida en violación de derechos humanos no es
per se inadmisible, sino que la decisión depende
de su fiabilidad y sus efectos sobre la integridad
del proceso. Así, en el caso Lubanga72 la defensa
invocó una violación al art. 33 del Código Procesal Penal congolés por un allanamiento que se
había realizado en la vivienda de Lubanga sin
que él se encontrase presente.73 Si bien la Sala
de Cuestiones Preliminares (Pre-Trial Chamber) reconoció una violación del principio de
proporcionalidad y por tanto una violación de
“derechos humanos internacionalmente reconocidos” no declaró inadmisible la prueba en
cuestión ya que consideró que en el caso concreto
dicha violación no afectaba la “fiabilidad” de tal
prueba ni perjudicaba la integridad del proceso.74
La Sala consideró, con base en la revisión de la
jurisprudencia relevante, que únicamente graves
violaciones pueden acarrear la exclusión de la
prueba, agregó sin embargo que la prueba solo
era admisible “a los fines de la audiencia de
confirmación”, enfatizando además el “alcance
limitado” de tal audiencia así como la posibilidad
de que la Sala de Primera Instancia (Trial Chamber) se pronuncie en forma diferente respecto
de la admisibilidad de la prueba en cuestión.75
En cuanto a la prueba obtenida por medio
de tortura, las mismas consideraciones antes
efectuadas conducirían a su inadmisibilidad
absoluta.76 Esto es aplicable a toda la prueba obtenida por medio de tortura independientemente
de su fuente o su efecto a favor o en contra del
acusado.77 Del párrafo 8 del art. 6978 se deriva
la irrelevancia para la CPI del derecho nacional,
dado que la Corte no se pronunciará sobre la
“aplicación” de dicho derecho. Consecuentemente, la CPI debe juzgar la admisibilidad sobre
al base de su derecho; en particular, su “aplicación e interpretación (...) deberá ser compatible
con los derechos humanos internacionalmente
reconocidos” (art. 21 (3)). Esta clara referencia
a derechos humanos fundamentales, tal como la
152
libertad frente a la tortura, es un fuerte argumento
adicional de que hay “algunas violaciones que,
por su naturaleza, son tan crasas o tan incompatibles con los derechos humanos internacionalmente reconocidos que la admisión de prueba
obtenida” por tales medios siempre será antitética a y dañina para la integridad del proceso.79
Last but not least, con respecto al procedimiento
de admisión de culpabilidad previsto en el art.
65 del Estatuto de la CPI también se reconoce
que tal admisión debe hacerse “voluntariamente”
(ver art. 65 (1) (b)) y que sería “nula e inválida”80
si fuera obtenida por medio de tortura.
iii. Primera conclusión intermedia
con respecto al uso supranacional
de prueba obtenida por medio de
tortura
El uso supranacional de prueba obtenida
por medio de tortura es siempre inadmisible. Tal
evidencia no es fiable y, más importante, su uso
es antitético a y perjudicial para la integridad
del proceso. Para considerar inadmisible a esta
prueba es suficiente con que exista uno de estos
dos defectos, dado que la regla 95 TPIY/TPIR
y el art. 69 (7) del Estatuto de la CPI prevén una
formulación alternativa (“o”). una distinción entre prueba obtenida por medio de tortura por los
investigadores del tribunal o por terceros no puede ser hecha razonablemente, ya que sólo minaría
la regla general que espera que los tribunales
penales internacionales -como modelos para la
justicia penal nacional- respeten completamente
los derechos humanos internacionalmente reconocidos. Esto implica que estos tribunales no
pueden utilizar prueba obtenida en violación de
estos derechos. Como ha señalado Sluiter:
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 145-172, fevereiro/2010
“Como modelos para la justicia penal internacional, puede esperarse que el TPIY y
el TPIR respeten plenamente los derechos
humanos internacionalmente protegidos.
A largo plazo, el apoyo a y la confianza en
formas de atribución penal internacional,
incluyendo la recientemente establecida
corte penal internacional (CPI), dependerá
de si los tribunales pueden hacer honor a
esta expectativa o no.”81
EL uSO “TRANSNACIONAL” DE PRuEBA OBTENIDA POR MEDIO DE TORTuRA
C. El uso transnacional de prueba
obtenida mediante tortura
El uso trasnacional de prueba obtenida por
medio de tortura ha sido objeto de dos decisiones
recientes de cortes superiores en Gran Bretaña
y Alemania. Ambas pueden informar nuestra
discusión y servir como casos modelo.
En el caso “A and others v. Secretary of
State for the Home Department”82 la Casa de
los Lores británica (House of Lords) tenía que
decidir si los tribunales británicos podían admitir como prueba declaraciones que habían sido
obtenidas por medio de tortura por oficiales de
un Estado extranjero sin estar involucradas las
autoridades británicas. Los recurrentes fueron
detenidos en aplicación de la sección 23 de la Ley
sobre antiterrorismo, crimen y seguridad (Antiterrorism, Crime and Security Act) de 2001.83 La
disposición autoriza la detención por un período
indefinido de sospechosos certificado como
terroristas internacionales según la sección 21
de esa Ley si, por razones jurídicas o prácticas,
es imposible deportarlos. La persona certificada
terrorista según la sección 21 puede apelar a la
Comisión de Apelación Especial de inmigración (Special Immigration Appeals Commission
–SIAC-) contra la certificación argumentando
que no hay motivos razonables para la sospecha
(véase la sección 25 de la Ley). Los recurrentes
sostuvieron que el secretario de Estado se había
basado ilegalmente para la emisión de los certificados en prueba obtenida por medio de tortura
proporcionada por otro Estado. Sin embargo, la
SIAC sostuvo que la prueba, en la cual se fundaba (en parte) la sospecha, podía ser usada y en
consecuencia rechazó la apelación. La Corte de
Apelación para Inglaterra y Gales confirmó esa
decisión. El 8 de diciembre de 2005, los Cámara
de los Lores, concordando con la posición de los
recurrentes, anuló la decisión por unanimidad,
sosteniendo que el common law prohíbe la admisión de prueba obtenida por medio de tortura
“independientemente de dónde, o por quién o con
base en qué autoridad fue impuesta la tortura”.84
En su decisión del 14 de junio de 2005,
el Tribunal Superior estadual de Hamburgo
(Oberlandesgericht) tuvo que tratar con una
cuestión similar en el caso “El Motassadeq”.85
Motassadeq fue imputado de un delito similar
a la conspiración previsto en el § 30 (2) tercera
alternativa del Código penal alemán (Strafgesetzbuch)86 en relación con los ataques del 11
de septiembre. El Departamento de Estado de
los EE.uu. proporcionó, vía fax, resúmenes de
declaraciones de tres miembros de Al qaida de
alta jerarquía prestadas en interrogatorios cumplidos por autoridades estadounidenses mientras
esas personas estaban detenidas.87 A causa de la
sospecha general, basada en informes de prensa y
de organismos de derechos humanos, de que los
miembros de Al qaida eran sometidos a tortura,
el Tribunal buscó información sobre el lugar y
las circunstancias de los interrogatorios; pero
tal información no pudo ser obtenida. Si bien el
Tribunal admitió en última instancia las declaraciones como evidencia -dado que, con base en
la libre apreciación de la prueba disponible, la
tortura no pudo ser probada (sobre la delicada
cuestión de la carga y el estándar de la prueba,
véase más detalladamente infra C.)-, también
declaró, en un obiter, que ninguna declaración
obtenida por tortura -sin importar su proveniencia (autoridades nacionales o extranjeras)- puede
ser admitida como prueba.88
Si se comparan estos dos casos, lo más llamativo es que en ninguno de ellos las autoridades
nacionales estaban involucradas en la obtención
de la prueba respectiva. Según la distinción
hecha en la introducción, entre la obtención
pro-activa de la prueba mediante el traslado del
sospechoso a Estados que practican la tortura
(primera situación) y la obtención más bien accidental de tal evidencia (segunda situación), estos
casos corresponden a la segunda situación. Sin
embargo, si (aun) en esta situación la admisión
de prueba obtenida por medio de tortura debe ser
considerada legalmente imposible, entonces lo
mismo vale a fortiori para la primera situación.
En cuanto al subsiguiente análisis esto significa
que la segunda situación debe ser examinada en
primer lugar y la primera sólo debe serlo si la
prueba obtenida por medio de tortura es considerada admisible en esta (segunda) situación.
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 145-172, fevereiro/2010
153
AMBOS, K
i. El uso trasnacional de prueba
obtenida por medio de tortura a la
luz del derecho internacional
El uso trasnacional de prueba obtenida por
medio de tortura puede ser incompatible con el
art. 15 CT-ONU y el principio del juicio justo
tal como es reconocido especialmente en el art.
6 del Convenio Europeo de Derechos Humanos
(“CEDH”) y la jurisprudencia respectiva.
1. Art. 15 CT-ONU
a) Ratio y alcance
El art. 15 CT-ONu es la única regla universal89 que explícitamente excluye la prueba
obtenida por medio de tortura:
“Todo Estado Parte se asegurará de que
ninguna declaración que se demuestre que
ha sido hecha como resultado de tortura
pueda ser invocada como prueba en ningún procedimiento, salvo en contra de una
persona acusada de tortura como prueba
de que se ha formulado la declaración.”
Los travaux de la CT-ONU90 demuestran
que esta regla obligatoria fue incluida en la
convención esencialmente por dos razones: La
primera era la salvaguarda de la lealtad del proceso, dado que toda declaración hecha bajo tortura
es, como ya ha sido antes expuesto, susceptible
de ser no fiable. La segunda razón era para desalentar el uso de la tortura, eliminando uno de sus
principales incentivos para aplicarla. Además,
en última instancia, el art. 15 CT-ONu refleja el
“más amplio principio”,91 también expresado en
la regla 95 de las RPP de los TPIYI/TPIR y en el
art. 69 (7) (b) Estatuto de la CPI, de la salvaguarda de la integridad del proceso (judicial).92 Impidiendo el uso de la prueba obtenida por medio de
tortura en el proceso judicial, el art. 15 CT-ONU
no sólo asegura que sea excluida la prueba no
fiable, sino también la prueba que “abusa[ría] y
degrada[ría] el proceso”93 e “involucra[ría] al
Estado en una contaminación moral”.94 El art.
15 CT-ONu no sólo es aplicable –obviamente- a
154
la situación “clásica” en que el Estado utiliza la
prueba que él mismo ha obtenido en un juicio
penal contra el acusado (torturado),95 sino también a la prueba obtenida mediante tortura en otro
Estado. Esto se sigue ya de una interpretación
literal, dado que el art. 15 CT-ONU no limita la
exclusión a la prueba propia (nacional) obtenida
mediante tortura, sino que establece de manera
general que “ninguna declaración (...) hecha
como resultado de tortura” será invocada como
prueba “en ningún procedimiento”, esto es, la
prueba obtenida mediante tortura no es admisible independientemente de su proveniencia,96
inclusive la prueba que se haya obtenido con
base en aquella (efecto extendido).97 El ilimitado
alcance de la disposición puede ser explicado
por su ratio, a saber, eliminar incentivos para el
uso de tortura, así como impedir la producción
de prueba no fiable y cualquier perjuicio a la
integridad del proceso; la proveniencia de la
prueba no altera su naturaleza ilícita y sus efectos
negativos. Además, si los proyectistas hubieran
querido limitar el alcance de la disposición,
ellos fácilmente hubieran podido hacer lo que
hicieron con respecto a otras obligaciones que
surgen de la CT-ONU (véase, por ejemplo, el art.
2 (1), 12 y 13).98 De hecho, ellos han actuado así
con respecto a la utilización (excepcional) de la
prueba obtenida mediante tortura en contra del
torturador con el fin de probar la existencia de la
declaración bajo tortura (véase el art. 15 última
parte). Sin embargo, una aplicación extensiva
de esta excepción por vía de analogía a otros
casos contra el torturador, como recientemente
ha sugerido Scharf,99 ha de ser rechazada.
Scharf sostiene que las declaraciones biográficas de los detenidos del centro de tortura
Tuol Sleng de los Jemeres Rojos (Khmer Rouge)
deberían ser admitidas como prueba en el juicio
contra los líderes de los Jemeres Rojos ante las
Cámaras extraordinarias del Tribunal internacional establecido por la ONU.100 Scharf es bien
conciente del riesgo de que tal excepción socave
el art. 15 CT-ONU y en consecuencia propone
cuatro criterios que deberían ser satisfechos
para que un tribunal pueda considerar prueba
obtenida mediante tortura. Primero, tal prueba
nunca debe ser utilizada en un proceso donde la
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EL uSO “TRANSNACIONAL” DE PRuEBA OBTENIDA POR MEDIO DE TORTuRA
víctima de dicho abuso es el acusado. Segundo,
nunca debe ser utilizada cuando las autoridades
de persecución estuvieran directa o indirectamente involucradas en los actos de maltrato.
Tercero, tal prueba tampoco debe ser considerada
a menos que fuera suficientemente corroborada.
Cuarto, no debería ser admitida si, con esfuerzos
razonables, la autoridad de persecución pudiera
obtener prueba no manchada que fuera efectiva
para establecer la responsabilidad penal.101 Aunque sea difícil de aceptar que acusados como los
líderes de los Jemeres Rojos saquen ventaja del
art. 15 CT-ONu, esto es, una disposición que
ciertamente no estaba destinada a ampararlos
frente a la responsabilidad penal, el daño causado
a la legitimidad de un proceso contra torturadores
que se basa esencialmente en prueba obtenida
mediante tortura no debería ser subestimado y
ciertamente no puede ser superado por los cuatro
criterios propuestos por Scharf. En efecto, estos
criterios no se relacionan con la cuestión de la integridad o lealtad del proceso, sino que sacrifican
estas consideraciones en nombre de la “eficiencia
probatoria”102 con vistas a condenar acusados con
la mayor facilidad posible. Tal “flexibilidad”, uno
de cuyos ejemplos recientes es el proceso contra
Saddam Hussein,103 perjudica, a largo plazo, a la
justicia penal internacional.
b) El impacto del art. 15 CT-ONU en el
derecho doméstico
La CT-ONU, como un tratado internacional, no tiene fuerza vinculante en el derecho
local, a menos que se le haya dado efecto a través de una incorporación explícita, sea a través
de un acto del parlamento o ley o, además, en
algunas jurisdicciones de common law, a través
de principios de derecho consuetudinario internacional.104 Esto significa que la CT-ONu sólo
es parte del derecho alemán, pero no del derecho
doméstico inglés, porque sólo en el primero el
acto legislativo correspondiente ha sido adoptado
por el parlamento.105 Si el tratado en cuestión
puede ser aplicado directamente (en parte) por
tribunales locales depende de la naturaleza y
contenido de sus normas, esto es, si ellas son
lo suficientemente claras y precisas para ser
“auto-ejecutorias” (self executing) con respecto
a individuos sin necesidad de una clarificación
ulterior por disposiciones locales.106 De otra
forma, el efecto de ese tratado estaría limitado
a imponer una obligación general de adaptar el
orden jurídico a los objetivos establecidos por
sus reglas.107
En A and Others, el juez Lord Neuberger
negó que el art. 15 CT-ONu fuera auto-ejecutorio en los tribunales ingleses, dado que está dirigido a “todo Estado parte”. 108 Sin embargo, éste
no es un argumento convincente, dado que los
tratados internacionales no siempre distinguen
entre el gobierno y otros órganos del Estado.109
Más bien, el hecho de que el art. 15 CT-ONu
obliga a los Estados partes a asegurar que la
prueba obtenida mediante tortura no sea invocada en procesos (judiciales) da a entender que
está dirigido a la rama judicial.110 El mismo punto
de vista ha sido seguido por el Tribunal Federal
Constitucional alemán (Bundesverfassungsgericht),111 aunque la jurisprudencia del Comité
contra la tortura de la ONu y la práctica de los
Estados no son uniformes.112 Sea como fuere, el
Tribunal Superior estadual de Hamburgo aplicó
el art. 15 CT-ONu como una regla de exclusión
local “auto-ejecutoria”.113 Aun cuando no se
quiera ir tan lejos en contra de una concepción
dualista, no puede negarse que el art. 15 CTONU es obligatorio para los Estados parte de la
CT-ONu y, como tal, esa disposición informa la
interpretación del derecho y la práctica locales
respectivos. Por consiguiente, la House of Lords
usó correctamente el art. 15 CT-ONu como una
pauta para interpretar el derecho doméstico inglés y sus obligaciones según el CEDH.114
2. El art. 6 (1) del Convenio Europeo
de Derechos humanos
En el CEDH no hay una regla de exclusión
explícita de la prueba obtenida por medio de tortura. La prohibición de tortura del art. 3 CEDH
no se refiere a la cuestión de las consecuencias
procesales por la violación de este derecho, en
particular no establece una regla de exclusión.115
A pesar de ello, tal regla puede ser inferida de
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 145-172, fevereiro/2010
155
AMBOS, K
una interpretación sistemática y teleológica del
principio del juicio justo consagrado en el art.
6 (1) del CEDH en concordancia con el art. 3
del CEDH.
El Tribunal Europeo de Derechos Humanos
(TEDH) no prescribe reglas de admisibilidad
de la prueba, sino que en este punto deja a los
Estados parte una amplia discreción;116 este Tribunal solamente examina – en una especie de
evaluación del efecto general – si el proceso en su
totalidad fue justo. Por consiguiente, en Schenk
v. Switzerland el Tribunal sostuvo que su tarea
no era decidir “como una cuestión de principio y
en abstracto” si la prueba – que fue obtenida en
contra del derecho local – puede ser admisible
en juicio sin privar al recurrente de su derecho a
un juicio justo, sino analizar si el proceso en su
totalidad fue justo.117 Adoptando este punto de
vista el TEDH puso énfasis en el hecho de que
la conversación telefónica registrada ilícitamente
no era la única prueba sobre la cual se basaba la
condena del acusado118 y que él tuvo oportunidad
suficiente para cuestionar la autenticidad de la
grabación.119 Por lo tanto, en el caso de prueba
obtenida en violación del art. 8 CEDH (derecho
a una vida privada y familiar) el TEDH estableció que la admisión de tal prueba sólo viola el
art. 6 (1) CEDH si el proceso en un todo no fue
justo.120 In casu, el TEDH lo negó, tomando en
consideración la naturaleza de la violación y la
oportunidad del acusado de cuestionar la autenticidad de la prueba involucrada.121
El TEDH ha adoptado, sin embargo,
un punto de vista diferente con respecto a
los tratamientos inhumanos y degradantes de
acuerdo con el art. 3 CEDH. En el caso Jalloh
v. Germany122 declaró – luego de repetir el principio general de una evaluación general – que
respecto de prueba obtenida mediante métodos
constitutivos de una violación del art. 3 CEDH
eran aplicables consideraciones diferentes, dado
que esta norma protege uno de los valores más
fundamentales de la sociedad y, a diferencia de
otras disposiciones, no admite excepciones.123
Aunque el TEDH dejó abierta la cuestión de si
la admisión de prueba obtenida por tratamientos
inhumanos y degradantes convierte por sí misma
156
al proceso en injusto,124 fue más explícito con
respecto a la tortura:
“prueba incriminatoria – sea en la forma
de una confesión o de prueba material
– obtenida como resultado de actos de
violencia o brutalidad u otras formas de
tratamiento que puedan ser caracterizados como tortura nunca debería ser usada
como prueba de la culpabilidad de la
víctima, independientemente de su valor
probatorio. Cualquier otra conclusión sólo
serviría para legitimar indirectamente la
clase de conducta moralmente reprensible
que los autores del artículo 3 de la Convención buscaron proscribir (...).”125
De alguna manera, con esta clara exclusión
de la prueba obtenida por tortura el TEDH hizo
hincapié en la naturaleza y gravedad de la violación y, por ello, hizo lo mismo que ya había
hecho in abstracto en Kahn v. UK.126 También
vale la pena mencionar que el TEDH limitó el
alcance de su afirmación a “prueba incriminatoria (…) usada como prueba de la culpabilidad de
la víctima”,127 permitiendo así, aparentemente,
la admisión de prueba obtenida por medio de
tortura a favor del acusado. Aunque este punto
de vista puede rendir homenaje al amplio derecho
de defensa del acusado del art. 6 (3) (c) CEDH,
está en conflicto sin embargo con la ratio de
la regla de exclusión del art. 15 CT-ONu y, en
consecuencia, debería ser rechazado.128
En todo caso, el TEDH confirmó su posición en Harutyunyan v. Armenia. La cuestión del
caso se refería a si el acusado había sido privado
de un proceso justo por la admisión de su confesión y de otras declaraciones incriminatorias de
terceros que habían sido arrancadas por medio
de tortura. El TEDH resolvió – recordando expresamente los principios desarrollados en Jalloh
v. Germany129 – que “independientemente del
impacto que las declaraciones obtenidas bajo
tortura tuvieran sobre el resultado del proceso
penal contra los recurrentes, el uso de esta prueba
convierte a su juicio como un todo en injusto”.130
Luego de arribar a esta conclusión, el tribunal no
halló necesario ocuparse de la diferente cuestión
de si la admisión de prueba obtenida por medio de
tortura lesiona el derecho a no auto-incriminarse
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EL uSO “TRANSNACIONAL” DE PRuEBA OBTENIDA POR MEDIO DE TORTuRA
(nemo tenetur se ipsum accusare).131 Aunque el
alcance de este derecho se limita a declaraciones
incriminatorias en perjuicio del acusado, es altamente relevante en nuestro caso.132 Este derecho,
aunque no explícitamente mencionado en el art.
6 CEDH, es un principio internacionalmente
reconocido y, en cierto modo, la otra cara de la
presunción de inocencia consagrada en el art. 6
(2) CEDH.133 De él se sigue que la autoridad de
persecución penal debe intentar probar su caso
sin recurrir a prueba que ha sido obtenida del
acusado mediante opresión de su voluntad. De lo
contrario, el tribunal debe decidir si el uso de tal
prueba constituye una violación no justificada del
derecho a la luz de todas las circunstancias del
caso.134 Dado que su razón subyacente es respetar
y proteger la voluntad del acusado y evitar una
injusticia (miscarriage of justice),135 es evidente
que cualquier declaración obtenida mediante
tortura – en cuanto método que explícitamente
se propone quebrar la voluntad del sospechoso y
tiende a producir confesiones falsas – constituye
una flagrante violación de este derecho y en
consecuencia debe ser excluida para preservar
un juicio justo. Last but not least, en el reciente
caso Gäfgen,136 la Corte distinguió entre el uso de
prueba que fue resultado directo de una violación
del art. 3 CEDH y el uso de aquella que fue solo
el fruto (indirecto) de tal violación. Mientras que
en el primer caso la prueba “nunca debería estar
basada en ella para probar la culpabilidad de la
víctima, independientemente de su valor probatorio”,137 en el último caso hay por lo menos una
“fuerte presunción” de que el uso de tal prueba
tacharía al juicio en su conjunto de injusto.138
En suma, la jurisprudencia reciente del
TEDH considera que la admisión de prueba
obtenida por medio de tortura lesiona el juicio
justo en el sentido del art. 6 (1) CEDH, dado
que la tortura es tan grave que su uso convertiría
al procedimiento en su conjunto en injusto.139
Aunque el tribunal no se refiere específicamente al uso transnacional de prueba obtenida por
medio de tortura, la jurisprudencia analizada,
especialmente con respecto a la importancia
dada a la protección frente a la tortura, da a
entender que para el tribunal sería indiferente
si la prueba fue obtenida por medio de tortura
provocada por terceros. En efecto, en Schenk v.
Switzerland el tribunal no cuestionó el hecho de
que la grabación fuera hecha por un particular, es
decir, como en el caso de autoridades nacionales
extranjeras, no podía ser atribuida directamente
al Estado, sino que esencialmente se centró en
la naturaleza de la violación en el marco de una
ponderación de intereses.140 Esto significa que la
cuestión decisiva es si la naturaleza de la violación – como el interés lesionado del acusado – es
tal que superaría el interés del Estado a usar dicha
prueba y en consecuencia convertiría al proceso
en su conjunto en injusto. Es interesante notar
que a la misma conclusión llegó la Casa de los
Lores en su decision en A and others. Si bien en
el momento de la decisión de los Lores el TEDH
no había aún decidido el caso Harutyunyan v.
Armenia, Lord Bringham of Cornhill expresó
que él tenía pocas dudas en cuanto a que el
tribunal habría considerado que la admisión de
prueba obtenida por medio de tortura constituye
una violación del art. 6 (1) de la CEDH.141 Para
llegar a esta conclusión, los Lores invocaron el
art. 15 de la CT-ONu para interpretar la garantía
del juicio justo del art. 6 CADH,142 incorporado
en el derecho británico doméstico con la Ley de
derechos humanos de 1998 (Human Rights Act
1998).143 Este enfoque es correcto, dado que el
art. 31 (3) (c) de la Convención de Viena sobre
el Derecho de los Tratados144 prevé que “toda
norma pertinente de derecho internacional aplicable en las relaciones entre las partes” deberá
ser tomada en consideración para interpretar los
tratados internacionales. El mismo TEDH invocó
la definición de tortura del art. 1 de la CT-ONu
para dar al término tortura del art. 3 CEDH un
significado más concreto.145 La referencia al art.
15 CT-ONU también es convincente porque es
la única disposición con alcance universal que
se ocupa explícitamente de nuestra cuestión y
da a ella una clara respuesta, esto es, la absoluta
exclusión de la prueba obtenida por medio de
tortura independientemente de su proveniencia.
Dado el estatus de la CT-ONU como tratado
internacional y la importancia fundamental de la
prohibición de tortura en derecho internacional,
ésta es una respuesta final y de autoridad.
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 145-172, fevereiro/2010
157
AMBOS, K
ii. El uso trasnacional de prueba
obtenida por tortura a la luz de la
tradición de civil law alemana y de
common law inglesa
Como resulta de las referencias esporádicas al derecho (jurisprudencial) alemán e inglés
en el texto precedente, la posición de estas dos
jurisdicciones en relación con nuestra cuestión
es muy similar. Dado que estas jurisdicciones
pertenecen a diferentes familias jurídicas (el
civil law romano germánico y el common law
angloamericano) y como tal se aproximan de manera diferente al problema de la prueba obtenida
ilícitamente, un resultado similar o idéntico con
respecto a nuestra cuestión produciría un fuerte
argumento y punto de partida para un principio
general de derecho en el sentido del art. 38 (c)
Estatuto de la Corte Internacional de Justicia.
1. Alemania: el § 136 a de la
ordenanza Procesal Penal
La cuestión del uso de prueba obtenida
ilícitamente en Alemania ha sido enormemente
influenciada por la teoría de Ernst Beling de las
“prohibiciones probatorias” (Beweisverbote),
publicada tempranamente en 1903.146 La idea
básica de esta teoría es que el interés público en
averiguar la verdad en un proceso penal puede
ser superado por intereses privados protegidos
como derechos o garantías fundamentales. Como
el Tribunal Supremo Federal alemán (Bundesgerichtshof; BGH) señaló: Aunque el objetivo
del proceso penal es descubrir la verdad, en un
Estado constitucional la verdad no puede ser
perseguida a cualquier precio.147
El § 136a de la Ordenanza procesal penal
alemana (OPP) contiene una regla de exclusión
obligatoria para toda la prueba obtenida por
medio de tortura por las autoridades nacionales.
Si bien la “tortura” no está expresamente mencionada en el apartado 1 de esta disposición, los
métodos enumerados en este apartado pueden
llegar a constituir tortura. Aunque hay muchas
reglas en la OPP para la salvaguarda de derechos
158
individuales, el § 136a es uno de los pocos casos
en que el derecho explícitamente dispone una
prohibición absoluta de utilizar en el proceso tal
prueba ilícita. La razón de tal estricta regla de
exclusión es la protección de la dignidad humana
consagrada en el art. 1 de la Grundgesetz (Ley
Fundamental), la Grundnorm (norma fundamental) de la constitución alemana.148 Forzar al
acusado por medio de torturas o medios similares
a hacer una declaración lo degradaría a “objeto”
del procedimiento penal, lo cual es incompatible
con su estatus de parte procesal149 y con su dignidad. La regla de exclusión también es aplicable
a las declaraciones de testigos.150
Aunque el § 136a OPP se dirige de manera
explícita únicamente a las autoridades nacionales151 y, en consecuencia, no es directamente
aplicable a terceros,152 incluidas las autoridades
extranjeras, es generalmente reconocido que,
independientemente de su proveniencia, la
prueba no puede ser utilizada si fue obtenida de
una manera que constituye una violación especialmente grave de la dignidad del acusado. En
tal situación, por ejemplo, en el caso de prueba
obtenida por medio de tortura, ha de ser aplicado
analógicamente el § 136a (3) OPP.153 De hecho,
en Motassadeq, el Tribunal Superior estadual
de Hamburgo sostuvo que la regla de exclusión
también es aplicable en caso de prueba obtenida
por medio de tortura por órganos de otro Estado.154 Por varias razones, éste es el punto de vista
correcto. Antes que nada, el uso de tal prueba
por un tribunal nacional sería en sí mismo una
violación de las obligaciones a que el Estado se
ha comprometido por la CT-ONU. Como se ha
concluido antes (C.I.1.a)), el art. 15 CT-ONU
excluye cualquier declaración obtenida por medio de tortura independientemente de su origen.
Además, una lectura conjunta de las obligaciones
que se derivan de la CT-ONU, en particular de los
arts. 2 (1), 4 y 14 (1), y el estatus de ius cogens
de la prohibición lleva a la conclusión de que el
Estado debe hacer todo lo que está dentro de su
poder para prevenir y abstenerse de consentir
hechos de tortura.155 Aunque la obligación del Estado de proteger a las personas frente a la tortura,
incluso por particulares,156 sólo puede extenderse
a su territorio,157 queda en la decisión soberana de
los tribunales aceptar o no en un proceso penal
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 145-172, fevereiro/2010
EL uSO “TRANSNACIONAL” DE PRuEBA OBTENIDA POR MEDIO DE TORTuRA
prueba obtenida por medio de tortura por parte
de autoridades de otro Estado. Si se aceptara esta
prueba, se enviaría el mensaje contradictorio
de que la tortura por algunos es inadmisible,
pero por otros podría ser tolerada, como si esto
cambiara la naturaleza del acto de tortura como
ataque patente a la dignidad humana. Admitir la
prueba obtenida por medio de tortura minaría,
por tanto, el efecto disuasivo general de la regla
de exclusión, es decir, desalentar a las autoridades nacionales –o en este caso: extranjeras- del
uso de la tortura.158 Segundo, el uso de prueba
obtenida por medio de tortura revictimizaría a
la víctima de la tortura, atacando nuevamente su
dignidad.159 Tercero, la no fiabilidad de la prueba
obtenida por medio de tortura, antes demostrada
(B. I. 1.), otra razón para no admitir tal evidencia,
no cambia según la proveniencia de la prueba.
Por último, pero no por ello menos importante: la
prueba obtenida bajo tortura que es admitida en
el proceso dañaría siempre, provenga de donde
provenga, la integridad del proceso (véase supra
B. I. 2.).
Por las mismas razones, no parece que
deba hacerse una excepción a la aplicación
estricta de la regla de exclusión, en caso de que
la prueba obtenida por tortura opere a favor del
acusado.160 El hecho de que el § 136a OPP esté
destinado, en principio, a proteger al acusado
no cambia la evaluación crítica de conjunto del
uso de prueba obtenida por medio de tortura. El
efectivo ejercicio del derecho de defensa (véase
ya supra I. I. 2.) no depende de la admisión de
prueba obtenida por medio de tortura favorable
al acusado.
2. gran Bretaña: ¿regla de
exclusión?
La aproximación del common law a la
admisión de prueba (no de confesión) puede ser
descrita como abiertamente “liberal” y sin principios, admitiendo básicamente toda evidencia que
es considerada relevante.161 Una conocida frase
de un juez del siglo diecinueve lo expresa del
siguiente modo: “No importa cómo la obtienes:
incluso si la robas, sería admisible”.162 Sólo hacia
el final del último siglo esta posición ha devenido
más restrictiva permitiendo a los jueces excluir
prueba relevante,163 si fue obtenida ilegalmente
y su admisión sería contraria a un juicio justo o
lesionaría la regla contra la auto-incriminación.164
El gran avance actual, dando más peso a consideraciones de principios de derechos humanos,
fue llevado a cabo con la Ley de Policía y Prueba
Criminal de 1984 (Police and Criminal Evidence
Act 1984, PACE)165 y la Ley de Derechos humanos de 1988 (Human Rights Act 1998) que incorporó el CEDH, especialmente su artículo 6.166 El
sistema actual puede ser descrito todavía como
flexible, pues en general la admisibilidad de la
prueba es decidida sobre la base de un análisis
del caso concreto por medio de una ponderación
de intereses (derechos vs. condena).167
Las secciones 76 (2) y 76A (2) PACE prevén que las confesiones obtenidas por medio de
“opresión” o a través de un interrogatorio y que
resulten “no fiables” “no deberán” ser admitidas
como evidencia.168 Esto es una regla de exclusión169 que primero estaba justificada en la inherente falta de fiabilidad de tal evidencia y luego,
además, en el principio nemo tenetur y en la
importancia de un adecuado comportamiento de
la policía hacia las personas bajo custodia.170 El
término “opresión” debe ser entendido de manera
amplia, incluyendo, en particular, a la tortura
(sub-sección 8).171 De acuerdo a la sección 78,
el tribunal puede excluir prueba que pueda tener
un “efecto adverso para un justo proceso”.172 Por
lo tanto, el juez tiene discreción173 para excluir
prueba que es, siguiendo la regla tradicional del
common law, admisible en principio, pero que
in casu sería contraria a un juicio justo,174 en
particular si ella “ha sido obtenida de un modo indignante para los valores civilizados”.175 Aunque
el argumento del juicio justo fue reforzado con
la Ley de derechos humanos, está íntimamente
relacionado con la idea de preservar la integridad
moral del procedimiento penal y evitar el abuso
de proceso.176 Esta última doctrina prohíbe “el
ejercicio arbitrario, opresivo o abusivo del poder
estatal”, en particular “recibir prueba en un procedimiento en curso, si al hacer ello se ayudaría
o premiaría la comisión de alguno de tales ilícitos
por una agencia del estado”.177 Sin embargo, aunque la sección 78 parece haberse “convertido en
un bastión primario de la lealtad y la integridad
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 145-172, fevereiro/2010
159
AMBOS, K
moral en el proceso penal inglés”,178 la regla
está limitada a la prueba de la acusación179 y
la jurisprudencia proporciona pocas pautas en
cuanto a su aplicación concreta, a excepción de
requerir una violación de la regla significativa y
sustancial.180 Es controvertido si la sección 78 es
aplicable a la prueba (transnacional) obtenida por
medio de tortura sin intervención de autoridades
británicas. Aunque el uso de tortura tendría que
ser considerado con seguridad como una violación de la regla significativa y sustancial, una
cuestión diferente es si esto también hace inadmisible la prueba obtenida por medio de tortura
por parte de autoridades extranjeras. La Corte
de Apelaciones en A and others lo rechazó,181
Lord Bringham lo afirmó con el argumento de
que la doctrina del abuso de proceso también
es aplicable si el fundamento del caso sería
moralmente inaceptable.182 Lord Nicholls invoca la condena universal y la repugnancia de la
tortura para justificar su exclusión. Él distingue,
además, entre el uso preventivo de la tortura por
la policía para evitar que explote una “bomba de
tiempo activada”183 y el uso represivo de prueba
para lograr la convicción del acusado. Mientras
el primero puede ser considerado correcto, el
último no puede ser admitido.184 La distinción
entre tortura preventiva y tortura represiva es
en efecto importante y nos recuerda a la controvertida discusión de la punibilidad del torturador
(preventivo) en los casos de una bomba a punto
de explotar, en los cuales era indiscutido que
tal evidencia no podía ser usada en un proceso
penal.185 En síntesis, la prueba transnacional sólo
puede ser admitida si en el Estado extranjero han
sido respetadas las reglas de procedimiento.186
Éste no es el caso si la prueba fue obtenida por
medio de tortura. La admisión de dicha evidencia
dañaría siempre, independientemente de su proveniencia, la integridad del proceso y constituiría
un abuso de proceso.
y Gran Bretaña (II.) indican que la prohibición
del uso de prueba obtenida por medio de tortura
es “categórica” y que, como tal, se extiende
también a la prueba transnacional obtenida por
autoridades extranjeras con aplicación de tortura,
aunque no estén involucradas en ningún modo las
autoridades nacionales (segunda situación, ver la
introducción y B in fine). La regla de exclusión
respectiva también es aplicable, a fortiori, a la
primera situación arriba descrita, en la cual un
Estado produce tal evidencia de manera proactiva o, al menos, está involucrado en su producción. Cualquier otra conclusión dejaría abiertas
las puertas a dobles estándares y socavaría la
naturaleza absoluta de la prohibición de tortura.
Para la primera situación de un Estado
proactivo puede hacerse un argumento adicional
a favor de la regla de exclusión: de acuerdo con
el art. 3 CEDH (o art. 7 PIDCP) un estado parte
está obligado a abstenerse de cualquier acto que
pudiera exponer a personas bajo su jurisdicción
a la tortura; en particular, está establecido que
una persona no debe ser extraditada a un Estado donde corre el riesgo de ser torturada.187 El
Estado que recibe la solicitud de extradición
(Estado requerido) es considerado en esta situación responsable por la violación del art. 3
CEDH, dado que posibilita la violación en el
estado requirente, aun cuando ésta no fuera su
intención. una situación aún peor existe en el
caso de extradición a un Estado torturador: el
Estado que entrega a la persona hace posible la
tortura en el Estado receptor e incluso se propone
hacerlo.188 Este Estado tuvo, por tanto, “jurisdicción” en el sentido del art. 1 CEDH sobre la
persona entregada.189 De manera similar, si el
Estado que recibe la prueba estuvo involucrado
en su producción (ilegal), su subsiguiente uso
constituye un abuso de proceso.190
D. La carga y el estandard de prueba
iii. Segunda conclusión intermedia
con respecto a la prueba trasnacional obtenida por medio de tortura
Tanto el derecho internacional aplicable
(supra I.) como el derecho nacional de Alemania
160
Aunque las consideraciones precedentes
tomaron por cierto que la tortura, dejando de
lado los problemas de definición191, había sido
efectivamente aplicada, en la práctica a menudo
esto es desconocido y en consecuencia se plantea
la cuestión de a quién corresponde la carga de
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 145-172, fevereiro/2010
EL uSO “TRANSNACIONAL” DE PRuEBA OBTENIDA POR MEDIO DE TORTuRA
la prueba y qué estandard de prueba ha de ser
aplicado.
Generalmente, la carga de la prueba sólo
puede ser distribuida entre las diferentes partes
en un tipo de procedimiento que deja la responsabilidad de la producción y presentación de la
prueba en las manos de esas partes. En dicho sistema adversarial, como el inglés, la carga de la
prueba en cuanto a la culpabilidad corresponde
normalmente a la fiscalía, pero en cuanto a otros
elementos de prueba, como principio general del
common law, a la parte que los quiere invocar.192
Por el contrario, en un sistema de tipo inquisitivo
o dirigido por un juez, como el alemán, siempre
es el Estado (el ministerio público fiscal o el
juez), y no las partes, quien debe indagar sobre
el asunto. Si bien el acusado puede proponer
prueba relevante, el tribunal no depende de esta
actividad. El juez está obligado a investigar los
hechos “ex officio” (véase el § 244 (2) OPP)
extendiendo la recepción de prueba a todos los
hechos relevantes para el caso.193
En cuanto a la prueba (transnacional)
obtenida bajo tortura es discutible si el enfoque
ordinario arriba descrito es apropiado. En un
procedimiento adversarial, esto significaría que
el acusado tendría que probar la aplicación de
tortura, dado que él quiere aducir este argumento para anular evidencia; en un procedimiento
inquisitivo, el tribunal debe investigar el asunto,
pero el riesgo de que no pueda ser probado es
cargado al acusado.194 Así, en Motassadeq, el
Tribunal Superior estadual de Hamburgo no
tuvo por probado que las declaraciones de tres
testigos, cuyos resúmenes fueron remitidos por
autoridades estadounidenses, habían sido obtenidas por medio de tortura y, en consecuencia,
fueron admitidas como evidencia.195 Ninguno de
estos enfoques es apropiado por razones prácticas y por consideraciones relacionadas con el
principio del juicio justo. En términos prácticos,
es difícil para el acusado probar el uso de tortura
si él no fue la víctima de ella y en consecuencia
no tiene signos físicos para demostrarla. En
casi todos los casos de posible tortura de un
testigo, el acusado no está en posición de aducir
hechos fiables para probar la tortura.196 Por lo
tanto, del acusado no puede esperarse más que
“exponga alguna razón plausible (…) de que la
prueba ha venido, o es probable que haya venido,
de uno de aquellos países que ampliamente se
sabe o se cree que practican la tortura”.197 En
efecto, la sección 78 PACE permite a la Corte
excluir evidencia si lo cree necesario, para lo
que sería suficiente con que la defensa plantee
la cuestión.198 Con esto, la carga de la prueba
se traslada a la parte que aduce la prueba que
supuestamente ha sido obtenida por medio de
tortura, esto es, esta parte, normalmente el Estado, debe probar que no se ha aplicado tortura o
que no existe un “riesgo real” en este sentido.199
Esto está en conformidad con la interpretación
que hace el Comité contra la Tortura del art. 15
CT-ONU según la cual la disposición supone
un deber positivo del estado de examinar si
declaraciones llevadas ante sus tribunals han
sido hechas bajo tortura.200 En un sistema inquisitivo, la misma solución podría ser alcanzada
mediante una aplicación analógica del principio
in dubio pro reo, usualmente aplicable sólo con
respecto a hechos relativos a la culpabilidad
del acusado,201 al caso de prueba producida por
medio de tortura o por métodos comparables.202
Si, como en Motassadeq, el uso de tortura no
puede ser probado, la duda operaría a favor
del acusado, es decir, se debería suponer que la
prueba controvertida fue producida bajo tortura
y, en consecuencia, no podría ser admitida. A
su vez, la prueba solamente puede ser admitida
si el uso de tortura puede ser definitivamente
refutado.203 En este sentido ya ha decidido el
BGH que en caso de faltar los puntos de apoyo
suficientes y confiables para una instrucción
exitosa, las correspondientes manifestaciones
del acusado no pueden ser valoradas.204 El
BGH así implícitamente y en favor del acusado
parte de la falta de instrucción, cuando ésta no
es seguro que pueda ser probada de acuerdo al
convencimiento del Tribunal de juicio.
Estas consideraciónes evidencian que la
cuestión de la carga de la prueba está relacionada con el estandard de la prueba. Mientras que
en un sistema adversarial debe exigirse desde un
principio un cambio de la carga de la prueba,
en un sistema inquisitivo la cuestión no es la
carga sino en estandard de prueba, dado que
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 145-172, fevereiro/2010
161
AMBOS, K
la primera recae de todas maneras en el Estado
(tribunal). La cuestión crucial entonces es qué
necesita ser demostrado para excluir la prueba:
¿es suficiente con que haya un riesgo real o alta
probabilidad de que la tortura fue aplicada o
debe ser probada plenamente? Mientras que la
Casa de los Lores siguió la primera posición,
más flexible en A and others (la minoría205 optó
por un “riesgo real”, la mayoría206 por “alta
probabilidad”), el Oberlandesgericht de Hamburgo207 siguió la última posición más estricta.
Esta posición parece encontrar un sostén en
el art. 15 de la CT-ONU que se refiere a una
declaración “que se demuestre que ha sido
hecha como resultado de tortura”,208 es decir,
la aplicación de tortura debe ser efectivamente
“demostrada”. Sin embargo, otra vez aquí se
plantea la cuestión de si un estandard estricto
de este tipo es apropiado a la luz de las dificultades para probar con certeza el uso de tortura
por parte de un Estado extranjero. Este Estado
difícilmente cooperará en el esclarecimiento
de los hechos209 y sin su cooperación es difícil
encontrar prueba segura para probar la tortura.
Además, el riesgo real o aún la alta probabilidad
de que la prueba fue obtenida por medio de tortura es suficiente para contaminar la evidencia
y así desacreditar el procedimiento. Finalmente,
para un verdadero Estado de Derecho el riesgo
real, es decir, la posibilidad seria de que haya
sido utilizada prueba obtenida por medio de
tortura debe ser suficiente para tornar insostenible el proceso.210 Por todas estas razones,
debe considerarse suficiente el estandard de un
riesgo real, serio.211
Conclusión final: Contra la
admisión de prueba transnacional
obtenida por medio de tortura
El análisis del derecho de los tribunales penales internacionales ha mostrado que la prueba
(supranacional) obtenida por medio de tortura
no debe ser admitida, dado que tal prueba no es
fiable y daña la integridad del proceso (B. III.).
Lo mismo vale para la admisión ante tribunales
nacionales de prueba (transnacional) obtenida
162
por medio de tortura (C. III.). La estricta regla
de exclusión del art. 15 CT-ONu confirma este
punto de vista. La ratio de esta regla es la no fiabilidad general de prueba obtenida por medio de
tortura, su carácter lesivo de valores civilizados
y su efecto degradante sobre la administración
de justicia.212 Dada la desventaja de la defensa
en el proceso penal, la carga de la prueba debe
recaer en la parte que quiere presentar la prueba
controvertida, es decir, el Estado. Por consideraciones prácticas y fundamentales basadas en el
principio del juicio justo tal evidencia no debe
ser admitida si hay un riesgo real, serio de que
haya sido obtenida por medio de tortura (D.).
notas
“May a State Torture Suspects to Save the Life of Innocents?”, en Journal of International Criminal Justice
(“JICJ”), núm. 6 (2), 2008, pp. 261-288; en castellano
en: Revista Penal (España), 2009, núm. 24 (en edición).
2
Véase, por ejemplo, el § 136 a (1) de la Ordenanza Procesal Penal alemana (Strafprozessordnung, “StPO”), cuya
traducción es la siguiente: “La libertad de resolución y
manifestación de la voluntad del imputado no puede ser
afectada a través de malos tratos, cansancio, injerencia
corporal, suministro de sustancias, tortura, engaño o
hipnosis. Sólo puede emplearse coerción si el derecho
procesal penal lo permite. La amenaza de efectuar una
medida inadmisible según sus disposiciones y la promesa
de una ventaja no prevista legalmente están prohibidas”.
El apartado (3) expresa: “La prohibición de los apartados
(1) y (2) rige independientemente del consentimiento del
imputado. Las declaraciones que han sido obtenidas en
violación de esta prohibición no pueden ser valoradas,
aun cuando el imputado consienta su valoración”. Véase
también el § 166 de la Ordenanza Procesal Penal austríaca
(Strafprozessordnung): “En perjuicio del acusado […] no
está permitido usar su testimonio, así como aquellos de
testigos y co-acusados, como prueba, si ellos: 1. Fueron
obtenidos bajo tortura (art. 7 PIDCP, [...], art. 3 CEDH,
[...], y art. 1 (1) y 15 CT-ONu […]) […]”. Véase también
el art. 171 § 5 del Código Procesal Penal polaco (Kodeks
Postêpowania Karnego) según el cual no está permitido
“influir la declaración de la persona bajo examen a través
de coerción o amenaza ilícita” y el art. 170 § 1 (1) según
el cual una solicitud probatoria referida a tal evidencia
será denegada. En el procedimiento francés todo acto de
investigación puede ser apelado ante la
Chambre d’Instruction, la cual puede declararlo nulo y
excluir la evidencia así obtenida (“requête en nullité”,
Art. 170-174 Code de Procédure Pénale) cf. STEFANI,
G. / LEVASSEuR, G. / BOuLOC, B, Procédure pénale,
Paris, Dalloz, 21.ed. 2008, número marginal (“nm”) 107,
1
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 145-172, fevereiro/2010
EL uSO “TRANSNACIONAL” DE PRuEBA OBTENIDA POR MEDIO DE TORTuRA
777; PFEFFERKORN, F., Einführung in das französische
Strafverfahren, Hamburg, Lit, 2006, pp. 176, 178. Sobre
la Ley de Policía y Prueba Criminal inglesa (Police and
Criminal Evidence Act; en adelante PACE: Police and
Criminal Evidence Act) de 1984 véase infra C. II. 2.
3
Para un análisis detallado, véase infra C. I.; véase también
THIENEL, T., “The Admissibility of Evidence Obtained
by Torture under International Law”, en European Journal of International Law (“EJIL”), 2006, núm.17(2), pp.
349-367, p. 356 ss.
4
BELING, E., Die Beweisverbote als Grenzen der
Wahrheitsfindung im Strafprozess, Breslau, Schletter, 1903
(Address inaugural en la universidad de Tübingen); ya
antes: BENNECKE/ BELING, Lehrbuch des Deutschen
Reichs-Strafprozessrechts, Breslau, Schletter, 1900, §§
83 3., pp. 327 ss. Véase también SENGE, L., en Karlsruher Kommentar zur Strafprozessordnung, München,
Beck, 6.ed. 2008, antes del § 48 nm. 20; JAHN, M.,
“Beweiserhebungs- und Beweisverwertungsverbote im
Spannungsfeld zwischen den Garantien des Rechtsstaats
und der effektiven Bekämpfung des Terrorismus”, en:
Verhandlungen zum 67. Deutschen Juristentag [„DJT“]
Erfurt 2008, vol. I, Gutachten [estudios] Parte C, C 1-128,
en C 21.
5
Véase también: HENKEL, H., Strafverfahrensrecht,
Stuttgart et al., Kohlhammer, 1968, p. 271; OTTO, H.,
“Grenzen und Tragweite der Beweisverbote im Strafverfahren”, en Goltdammer’s Archiv für Strafrecht (“GA”),
núm. 117, 1970, pp. 289-305, p. 289.
6
Véasse OTTO, supra nota 5, p. 291, donde se refiere a
Beling.
7
Véase también: BELING, supra nota 4, p. 37: „Allseitig
einverstanden wird man darüber sein, dass auch der Strafprozess die M e n s c h e n w ü r d e achten muss, und dass
daher ein unlöslicher Konflikt zwischen Menschenwürde
und Strafprozessinteresse zu einem Beweisverbot führen
muss. (…) Aber auch von der Menschenwürde abgesehen
wird die moderne Anschauung – und sicher mit Recht –
darauf bestehen, dass jedem seine P e r s ö n l i c h k
e i t s s p h ä r e vor Staatszugriff sichergestellt werde,
auch im Strafprozess.” [“Existirá acuerdo en torno a que
también el proceso penal debe tener en consideración la
dignidad humana, y que consecuentemente de allí surge
un conflicto insoluble entre dignidad humana e intereses
del proceso penal, que conlleva a una prohibición de prueba. (…) Pero, aún dejando de lado la dignidad humana,
la opinión moderna seguirá afirmando- y seguramente
con razón- que la esfera de la personalidad de cualquier
individuo debe ser asegurada ante la intervención estatal,
también en el proceso penal.”] (énfasis en el original).
Véase también: ROGALL, K., “Gegenwärtiger Stand und
Entwicklungstendenzen der Lehre von den strafprozessualen Beweisverboten”, en Zeitschrift für die gesamte
Strafrechtswissenschaft (“ZStW”), 1979, núm. 91, pp.
1-44, p. 9; EISENBERG, u., Beweisrecht der Strafprozessordnung, München, Beck, 6.ed. 2008, Parte 1, Cap. 3
párr. 330; KÜHNE, H.-H., Strafprozessrecht, Heidelberg,
Müller, 7.ed. 2007, nm. 880.
8
ROGALL, supra nota 7, p. 6.
9
BGH, Sentencia, 14 de junio de 1960, reimpreso en BGHSt
14, p. 358, p. 365 = Neue Juristische Wochenschrift
(“NJW”), 1960, núm. 13, p. 1580 ss., 1582: „Allerdings
hat diese Rechtsauffassung zur Folge, daß wichtige, unter
umständen die einzigen Mittel zur Aufklärung von Straftaten unbenutzt bleiben. Das muß jedoch hingenommen
werden. Es ist auch sonst kein Grundsatz der StPO, daß
die Wahrheit um jeden Preis erforscht werden müßte (§§
245, 52 ff., 252, 81 a ff., 95 ff., 69 Abs. 3 StPO).” [“Sin
embargo, esta interpretación jurídica tiene por consecuencia que importantes medios para el esclarecimeinto de
delitos – en ciertos casos, los únicos medios – no puedan
ser utilizados. Sin embargo, esto debe ser tolerado. No es
un principio de la OPP, que la verdad deba ser investigada
a cualquier precio (§§ 245, 52 ss., 252, 81 a ss., 95 ss., 69
apartado 3 OPP”]. Véase también BGH, Sentencia, 17 de
marzo de 1983 reimpresa en BGHSt 31, p. 304, p. 309 =
NJW, 1983, núm. 36, p. 1570 ss., p. 1571: „[…] die StPO
zwingt nicht zur Wahrheitserforschung um jeden Preis.”
[“(…) el OPP no obliga a la investigación de la verdad a
cualquier precio.”].
10
Véase más reciente KELKER, B., “Die Rolle der Staatsanwaltschaft im Strafverfahren”, en ZStW, 2006, núm.
118 (2), pp. 389-426, p. 420 ss.; para una perspectiva con
base en principios constitucionales véase MuRMANN,u.,
“Über den Zweck des Strafprozesses”, en GA, 2004, núm.
151, pp. 65-86, p. 65 ss.; en particular sobre la relación
sujeto-objeto ROBERTS, P., “Subjects, objects, and values in criminal adjudication”, en DuFF, A./ FARMER,
L./ MARSHALL, S./ TADROS, V. (coord.), The trial on
trial. Vol. 2. Judgment and calling to account, Oxford et
al., Hart, 2006, pp. 37-64, p. 40 ss.
11
SCHMIDT, E., “Zur Frage der Eunarkon-Versuche in
der gerichtlichen Praxis”, en Süddeutsche Juristenzeitung
(„SJZ”), 1949, p. 449, p. 450.
12
Originalmente así en especial ROGALL, supra nota 7,
p. 16 ss.
13
Es controvertido, sin embargo, si información exculpatoria no debería ser siempre admitida en la prueba ya que
opera en favor del acusado (en este sentido ROxIN, C./
SCHÄFER, G./ WIDMAIER, G., “Die Mühlenteichtheorie, Überlegungen zur Ambivalenz von Verwertungsverboten”, en Strafverteidiger (“StV”), 2006, núm. 26, pp. 655660, pp. 656, 659, 660; ROxIN, C., “Beweisverwertungsverbot bei bewußter Mißachtung des Richtervorbehalts
(Bspr. von BGH StV 2007, 337)”, en Neue Zeitschrift für
Strafrecht (“NStZ”), 2007,núm. 27, pp. 616-618, p. 618;
conc. JAHN, supra nota 4, C 112 ss. (114).
14
Sobre esta teoría “vindicativa“ [„vindication”] o “curativa“
[“remedial”] crit. ROBERTS, P./ ZuCKERMAN, A., Criminal Evidence, Oxford et al., OuP, 2004, pp. 151, 152 ss.
15
Sobre este aspecto véase también SCHMIDT, E.,
Lehrkommentar zur Strafprozessordnung und zum
Einführungsgesetz zur Strafprozeßordnung, Göttingen,
Vandenhoeck & Ruprecht, 1957, vol. II, § 136a nm. 21
con su doctrina de la superioridad moral del Estado, sobre
la cual se desarrolla la exigencia de un juicio justo (ibid.,
vol. I, nms. 40, 44, 49). Esta dirección sigue también la
doctrina de Gerhard FEZER sobre la función autolimitativa
del Estado, en: id., Grundfragen der Beweisverwertungsverbote, Heidelberg, Müller, 1995, p. 20 ss.
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 145-172, fevereiro/2010
163
AMBOS, K
BEuLKE, W., Strafprozessrecht, Heidelberg, Müller,
10.ed. 2008, nm. 454; FINGER, T., “Prozessuale Beweisverbote – Eine Darstellung ausgewählter Fallgruppen”,
en Juristische Arbeitsblätter (“JA”), 2006, núm. 38, pp.
529-539, p. 530.
17
Mapp v. Ohio, 367 u.S., p. 659 [“the imperative of judicial integrity”]; véase DRESSLER, J., understanding
Criminal Procedure, Newark, NJ, LexisNexis, 3.ed. 2002,
p. 381, señalando sin embargo también la jurisprudencia
subsiguiente, que está cerca de renunciar por completo a
la regla de exclusion de la Cuarta Enmieda.
18
ROBERTS /ZuCKERMAN, supra nota 14, p. 157 ss.
19
El efecto “disciplinario” o “disuasivo” es controvertido:
a favor la Suprema Corte de Justicia de uSA desde Mapp
v. Ohio, véase DRESSLER, supra nota 17, pp. 381-382;
crítico en cambio OTTO, supra nota 5, pp. 292, 301, argumentando que las reglas de exclusión son “kein geeignetes
Mittel zur Disziplinierung der Strafverfolgungsorgane”
[“no son un método adecuado para el disciplinamiento
de los órganos investigadores”]; crit. también ROBERTS
/ ZuCKERMAN, supra nota 14, p. 155 ss.; también en
esta línea crítica la decisión 2 d) de la sección de Derecho
Penal del 67mo. Deutschen Juristen Tag (Erfurt 2008),
de acuerdo con la cual la función de las prohibiciones o
exclusiones probatorias no debería ser el mantenimiento de
la conducta legal de las instancias investigadoras (42 votos
a favor, 31 en contra, 5 abstenciones). Véase, por otro lado,
sobre las consecuencias prácticas para el entrenamiento
policial ARLOTH, F., “Dogmatik in der Sackgasse – Zur
Diskussion um die Beweisverwertungsverbote”, en GA,
2006, núm. 153, pp. 258-261, p. 259; en esta línea más
positiva también PRITTWITZ, C., “Richtervorbehalt,
Beweisverwertungsverbot und Widerspruchslösung bei
Blutentnahmen gem. § 81 a Abs. 2 StPO”, en StV, 2008,
núm. 28, pp. 486-494, p. 494; JAHN, supra nota 4, C 57 ss.
20
See AMELuNG, K., “Zum Streit über die Grundlagen
der Lehre von den Beweisverwertungsverboten”, en Festschrift für Claus Roxin, Berlin u.a., de Gruyter, 2001, pp.
1259-1280, p. 1279; JÄGER, M., Beweisverwertung und
Beweisverwertungsverbote im Strafprozess, München,
Beck, 2003, p. 128.
21
Bundesverfassungsgericht (Tribunal Constitucional) Entscheidungen (Fallos), vol.44, p. 353, aquí p. 374.
22
ROBERTS / ZuCKERMAN, supra nota 14, p. 159 [“simple, algorithmic, all-purpose rule”].
23
NEMITZ, J. C., “Die Hauptverhandlung unter besonderer
Berücksichtigung des Beweisrechts”, en Internationale
Strafgerichtshöfe, 2005, núm. 53.
24
MAY, R. / WIERDA, M., International Criminal Evidence, Ardsley/NY, Transnational Publishers, 2002, p. 93;
AMBOS, K., “The Structure of International Criminal
Procedure: Adversarial, Inquisitorial or Mixed?”, en BOHLANDER, M. (coord.), International Criminal Justice:
A Critical Analysis of Institutions and Procedure, London,
Cameron May, 2007, pp. 429-503, p. 477 ss.; Id., Internationales Strafrecht, München, Beck, 2.ed. 2008, § 8 nm. 32.
25
ARCHBOLD, International Criminal Courts (KAHN,
K.A.A. et al. eds.), 2.ed. 2005, § 9-1 [“to combine the
legal traditions of many countries“].
26
Cf. MAY / WIERDA, supra nota 24, pp. 95, 98 ss.; AR16
164
CHBOLD, supra nota 25, § 9-2.
NEMITZ, supra nota 23, p. 56.
28
[“a chamber may admit any relevant evidence which it
deems to have probative value” – 89 (C) –], [“may exclude
evidence if its probative value is substantially outweighed
by the need to ensure a fair trial” – 89 (D) –].
29
[“if it’s probative value is substantially outweighed by
the need to ensure a fair trial”]. Véase MAY / WIERDA,
supra nota 24, p. 100; también SCHABAS, W., The uN
International Criminal Tribunals –The Former Yugoslavia,
Rwanda and Sierra Leone, Cambridge et al., CuP, 2006,
p. 459.
30
[“No evidence shall be admissible if obtained by methods which cast substantial doubt on its reliability or if its
admission is antithetical to, and would seriously damage,
the integrity of the proceedings.”].
31
Para este punto de vista SAFFERLING, C. J. M., Towards an International Criminal Procedure, Oxford et
al., OuP, 2003, p. 295; para un punto de vista diferente
NEMITZ, supra nota 23, p. 70; según el cual la regla 95
sólo tiene una “klarstellende Bedeutung” [“una función
de clarificación”].
32
Cf. NEMITZ, supra nota 23, p. 70.
33
[“outweighed by the need …”].
34
[“cast substantial doubt on its reliability”], [“antithetical”],
[“seriously damage”].
35
Rule 89 (D): A Chamber may exclude evidence if its
probative value is substantially outweighed by the need
to ensure a fair trial.
36
Citado según CALVO-GOLLER, K. N., The Trial Proceedings of the International Criminal Court – ICTY and ICTR
Precedents, Leiden et al., Nijhoff, 2006, p. 97 [„which
constitute a serious violation of internationally protected
human rights”]; véase también ZAPPALà, S., Human
Rights in International Criminal Proceedings, Oxford et
al., OuP, 2003, p. 151. El título original rezaba: “Evidence
obtained by means contrary to international protected
human rights.” [“Prueba obtenida por medios contrarios
a los derechos humanos internacionalmente protegidos.“]
(modificado en la 12ava revisión de las RPP).
37
[“a serious violation of internationally protected human
rights”].
38
Como expuesto por CALVO-GOLLER, K. N., supra nota
36, p. 97 [“no longer a matter of means but one of result”].
39
Véase, por todos, IGNOR, A., Geschichte des Strafprozesses in Deutschland 1532-1846, Paderborn et al.,
Schöningh, 2002, p. 163 ss., señalando que la tortura no
sólo era considerada como inhumana, sino también cada
vez más como ineficiente para la persecución y castigo de
los verdaderos criminales.
40
LANGBEIN, J. H., Torture
and the Law of Proof, Europe and England in the Ancien
Régime, Chicago, uCP, 2006, p. 8; KÜHNE, supra nota
7, nm. 890; PATTENDEN, R., “Admissibility in Criminal
Proceedings of Third Party and Real Evidence Obtained
by Methods Prohibited by uNCAT”, en The International
Journal of Evidence & Proof, 2006,
núm. 10, pp. 1-41, p. 6 ss.
41
LANGBEIN, supra nota40, p. 5.
42
BuRGERS, J. H./ DANELIuS, H.,
27
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 145-172, fevereiro/2010
EL uSO “TRANSNACIONAL” DE PRuEBA OBTENIDA POR MEDIO DE TORTuRA
The united Nations Convention Against Torture – A Handbook on the Convention Against Torture and Other Cruel
Inhuman and Degrading Treatment and Punishment,
Dordrecht et al., M. Nijhoff, 1988, p. 148.
43
[“antithetical”] [“Would seriously damage the integrity
of the proceedings”].
44
[“antithetical”] [“seriously damage the integrity of the
proceedings”]. Véase, por ejemplo, Prosecutor v. Brdjanin,
Case No. IT-99-36-T, Decision on the Defence Objection
to Intercept Evidence (Oct. 3, 2003), par. 61 ss.
45
Prosecutor v. Furundzija, Case No. IT-95-17/1, Judgment,
(Dec. 10, 1998), par. 144, 153 s.
46
Id. par. 154 [“one of the most fundamental standards of
the international community”]; para ulteriores referencias
véase AMBOS, supra nota 1,p. 265 s.; recientemente
MÖHLENBECK, M., Das absolute Folterverbot, Frankfurt a.M., Lang, 2008, p. 39 ss.
47
Véase Prosecutor v. Nikolic, Case No. IT-94-2-PT,
Decision on Defence Motion Challenging the Exercise
of Jurisdiction by the Tribunal, (Oct. 9, 2002), par. 114;
también citado en Prosecutor v. Nikolic, Case No. IT-942-AR73, Decision on Interlocutory Appeal Concerning
Legality of Arrest (June 5, 2003), par. 28.
48
Prosecutor v. Nikolic (June 5, 2003), supra nota 47, par.
30 [“In circumstances where an accused is very seriously
mistreated, maybe even subject to (…) torture, before
being handed over to the Tribunal, this may constitute a
legal impediment to the exercise of jurisdiction over such
an accused. This would certainly be the case where persons
acting for SFOR or the Prosecution were involved in such
very serious mistreatment (…). (…) it would be inappropriate for a court of law to try a victim of these abuses”].
49
SAFFERLING, supra nota 31, p. 292.
50
La nueva Ordenanza Procesal Penal de 2004 concede tal
derecho, ver la sección 164 (2).
51
Prosecutor v. Delalic et al., Case No. IT-96-21-T, Decision
on Zdravko Mucic´s Motion for the Exclusion of Evidence
(Sept. 2, 1997), par. 52.
52
Prosecutor v. Barayagwiza, Case No. ICTR-97-19-AR72,
Decision (Nov. 3, 1999).
53
Id. par. 73 [“even if fault is shared between the three
organs of the Tribunals – or is the result of the action of a
third party, such as Cameroon – it would undermine the
integrity of the judicial process to proceed. Furthermore
it would be unfair for the Appellant to stand trial on these
charges if his rights were egregiously violated. Thus, under
the abuse of process doctrine, it is irrelevant which entity
or entities were responsible for the alleged violations of
the Appellant’s right.“].
54
Prosecutor v. Barayagwiza, Case No. ICTR-97-19-AR72,
Decision (Mar. 31, 2000), par. 71, refiriéndose a nuevos
hechos que “diminish the role played by the failings of the
prosecutor as well as the intensity of the violation of the
rights of the appellant.” [“disminuyen el rol jugado por
los defectos del procurador, así como la intensidad de la
violación de los derechos del apelante.”].
55
Véase Prosecutor v. Brdjanin, supra nota 44, par. 63 (no.
9) [“function of this Tribunal is not to deter and punish
illegal conduct by domestic law enforcement authorities
by excluding illegally obtained evidence”]; véase también
Prosecutor v. Kordic et al., Case No. IT-95-14/2-T, Oral
Decision of Judge May (Feb. 2, 2000), Transcript 13671:
“It´s not the duty of this Tribunal to discipline armies or
anything of that sort” [“No es deber de este Tribunal el
disciplinar ejércitos o nada semejante”] (referida en Brdjanin, como citada).
56
Véase SLuITER, G., “International Criminal Proceedings
and the Protection of Human Rights”, en New England
Law Review, 2002-2003, núm. 37, pp. 935-948, p. 941
con varias referencias en la nota 25.
57
Supra nota 4 [“one of the most fundamental standards of
the international community”].
58
Tal ponderación también puede ser identificada en Brdjanin, supra nota 44, par. 63 (no.7) y 63 (no. 8) donde la
Sala expresa (con referencia a Prosecutor v. Delalic et al.,
Case No. IT-96-21-T, Decision on the Tendering of Prosecution Exhibits 104-108 (Feb. 9, 1998) par. 18-20) que
su tarea sería puesta en peligro si la prueba no pudiera ser
admitida a causa de “a minor breach of procedural rules”
[“una violación menor a reglas de procedimiento”], dada
la gravedad de los casos que ella debe resolver en general
e in casu dada la gravedad de los cargos contra el acusado.
En consecuencia, “it would be utterly inappropriate to exclude relevant evidence due to procedural considerations,
as long as the fairness of the trial is guaranteed.” [“sería
completamente inapropiado excluir prueba relevante
debido a consideraciones de procedimiento, en tanto en
cuanto la lealtad del juicio esté garantizada.”].
59
En forma similar SLuITER, supra nota 56, pp. 946-947,
enfatizando la naturaleza de la violación.
60
Sobre la base de la doctrina (“nacional”) de la bandeja
de plata [“silver platter doctrine”], originalmente la Corte
Suprema también permitió el uso en las Cortes federales de
prueba que había sido obtenida ilegalmente por oficiales de
los Estados. Pero posteriormente denunció esta posición
en el caso Elkins v. united States, 364 u.S. 206, 80 S.Ct.
1437 u.S. (1960), véase WORRALL, J. L., Criminal Procedure, Boston, Pearson Allyn & Bacon, 2.ed. 2007, p. 55.
61
united States v. Janis, 428 u.S. 433, 455 n. 31 (1976).
62
united States v. Fernandez-Caro, 677 F.Supp. 893, 894
(S.D. Tex. 1987) [“shocks the conscience of American
court.”]: “If conduct of foreign officers «shocks the conscience of American court, fruits of their mischief will be
excluded under Fourth Amendment».“ [“Si la conducta de
oficiales extranjeros «conmueve la conciencia de la Corte
Americana, los frutos de su ilícito serán excluidos bajo
la Cuarta Enmienda».”]. Véase recientemente SCHARF,
M. P., “Tainted provenance: When, if ever, should Torture
Evidence be admissible?”, en Washington and Lee Law
Review, 2008, núm. 65, pp. 129-172, p. 151 ss., extendiendo este argumento al uso por los tribunales de prueba
obtenida por terceros mediante tortura.
63
Cf. SLUITER, supra nota 56, pp. 942 ss. argumentando incluso que “every human rights violation” [“toda violación
a derechos humanos”] debe ser tomada en consideración.
64
ZAPPALà, supra nota 36, refiriéndose al Segundo informe
anual del TPIY (ICTY Second Annual Report), par. 26
incluida la nota 9 en conjunto con el título (“To broaden
the rights of suspects and accused persons”), disponible
en internet: www.un.org/icty/rappannu-e/1995/index.htm
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 145-172, fevereiro/2010
165
AMBOS, K
(consultado por última vez el 19 de febrero de 2008).
Prosecutor v. Brdjanin, supra nota 44, par. 67 [“statements,
which are not voluntary but are obtained from suspects
by oppressive conduct, cannot pass the test under Rule
95 of the Rules.”].
66
Cf. la regla 62bis RPP-TPIY que establece: “If an accused
pleads guilty in accordance with Rule 62 (vi), or requests
to change his or her plea to guilty and the Trial Chamber
is satisfied that: (i) the guilty plea has been made voluntarily; […]” [“Si un acusado se declara culpable de acuerdo
con la regla 62 (vi) o solicita cambiar su manifestación
y declararse culpable y la Sala de Juicio está satisfecha
con que: (1) la declaración de culpabilidad ha sido hecho
voluntariamente; […]”] (bastardilla agregada).
67
Claramente, la analogía con la declaración de culpabilidad
se basa en la premisa de que es una confesión, y como tal
un elemento de prueba (cf. Blackstone’s Criminal Practice
2009, Oxford 2008, F17.2 (s. 2645): “A plea of guilty is a
confession for the purposes of PACE 1984, s. 82 (1), and
as such admissible in evidence provided that the provisions
of s. 76 (2) are complied with” [“una declaración de
culpabilidad es una confesión a los fines de PACE 1984,
s. 82 (1), y como tal es admisible como prueba si están
dadas las previsiones de la sec. 76 (2)]. Estrictamente
hablando, sin embargo, se trata solo de un acto forense
y su admisión en la prueba puede variar de acuerdo a las
circunstancias del caso (cf. R v. Rimmer [1972] 1 WLR
268 CA, mentado por Blackstone tal como se cita supra,
pero remarcando la importancia de los “facts of the case”
[“hechos del caso”] y de la discreción judicial, y afirmando
que una declaración va a ser solo “rarely” [“raramente”]
admitida en la prueba [272]; véase también, recientemente, R v Adams (Ishmael) [2008] 1 Cr App R 35, [2007]
EWCA Crim 3025: “Whether a suggestion of a plea at a
case management hearing is or is not a provable admission
or is or is not a safe basis for identifying what the issue
is will vary from case to case.” [“Si la sugerencia de una
declaración de culpabilidad en la audiencia preliminar de
un caso es o no es un reconocimiento demostrable, o es o
no es una base segura para identificar cuál es la cuestión,
va a variar de caso a caso.”]).
68
En forma similar PATTENDEN, supra nota 40, p. 15.
69
[“gravest crimes that are known to mankind”].
70
SCHARF, supra nota 62, p. 155.
71
El art. 69 (4) se centra en el “valor probatorio” de la
evidencia y en el posible “perjuicio” para un juicio justo.
Véase también PIRAGOFF, D. K., en TRIFFTERER, O.
(ed.), Commentary on the Rome Statute of the International
Criminal Court, Wien, NWV, 2.ed. 2008, art. 69, nm. 9.
Las RPP-CPI no contienen reglas más concretas, véanse
las reglas 63 ss.
72
Prosecutor v. Thomas Lubanga Dyilo, Case No. ICC01/04-01/06, Decision on the confirmation of charges
(Jan 29 2007).
73
Id., par. 62 ss.
74
Id., par. 81 ss. [“internationally recognised human rights”],
par. 85 [“reliability”].
75
Id., par. 86 ss., par. 90 [“for the purpose of the confirmation
hearing”], [“limited scope”].
76
Para el mismo resultado CALVO-GOLLER, supra nota
65
166
36, p. 286, “The difficulty does not lie in cases of evidence
obtained by means of grave breaches of an internationally
recognized human right, such as torture for example, but
by means of less severe measures.” [“La dificultad no
radica en los casos de prueba obtenida por medio de graves violaciones a un derecho humano internacionalmente
reconocido, tal como la tortura por ejemplo, sino a través
de medidas menos severas.”].
77
Véase también PIRAGOFF, supra nota 71, art. 69 nm. 66
(“no distinction between evidence proffered by the Prosecutor or the accused, or requested by the Court” [“ninguna
distinción entre prueba ofrecida por el Procurador o el
acusado, o requerida por la Corte”]). El punto sin embargo
es controvertido, en cuanto a prueba obtenida mediante
tortura utilizada en contra del torturador véase la discusión
de la postura de Scharf infra notas 95 ss.
78
Art. 69 (8) ECPI: “La Corte, al decidir sobre la pertinencia
o la admisibilidad de las pruebas presentadas por un Estado, no podrá pronunciarse sobre la aplicación del derecho
interno de ese Estado.”
79
PIRAGOFF, supra nota 71, art. 69 nm. 71 [“some violations which, by their nature, are always so egregious or so
inconsistent with internationally recognized human rights
that the admission of evidence obtained”]; véase también
PATTENDEN, supra nota 40, p. 15.
80
GuARIGLIA, F./ HOCHMAYR, G. en TRIFFTERER, O.
(ed.), Commentary on the Rome Statute of the International
Criminal Court, Wien, NWV, 2.ed. 2008, art. 65, nm. 25.
81
SLuITER, supra nota 56, p. 935 [“As models for international criminal justice, the ICTY and the ICTR may be
expected to fully respect internationally protected human
rights. In the long run, the support for and confidence in
forms of international criminal adjudication, including
the recently established permanent international criminal
court (ICC) will depend on whether or not the tribunals
can live up to this expectation.”].
82
A and Others v. Secretary of State for the Home Department (No. 2) [2005] uKHL 71, [2005] 3 WLR 1249,
disponible también en internet: www.publications.parliament.uk/pa/ld200506/ldjudgmt/jd051208/aand-1.htm
(consultada por última vez el 25 de febrero de 2008) [en
adelante A and others, HL].
83
Las secciones 21 a 32 de esta ley han sido revocadas por
la Prevention of Terrorism Act 2005 [“Ley de prevención
de Terrorismo de 2005”], la cual fue luego enmendada
por la Counter-Terrorism Act 2008 [“Ley de ContraTerrorismo”] (véase <www.statutelaw.gov.uk>) (véase
también WALKER, C., “Keeping Control of Terrorists
without Losing Control of Constitutionalism”, en Stanford
Law Review, 2007, pp. 1395-1463.
84
A and others, HL, supra nota 78, para. 10 (Lord Bingham)
[“irrespective of where, or by whom, or on whose authority
the torture was inflicted.”].
85
OLG Hamburg, Decisión del 14 de junio de 2005, reeditada en NJW, 2005, núm. 58, p. 2326 ss., p. 2326, [en
adelante OLG Hamburg, El Motassadeq].
86
Acuerdo con otro para cometer un crimen o instigar a
cometerlo.
87
No es claro dónde exactamente estaban detenidos los
testigos. El Tribunal Superior estadual de Hamburgo (OLG
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 145-172, fevereiro/2010
EL uSO “TRANSNACIONAL” DE PRuEBA OBTENIDA POR MEDIO DE TORTuRA
Hamburg, El Motassadeq, supra nota 81, p. 2327) expresó
que ellos estaban “… mit hoher Wahrscheinlichkeit zumindest im Zugriffsbereich der Administration der uSA …”
[“… con alta probabilidad al menos dentro del ámbito de
la administración de los EE.uu. ...”].
88
OLG Hamburg, El Motassadeq, supra nota 81, p. 2326,
se refiere en el segundo principio guía (“Leitsatz”) de la
sentencia al art. 15 de la CT-ONU y aplica esta disposición a testimonios obtenidos bajo tortura por autoridades
extranjeras (“ … Verbot der gerichtlichen Verwertung
von durch Folter herbeigeführten Aussagen, das … auch
bei im Ausland durch Organe anderer Staaten mittels
Einsatzes von Folter herbeigeführten Aussagen eingreift.”
[“… prohibición de valoración judicial de declaraciones
provocadas por medio de tortura, que … también opera
en caso de declaraciones provocadas por medio de tortura
en el extranjero por parte de órganos de otros Estados”]).
Además, en su tercer principio guía, el Tribunal sostuvo
que el § 136a OPP también es aplicable, por analogía, si
tales medios de interrogación prohibidos son practicados
por autoridades extranjeras y constituyen una flagrante
violación de la dignidad humana (“… auf die Anwendung
unzulässiger Vernehmungsmethoden durch Angehörige
anderer Staaten entsprechend anwendbar, sofern die
Erkenntnisse, um deren Verwertung es geht, unter besonderes krassem Verstoß gegen die Menschenwürde zu Stande
gekommen sind.” [“... aplicable correspondientemente a
la utilización de métodos de interrogación inadmisibles
por parte de miembros de otros Estados, en tanto los
reconocimientos, de cuya valoración se trata, hayan sido
obtenidos a través de una violación especialmente crasa
de la dignidad humana.“]).
89
La Convención Interamericana para prevenir y sancionar
la Tortura (Adoptada en la Asamblea General de la OEA,
en su 15to Período Ordinario de Sesiones, Cartagena de
Indias, Colombia, 9/12/1985) tiene una regla similar en
su Art. 10: “Ninguna declaración que se compruebe haber
sido obtenida mediante tortura podrá ser admitida como
medio de prueba en un proceso, salvo en el que se siga
contra la persona o personas acusadas de haberla obtenido
mediante actos de tortura y únicamente como prueba de
que por este medio el acusado obtuvo tal declaración.”
90
Tal como narrado por BuRGER / DANELIuS, supra
nota 42, p. 148.
91
A and others, HL, supra nota 78, para. 39 (Lord Bingham)
[“wider principle“].
92
La disposición no se extiende a los procedimientos administrativos llevados a cabo por la rama ejecutiva; para
una discusión THIENEL, T., “Foreign Acts of Torture and
the Admissibility of Evidence”, en JICJ, 2006, núm 4, pp.
401-409, p. 406.
93
A and others, HL, supra nota 78, para. 39 (Lord Bingham)
[“abuse and degrade the proceedings“]. Lord Bingham
remite a united States v. Toscanino, 500 F.2d 267, 276
(2d Cir. 1974) pero esta Corte lo expresó de una manera
un poco diferente: “Drawing again from the field of civil
procedure, we think a federal court’s criminal process is
abused or degraded where it is executed against a defendant who has been brought into the territory of the united
States by the methods alleged here” [“Partiendo otra vez
del campo del proceso civil pensamos que un proceso penal
ante una Corte federal es abusado o degradado cuando se
ejecuta contra un acusado que ha sido traído al territorio
de los EE.uu. por los métodos aquí alegados”].
94
The people (Attorney General) v O´Brien (1965) IR 142,
150 [“involve the state in moral defilement.“]; reimpreso
en A and others, HL, supra nota 78, par.17, 39 (Lord
Bingham).
95
Esto es, prueba obtenida aplicando tortura al acusado
o a otras personas que puedan incriminar al acusado; al
respecto, véase THIENEL, supra nota 3, pp. 358-359;
PATTENDEN, supra nota 40, p. 7; sobre la aplicación de
prueba derivada, esto es, de prueba obtenida a partir de
una declaración hecha bajo tortura, véase PATTENDEN,
supra nota 40, pp. 8-10.
96
Para el mismo resultado BRuHA, T., “Folter und Völkerrecht”, en Das Parlament, Aus Politik und Zeitgeschichte,
2006, núm 36, disponible en internet: www.bundestag.de/
dasparlament/2006/36/Beilage/003.html (consultado por
última vez el 25 de febrero de 2008); THIENEL, supra
nota 3, pp. 360-361; PATTENDEN, supra nota 40, p. 10;
ver también OLG Hamburg, El Motassadeq, supra nota 81,
segundo principio guía como citado supra en la nota 84.
97
NOWAK, M. / McARTHuR, E., The uN Convention
against Torture, Oxford et al., OuP, 2008, Art. 15 nm. 2,
p. 75 ss., 88; concordante ESSER, A. “EGMR in Sachen
Gäfgen v. Deutschland (22978/05), urt. v. 30.06.2008”, en
NStZ, 2008, pp. 657-662, p. 659; en el resultado también
MÖHLENBECK, supra nota 46, p. 162 ss.
98
A and others v. Secretary of State for the home Department (No 2) [2004] EWCA Civ 1123, [2005] 1 WLR 414,
también disponible en internet: www.bailii.org/ew/cases/
EWCA/Civ/2004/1123.html (consultado por última vez
el 25 de febrero de 2008), par. 448 [en adelante A and
others, EWCA].
99
SCHARF, supra nota 62, p. 159 ss.
100
Véase www.eccc.gov.kh; para una explicación general del
marco jurídico véase KASHYAP, S., “The Framework of
Prosecutions in Cambodia”, en AMBOS, K./ OTHMAN,
M., New Approaches in International Criminal Justice,
Freiburg i.B., ed. iuscrim, 2003, pp. 189-205.
101
SCHARF, supra nota 62, p. 170.
102
[“evidentiary efficiency”]
103
[“flexibility”]; Véase AMBOS, K./ SAID, P., “Das
Todesurteil gegen Saddam Hussein”, en Juristen Zeitung
[“JZ”], 2007, núm. 62, pp. 822-828.
104
Respecto del Reino unido, véase A and others, HL, supra
nota 78, par. 27 (Lord Bingham) con ulteriores referencias; respecto de Alemania véase el art. 59 (2) de la Ley
Fundamental (Grundgesetz); ver también DOEHRING,
K., Völkerrecht, Heidelberg, Müller, 2.ed. 2004, nm. 708
ss.; MALANCZuK, P., Akehurst’s modern introduction to
international law, London, Routledge, 7.ed. 2007, p. 65 ss.
105
BGBl. 1990 II p. 246.
106
Véase DOEHRING, supra nota 100, nm. 731, 735; HERDEGEN, M., Völkerrecht, München, Beck, 7.ed. 2008, §
22 nm. 5; KuNIG, P., en VITZHuM, W. G. (ed.), Völkerrecht, Berlin, de Gruyter Recht, 3.ed. 2004, núm. 99.
107
Véase también THIENEL, supra nota
3, p. 351 ss.108 A and others, EWCA, supra nota 94, par.
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 145-172, fevereiro/2010
167
AMBOS, K
435 [“each state party”].
Véase, por ejemplo, el art. 6 I CEDH; véase también
OLG Hamburg, El Motassadeq, supra nota 81, p. 2328;
THIENEL, supra nota 3, p. 352.
110
Véase también THIENEL, supra nota 3, p. 352.
111
BVerfG, decisión del 31 de mayo de 1994 reimpresa en:
NJW, 1994, núm. 47, p. 2883 ss.
112
Para una discusión ver también THIENEL, supra nota
3, p. 353.
113
OLG Hamburg, El Motassadeq, supra nota 81, p. 2326:
“innerstaatlich unmittelbar geltendes und im Strafverfahren zu beachtendes Verbot der gerichtlichen Verwertung ….” [“directamente vigente en el derecho interno y
prohibición de valoración judicial a observar en el proceso
penal…”].
114
Id. A and others, HL, supra nota 78, par. 27 (Lord
Bingham): Los recurrentes “rely on the well established
principle that the words of a united Kingdom statute,
passed after the date of a treaty and dealing with the same
subject matter, are to be construed, if they are reasonably
capable of bearing such a meaning, as intended to carry
out the treaty obligation and not to be inconsistent with it.”
[“se basan en el muy afianzado principio de que el texto
de una ley del Reino Unido, aprobada luego de la fecha de
un tratado y referida al mismo tema, debe ser interpretado,
si razonablemente es capaz de tener tal significado, como si
estuviera destinado a cumplir la obligación del tratado y no
como si fuera incompatible con él.”] (con cita de Garland
v British Rail Engineering Ltd. [1983] 2 AC 751, 771).
115
Zur Begründung eines Verwertungsverbots nun ESSER,
supra nota 93, p. 658 s.
116
Schenk v. Switzerland, Eur. Ct. H.R., Application no.
10862/84, par. 46 (12 de Julio de 1988); Miailhe v. France
No.2 Eur. Ct. H.R., Application no. 18978/91, par. 43 (26
de septiembre de 1996).
117
Schenk v Switzerland, supra nota 112, par. 46 [“as a matter
of principle and in abstract“].
118
Id. par. 48.
119
Id. par. 47; Kahn v. united Kingdom, Eur. Ct. H.R.,
Application no. 35394/97, par. 38 (12 de mayo de 2000).
120
Kahn v. united Kingdom, supra nota 115, par. 34; véase
también P.G. and J.H. v. united Kingdom, Eur. Ct. H.R.,
Application no. 44787/98, par. 76 ss. (25 de septiembre de
2001) enfatizando que la prueba viciada era “not the only
evidence against the applicants” [“no era la única prueba
contra los recurrentes”] (par. 79).
121
Kahn v. united Kingdom, supra nota 115, par. 38 ss.; P.G.
and J.H. v. united Kingdom, Eur. Ct. H.R., Application no.
44787/98, par. 79 ss. (25 de septiembre de 2001). Véase
también MEYER-LADEWIG, J. Europäische Menschenrechtskonvention, Handkommentar, Baden-Baden,
Nomos, 2.ed. 2006, art. 6 nm. 55b.
122
En el caso Jalloh v. Germany la policía había suministrado
por la fuerza al recurrente, que era sospechoso de tráfico de
drogas, un vomitivo, con el fin obtener la droga escondida
en su cuerpo y utilizarla como evidencia en su contra.
123
Jalloh v. Germany, Eur. Ct. H.R, Application no.
54810/00, par. 99 (11 de Julio de 2006).
124
Id. par. 107.
125
Id. par. 105.
109
168
Kahn v. united Kingdom, supra nota 115, par. 34 [“[i]ncriminating evidence – whether in the form of a confession
or real evidence – obtained as a result of acts of violence
or brutality or other forms of treatment which can be characterised as torture should never be relied on as proof of
the victim’s guilt, irrespective of its probative value. Any
other conclusion would only serve to legitimate indirectly
the sort of morally reprehensible conduct which the authors
of Article 3 of the Convention sought to proscribe (...).”].
127
[“incriminating evidence (…) relied on as proof of the
victims guilt”].
128
Para un enfoque flexible PATTENDEN, supra nota 40,
pp. 11, 36 ss., quien sostiene que la exclusión depende de
la importancia de la prueba para el acusado; si es crucial
para su defensa, la exclusion sería injusta; véase también
infra nota 156 y en el texto principal.
129
Harutyunyan v. Armenia, Eur. Ct. H.R., Application no.
36549/03, par. 63 (28 de junio de 2007).
130
Id. par. 66 [“regardless of the impact of the statements obtained under torture had on the outcome of the applicant’s
criminal proceedings, the use of this evidence rendered his
trial as a whole unfair.”].
131
Id. par. 67.
132
Véase también THIENEL, supra nota 3, pp. 356-357, 362;
id., supra nota 88, p. 404 (sin otros argumentos).
133
MEYER-LADEWIG, supra nota 117, art. 6 nm. 52. Véase
también, respecto de los tribunales penales internacionales:
AMBOS, K., “The Right of Non Self-incrimination of Witnesses Before the ICC”, en Leiden Journal of International
Law, 2002, núm. 15, pp. 155-177, p. 156 ss.
134
Saunders v. united Kingdom, Eur. Ct. H.R., Application
no. 19187/91, par. 68 ss. (17 de diciembre de 1996).
135
Id. par. 68 ss.
136
Gäfgen v. Germany, Eur. Ct. H. R., Application no.
22978/05, par. 99, 105 ss. (30 de junio de 2008).
137
Ibid., par. 99 [“should never be relied on as proof of the
victim’s guilt, irrespective of its probative value”].
138
Ibid., par. 105 [„strong presumption”].
139
Concordantemente PATTENDEN, supra nota 40, p. 34 ss.;
GAEDE, K., Fairness als Teilhabe – Das Recht auf konkrete und wirksame Teilhabe durch Verteidigung gemäß Art.
6 EMRK, Berlin, Duncker & Humblot, 2007, p. 322;
THIENEL, supra nota 88, 404; LuBIG, S./ SPRENGER,
J., „Beweisverwertungsverbote aus dem Fairnessgebot
des Art. 6 EMRK in der Rechtsprechung des EGMR”, en
Zeitschrift für internationale Strafrechtsdogmatik („ZIS”,
disponible en <www.zis-online.com>), 2008, núm. 3,
pp. 433-440, p. 439, quienes sin embargo sólo quieren
aceptar la prohibición de valoración en caso de violación
de los derechos de participación; TALMON, S., „Der
Anti-Terror-Kampf der uSA und die Grundrechte”, en
KÄMMERER, A. (coord.), An den Grenzen des Staates,
Berlin, Duncker & Humblot, 2008, p. 75, p. 94 ss., quien
en forma similar resalta el „Anspruch auf materielle
Beweisteilhabe” [„derecho a participación material en la
producción de prueba”] (p. 98); ESSER, supra nota 93,
p. 661 s. con una triple diferenciación; MÖHLENBECK,
supra nota 46, p. 171.
140
Véase también THIENEL, supra nota 3, p. 362.
141
A and Others, HL, supra nota 78, par. 26 (Lord Bingham).
126
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 145-172, fevereiro/2010
EL uSO “TRANSNACIONAL” DE PRuEBA OBTENIDA POR MEDIO DE TORTuRA
Véase también PATTENDEN, supra nota 40, p. 13 enfatizando correctamente la gravedad de la violación.
142
A and others, HL, supra nota 78, par. 29 (Lord Bingham).
143
MAY, R./ POWLES, S., Criminal Evidence, London,
Sweet & Maxwell, 5.ed. 2004, p. 369; La Human rights
Act 1998 está disponible en internet: www.opsi.gov.uk/
acts/acts1998/ukpga_19980042_en_1 (consultada por
última vez el 25 de febrero de 2008).
144
Adoptada el 22 de mayo de 1969; en vigor desde el 27
de enero de 1980, UN-Treaty Series vol. 1155, p. 331.
145
Selmouni v. France, E. Ct. H.R., Application no.
25803/94, par. 97 (28 de julio de 1999).
146
BELING, supra nota 4; véase también SENGE, supra
nota 4, antes del § 48 nm. 20.
147
Decisión del 14 de junio de 1960, supra nota 9, p. 365 =
1582; véase también la decisión del BGH del 17 de marzo
de 1983, supra nota 9, p. 309 = 1571.
148
BVerfG, decisión del 19 de octubre de 1983, en NJW,
1984, núm. 37, p. 428 ss., p. 428; BGH, decisión del 16
de febrero de 1954, en BGHSt 5, p. 332, p. 333 = NJW,
1954, núm. 7, p. 649 ss., p. 649.
149
BGH, decisión del 16 de febrero de 1954, supra nota 144,
p. 333 = 649: “Der Beschuldigte ist Beteiligter, nicht Gegenstand des Strafverfahrens” [“El imputado es un sujeto,
no un objeto del proceso penal”] (argumentando en contra
del uso de un detector de mentiras).
150
El § 69 III OPP establece que el § 136 a OPP también es
aplicable a testigos.
151
BGH, decisión del 6 de diciembre de 196, en BGHSt
17, p. 14, p. 19 = NJW, 1962, núm. 15, p. 598 ss., p. 598;
MEYER-GOßNER, L., Kurzkommentar zur Strafprozessordnung, München, C.H.Beck, 50.ed. 2007, § 136
a, nm. 2.
152
MEYER-GOßNER, supra nota 147, § 136 a nm. 3.
153
OLG Hamburg, El Motassadeq, supra nota 81, segundo principio guía tal como citado supra en la nota 84;
MEYER-GOßNER, supra nota 147, § 136a nm. 3; JAHN,
supra nota 4, C 102, 103; véase también la decisión del
Tribunal Superior estadual de Celle (OLG Celle) del 19
de septiembre de 1984, en NJW, 1985, núm. 38, p. 640
ss., p. 641 (sobre la aplicación analógica del principio
nemo tenetur a particulares); dejando la cuestión abierta
recientemente BGH, NStZ, 2008, p. 643. Para una prohibición de valoración probatoria de resultados obtenidos
por particulares por medios penalmente sancionados o
mediante violación de la dignidad humana cfr. Decisiones
12 c) cc) und dd) de la Sección de Derecho Penal del 67.
DJT 2008, supra nota 4
.154 OLG Hamburg, El Motassadeq, supra nota 81, tercer
principio guía tal como citado supra en la nota 84 p.
2329; en el mismo sentido también MEYER-GOßNER,
supra nota 147, § 136 a nm. 3; GLEß, S., en LÖWEROSENBERG, Strafprozessordnung und das Gerichtsverfassungsgesetz, Tomo 2, Berlin et al., de Gruyter, 25.ed.
2004, § 136a nm. 79.
155
En el mismo sentido Lord Bingham, A and others, HL,
supra nota 78, par. 34: “There is reason to regard it a duty
of state, (…) to reject the fruits of torture inflicted in breach of international law” [“Hay razón para considerar un
deber de Estado (…) rechazar el fruto de tortura infligida
en infracción del derecho internacional”] (remitiendo a
varias fuentes internacionales); también THIENEL, supra
nota 3, p. 363 ss.; críticamente PATTENDER, supra nota
40, p. 15 ss.; SCHARF, supra nota 62, p. 23.
156
MEYER-LADEWIG, supra nota 117, art. 3 nm. 3.
157 Cf. art. 2 (1) CT-ONu: “bajo su jurisdicción”; art.3
CEDH en conexión con art. 1 CEDH: “de su jurisdicción”;
concordantemente THIENEL, supra nota 3, p. 361; para
una posible aplicación extra-territorial de la CEDH en
casos de extradición véase infra C. III.
158
Para la mayoría de la doctrina alemana este efecto
disuasivo es sólo un efecto colateral, véase VOLK, K.,
Grundkurs StPO, München, Beck, 5.ed. 2006, § 28 nm.
7; críticamente desde la perspectiva del common law ROBERTS/ ZuCKERMAN, supra nota 14, p. 155 ss.; para
MAY/ POWLES, supra nota 139, p. 298, no es función
de los tribunales el disciplinar a la policía; ZANDER, M.,
The Police and Criminal Evidence Act 1984, London,
Sweet & Maxwell, 5.ed. 2005, p. 362, hace referencia a la
crítica de la Philips Royal Commission [N. del T.: el autor
se refiere a la Comisión Real sobre Procedimiento Penal Royal Commission on Criminal Procedure- presidida por
Cyril Philips y que presentó su informe en enero de 1981].
159
Véase VOLK, supra nota 154, § 28 nm. 35.
160
Éste es el punto de vista mayoritario: BAuJONG, K. en
Karlsruher Kommentar zur Strafprozessordnung, München, Beck, 5.ed. 2003, § 136a nm. 37; DIEMER, H., en
ibid., 6.ed. 2008, § 136a nm. 37; HANACK, E.-W., en
LÖWE-ROSENBERG, Strafprozessordnung und das Gerichtsverfassungsgesetz, Tomo 2, Berlin et al., de Gruyter,
25.ed. 2004, p. 63; GLEß, supra nota 150, § 136a nm.
71; MEYER-GOßNER, supra nota 147, § 136 a nm. 27;
VOLK, supra nota 154, § 28 nm. 24; para una excepción
DENCKER, F., Verwertungsverbote im Strafprozeß, Köln
et al., Heymann, 1977, p. 73 ss.; véase también BGH,
decisión del 7 de mayo de 1953, en BGHSt 5, p. 290, pp.
290-291 según el cual la prohibición del § 136a OPP no
depende del resultado obtenido (distinguiendo in casu entre
una confesión verdadera y una falsa). Véase para la discusión internacional supra nota 124 y el texto respectivo.
161
Véase MAY/ POWLES, supra nota 139, pp. 285-286;
ROBERTS/ ZuCKERMAN, supra nota 13, pp. 148 ss.;
Zander, supra nota 154, p. 360.
162
Citado según MAY/ POWLES, supra nota 139, p. 286.
163
Sobre la importancia de la relevancia como la primera
cuestión de admisibilidad ROBERTS/ ZuCKERMAN,
supra nota 14, pp. 96, 98 ss., pp. 150-151.
164
Cf. MAY/ POWLES, supra nota 139, p. 286 ss.
165
Sobre su importancia ver ZANDER, supra nota 154, p.
360 ss. (366); ROBERTS/ ZuCKERMAN, supra nota
14, p. 147.
166
La doctrina habla en este contexto de “constitucionalización” del derecho de la prueba penal, véase ROBERTS/
ZuCKERMAN, supra nota 14, p. 175; véase también
MAY/ POWLES, supra nota 139, pp. 304-306.
167
ROBERTS/ ZuCKERMAN, supra nota 14, p. 162: “sensible relationship of proportionality between the seriousness of a rule violation and the implications for justice and
public safety of excluding evidence …”. [“sensata relación
de proporcionalidad entre la gravedad de la violación de
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 145-172, fevereiro/2010
169
AMBOS, K
una regla y las implicancias para la justicia y la seguridad
pública de la prueba a excluir…”].
168
[“oppression”], [“unreliable”], [“shall not”].
169 Véase también A and others, HL, supra nota 78, par.
15, donde Lord Bingham expresa que la importancia del
principio reside en el hecho “that common law has refused
to accept that oppression […] should go to the weight
rather than the admissibility of the confession” [“que el
common law ha rechazado aceptar que la opresión […]
deba referirse al peso más que a la admisibilidad de la
confesión”].
170
Id. par. 16-17 con otras referencias. Véase también ZANDER, supra nota 154, p. 342.
171
[oppression]; Véase ZANDER, supra nota 154, pp. 347 ss.
172
[“adverse effect on the fairness of the proceedings”]; El
texto completo es más complicado: “In any proceedings
the court may refuse to allow evidence on which the
prosecution proposes to rely to be given if it appears to
the court that, having regard to all the circumstances,
including the circumstances in which the evidence was
obtained, the admission of the evidence would have such
an adverse effect on the fairness of the proceedings that
the court ought not to admit it.” [“En cualquier proceso, la
Corte puede negarse a aceptar prueba que la autoridad de
persecución propone que sea tenida en cuenta, si la Corte
estima, considerando todas las circunstancias, incluidas
las circunstancias en que la prueba fue obtenida, que la
admisión de la prueba tendría tal efecto adverso para un
justo proceso que la corte no deba admitirla”.].
173
Véase también la sección 82 (3) PACE que dispone que
nada de la parte VIII de la Ley (referida a la prueba en
el procedimiento penal en general) “shall prejudice any
power of a court to exclude evidence at its discretion.”
[“menoscabará el poder de la Corte para excluir evidencia
a su discreción”]. Los antecedents históricos muestran que
se quiso ampliar la discreción de la Corte en comparación
con el common law tradicional (cf. ZANDER, supra nota
154, pp. 363-364; poco claro ARCHBOLD, Criminal
Pleading, Evidence and Practice (RICHARDSON, P.J. et
al. (eds.)), London, Sweet & Maxwell, 2007, § 15-453.
Críticamente sobre el concepto de discreción judicial en
este contexto ROBERTS/ ZuCKERMAN, supra nota
14, p. 96, quienes conceden, sin embargo, en su análisis
concreto de la sección 78 que “is no feasible substitute for
trial judges’ good faith judgement in the exercise of their
discretion …” [no hay un “sustituto posible para el juicio
de buena fe de los jueces en el ejercicio de su discreción
…”] (p. 174).
174
Véase Halawa v. F.A.C.T. [1995] 1 Cr.App.R. 21, 33.
175
Regina v. Governor o Brixton Prison, ex p. Levin [1997]
AC 741, 748, HL [“has been obtained in a way which
outrages civilised values.”].
176
Sobre esta doctrina véase también id. p. 179; PATTENDEN, supra nota 40, p. 30 ss.
177
Véase A and others, EWCA, supra nota 94, par 248
[“the exercise of State power in an arbitrary, oppressive
or abusive manner”], [“receive evidence in ongoing
proceedings, if to do so would lend aid or reward to the
perpetration of any such wrongdoing by an agency of the
State.”]; ROBERTS/ ZuCKERMAN, supra nota 14, p.
170
179.178 ROBERTS/ ZuCKERMAN, supra nota 14, p. 180
[“moulded into a primary bulwark of fairness and moral
integrity in English criminal proceedings”].
179
Esto se sigue de la formulación: “… evidence on which
the prosecution proposes to rely to be given …” [“prueba
que la autoridad de persecución propone que sea tenida
en cuenta”], véase también PATTENDEN, supra nota
40, p. 39.
180
Para un análisis crítico y riguroso véase ROBERTS/
ZuCKERMAN, supra nota 14, p. 160 ss. (p. 164: “judicial
task of developing an admissibility regime … remains an
unfinished project …” [“la tarea judicial de desarrollar
un régimen de admisibilidad … sigue siendo un proyecto
inconcluso”]; p. 174: “little or no concrete guidance for
trial judges …” [“poca o ninguna orientación concreta para
los jueces de mérito …”] de parte de la Corte de Apelación); véase también ZANDER, supra nota 154, p. 367
ss. (p. 367: “on a case-by-case basis, without any clearly
articulated theory.” [“sobre la base del caso concreto, sin
una teoría claramente articulada”]; p. 378: “no general guidelines” [“sin pautas generales”]); MAY/ POWLES, supra
nota 139, p. 293 ss. (p. 301: “no hard and fast rules” [“sin
reglas resistentes y rápidas”]); pero también ARCHBOLD,
supra nota 169, señalando, por un lado, que el “precise
scope [is] ... unclear” [“alcance exacto … no [es] claro”]
(§ 15-453), por el otro, que hay una “substantial guidance”
[“orientación sustancial”] por la jurisprudencia (§ 15-455)
y, de nuevo, que “no general guidance” [no hay “ninguna
orientación general”] (§ 14-457).
181
Véase A and others, EWCA, supra nota 94, par. 137, 252,
253: “given that the specific rule against involuntary confessions is not engaged (we are not dealing with tortured
defendants), the general rule – evidence is admissible if it
is relevant, and the court is not generally concerned with its
provenance – applies.” [“dado que no está comprometida
la regla específica en contra de confesiones no voluntarias
(no estamos tratando con acusados torturados), es aplicable
la regla general – la prueba es admisible si es relevante y
si la Corte no está en general involucrada con su proveniencia”.]. Es interesente poner de relieve que ninguno de
los Law Lords (jueces de la Cámara de los Lores) sostuvo
esta posición en A and others, HL, supra nota 78.
182
Véase A and others, HL, supra nota 78, par. 19 (Lord
Bingham) [“if the foundation for the case would be morally
unacceptable”].
183
[“a ticking bomb”].
184
Véase A and others, HL, supra nota 78, par. 67 ss. (Lord
Nicholls); A favor de flexibilidad y una ponderación
similar, sin distinguir, sin embargo, entre tortura preventiva y represiva PATTENDEN, supra nota 40, p. 32 ss.;
por la admisibilidad en el caso de una bomba a punto de
explotar también ROBERTS/ ZuCKERMAN, supra nota
14, p. 153.
185
Véase AMBOS, supra nota 1, p. 263 con nota 6.
186
Cf. MAY/ POWLES, supra nota 139, p. 300.
187
Véase por ejemplo Soering v. united Kingdom, Eur. Ct.
H.R., Application no. 14038/88, par. 111 (7 de julio de
1989); más recientemente también Tribunal Estadual de
Thüringen, Thür. OLG Ausl 7-06 v. 25.1.2007, en StV,
2008, p. 650.
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 145-172, fevereiro/2010
EL uSO “TRANSNACIONAL” DE PRuEBA OBTENIDA POR MEDIO DE TORTuRA
188
Véase también THIENEL, supra nota 3, p. 366.
[“jurisdiction”]; Véase supra nota 153 y THIENEL, supra
nota 3, pp. 366-367.
190
Cf. MAY/ POWLES, supra nota 139, p. 300. Sobre los
paralelos con las extradiciones jurídicas con igual resultado
también TALMON, supra nota 135, p. 93 s.
191
Sobre esto, con ulteriores referencias AMBOS, supra
nota 1, p. 265 ss.
192
Cf. MAY/ POWLES, supra nota 139, § 04-35 (“The
burden of establishing the conditions of admissibility of
other evidence will fall on whichever side is seeking to
adduce it.” [“La carga de establecer las condiciones de admisibilidad de otra prueba recaerá sobre la parte que busca
aducirla”]); SEABROOKE, S./ SPRACK, J., Criminal
Evidence & Procedure, London, Blackstone, 2.ed. 2004, p.
14 (“In general the burden of proof in the “voir dire” will
be upon the party who asserts that the evidence should be
admitted.” [“En general, la carga de la prueba en el “voir
dire” recaerá sobre la parte que afirma que la prueba debe
ser admitida”]); ROBERTS/ ZuCKERMAN, supra nota
14, p. 331. [N. del T.: en el derecho estadunidense se llama
“voir dire” al procedimiento en el cual las partes discuten
la composión del jurado y cuestionan eventualmente su
imparcialidad].
193
BGH, decisión del 4 de abril de 1951, en BGHSt 1, p. 94,
p. 96; BGH, decisión del 17 de octubre de 1983, en BGHSt
32, p. 115, p. 122 = NJW, 1984, núm. 37, p. 247 ss., p. 248.
194
BGH, decisión del 28 de junio de 1961, en BGHSt 16, p.
164, p. 167 = NJW 1979, 1980 (1961), núm. 14; MEYERGOßNER, supra nota 147, § 136 a nm. 32.
195
OLG Hamburg, El Motassadeq, supra nota 81, pp. 2326,
2328.
196
A and others, HL, supra nota 78, par. 55 (Lord Bingham),
par. 116 (Lord Hope). Por las mismas razones, Nigel
Rodley, Relator Especial sobre la Tortura de la ONU, recomendó que no se requiera del detenido una “conclusive
proof of physical torture“ [“prueba concluyente decisiva
de tortura física”], en Report of Visit to Turkey, u.N. Doc.
E/CN. 4/1999/61/ Add. 1 (1999), par. 113 (e)) disponible
en internet http://daccessdds.un.org/doc/uNDOC/GEN/
G99/104/37/PDF/G9910437.pdf?OpenElement (consultado por última vez el 26 de febrero de 2008); similar
NOWAK/ MC ARTHuR, supra nota 93, nm. 81.
197
A and others, HL, supra nota 78, par. 56 (Lord Bingham)
[“advance some plausible reason (...) that evidence has, or
is likely to have, come from one of those countries widely
known or believed to practice torture”]; también par. 116
(Lord Hope): “All he can reasonably be expected to do
is to raise the issue (…)” [“Todo lo que razonablemente
puede esperarse que él haga es que plantee la cuestión
(…)”]. Conc. . NOWAK/ MC ARTHuR, supra nota 93,
nm. 84. Críticamente en relación con el art. 6 (1) CEDH
THIENEL, supra nota 88, p. 407.
198
Cf. MAY/ POWLES, supra nota 139, p. 308.
199 A and others, HL, supra nota 78, par. 56 (Lord Bingham);
concordantemente par. 80 (Lord Nicholls), par. 98 (Lord
Hoffmann); también conc. NOWAK/ MC ARTHuR, supra
nota 93, nm. 82, 84. Para otro punto de vista ZANDER,
supra nota 154, pp. 380-381 según quien la defensa tiene
que “to persuade the court that there is a serious issue as to
189
unfairness …” [“persuadir a la Corte de que hay una grave
cuestión de injusticia [procesal] …..”] y que, en síntesis,
llega “remarkably close” [“increiblemente cerca”] de la
carga de la prueba que está en la defensa. De manera similar ARCHBOLD, supra nota 169, § 15-462: “evidential
burden (…) that there is an issue to be decided (…) will
rest on the defence.” [“carga probatoria (…) que hay una
cuestión a decidir (…) recaerá en la defensa.”].
200
P.E. v. France, Complaint. No. 193/2001, uN Doc.
A/58/44, p. 150 (par. 6.3.); G.K. v. Switzerland, Complaint.
No. 219/2002, ibid., p. 185 (par. 6.10); de esto THIENEL,
supra nota 3, p. 355 deriva que el art. 15 reduce “any
burden of proof on persons other than the state to an evidentiary burden only of triggering the positive obligation
of the state.” [“toda carga de la prueba sobre personas
diferentes al Estado a la carga probatoria de sólo provocar
la obligación positiva del Estado”].
201
BGH, decisión de 28 de junio de 1961, supra nota 190,
p. 166 = 1980.
202
Véase por ejemplo VOLK, supra nota 154, § 18, nm. 22
en el caso del § 136 a OPP; en nuestro contexto también
TALMON, supra nota 135, p. 84..
203
Para la inversión de la carga de la prueba que allí se presenta también JAHN, supra nota 4, C 109; TALMON, supra nota 135, p. 84.204 BGH NStZ-Rechtsprechungsreport
Strafrecht 2007, p. 80 ss., p. 81.
205
Supra nota 196 y texto principal.
206
Véase A and others, HL, supra nota 78, par. 120 ss., 121
(Lord Hope): “Is it established, by means of such diligent
inquiries into the sources that it is practicable to carry out
and on a balance of probabilities, that the information
relied on by the Secretary of State was obtained under
torture?” [“¿Está establecido, por medio de tales diligentes investigaciones que es factible llevar a cabo sobre las
fuentes y con base en una ponderación de probabilidades,
que la información confiada por el Secretario de Estado fue
obtenida bajo tortura?] (bastardilla en el original); véase
también ibid., par. 138 ss. (Lord Rodger), par.156 ss. (Lord
Carswell), par. 172 ss. (Lord Brown).
207
El Oberlandesgericht de Hamburgo requirió la plena prueba de la tortura y consideró que las dudas existentes acerca
de las circunstancias del interrogatorio conciernen al valor
probatorio y no a la admisibilidad de las declaraciones
(OLG Hamburg, El Motassadeq, supra nota 81, pp. 2326,
2328); crít. GLEß, supra nota 150, § 136a nm. 79 con nota
351. Del mismo modo la Decisión Nr. 11 c) de la Sección
Penal del 67. DJT („Die ein Beweisverwertungsverbot
begründenden umstände bedürfen des vollen Nachweises
im Einzelfall.” [„ Las circunstancias que fundan una prohibición de valoración probatoria requieren ser plenamente
comprobadas en el caso concreto.”]).
208
Énfasis K.A.
209
Cfr. También JAHN, supra nota 4, C 109 (Prueba „praktisch unmöglich” [„prácticamente imposible”]); así como
TALMON, supra nota 135, p. 84.
210
Para este argumento en relación con el art. 6 (1) CEDH
véase también THIENEL, supra nota 88, pp. 408-409.
Sobre las presunciones de hecho del TEDH cfr. ESSER,
supra nota 93, p. 660.
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 145-172, fevereiro/2010
171
AMBOS, K
Para el mismo resultado THIENEL, supra nota 88, p.
409; NOWAK/ MC ARTHuR, supra nota 93, Art. 15
nm. 84. Véase también JAHN, supra nota 4, C 109 con
fundamentación del derecho constitucional.
212
Véase la posición de los recurrentes citadas en A and
Others, HL, supra nota 78, par. 28 (6) (Lord Bingham).
211
172
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 145-172, fevereiro/2010
NOTAS SOBRE A INAPLICABILIDADE DA FuNÇÃO SOCIAL à PROPRIEDADE PúBLICA
Artigo
notAS SoBrE A inAPLiCABiLiDADE DA
função SoCiAL à ProPriEDADE PúBLiCA
Nilma de Castro Abe 1
rESumo: O presente trabalho tem como objetivo tecer considerações, sem a pretensão de
esgotar o tema, sobre a impossibilidade de ampliação da noção de função social, para abranger
a propriedade pública.
Tem como ponto de partida a noção da propriedade privada no Direito e sua configuração hoje
no Brasil após a consagração, pela Constituição
de 1988, do instituto da função social (arts. 5.º,
xxxIII, 170, III, 182 e 186), também adotado
pelo Código Civil de 2002 (arts. 421, 1.228,
1.239, 1.240).
Em seguida, pretende apontar que a noção de
“propriedade pública” não foi suficientemente
desenvolvida pela doutrina pátria, inviabilizando
a equiparação entre os dois conceitos, propriedade privada e propriedade pública, de modo que
se conclui que a aplicação do instituto da função
social à propriedade pública esbarra em diversos
óbices, neste ensaio abordados, revelando-se
incompatível com o regime de Direito Público,
pois a sua incidência implicaria num afastamento
e enfraquecimento injustificados do regime jurídico público (princípio federativo, autonomia de
administração dos entes federados, obediência
à lei orçamentária, imunidade tributária, indisponibilidade do interesse público), o que não se
coaduna com uma leitura sistemática dos ditames
da Constituição Federal que regem a gestão dos
bens públicos no Brasil.
Palavras-chave: função social. Propriedade
pública. Gestão dos bens públicos
ABStrACt: This work aims to make considerations, without claiming to exhaust the subject,
about the impossibility of expanding the notion
1
Mestre em Direito Administrativo pela Pontifícia Católica de São Paulo (PuC-SP). Advogada da união em São Paulo.
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 173-186, fevereiro/2010
173
ABE, N. C.
of social function, to cover public property. Its
starting point is the notion of private property in
law and its configuration today in Brazil after the
consecration by the Constitution of 1988 of the
Social Function of Property (art. 5. No. xxxIII,
170, III, 182 and 186), also adopted by the Civil Code of 2002 (art. 421, 1228, 1239, 1240).
Then it seeks to point out that the notion of
“public property” was not sufficiently developed
by the national doctrine, rendering it impossible
to equate the two concepts, private property
and public property, so that the application of
the institute of the social function to property
public encounters several obstacles discussed
in this essay, proving to be incompatible with
the system of public law, because their impact would involve unjustified separation and
weakening of the legal public regime (federal
principle, independent administration of federal entities, obedience to the budget law, tax
immunity, unavailability of public interest),
which is not consistent with a systematic reading
of the dictates of the Constitution governing
the management of public goods in Brazil.
Keywords: Social function. Private propert.,
Management of public goods
1. introdução
O presente trabalho tem como objetivo
tecer considerações, sem a pretensão de esgotar
o tema, sobre a impossibilidade de ampliação da
noção de função social, para abranger a propriedade pública. Em outras palavras, procurar-se-á
questionar a existência de uma “função social da
propriedade pública”
Num primeiro momento, se faz necessário,
ainda que em breves linhas, apontar como se
forjou a idéia do direito de propriedade privada
no Direito e, como se configura hoje o direito de
propriedade privada no Brasil, após a consagração, pela Constituição de 1988, do instituto da
função social (arts. 5.º, xxxIII, 170, III, 182 e
186), também adotado pelo Código Civil de 2002
(arts. 421, 1.228, 1.239, 1.240).
Em seguida, procura-se apontar que a noção de “propriedade pública” não foi suficiente174
mente desenvolvida pela doutrina pátria, existindo alguns óbices para a equiparação entre os dois
conceitos: propriedade privada e propriedade
pública. Neste passo, por conseqüência, surgem
os obstáculos para a construção de uma “função
social da propriedade pública” e para a aplicação
ao Poder Público das mesmas sanções jurídicas
imputáveis aos proprietários particulares quando
descumpridores da função social.
Por fim, busca-se apontar que às condutas
omissivas do Estado em relação ao seu patrimônio deverá incidir o regime jurídico de Direito
Público, incluindo a responsabilização do Estado
por omissão.
2. Direito de Propriedade Privada.
Direito de Propriedade Pública.
Segundo José Reinaldo Lima Lopes2, o
direito de propriedade privada, enquanto um
direito unitário e individualista, é uma criação
dos civilistas modernos, desenvolvida entre o
final do século xVIII e o século xIx, pois no
período medieval, era comum o exercício, sobre
o mesmo bem, de diversos direitos por diferentes
sujeitos, tanto que quase não havia distinção
entre propriedade, soberania e posse3.
A construção do direito de propriedade em
seu sentido moderno passou pela unificação de
diversos poderes em torno de um titular de direitos, que seria o proprietário, conforme esclarece
José Reinaldo Lima Lopes4:
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 173-186, fevereiro/2010
“A noção moderna começa a modificar a
antiga. Ela tenderá para o exclusivismo:
a propriedade aos poucos passará a ser a
soma de todos os direitos anteriormente
dispersos entre os vários detentores. Em
resumo, no período medieval, a detenção,
a posse, as diferentes rendas devidas e
recebidas convivem lado a lado. Não lhes
parece natural que um só senhor tenha
todos estes direitos: cada um, desde o lavrador até o rei tem, sobre a mesma terra,
direitos próprios, embora distintos. Assim
como a soberania é uma constelação de
poderes partilhada entre muitos, a propriedade era uma constelação de poderes
NOTAS SOBRE A INAPLICABILIDADE DA FuNÇÃO SOCIAL à PROPRIEDADE PúBLICA
partilhada entre vários titulares de direitos,
privilégios, posses e detenções distintas.”
Para forjar um conceito unitário de propriedade, foi preciso ignorar a diferença essencial
existente entre as diversas espécies de bens:
a terra, os bens de produção, os bens móveis,
os bens consumíveis, pois “a teoria jurídica
ignora solenemente a diferença que os antigos
conheciam entre bens consumíveis e bens não
consumíveis e trata todas as categorias de bens
com o mesmo critério abstrato”5.
Dessa forma, o direito de propriedade privada, tal como introduzido no Brasil pelo Código
Civil de 1916, traduziu um feixe poderes sobre
um bem, especificamente os poderes de usar,
gozar, dispor e de perseguir o bem onde quer que
ele esteja (direito de seqüela), apresentava como
características primordiais, ser um direito absoluto, unitário, exclusivo, ilimitado e perpétuo.
Constituía um direito unitário porque
formava uma coletividade de direitos, que se
unificam e sintetizam no direito de propriedade6.
Absoluto porque oponível erga omnes, constituindo-se no mais extenso e completo de todos
os direitos reais7. Era exclusivo porque excluía de
terceiros o direito de exercer sobre a coisa qualquer dominação8, segundo prescrevia o art. 527
do Código Civil de 1916, “o domínio presumese exclusivo e ilimitado, até prova e contrário”.
Era ilimitado porque o titular exercia o direito
de propriedade sem limites, podendo exaurir a
coisa tirando-lhe todos os serviços e benefícios
sem restrições. Era irrevogável ou perpétuo9,
no sentido de que subsistia independentemente
de exercício, enquanto não sobreviesse causa
legal extintiva. Não se extinguia pelo não uso,
ainda que o proprietário nunca usasse a coisa, a
propriedade permaneceria.
Alerte-se que no âmbito público, não
houve este esforço para construir um direito de
propriedade pública unitário, absoluto, exclusivo, ilimitado e irrevogável, lembrando que os
fundamentos do direito de propriedade privada
e da propriedade pública são distintos. O fundamento do direito de propriedade privada consiste
em garantir aos particulares poderes sobre bens
que assegurem sua vida, existência, conforto,
mobilidade, garantindo a circulação de riquezas
e o comércio jurídico. O fundamento do direito
de propriedade pública é assegurar, aos Estados,
bens que constituam os meios ou instrumentos
de atuação estatal para cumprimento do interesse
da coletividade, de modo que o regime especial
a que se submetem os bens públicos (inalienabilidade, impenhorabilidade, imprescritibilidade)
constitui mero instrumento normativo para
atender aos interesses da coletividade.
Tanto é assim que Bartolomé Fiorini10 alerta que o direito de propriedade pública excede o
conceito do exercício do direito subjetivo e individual sobre uma coisa, que é o direito exclusivo
do senhor sobre um bem, pois é o direito de todos
para todos e por isso mesmo o seu regime deve
ser distinto do da propriedade civil.
Acredita-se que a tentativa de construção
de um direito de propriedade pública equivalente
ou comparável ao direito de propriedade privada, esbarraria em diversos óbices. O primeiro
deles seria o fato de o Estado manter vínculo
de propriedade com diversos bens, submetidos
a regimes jurídicos diversos, porque tais bens
possuem natureza jurídica diversa e exigem
regimes jurídicos diversificados11.
Neste sentido esclarece Bartolomé Fiorini12:
“La forma de manifestarse la potestad Del
Estado sobre ellos es diversa, según la forma y extensión de sus beneficios públicos,
pues no hay un régimen jurídico exclusivo
de dominio estatal, aunque todos integren
el instituto único de propiedad del estado
o dominio estatal. Este debe ser el concepto fundamental que debe aplicarse a la
cuestión; y es sustancialmente jurídico.”
No Brasil, dentro da própria categoria dos
imóveis públicos, existem diversas categorias
jurídicas (terras indígenas, terras devolutas,
terrenos de marinha, praias, imóveis urbanos,
imóveis rurais, próprios nacionais, praças, ruas,
parques, etc.), sujeitas a regimes diferenciados,
pois cada categoria de imóvel pode atender a
diversos fins públicos simultaneamente, embora
alguns tenham a destinação prevista em lei ou na
própria Constituição.
Mesmo os imóveis dominicais (art. 99, III,
CC/2002), que não estão afetados a um uso pú-
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 173-186, fevereiro/2010
175
ABE, N. C.
blico concreto, possuem destinação legal13, isto
é, a lei se encarrega de prever os usos públicos
possíveis a que se destinam os imóveis públicos
no Brasil, lembrando que os usos administrativos
devem atender aos fins públicos, previstos em
lei e no Texto Constitucional, inclusive como
decorrência do Estado Democrático de Direito
(art. 1.º, CF/88) e dos objetivos constitucionais
previstos no art. 3.º da Constituição.
O Autor inclusive aponta um outro obstáculo, qual seja, a impossibilidade do uso exclusivo (exclusividade) pelo titular da propriedade
pública, no caso o Estado, porque uma parte dos
bens públicos são vocacionados para o uso direto
(bem de uso comum do povo) ou indireto (bem
de uso especial) da coletividade.
Isso porque no fenômeno da propriedade
pública ocorre a distinção entre o titular do bem
(que seria a pessoa jurídica de Direito Público:
união, Estados, Distrito Federal Municípios,
autarquias e fundações), o administrador do
bem (agentes públicos) e o beneficiário do bem
(a coletividade).
Novamente convém citar a importante lição
de Bartolomé Fiorini14 sobre este tema:
“El derecho de propiedad privada pertence
a un sujeto, quien es a su vez titular, dueño
y beneficiario. Hay identidad entre dueño,
titular y beneficiario; realmente esto es el
derecho de propiedad, perpetuo, exclusivo
y absoluto, pero para el derecho público tal
unidad no se presenta, pues el titular está
separado del bien y este lo es en beneficio
de quienes integran a un órgano estatal,
que es quien ejerce el derecho de dominio
público, pero el goce del bien pertenece a
la colectividad. La titularidad que concede
el señorío es totalmente relativa. La Administración sobre estas cosas estatales se realiza por normas que establecen o delegan
los órganos que representan la voluntad
popular; y esta administración adquiere
mayor relevancia que la disposición. (...)
Estos bienes del Estado separan en forma
total al titular del ejercicio de derecho de
disposición, al titular de su administración
y alos titulares de sus beneficios.”
Portanto, admite-se que a propriedade
pública é categoria distinta da propriedade pri176
vada: i) pela inexistência de um regime jurídico
unívoco de propriedade pública, equivalente
ao da propriedade privada, tendo em vista a
diversidade de categorias de bens públicos que
ensejam a adoção de regimes jurídicos diversos,
decorrentes da natureza do bem e do interesse
jurídico a ser protegido; ii) pela impossibilidade
do uso exclusivo (exclusividade) pelo titular da
propriedade pública, no caso, o Estado, porque
uma parte dos bens públicos são vocacionados
para o uso direto (bem de uso comum do povo)
ou indireto (bem de uso especial) da coletividade;
iii) pela distinção entre o titular do bem (ente
público), o administrador do bem (agente públicos) e o beneficiário do bem (a coletividade);
iv) pela impossibilidade de se retirar do campo
do Direito Público a disciplina dos vínculos
jurídicos existentes entre o Estado e as diversas
categorias de seus bens; v) pela indisponibilidade
dos interesses públicos postos na esfera de cada
ente público (união, Estados, Distrito Federal e
Municípios); vi) pela vigência plena, na atividade estatal, do caráter funcional desta, que abole
qualquer possibilidade de se falar em autonomia
privada ou regime de direito privado, mormente
quanto aos bens públicos.
A concepção de função administrativa15,
enquanto conjunto de deveres jurídicos a serem
cumpridos pela Administração Pública e poderes
instrumentais a serem manejados a fim de bem
atender aos interesses da coletividade, é consentânea com o Estado Democrático, no qual “todo o
poder emana do povo, que o exerce por meio de
representantes eleitos ou diretamente, nos termos
desta Constituição” (art. 1.º, parágrafo único,
CF/88). Isto porque no Estado Democrático, todo
exercício de poder só se justifica se for em nome
da coletividade e para atender seus interesses,
logo, toda a atividade estatal, inclusive a gestão
de bens públicos, só poderá ser compreendida a
partir da noção de função administrativa, a qual
está vinculada aos interesses da coletividade.
A história da propriedade privada moderna
evolui da concepção de um feixe de poderes absolutos que o particular titulariza em oposição a
todos (erga omnes) para a o surgimento de um
conjunto de deveres jurídicos, que flexibilizam
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 173-186, fevereiro/2010
NOTAS SOBRE A INAPLICABILIDADE DA FuNÇÃO SOCIAL à PROPRIEDADE PúBLICA
e limitam simultaneamente este conjunto de
poderes. Já a propriedade pública, concebida
no Estado de Direito, e ainda mais no Brasil,
onde a Constituição Federal consagra o Estado
Democrático de Direito (art. 1º), já nasce como
um conjunto de deveres jurídicos vinculantes
para a Administração Pública, cujos poderes
são meramente instrumentais e só poderão ser
manejados para atender interesses da coletividade, indisponíveis e irrenunciáveis para o
administrador público.
3. função social da propriedade
privada. inaplicabilidade do
instituto à propriedade pública.
É inegável que a construção da doutrina da
função social da propriedade teve como ponto de
partida o direito de propriedade privada tal como
traçado pelos civilistas modernos e objetivou a
flexibilização de tal concepção absolutista de
propriedade, tendo como pressuposto a noção de
que o titular privado do direito de propriedade,
é, ao mesmo tempo, o administrador e beneficiário de tal direito, o que torna uma tarefa árdua
a transferência desta doutrina para o âmbito
publicístico, e assim, conseqüentemente, a configuração de uma “função social da propriedade
pública”.
Inicialmente, o direito de propriedade tinha
sido forjado como um direito absoluto em face
do Estado, um direito intangível, constituindo a
proteção do indivíduo em face do Estado – tal
como foi previsto no Código Civil Brasileiro
de 1916 –, mas, com o decorrer do tempo, essa
noção é desafiada pela necessidade progressiva
e impostergável de criação de normas que protejam efetivamente interesses da coletividade,
em face do interesse do indivíduo, impondo uma
flexibilização na sua disciplina jurídica.
A Carta de 1934 (art. 113, n. 17) prescrevia
que “é garantido o direito de propriedade, que
não poderá ser exercido contra o interesse social
ou coletivo”, desaparecendo esta redação na de
1937, para ressurgir novamente na de 1946, “o
uso da propriedade será condicionado ao bemestar social” (art. 147).
Na esteira da Constituição de 1946, a
Emenda Constitucional 10/64 refere-se à função
social da propriedade, repetida na Constituição
de 1967, por fim consagrada na Constituição de
1988 em diversos dispositivos (art. 5º, xxIII, art.
170, III, art. 182, § 2º, art. 184, caput, art. 185,
art. 186). Para José Afonso da Silva, “a função
social da propriedade não se confunde com os
sistemas de limitação da propriedade. Estes
dizem respeito ao exercício do direito ao proprietário; aquela, à estrutura do direito mesmo,
à propriedade”16, e conclui que, “enfim, a função social se manifesta na própria configuração
estrutural do direito de propriedade, pondo-se
concretamente como elemento qualificante na
predeterminação dos modos de aquisição, gozo
e utilização dos bens”17.
Não resta dúvida de que a Constituição Federal de 1988 abraçou o instituto da função social
da propriedade, de modo que se pode afirmar
que a função social da propriedade possui uma
configuração constitucional, embora venha a ser
detalhada pela legislação infraconstitucional.
A partir da noção de função social ocorreu
a reconfiguração do direito de propriedade na
medida em que o uso deve ser exercido a fim de
atender não apenas os interesses do proprietário
(interesse individual), mas também os interesses
coletivos18. O não exercício do direito de uso nesses termos pode levar à perda da propriedade pela
desapropriação (arts. 182, § 2º, e 184 da CF/88).
Consiste a função social da propriedade no
dever de cumprir um destino economicamente
útil, produtivo, de maneira a satisfazer às necessidades sociais preenchíveis pela espécie do
bem (ou pelo menos não poderá ser utilizada de
modo a contraditar esses interesses), de modo
que o bem deve cumprir a exata funcionalidade
que dele se espera em proveito da coletividade.
Gustavo Tepedino defende que “a propriedade, todavia, na forma como foi concebida
pelo Código Civil, simplesmente desapareceu
do sistema constitucional brasileiro, a partir da
Constituição de 1988. A substituição da idéia
de aproveitamento pelo conceito de função de
caráter social provoca uma linha de ruptura (linea
di frattura)”19. Este entendimento parece correto,
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 173-186, fevereiro/2010
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pois em contraposição ao conjunto de direitos
(poderes) sobre os bens , surgem um conjunto de
deveres jurídicos para os proprietários.
Acolhemos o entendimento de Fabio Konder Comparato20, para quem a função social é
um dever fundamental, cujo descumprimento
significa violação ao direito fundamental de
acesso à propriedade, reconhecido pelo sistema
constitucional (arts. 183 e 191, CF/88). A função
social não é mera recomendação ao legislador,
trata-se de vinculação jurídica efetiva para os
particulares.
Trata-se de dever fundamental imposto
ao particular, titular do direito de propriedade
privada, de modo que pode-se dizer que, atualmente, no Brasil, o direito de propriedade privada
consiste num conjunto de direitos e deveres,
concomitantemente. Permanece como um direito
absoluto, oponível a todos, desde que o titular
cumpra o conjunto de deveres. Já não é mais ilimitado, pois o uso não pode ser irrestrito porque
deve atender simultaneamente diversos interesses coletivos e difusos, tais como: preservar o
meio ambiente, manter o potencial produtivo da
terra, realizar uso adequado conforme o plano
urbanístico da cidade, etc.
Ainda é um direito exclusivo, porque o
proprietário pode excluir a posse de outros sobre
o bem, mas tem o dever de cumprir o conjunto de
deveres, sob pena deste direito ser considerado
como abuso de direito, nos termos do art. 187
do Novo Código Civil.
Não é mais irrevogável ou perpétuo, pois
não possui mais o direito de não usar (nãofruição) a terra, considerando que, em regra, o
não-uso caracteriza descumprimento da função
social, acarretando algumas sanções jurídicas.
Convém mencionar que o Novo Código
Civil proíbe o abuso de direito, isto é, o exercício
de qualquer direito que transborde dos limites
traçados no ordenamento jurídico, prevendo
expressamente, “também comete ato ilícito o
titular de um direito que, ao exercê-lo, excede
manifestamente os limites impostos pelo seu
fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos
bons costumes” (art. 187). De fato, mantendo a
coerência com esta linha de pensamento, o Novo
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Código Civil também abraçou a concepção da
função social, inclusive estendendo-a para outros
aspectos da vida civil, como é o caso da função
social do contrato (art. 421).
Alerte-se que a Constituição Federal prevê
expressamente a função social da propriedade
urbana (art. 182) e a função social da propriedade agrária (art. 186), havendo dispositivos
constitucionais que traçam o perfil de cada uma,
embora, ambas venham a ser detalhadas no plano
infraconstitucional.
O art. 182, §4.º, da Constituição Federal,
prevê que o imóvel urbano cumpre a função social quando atende as exigências da ordenação da
cidade previstas no plano diretor. Ou seja, compete ao plano direto, que é uma lei municipal,
definir a função social urbana que se traduz na
indicação do uso adequado do solo urbano definido dentro do planejamento urbano da cidade.
Compete ao Município exigir, do proprietário de imóvel urbano não edificado, nos
termos do plano diretor, que promova o adequado
aproveitamento, sob pena de vir sofrer sucessivamente as seguintes conseqüências jurídicas:
I – parcelamento ou edificação compulsórios; II
imposto sobre a propriedade predial e territorial
urbana progressivo no tempo; III – desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida
pública. A regulamentação é disciplinada na
Lei 10.257, de 10.07.2001 – Estatuto da Cidade
(arts. 5.º a 8.º).
Observa-se que, enquanto dever fundamental, a função social da propriedade, previsto
no art. 5.º, xxIII, da Constituição Federal, deve
ser atendida por todos os particulares e, não pelo
Estado, pois as sanções jurídicas previstas para o
descumprimento da função social da propriedade
urbana são imputáveis apenas aos particulares,
sendo inadequadas para punir os entes públicos
(união, Estados, DF, Municípios) pelo descumprimento deste dever.
Imagine-se que a união é titular de imóveis
em certo Município. Este, verificando o descumprimento da função social por parte daquela, porque não atendem às exigências do Plano diretor,
decide aplicar as sanções cabíveis, quais sejam:
parcelamento ou edificação compulsórios, IPTu
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NOTAS SOBRE A INAPLICABILIDADE DA FuNÇÃO SOCIAL à PROPRIEDADE PúBLICA
progressivo no tempo e desapropriação (arts. 5º
a 8.º da Lei 10.257/2001 – Estatuto da Cidade).
De início, o Município não poderia ordenar o parcelamento e edificação de imóveis
públicos, porque isso traduziria invasão na autonomia de outro ente federativo (art. 18, CF),
que pelo pacto federativo, recebeu o poder de
auto-administração de seus bens. Demais disso, a
operação dependeria de previsão orçamentária e
liberação da verba pelo ente público federal para
implementação das referidas sanções jurídicas21.
No mesmo passo, a desapropriação promovida pelo Município, de imóvel público urbano
da União implicaria numa invasão na autonomia de outro ente federativo, porque neste caso
ocorreria a incidência da desapropriação-sanção,
como conseqüência jurídica pelo descumprimento do dever de atender à função social urbana22.
Não há título constitucional para que o Município
promova o sacrifício de direitos de outros entes,
somente tendo por fundamento o descumprimento da função social.
Além de implicar ofensa à autonomia
administrativa, sob o aspecto do princípio federativo, entender pela aplicação dos arts. 5.º a
8.º do Estatuto da Cidade aos imóveis públicos
implica violação ao princípio da eficiência, uma
vez que cabe à estrutura administrativa de cada
ente público mobilizar seus recursos para fiscalizar o cumprimento dos fins coletivos que seus
bens devem atender.
quanto a possibilidade do Município cobrar IPTu progressivo, estaria vedada em face
da imunidade constitucional (art. 150, VI, a).
Também não seria aplicável o princípio da
função social urbana aos imóveis dos Estados,
do Distrito Federal e dos próprios Municípios.
No tocante à propriedade rural, a Constituição Federal de 1988 definiu expressamente
quando esta propriedade atenderá a função social
rural, sendo que a Lei 8.629/93 apenas efetivou
um detalhamento. A Constituição Federal prevê
no art. 186 que “a função social é cumprida
quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigências
estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I –
aproveitamento racional e adequado; II – utiliza-
ção adequada dos recursos naturais disponíveis e
preservação do meio ambiente; III – observância
dos dispositivos que regulam as relações de trabalho; IV – exploração que favorece o bem-estar
dos proprietários e dos trabalhadores”.
A Constituição considera que uma propriedade imobiliária agrária atende ao vetor da
função social quando cumpre, simultaneamente,
os requisitos da produção (uso racional e adequado), da ecologia (preservação e conservação dos
recursos naturais) e social (respeito aos direitos
trabalhistas e legislação de contratos agrários).
Benedito Marques23 comenta que no caso
de trabalho escravo e do trabalho de menores há
descumprimento da função social, sendo cabível
a desapropriação. O autor entende que cabe ao
INCRA expedir certidão afirmando que há cumprimento da função social quanto à produtividade, cabe ao IBAMA certificar o cumprimento do
aspecto ecológico24.
A propriedade rural que não cumprir a
função social é passível de desapropriação, nos
termos da Lei 8.629/93, respeitados os dispositivos constitucionais. Segundo a Lei 8.629/93, a
função social é cumprida quando a propriedade
rural atende simultaneamente, segundo graus e
critérios estabelecidos nessa lei, os seguintes requisitos: I – aproveitamento racional e adequado;
II – utilização adequada dos recursos naturais
disponíveis e preservação do meio ambiente;
III – observância das disposições que regulam
as relações de trabalho; IV – exploração que
favoreça o bem-estar dos proprietários e dos
trabalhadores (art. 9.º).
Considera-se racional e adequado o aproveitamento que atinja os graus de utilização e de
eficiência na exploração (art. 6º). O grau de utilização da terra deverá ser igual ou superior a 80%
calculado pela relação percentual entre a área
efetivamente utilizada e área aproveitável total
do imóvel (art. 6.º, §1.º). O grau de eficiência na
exploração da terra deverá ser igual ou superior
a 100% e será obtido de acordo com a seguinte
sistemática (art. 6º, §2º): I – para os produtos
vegetais, divide-se a quantidade colhida de cada
produto pelos respectivo índices de rendimento
estabelecidos pelo órgão competente do Poder
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Executivo, para cada Microrregião Homogênea;
II – para exploração pecuária, divide-se o número total de unidades Animais do rebanho, pelo
índice de lotação estabelecido pelo órgão competente do Poder executivo, em cada Microrregião
Homogênea; III – a soma dos resultados obtidos
na forma dos incisos I e II, dividida pela área
efetivamente utilizada e multiplicada por 100,
determina o grau de eficiência na exploração.
Considera-se efetivamente utilizada: I – as
áreas plantadas com produtos vegetais; II – as
áreas de pastagens nativas e plantadas, observado
o índice de lotação por zona de pecuária, fixado
pelo Poder executivo; III – as áreas de exploração extrativa vegetal ou florestal, observados os
índices de rendimentos estabelecido pelo órgão
competente do Poder Executivo, para cada microrregião homogênea, e a legislação ambiental;
IV – as áreas de exploração de floresta nativa,
de acordo com o plano de exploração e nas
condições estabelecidas pelo órgão competente
federal; V – as áreas sob processo técnicos de
formação ou recuperação de pastagens ou de
culturas permanentes, tecnicamente conduzidas e
devidamente comprovadas, mediante documentação e Anotação de Responsabilidade Técnica
(art. 6º, §3º).
Ter-se-á como racional e adequado o
aproveitamento do imóvel rural, quando esteja
oficialmente destinado à execução de atividades
de pesquisa e experimentação que objetivem o
avanço tecnológico da agricultura (art. 8º).
Considera-se adequada utilização dos recursos naturais disponíveis quando a exploração
se faz respeitando a vocação natural da terra, de
modo a manter o potencial produtivo da propriedade (art. 9º, §2º).
Considera-se preservação do meio ambiente a manutenção das características próprias
do meio ambiente e da qualidade dos recursos
ambientais, na medida adequada à manutenção
do equilíbrio ecológico da propriedade e da saúde
e qualidade de vida das comunidades vizinhas
(art. 9º, §3º).
A observância das disposições que regulam
as relações de trabalho implica tanto o respeito
às leis trabalhistas e aos contratos coletivos de
180
trabalho, como as disposições que disciplinam
os contratos coletivos de trabalho, como às disposições que disciplinam os contratos de arrendamento e parcerias rurais (art.9º, §4º).
A exploração que favorece a o bem-estar
dos proprietários e trabalhadores rurais é a que
objetiva o atendimento das necessidades básicas
dos que trabalham a terra, observa as normas de
segurança do trabalho e não provoca conflitos
ou tensões sociais (art. 9º, §5º).
Considera-se propriedade produtiva aquela que explorada econômica e racionalmente,
atinge, simultaneamente, graus de utilização
da terra e de eficiência na exploração, segundo
índices fixados pelo órgão federal competente
(art. 6º, caput).
Não perderá a qualificação de propriedade produtiva o imóvel que, por razões de
força maior, caso fortuito ou de renovação de
pastagens (passagens, erro na lei) tecnicamente
conduzidas, devidamente comprovados pelo
órgão competente, deixar de apresentar, no ano
respectivo, os graus de eficiência na exploração,
exigidos para a espécie (art. 6º, §7º).
Os parâmetros, índices e indicadores que
informam o conceito de produtividade serão
ajustados, periodicamente, de modo a levar em
conta o progresso científico e tecnológico da
agricultura e o desenvolvimento regional, pelos
Ministros de Estado Extraordinário de Política
Fundiário e da Agricultura e do Abastecimento,
ouvido o Conselho nacional de Política Agrícola
(art. 11).
A Constituição estabelece que, diante do
descumprimento da função social da propriedade
agrária, é cabível a desapropriação para fins de
reforma agrária, com pagamento da indenização
em títulos da dívida agrária (art. 184). Para Fábio Konder Comparato, aquele que não cumpre
a função social perde as garantias, judiciais e
extrajudiciais, de proteção da posse, inerentes à
propriedade, como o desforço privado (art. 502,
CC) imediato e as ações possessórias, e também a
perda da exclusividade da propriedade2525 Citamse algumas decisões judiciais que sintonizam
com este entendimento:
“EMENTA: Comarca de Presidente Médici
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– Decisão Monocrática
– Reintegração de posse
– Função social da propriedade rural
– Posse
– Bem-Estar
– Produtividade
– Meio Ambiente
– Legislação trabalhista.
DECISÃO
(...)
A promoção do bem-estar do povo passou
a ser missão primordial do Poder Público
, fazendo com que a propriedade perdesse
seu marcante caráter de direito subjetivo para ser
analisada sob o prisma da função social.
Não tendo ocorrido invasão da propriedade
dos requerentes até a data do ajuizamento da
ação; não tendo sido localizado os requerentes
listados na inicial, tendo ficado demonstrado o
desatendimento à função social da propriedade,
julgo improcedente o pedido liminar, visando a
expedição de reintegração de posse, determinado
na forma do art. 930, do Código de Processo Civil, a citação dos requeridos para que contestem
a ação. (...)
Presidente Médici, 01 de julho de 1996.
Cumpre frisar também que as sanções
jurídicas impostas para o descumprimento do
dever de cumprir a função social da propriedade
(urbana e rural) são aplicáveis ao particular, o
que é perfeitamente verificado pela inaplicabilidade jurídica de tais sanções contra o Poder
Público. Isso porque o conjunto de deveres que
caracteriza a função social, tal como traçado no
Texto Constitucional, pressupõe que o proprietário é, simultaneamente o titular do direito, o
administrador e o único beneficiário, ou seja, o
proprietário é o titular dos direitos e deveres em
relação ao imóvel. O art. 186 da Constituição,
que define a função social rural e, os diversos
dispositivos legais da Lei 8.629/93 pressupõe
que o particular é, simultaneamente titular, administrador e beneficiário do imóvel rural e, por
isso, deve realizar como atividade principal uma
atividade agrária.
No meio rural, é patente a inaplicabilidade
das sanções jurídicas previstas para o descumprimento da função social aos entes públicos.
Veja-se. Compete à união fiscalizar, através
do INCRA, se os imóveis cumprem a função
social (art. 184, CF e art. 22, da Lei 4.504, de
30.11.1964 – Estatuto da Terra). Caso constate
que os imóveis do Distrito Federal, do Estado
e do Município, não esteja cumprindo a função
social rural, cumpre indagar que sanções seriam
cabíveis.
Em primeiro lugar, tais entes não estão
obrigados a realizar prioritariamente uma atividade agrária, nos termos do art. 186 da Constituição e dos art.6.º, 7.º, 8.º e 9.º da Lei 8.629/93,
pois eles têm o dever-poder de decidir a que
usos afetarão seus imóveis, tendo em vista as
exigências dos diversos interesses titularizados
pelos mesmos no exercício das respectivas competências administrativas, tais como construir
escolas, presídios, hospitais, escolas técnicas
agrícolas, alienar, doar, criar reserva ambiental,
etc. O dever de destinar os imóveis rurais a atividade agrária produtiva (agricultura, pecuária,
agroindústria, extrativismo), atender à legislação
trabalhista, ao dever de preservar o meio ambiente e aos demais elementos que consubstanciem a
função social, é, pois, do particular.
Acredita-se que os entes públicos se vêem
obrigados a cumprir a Constituição Federal
e a legislação infra-constitucional que prevê
inúmeros usos de interesse público; devem
simplesmente cumprir os deveres de boa gestão,
que são inúmeros, conforme será adiante tratado.
A caracterização da função social como um
dever jurídico a ser atendido pelo ente público,
esbarraria na imposição de uma responsabilização ao ente público, lembrando que a responsabilização da União, Estados, Distrito Federal e
Municípios (titulares do direito sobre o imóvel
público) não alcança efetivamente o agente
público, que, via de regra, foi quem deixou de
cumprir diversos deveres em relação à gestão do
patrimônio imobiliária público.
Por exemplo, um determinado Município
declarar desapropriado imóvel da união, porque
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este não atende ao plano diretor, logo, à função
social da propriedade urbana e, a União por sua
vez, declarar desapropriado imóvel rural de um
Município que não realizou a atividade agrária
produtiva nos termos do art. 186 da Constituição, portanto, descumpriu a sua função social.
Ora, se a união já é titular de inúmeros imóveis
que pode destinar para fins de reforma agrária,
como prevê o art. 188 da Constituição, portanto,
o que fará com o imóvel desapropriado do Município? Este imóvel integrará o seu patrimônio
e, será mais um imóvel público, agora federal,
que deverá ser bem administrado pela união,
em relação ao qual os agentes administrativos
do órgão competente terão inúmeros deveres de
gestão a serem cumpridos.
Tendo em vista a idéia de que o imóvel público possui um titular (ente público) totalmente
distinto do administrador (agente público) e do
beneficiário (coletividade), deve-se em linha
de princípio, identificar os deveres jurídicos
existentes, as sanções jurídicas imputáveis aos
administradores dos imóveis públicos, e fazer
efetivamente incidir as conseqüências jurídicas
decorrentes do descumprimento dos deveres de
gestão.
Afastada a “função social” do regime de
bens públicos, não significa que o Poder Público não tenha deveres jurídicos em relação
ao seu patrimônio público, no que pertine ao
atendimento dos interesses coletivos normativamente postos. Se o particular deve exercer o
direito de propriedade atendendo à função social
sob pena de vir a ser desapropriado ou mesmo
sofrer a perda das garantias possessórias ou da
própria propriedade, é inconteste que existe o
dever do Poder Público, ao exercer o direito de
propriedade pública, de atender aos interesses
da coletividade. Do mesmo modo que o direito
de propriedade privada deve ser exercido pelo
particular em conformidade com os interesses da
coletividade, mutatis mutandi, o Poder Público
deve gerir os bens públicos a fim atender os
interesses públicos. Todavia, este dever decorre
do próprio regime de Direito Público, inerente
ao exercício da função administrativa, e não das
normas que resguardam a função social.
182
Convém registrar que, em sentido contrário, se manifestam Maria Sylvia Zanella Di Pietro26 e Sílvio Luis Ferreira da Rocha27. Defendem
que o fato do Poder Público ter o dever de afetar
seus bens a fins de interesse da coletividade não
exclui a incidência do princípio da função social
da propriedade.
Data venia, a função social da propriedade
caracteriza-se como um conjunto de deveres
jurídicos impostos apenas ao proprietário particular por força do Texto Constitucional (arts. 5.º,
xxxIII, 170, III, 182 e 186). O delineamento no
Texto Constitucional não permite esta ampliação
para alcançar a propriedade pública, pelos motivos já mencionados acima: i) pela inexistência
de um regime jurídico unívoco de propriedade
pública, equivalente ao da propriedade privada,
tendo em vista a diversidade de categorias de
bens públicos que ensejam a adoção de regimes
jurídicos diversos, decorrentes da natureza do
bem e do interesse jurídico a ser protegido; ii)
pela impossibilidade do uso exclusivo (exclusividade) pelo titular da propriedade pública,
no caso, o Estado, porque uma parte dos bens
públicos são vocacionados para o uso direto (bem
de uso comum do povo) ou indireto (bem de uso
especial) da coletividade; iii) pela distinção entre
o titular do bem (ente público), o administrador
do bem (agente públicos) e o beneficiário do
bem (a coletividade), de modo que as sanções
jurídicas previstas no ordenamento jurídico pelo
descumprimento da função social são inaplicáveis aos entes públicos, sob pena de afronta
aos traços característicos do regime jurídico de
Direito Público, tais como, o princípio da federação (art. 1º CF), da autonomia de administração
dos entes federados (art. 18 CF), da previsão
orçamentária (art. 167 CF), da imunidade tributária (art. 150, VI, CF), da indisponibilidade do
interesse público; iv) pela impossibilidade de se
retirar do campo do Direito Público a disciplina
dos vínculos jurídicos existentes entre o Estado
e as diversas categorias de bens, inclusive quanto
à forma de sancionamento de ilícitos na gestão
pública dominial; v) pela indisponibilidade dos
interesses postos na esfera de cada ente público
(união, Estados, Distrito Federal e Municípios);
vi) pela vigência plena, na atividade estatal,
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do caráter funcional desta, que abole qualquer
possibilidade de se falar em autonomia privada,
mormente quanto aos bens públicos; vii) pela
vinculação do Poder Público ao cumprimento
dos diversos deveres de gestão de seus bens
decorrentes de diversas normas constitucionais
e normas infra-constitucionais, que não buscam
fundamento direto ou indireto na função social
da propriedade.
A nosso ver, está obrigado a afetar diretamente e prioritariamente a usos que atendam o
interesse público primário28, portanto, interesses
da coletividade e, apenas subsidiariamente poderia atender ao interesse público secundário29, por
exemplo, a exploração econômica de um imóvel
a fim de auferir renda.
Protegidos pela nota da indisponibilidade,
há, pois, uma hierarquia de usos que decorre do
próprio Texto Constitucional, especialmente dos
art. 1.º e art. 3.º. Todas as categorias de bens
públicos, inclusive os dominicais, devem ser
vinculados prioritariamente a usos que atendam
ao interesse da coletividade, por incidência do
princípio democrático, de que todo poder emana
do povo e em seu nome deve ser exercido, logo,
em seu nome e em seu favor os bens públicos
devem ser geridos.
Os bens dominicais são bens sem afetação
porque a Administração Pública não cumpriu
na atividade administrativa concreta os ditames
constitucionais e não por ausência ou inexistência de usos públicos que atendam ao interesse
da coletividade.
quando se afirma que o Poder Público
deve afetar seus bens para atender aos interesses
da coletividade, este dever decorre de diversos
dispositivos presentes no Texto Constitucional e
não do princípio da função social da propriedade,
o qual, interpretado em sentido estrito, nos exatos
termos da Constituição, ou seja, traduz um dever
que tem o particular de realizar uma atividade
agrária, se for imóvel rural (nos termos do art.
186 da Constituição e arts. 6.º, 7.º, 8.º, 9.ºda Lei
8.629/93), e atender ao disposto no plano diretor,
se for imóvel urbano (art. 182).
Apenas para citar um exemplo, quando o
Poder público destina um imóvel público para a
instalação de um hospital, ou uma escola, ou uma
creche, ou uma instituição de atendimento aos
idosos, às mães solteiras, aos deficientes físicos,
às crianças desamparadas, está simplesmente
cumprindo o disposto nos arts. 196 (saúde é
direito de todos e dever do Estado), 203 (a assistência social será prestada a quem dela necessitar), 205 (a educação, direito de todos, dever
do Estado e da família) da Constituição Federal
e, portanto, gerindo e afetando imóveis públicos
segundo os objetivos do Texto Constitucional.
Não está na dicção da Constituição que
a função social da propriedade é sinônimo de
atendimento de qualquer interesse público ou
de qualquer objetivo constitucional, por isso,
o conjunto de deveres de gestão do patrimônio
público imobiliário, imputáveis ao Poder Público, não decorre do instituto da função social
da propriedade e sim de diversos dispositivos
constitucionais e legais, especialmente dos arts.
1.º e 3.º que protegem os valores sociais do
trabalho, da dignidade da pessoa humana, da
igualdade, etc.
A gestão do patrimônio público imobiliário
engloba diversos deveres, tais como: os deveres
de utilização e conservação dos bens, o dever de
destinação, o dever de delimitação de imóveis
públicos (que se desdobra, no âmbito federal, no
dever de discriminar terras devolutas, dever de
demarcar terras de marinha, terrenos marginais
e terras de interiores) e o dever de fiscalização
sobre imóveis públicos (que se desdobra nos deveres zelo, guarda, conservação, regularização,
recuperação de imóveis sob a ocupação de terceiros e, de arrecadação de receita patrimonial).
O descumprimento dos deveres de gestão
origina a responsabilidade do Estado e dos
agentes públicos nos termos do ordenamento
jurídico pátrio. A responsabilidade por comissão
é objetiva, ou seja, basta a comprovação do ato
estatal, do dano e do nexo causal. A existência de
dolo ou culpa é indiferente para gerar o efeito de
reparar o dano, tornando-se questão subsidiária,
cujos únicos efeitos jurídicos são o direito de
regresso do Estado em relação ao agente público
e as punições administrativas (art. 37, §6.º, CF).
quanto à responsabilidade por omissão, há
divergência doutrinária quanto a sua natureza,
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subjetiva ou objetiva. A doutrina majoritária
entende que é subjetiva, ou seja, haverá responsabilidade por comportamentos omissivos, quando
houver dolo ou culpa dos agentes públicos, originando o dever de reparação pelo dano causado
e, ainda diversas sanções de natureza política e
administrativa previstas na Lei 8.429/92 – Lei
da Improbidade Administrativa, bem como a responsabilidade administrativa do agente público,
nos termos da Lei 8.112/91.
Todavia, a maior parte da jurisprudência
aderiu à natureza objetiva da responsabilidade
por comportamentos omissivos do Estado e, inclusive, em inúmeros casos, consagra a teoria do
risco administrativo para responsabilizar o Estado por omissão, independentemente de culpa ou
dolo dos agentes públicos, impondo ao Estado,
o dever de indenizar os prejuízos causados. No
caso de culpa anônima, se não ocorreu o dano
a alguém, mas tão-somente o descumprimento
dos deveres de gestão, os quais violam interesses coletivos protegidos pela ordem jurídica, a
responsabilidade estatal resume-se ao dever de
realizar obrigação de fazer, como decorrência do
ajuizamento de ação civil pública apenas para
obrigar o Estado ao cumprimento de tais deveres.
4. Conclusão
É inegável que a construção da doutrina da
função social da propriedade teve como ponto de
partida o direito de propriedade privada tal como
traçado pelos civilistas modernos e objetivou a
flexibilização de tal concepção absolutista de
propriedade, tendo como pressuposto a noção de
que o titular privado do direito de propriedade, é,
ao mesmo tempo, o administrador e beneficiário
de tal direito, de modo que a história da propriedade privada moderna evolui da concepção de
um feixe de poderes absolutos que o particular
titulariza em oposição a todos (erga omnes) para
a o surgimento de um conjunto de deveres jurídicos, que flexibilizam e limitam simultaneamente
este conjunto de poderes.
Já a propriedade pública, no Estado de
Direito, e ainda mais no Brasil, onde a Constituição Federal consagra o Estado Democrático
184
de Direito (art. 1º), nasce como um conjunto de
deveres jurídicos vinculantes para a Administração Pública, cujos poderes são meramente
instrumentais e só poderão ser manejados para
atender interesses da coletividade, indisponíveis
e irrenunciáveis para o administrador público.
A aplicação do instituto da função social à
propriedade pública esbarra em diversos óbices,
neste ensaio abordados, revelando-se incompatível com o regime de Direito Público, de modo
que a sua incidência implica num afastamento e
enfraquecimento injustificados do regime jurídico público (princípio federativo, autonomia de
administração dos entes federados, obediência
à lei orçamentária, imunidade tributária, indisponibilidade do interesse público), o que não se
coaduna com uma leitura sistemática dos ditames
da Constituição Federal que regem a gestão dos
bens públicos no Brasil.
5. notas
O direito na história – lições introdutórias. São Paulo: Max
Limonad, 2000. p. 404.
3
José Reinaldo Lima Lopes esclarece que “se o domínio
é um poder, pode-se, sobre a mesma coisa exercer outro
poder, que não domínio: o domínio pode ser um composto
de vários poderes, que se podem dividir. E de fato, assim
foi durante o período medieval. O senhorio, ou o domínio,
no período medieval também era entendido como um poder
de direção (político) ligado à terra. O senhor detinha, junto
com direitos sobre os frutos da terra, rendas ou serviços,
uma jurisdição, isto é, certa competência normativa.”.
Op. Cit. p.402-403.
4
Op. cit. p.405.
5José Reinaldo Lima Lopes. O direito na distória – lições
introdutórias. São Paulo: Max Limonad, 2000. p. 408 .
6
Darcy Bessone. Direitos Reais. São Paulo: Saraiva,
1996.p.75.
7
Arnaldo Rizzardo. Direito das Coisas. Vol I. Rio de Janeiro:
Aide, 1991.p.287
8
Darcy Bessone. Op. cit. p.77.
9
Darcy Bessone. Op. cit. p. 76.
10
Bartolomé a Fiorini. Derecho Administrativo. Tomo II.
Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1997, p.353.
11
“Labor esclarecedora será – después Del método expuesto
– demonstrar lãs diferencias que incierran estas distintas
clases de bienes que tiene el Estado. No existe una sola
clase de bien estatal; hay varios e reglados por distintos
regímenes.” Bartolomé A. Fiorini. Derecho Administrativo. Tomo II. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1997, p. 300.
12
Derecho Administrativo. Tomo II. Buenos Aires: AbeledoPerrot, 1997, p. 302.
2
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 173-186, fevereiro/2010
NOTAS SOBRE A INAPLICABILIDADE DA FuNÇÃO SOCIAL à PROPRIEDADE PúBLICA
A autora adota a noção de afetação em sentido estrito,
enquanto ato concreto e individual, de natureza constitutiva, que cria uma situação nova para o bem, que é alçado
à categoria de bem de uso comum ou de uso especial.
Embora a Constituição de 1988 enumere nos seus arts. 20
e 26 as espécies de bens públicos da união e dos Estados,
não define todos os usos a que se destinam cada uma
das espécies mencionadas. Caberá à legislação ordinária
definir quais os usos a que se destina dado bem público,
bem como os fins que se pretenderá alcançar com essas
destinações, tocando à Administração Pública emitir atos
de afetação, complementares à lei, individualizando o bem,
o uso a que se destina e os fins públicos a que visa atender.
Veja-se um exemplo. O Decreto-lei 2.398, de 21.12.1997,
prevê que um ato, no caso uma Portaria, designará o imóvel público de interesse do serviço público necessário ao
desenvolvimento de projetos públicos, sociais ou econômicos de interesse nacional, à preservação ambiental e à
defesa nacional. quando essa portaria for expedida, terá
a natureza de um ato administrativo de afetação porque
individualizará o imóvel público que será destinado a
um uso público, entre os usos públicos mencionados.
Os usos públicos possíveis aos quais podem ser afetados
os bens públicos variam conforme a categoria jurídica a
que pertencem, as suas características físicas e, ainda, a
utilidade que podem gerar para a sociedade brasileira em
determinado contexto histórico.
14
Op. cit. p.300-301.
15
Celso Antônio Bandeira de Mello explica que “a Administração exerce função: a função administrativa. Existe
função quando alguém está investido no dever de satisfazer
dadas finalidades em prol do interesse de outrem, necessitando, para tanto, manejar os poderes requeridos para
supri-las. Logo, tais poderes são instrumentais ao alcance
das sobreditas finalidades. Sem eles, o sujeito investido
na função não teria como desimcumbir-se do dever posto
a seu cargo. Donde, quem os utiliza, maneja na verdade
‘deveres-poderes’, no interesse alheio“. Curso de direito
administrativo, p. 62.
16
Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 284-285.
17
Op. cit., p. 287.
18
Gustavo Tepedino, Contornos constitucionais da propriedade privada, Revista de Direito Comparado, p. 253.
19
Op. cit., p. 251.
20
Fábio Konder Compararato, Direitos e deveres fundamentais em matéria de propriedade, in: Juvelino Strozake
(coord.), A questão Agrária e a Justiça, p. 145.
21
Diógenes Gasparini defende que os entes públicos (Estados e a união) não seriam destintários dessas imposições,
mesmo que seus imóveis estejam em área incluída no plano
diretor e haja lei municipal disciplinando o seu parcelamento, a edificação e a utilização compulsórios, porque
seria uma intervenção de um ente federado em outro, e
cada ente tem competência para usar, gozar e dispor de
seus bens públicos urbanos segundo o interesse público
que lhe compete perseguir. Estatuto da cidade.São Paulo:
NDJ, 2002. p. 28.
22
O impedimento ventilado pela autora refere-se a desapropriação-sanção por descumprimento da função social.
13
Benedito Marques. Direito Agrário Brasileiro. Goiânia:
AB, 199. p. 57-58.
24
PORTARIA INCRA/P n.º 12, de 24 de janeiro de 2006:
“Art. 1.º §5.º Constatada irregularidade quanto à utilização
dos recursos naturais e preservação do meio ambiente
e das disposições que regulam as relações de trabalho, o
INCRA comunicará o fato em parecer circunstaciado ao
Ministério do Trabalho e Emprego - Tem e ao Instituto
Barsileiro de Meio Ambiente e Recursos Renováveis –
IBAMA.”Dr. Mário José Nilane e Silva Juiz de Direito.”
(grifos nossos)
25
Citam-se algumas decisões judiciais que sintonizam com
este entendimento: “EMENTA: Comarca de Presidente
Médici – Decisão Monocrática – Reintegração de posse
– Função social da propriedade rural – Posse – Bem-Estar
– Produtividade – Meio Ambiente – Legislação trabalhista.
DECISÃO
(...) A promoção do bem-estar do povo passou a ser missão
primordial do Poder Público, fazendo com que a propriedade perdesse seu marcante caráter de direito subjetivo
para ser analisada sob o prisma da função social.
Não tendo ocorrido invasão da propriedade dos requerentes até a data do ajuizamento da ação; não tendo
sido localizado os requerentes listados na inicial, tendo
ficado demonstrado o desatendimento à função social
da propriedade, julgo improcedente o pedido liminar,
visando a expedição de reintegração de posse, determinado na forma do art. 930, do Código de Processo Civil,
a citação dos requeridos para que contestem a ação. (...)
Presidente Médici, 01 de julho de 1996.
Dr. Mário José Nilane e Silva
Juiz de Direito.” (grifos nossos)
“ACóRDÃO
Agravo de Instrumento
– Decisão Atacada: Liminar que concedeu a reintegração
de posse da empresa arrendatária em detrimento dos
‘sem-terra’.
Ementa: Liminar deferida em primeiro grau suspensa
através de despacho nos autos do agravo, pelo Desembargador de plantão.
(...) Prevalência dos direitos fundamentais das 600 famílias acampadas em detrimento do direito
puramente
patrimonial de uma empresa. Propriedade: garantia de
agasalho, casa e refúgio do cidadão.
Inobstante ser produtiva a área, não cumpre ela sua
função social, circunstância esta demonstrada pelos
débitos fiscais que a empresa proprietária tem perante a
união. Imóvel penhorado ao INSS. (...) (Décima Nona
Câmara Cível
– São Luiz Gonzaga
– Agravo de Instrumento 598360402
– Agravantes: José Cenci e Aldair José Morais de Sousa
– Agravados: Merlin S.A. Indústria e Comércio de óleos
Vegetais
– Interessado: Movimento dos Sem Terra).” (grifos nossos)
26
Maria Sylvia Zanella Di Pietro defende que “Com relação
aos bens de uso comum do povo e bens de uso especial, afetados, respectivamente, ao uso coletivo e ao uso da própria
Administração, a função social exige que ao uso principal
a que se destina o bem sejam acrescentados outros usos,
23
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 173-186, fevereiro/2010
185
ABE, N. C.
sejam públicos ou privados, desde que não prejudiquem
a finalidade a que o bem está afetado. Com relação aos
bens dominicais, a função social impõe ao poder público o
dever de garantir a sua utilização por forma que atenda às
exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas
no plano diretor, dentro dos objetivos que a Constituição
estabelece para a política de desenvolvimento urbano”.
Função social da propriedade pública. Direito Público:
estudos em homenagem ao Professor Adilson Abreu
Dallari. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p. 572.
27
“O fim obrigatório que informa o domínio público não
acarreta sua imunização aos efeitos emanados do princípio
da função social da propriedade, de modo que o princípio
da função social da propriedade incide sobre o domínio
público, embora haja a necessidade de harmonizar o referido princípio com outros.
O princípio da função social da propriedade incide sobre
os bens de uso comum mediante paralisação da pretensão reintegratória do Poder Público, em razão de outros
interesses juridicamente relevantes, sobretudo o princípio
da dignidade da pessoa humana; incide também sobre os
bens de uso comum mediante paralisação da pretensão
reivindicatória do Poder Público com fundamento no art.
1228, §4.º, do Código Civil.
O princípio da função social incide, também, sobre os bens
de uso especial mediante submissão dos referidos bens
aos preceitos que disciplinam a função social dos bens
urbanos, especialmente ao atendimento da função social
das cidades.
O princípio da função social incide, outrossim, sobre os bens
dominicais conformando-os à função social das cidades e
do campo e viabilizando a aquisição da propriedade dos
referidos bens pela usucapião urbana, rural e coletiva.”
Função social da propriedade pública. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 159-160.
28
Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello, “o interesse
público deve ser conceituado como o interesse resultante
do conjunto dos interesses que os indivíduos pessoalmente
têm quando considerados em sua qualidade de membros da
Sociedade e pelo simples fato de o serem” Curso de direito
administrativo, p. 53. Esclarece, outrossim, que a doutrina
italiana faz distinção entre os interesses públicos ou interesses primários, que são os interesses da coletividade, e
os interesses secundários, “que o Estado (pelo só fato de
ser sujeito de direitos) poderia ter como qualquer pessoa,
isto é, independentemente de sua qualidade de servidor de
interesses de terceiros: os da coletividade”. Op. Cit. p. 63.
29
Os interesses secundários só serão perseguidos quando
coincidirem com os interesses primários, pois a Administração não tem a autonomia e a liberdade típicas de
direito privado, porque exerce função. Celso Antônio
Bandeira de Mello.
Curso de direito administrativo, p. 57. No âmbito do
exercício da gestão de bens públicos, o Poder Público deve
atender aos interesses públicos primários que se encontram
previstos no ordenamento jurídico brasileiro, verificandose que as leis apontam os usos públicos preferenciais para
os imóveis públicos, mas deixam margem de liberdade de
eleição para a Administração Pública.Op.Cit. p. 58.
186
6. Bibliografia
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social da propriedade pública. Direito público:
estudos em homenagem ao Professor Adilson
Abreu Dallari. Belo Horizonte: Del Rey, 2004.
p. 572.
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Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 173-186, fevereiro/2010
A RELAÇÃO INTRíNSECA ENTRE O DIREITO, LINGuAGEM E COMuNICAÇÃO
Artigo
A rELAção intrínSECA EntrE o DirEito,
LinguAgEm E ComuniCAção
Rodrigo de Abreu Rodrigues1
rESumo: Este trabalho visa uma análise comparativa entre os elementos da comunicação e do
direito principalmente com vistas à obtenção de
justificativas acerca dos procedimentos, elementos e objetivos da atividade normativa.
Palavras-chave: Linguagem Jurídica. Elaboração Normativa. Teoria da Comunicação.
ABSTRACT: This study aims a comparative
analysis of the elements of communication and
right, especially with a view to obtaining explanations about procedures, elements and goals of
the normative activity.
Keywords: Legal language. Drawing up legislation. Theory of communication.
1. introdução
É cediço que o direito surge como uma
atividade social, ou seja, necessariamente esta
ciência volta-se para os reflexos externos das atuações humanas e seus impactos para os demais
elementos e seres humanos que o circunscrevem.
Analisando a própria natureza intrínseca
do ser humano pode-se observar que este a
necessidade natural do homem em se agrupar e
viver em sociedade. Segundo esta linha leciona
a Professora REGINA TOLEDO DAMIÃO2:
“Já é sabido e, mesmo, consabido que
o ser humano sofre compulsão natural,
inelutável necessidade de se agrupar em
sociedade, razão por que é denominado
ens sociale.”
1
Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da universidade Presbiteriana Mackenzie. Exerceu monitoria de Linguagem Jurídica e Direito Civil
sob orientação da Professora Titular Regina Toledo Damio
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 187-191, fevereiro/2010
187
RODRIGuES, R. A.
Há uma relação intrínseca entre o Direito
e a Sociedade na qual a sua atuação tem por impacto os seus resultados na sociedade como um
todo. Por isso é possível observar o desinteresse
do legislador em situações de autolesão ou da
tentativa de suicídio como tipos penais.
Por outro lado existem determinadas
atitudes personalíssimas que não podem ser
renegadas tendo em vista o impacto que tais
atitudes gerariam no âmbito social, tais como,
o consumo de substâncias interpocentes ou a
renúncia de determinados direitos vinculados á
personalidade.
Ou seja, as ações humanas que verdadeiramente importam à ciência jurídica dizem respeito
aos reflexos que estas podem gerar à sociedade
ou aos demais membros que o circunscrevem.
Denota-se que a existência do Direito tem por
objetivo a regulamentação dos atos que geram
impactos aos membros da sociedade.
Com base nesta conclusão é possível observar um terceiro elemento integrante entre o
Direito e a Sociedade. Para tanto temos que compreender a sociedade como entes comunicantes
e o direito como a plataforma de comunicação
que têm por objetivo precípuo a regulamentação
das relações humanas.
Segundo DOMENICO TOSINI3 as organizações sociais devem ser compreendidas sob
a ótica das redes de comunicação, ou seja, sem
uma plataforma de comunicação não é possível
encarar os membros que convivem conjuntamente como membros de uma organização social ou
de uma sociedade.
A partir da teoria de NIKLAS LuHMANN
extrai-se três elementos que tornam possível a
compreensão dos sistemas sociais: (i) interação
(diz respeito às relações entre os agentes comunicativos); (ii) organizações (consistentes em
rede de decisões) e (iii) sociedades (sistema que
inclui tudo o que é social).
Estes três elementos trazem à tona, através
da teoria dos sistemas, que a sociedade é composta de microsistemas relativamente fechados
e mantêm determinados graus de comunicação e
188
impactos com os demais microsistemas sociais.
Assim não há como dissociar a linguagem e a
comunicação do direito, tendo em vista o caráter
teleológico que esta disciplina carrega consigo.
Neste sentido o jusfilósofo MIGuEL
REALE4 leciona acerca deste caráter indissociável:
“O Direito é, por conseguinte, um fato
ou fenômeno social; não existe senão na
sociedade e não pode ser concebido fora
dela. uma das características da realidade
jurídica é, como se vê, a sua socialidade,
a sua qualidade de ser social.”
Como compreender a interação entre o sistema jurídico posto e a sua aplicação na sociedade? uma das respostas plausíveis de explicação
pode ser observada na semiótica, principalmente
através de um de seus precursores Ferdinand de
Saussure e sua análise diacrônica do processo
comunicativo.
A aplicação dos conceitos de linguagem
desenvolvidos por Ferdinand de Saussure expandiu conceitos nas mais diversas áreas do
conhecimento, extrapolando sua configuração do
campo lingüístico, visto a concepção sociológica
que abarcam nesta teoria.
2. A língua e a palavra
Através da teoria da linguagem de Saussure
denota-se claramente a necessidade de se separar
o social e o individual, fruto de uma perspectiva
diacrônica, conforme mencionado acima.
Sob a perspectiva de WATERMAN5, tal
teoria pode ser compreendida através de dois
enfoques: (i) um herdado sistema social de signos arbitrários e (ii) a atividade social de uso do
sistema exposto.
Ou seja, ao ser humano lhe é imediatamente imposto um conjunto de elementos,
denominados de signos arbitrários, fruto de um
desenvolvimento hereditário desenvolvido no
âmbito de cada sistema social. Porém, através
desta base estrutural lingüística, o ser humano
no seu contexto social irá desenvolvê-la e, acima
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 187-191, fevereiro/2010
A RELAÇÃO INTRíNSECA ENTRE O DIREITO, LINGuAGEM E COMuNICAÇÃO
de tudo, aplicá-la de acordo com o seu prisma
individual.
A fala promove a existência da linguagem
como processo comunicativo, ou seja, a língua é
um sistema abstrato que se manifesta através de
um procedimento individual denominado “fala”.
Conforme as lições de COELHO NETTO6,
“a fala surge assim como um instrumento legitimador da existência da língua, que por sua vez
autoriza a fala”.
Segundo o Professor TÉRCIO SAMPAIO
FERRAZ Jr.7 a “abstração implica sempre em
um aumento de complexidade no interior da
própria língua, no sentido de que não podemos
apenas falá-la mas, metalinguisticamente, falar
sobre ela”
No contexto jurídico é possível denotar
que os comandos da comunicação essencialmente jurídicos encontram-se nos mais diversos
âmbitos dos ordenamentos jurídicos, podendo
ser observados desde a Constituição Federal
até uma circular ou uma resolução conferindo
aplicabilidade ou regulamentação a um instituto
previsto em lei.
A norma, inicialmente, é um sistema de
regulamentação aparentemente hereditário e
abstrato que é imposto fruto de uma experiência
jurídica anterior e de suas relações intersubjetivas. É possível observar o grau de aproximação
da estrutura da linguagem proposta pelo filósofo
estruturalista e da estrutura normativa, cada qual
nos seus respectivos âmbitos de observação e
atuação.
Segundo ELDEMAN e SuCHMAN8, o
direito apresenta-se como um modelo de uma
vida organizacional, definindo normas para a
organização dos “agentes” e significados dos
eventos organizacionais. Isto significa que a
partir do momento em que aos agentes são
imputados ordenamentos jurídicos e normas de
conduta, a estes cabe a adaptação destas com a
presente realidade.
Justamente por ser um modelo de conduta
coercitivo a ser adotado, a fala confere ao agente
a capacidade de assimilar tal sistemática proposta
e exteriorizá-la.
3. A teoria da argumentação
e a importância do processo
comunicativo
A comunicação jurídica, principalmente
com relação à elaboração e aplicação normativa
consiste em um diálogo sinalagmático entre os
agentes envolvidos nestes respectivos processos.
A linha comunicativa tradicionalmente conhecida consiste em uma linha de comunicação
unilateral entre o emissor e receptor, denominada
tecnicamente como direção semasiológica e
onomasiológica, não pode ser concebida na sua
integralidade no âmbito das relações jurídicas,
tendo em vista a complexidade das linhas comunicativas.
Assim, a comunicação jurídica assume
dois pólos de emissão e recepção simultâneos,
resultando assim em um processo comunicativo
na qual o receptor, ao assimilar a experiência
exposta pelo emissor, posiciona-se nesta experiência como via de estabelecimento de seu
particular ponto de vista9.
Este papel de assimilação do posicionamento realizado pelo emissor é denominado por
TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ Jr. como roletaking e este se apresenta como um elemento
essencial para o transporte da norma abstrata ao
mundo real.
Pode-se tomar como exemplo da natural
manifestação deste fenômeno comunicacional
as disciplinas processuais que são asseguradas
pelo princípio da ampla defesa e do contraditório
(artigo 5º, LV da Constituição Federal), exigindo
para a aplicação normativa a realização desta
comunicação emissor-receptor, que tem por base
a formação da convicção e do entendimento do
julgador.
Em que pese a participação do juiz como
um componente de um dos pólos do triângulo
processual, a comunicação gira em torno do
emissor-receptor, variando de posições com o
objetivo de atingir o mútuo-consentimento ou a
consentimento final do Magistrado que determi-
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 187-191, fevereiro/2010
189
RODRIGuES, R. A.
na o posicionamento final do órgão jurisdicional
da lei abstrata com relação caso concreto.
4. Conclusão
O direito constitui-se por ser uma ciência
eminentemente comunicativa, ou seja, sem a
existência de um procedimento comunicativo
não é possível afirmar a manifestação da atividade jurídica.
Justamente através desta relação intrínseca que a comunicação mantêm com o direito,
com base na teoria da comunicação introduzida
por Ferdinand de Saussure, é possível analisar
determinados elementos, e.g., língua e a fala,
que possuem suas devidas correspondências
com o mundo jurídico, demonstrando a correspondência da norma abstrata e da existência
de determinados procedimentos individuais de
aplicação desta norma de cunho abstrato a uma
determinada situação real.
Este procedimento é baseado na teoria da
argumentação nas quais os sujeitos da comunicação exercer alternativamente os papéis de
emissores e receptores, tendo por objetivo final
o mútuo entendimento ou o posicionamento final
do poder jurisdicional.
Um aprofundamento do entendimento dos
procedimentos da comunicação apresenta-se atualmente como uma solução aos diversos conflitos
que circunscrevem a presente ciência.
notas
DAMIÃO, Regina Toledo; HENRIquES, Antônio. Curso
de Português Jurídico 8. ed. São Paulo: Ed. Atlas, 2000.
p. 17
3
“According to Luhmann social systems have to be understood as (“operatively closed“, to use his expression)
network og communications“ (TOSINI, D. Re-conceptualizing Law and Politics: Contributions from System
Theory. Contemporary Sociology. v. 35, n. 2, p. 123-125,
mar. 2006.)
4
REALE, Miguel. Lições Premilinares de Direito. 27. ed.
São Paulo: Saraiva, 2002. p. 2
5
WATERMAN, John T. Ferdinand de Sussure – Forerunner
of Modern Structuralism. The Modern Language Journal.
v. 40, n. 6, p. 307-309, out. 1956.
2
190
COELHO NETTO, J. Teixeira. Semiótica, Informação e
Comunicação. 3. ed. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1980
p. 17
7
FERRAZ Jr. Tércio Sampaio. Direito, Retórica e Comunicação. 2. ed. São Paulo: Ed. Saraiva, 1997. p. 6
8
ELDEMAN, L. B.; SuCHMAN, M. C. The Legal Environments of Organizations. Anual Review of Sociology.
v. 23, p. 479-515, 1997.
9
FERRAZ Jr., Tércio Sampaio. Op. cit. p. 48
6
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______. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão e dominação. 4. ed. São Paulo:
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Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 187-191, fevereiro/2010
191
192
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, fevereiro/2010
ExISTE ESTE DIREITO DE NASCER PARA MORRER?
Artigo
ExiStE EStE DirEito DE nASCEr PArA
morrEr?
Rodrigo Gonçalves Oliveira*
rESumo: Este Trabalho tem como objetivo
esclarecer algumas dúvidas sobre a possível
regulamentação, por parte do Estado, da Antecipação Terapêutica do Parto no caso de fetos
anencefálicos, promovendo conseqüentemente
uma reflexão sobre um tema que está na fronteira
dos direitos fundamentais, da moralidade, da
saúde pública, e da religião. Levar-se-á em conta
nessa análise os Direitos Fundamentais que serão
concretizados com essa operação terapêutica,
tomando como base o princípio da dignidade
humana, garantindo condições mínimas de vida
e desenvolvimento do ser humano.
Palavras - Chave: Anencefalia; Autonomia de
Vontade; Dignidade da Pessoa Humana; Laico;
Liberdade.
ABSTRACT: This work aims to clarify some
doubts on the possible regulation, by the state, of
Anticipation of Childbirth therapy in the case of
anencephalic fetuses, thus promoting a reflection
on a topic that is on the borderline of fundamental rights, morality, public health , and religion.
Bringing will regard this analysis Fundamental
Rights which will be achieved with this operation
therapy, based on the principle of human dignity,
ensuring minimum living conditions and human
development.
Keywords: Anencephaly; Autonomy of Will;
Dignity of the Human Person; Lay; Freedom.
1.introdução
Com a chegada da Constituição de 1988
houve um grande avanço no tocante aos direitos
*
Graduando da universidade Federal da Paraíba. Monitor bolsista da disciplina direito do trabalho
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 193-205, fevereiro/2010
193
OLIVEIRA, R. G.
fundamentais, porém 11 anos após esses direitos
terem sido fundamentados, existe o problema da
proteção (efetivação) destes. Norberto Bobbio
[2] assevera com muita propriedade que:
“o problema que temos diante de nós não
é filosófico, mas jurídico e num sentido
mais amplo, político. Não se trata de saber
quais e quantos são esses direitos, qual á
a sua natureza e seu fundamento, se são
direitos naturais ou históricos, absolutos
ou relativos, mas sim qual é o modo mais
seguro para garanti-los, para impedir que,
apesar das solenes declarações, eles sejam
continuamente violados”.
A sociedade brasileira passa por uma discussão importante no que se refere à antecipação
do parto nos casos em que o feto possui uma
anomalia incompatível com a vida extra-uterina,
pois o Brasil ocupa o quarto lugar no mundo em
incidências de partos de fetos com anencefalia.
No caso da anencefalia, o feto em cem por cento
dos casos morre antes de ser retirado do ventre
materno ou morre logo após o parto. Nesse caso
não se fala na legalização da prática do aborto,
mas numa antecipação terapêutica do parto que
trará um maior conforto para mãe e seus familiares, pois ela não será obrigada a carregar um
bebê que não terá a menor chance de sobrevida,
diminuindo com isso o vínculo existente entre
eles. Com o brilhantismo que lhe é peculiar,
pondera o professor Rene Ariel Dotti [3]:
“Não pode haver preceito legal, principio
ético ou mandamento religioso que obrigue uma desditosa mulher a acalentar no
ventre e na alma o fruto de uma dolorosa
concepção definida pelo dicionário como”
monstruosidade em que não há abóbada
craniana e os hemisférios cerebrais ou não
existem, ou se apresentam como pequenas
formações aderidas à base do crânio”.
Há uma luta das mulheres de concretizar os
seus direitos fundamentais à saúde, à liberdade,
à vida, à autonomia de vontade. Pois cabe a elas,
baseadas em seus princípios éticos e religiosos,
decidir se querem antecipar o parto ou se continuam com a gestação na esperança de o feto
torna-se viável, fato que até hoje não aconteceu.
194
A questão da antecipação do parto de
anencéfalos possui um caráter social, pois os
dados do Ministério da Saúde apontam que na
grande maioria dos casos o pedido feito ao poder
Judiciário acontece por parte de mulheres pobres.
Isso ocorre, pois as mães que possuem melhores
condições financeiras não buscam uma autorização para interromper a gravidez, e sim, vão até
uma clínica particular, pagam e o procedimento é
realizado, ficando as pessoas menos favorecidas
dependentes de autorização para que a gestação
seja interrompida.
Outro fator social na antecipação terapêutica do parto em conseqüência de anencefalia é que
muitos casos decorrem da falta de ácido fólico,
que é importante no momento do fechamento da
abobada craniana, diminuindo em 40% a incidência da doença quando bem administrado noventa
dias antes da mulher engravidar. Mostra-se mais
uma vez que as mulheres menos favorecidas
economicamente são mais acometidas por essa
fatalidade, pois não possuem uma alimentação
adequada. Tentando minimizar a desigualdade o
governo autorizou que o ácido fólico fosse acrescentado à farinha, já que ela está presente nas
mesas dos menos favorecidos financeiramente.
2. Anencefalia
A anencefalia é uma má-formação fetal
congênita, incompatível com a vida extra-uterina, decorrente de um defeito no momento do
fechamento do tubo neural. Essa má-formação
pode ser diagnosticada previamente, a partir da
décima segunda semana de gestação, com o exame de ultra-sonografia, pois estes fetos possuem
uma característica ímpar: a ausência dos ossos
cranianos. O não fechamento da calota craniana
traz como conseqüência a inexistência de todas
as funções superiores do sistema nervoso central,
só restando um resquício do tronco encefálico.
Marília Andrade [4] com grande sabedoria expõe
o seguinte:
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 193-205, fevereiro/2010
“O que se observa é que, em realidade, a
anencefalia não se refere à lesão de todo
o encéfalo, mas somente de uma de suas
partes - mesmo que a maior e mais impor-
ExISTE ESTE DIREITO DE NASCER PARA MORRER?
tante delas - o cérebro. Disso resulta que
as funções superiores do Sistema Nervoso
Central, como “consciência, cognição,
vida relacional, comunicação, afetividade
e emotividade”.
Em 65% dos casos o feto morre antes de
completar o período da gestação, já os remanescentes duram apenas algumas horas para
deixar o convívio com sua mãe. Não há nada que
possa ser feito do ponto de vista clínico quando
se diagnostica que o feto esta acometido com a
anencefalia, não existe tratamento ou possibilidade de reversão, a única coisa a fazer é esperar a
morte precoce deste indivíduo que será inevitável
e certa. Com uma vasta experiência no ramo da
medicina José Aristodemo Pinotti [5] pondera
sobre a anencefalia:
“A anencefalia é resultado da falha de
fechamento do tubo neural, decorrente de
fatores genéticos e ambientais, durante o
primeiro mês de embriogênese. A diminuição do ácido fólico materno está associada com o aumento da incidência, daí
sua maior freqüência nos grupos sociais
menos favorecidos, existem, entretanto
muitos outros fatores causais, inclusive
genéticos. O Brasil é um país com incidência alta (4º do mundo) cerca de 18
casos para cada 10 mil nascidos vivos, e
um dos poucos onde a interrupção não é
autorizada.
“O reconhecimento de concepto com
anencefalia é imediato. Não há ossos
frontal, parietal e occipital. A face é delimitada pela borda superior das órbitas
que contém globos oculares salientes. O
cérebro remanescente encontra-se exposto
e o tronco cerebral é deformado. Hoje,
com os equipamentos modernos de ultrasom, existem dois diagnósticos fetais que
se fazem com 100% de segurança: óbito
fatal e anencefalia, esta última, a partir da
12ª semana de gestação. A possibilidade
de erro, repetindo-se o exame com dois
ecografistas experientes, é praticamente
nula. Não é necessária a realização de
exames invasivos, apesar dos níveis de
alfa-fetoproteína aumentados no líquido
amniótico obtido por amniocentese. A
maioria dos anencéfalos sobrevive dias
após o nascimento. quando a etiologia
é brida amniótica podem sobreviver um
pouco mais. As gestações de anencéfalos
causam, com maior freqüência, patologias
maternas como hipertensão e hidrâmnio
(excesso de líquido amniótico), pelas
alterações do processo fetal de deglutição, levando as mães a percorrerem uma
gravidez com risco elevado. A manutenção
da legislação atual, que precede em muitas
décadas os avanços científicos que garantem o diagnóstico de certeza da anencefalia, obriga as mulheres a levarem adiante
uma gestação que contém feto com morte
cerebral e certeza de impossibilidade de
sobrevida ao nascerem. Para essas mães,
a alegria de pensar em berço e enxoval
será substituída pela angústia de preparar
vestes mortuárias e sepultamento. Para
alguns desses casos se tem obtido, nos últimos anos, um número crescente de ordens
judiciais de interrupção da gravidez. Em
2001 Thomaz Gollop relatou 3000 casos e
hoje acredita-se que essas ordens judiciais
ultrapassam 5000.”
A sociedade médica ainda não sabe ao certo
o que causa a anencefalia. Provavelmente ela é
desencadeada por uma combinação de fatores
genéticos e ambientais. Não se expõe que haja
um só fator para que essa doença acometa o feto,
essa anomalia é multifatorial e um dos fatores é
a falta do ácido fólico, popularmente conhecido
como vitaminas do complexo B12. Levar-se-á
em consideração que nos casos em que a gestante
tem o acido fólico bem administrado noventa
dias antes da concepção diminui em até 40% a
ocorrência dessa má-formação.
Há uma confusão feita por algumas pessoas
ao considerar anencefalia um tipo de deficiência.
A anencefalia é uma má-formação incompatível
com a vida, já a deficiência não é considerada
incompatível, porque os deficientes possuem
condições de vida, que são limitadas de alguma
forma, todavia nada que impeça sua evolução
natural. O Brasil possui, segundo o censo, 14,5
% da população com algum tipo de deficiência.
Por esse motivo não podemos igualar anencefalia
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 193-205, fevereiro/2010
195
OLIVEIRA, R. G.
à deficiência, pois nunca foi visto um anencéfalo
andando pelas ruas, ou levando a vida com algumas limitações ou restrições de participação.
“[...] (a) que a questão do aborto anencefálico é muito relevante; (b) que no atual
estágio há muita insegurança nessa área;
(c) que são muito relevantes os direitos e
interesses envolvidos (vida do feto, liberdade da gestante, dignidade etc.); (d) que
há muitas decisões discrepantes sobre a
matéria; (e) que não há outro meio jurídico
mais idôneo para se discutir o tema; (f) que
é incabível qualquer outra ação constitucional de controle de constitucionalidade
por se tratar de direito pré-constitucional,
etc.”
3. Antecipação terapêutica do parto
Muitas mulheres têm lutado pelo direito
de interromper sua gestação, pois em seu ventre
está um feto, cuja anomalia torna inviável a
vida extra-uterina. A gestação de um feto que
não possui concretização do desenvolvimento
cerebral é um risco para as gestantes, algo que
fere os direitos fundamentais à vida e à saúde.
Alguns deputados, a exemplo da Deputada
Luciana Genro, já apresentaram projetos para
descriminalizar a prática do aborto no caso de
anencefalia, contudo há setores de nossa sociedade ligados ao dogmatismo religioso que
não aceitam essa prática, o que fez com que o
congresso protelasse o assunto. Comentando o
fato, expõe Hungria [6]:
“O feto expulso (para que se caracterize
aborto) deve ser produto fisiológico, e
não patológico. Se a gravidez se apresenta como um processo verdadeiramente
mórbido, de modo a não permitir sequer
uma intervenção cirúrgica que pudesse
salvar a vida do feto, não há falar-se em
aborto, para cuja existência é necessária
a presumida possibilidade de continuação
da vida do feto.”
Tendo em vista que o nosso Código Penal foi escrito em 1940, torna-se ele um tanto
conservador, não acompanhando o avanço tecnológico que ocorreu ao longo desses quase 70
anos. Faz-se necessário observar que o Código
Penal somente permite o abroto em duas hipóteses: risco de vida para gestante e estupro. Não
se faz menção ao caso dos fetos anencefálicos
que põem a vida das gestantes em risco. Com o
brilhantismo que lhe é peculiar comenta Tereza
Rodrigues Vieira [7]: “a Justiça não pode se distanciar dos avanços científicos, devendo sempre
acompanhar as mudanças éticas e culturais da
sociedade [...]”. Será que não está na hora de observar o caso dos fetos anencéfalos? Luiz Flávio
Gomes [8] com excelência, pondera:
196
Com o avanço da medicina já é possível
diagnosticar, em alguns casos, por meio de exame, quando a criança vingará ou não, sendo no
caso da anencefalia inexistente a chance de um
diagnostico incorrer em erro. Em decorrência
desse fato várias mulheres buscam concretizar
o seu direito fundamental à liberdade, que neste
caso será utilizado para interromper a gravidez.
Fazendo complemento do que foi afirmado,
expõe Francisco Muñoz [9]:
“Normalmente, o direito exige comportamento mais ou menos incômodos ou
difíceis, mas não impossíveis. O direito
não pode, contudo, exigir comportamentos heróicos: toda norma jurídica tem um
âmbito de exigência, fora do qual não se
pode exigir responsabilidade alguma. Essa
exigibilidade, ainda que seja dirigida por
padrões objetivos, é, em última instância,
um problema individual: é o autor [...], no
caso concreto, que tem que se comportar
de um modo ou de outro. Quando a exigência da norma coloca o indivíduo fora
dos limites da exigibilidade, faltará esse
elemento e, com ele, a culpabilidade.”
A continuidade da gestação poderá trazer
muitas conseqüências negativas para a mulher,
ficando a antecipação terapêutica do parto
responsável por preservá-la tanto física como
psicologicamente. Comenta Cernicchiaro [10]:
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 193-205, fevereiro/2010
“[...]. Não se trata de sacrifício de futuro
ser humano, em circunstâncias injustificadas. Ao contrário, antecipa-se à natureza, cientificamente demonstrada, que a
gravidez não levará a reprodução a bom
ExISTE ESTE DIREITO DE NASCER PARA MORRER?
termo. Com isso, evitar-se-á também o
trauma da decepção de haver concebido
um ser anômalo, com os dias contados de
vida. [...].”
Podemos citar como exemplos de conseqüências negativas da continuação da gestação
de feto inviável, a maior incidência de infecções
pós-cirúrgicas devido às manobras obstetrícias
do parto de termo, necessidade de bloqueio da
lactação, associação com vasculopatia periférica
de estase. Podemos citar também como efeitos
negativos do prosseguimento da gestação de feto
sem cérebro, a sua associação com o aumento do
volume do liquido amniótico e os danos psicológicos, evidenciando-se a depressão, frustração,
tristeza, entre outros aspectos negativos. Sérgio
Habib [11] comenta sobre o exposto acima:
“[...] negar à mulher o direto de praticar o
abortamento de um indivíduo que não traz
consigo características humanas, a capacidade de conhecer o mundo, entende-lo,
de amá-lo ou odiá-lo, não parece ser a
trilha mais justa. O Estado não pode ser
intervencionista e esse ponto, sob pena de,
em nome de um pretenso direito à vida,
negar outro direito não menos importante,
o da liberdade, [...].”
A mulher deve possuir o direito de decidir
se sofrerá o risco de uma gravidez problemática
ou se a interromperá, tentando amenizar o seu
sofrimento e de seus entes queridos. É sempre
válido citar o comentário de Cristine Moises
Dantas [12]:
“O princípio da autonomia requer que os
indivíduos, capacitados de deliberarem
sobre suas escolhas pessoais, devam ser
tratados com respeito pela sua capacidade
de decisão. As pessoas têm o direito de
decidir sobre as questões relacionadas
ao seu corpo e a sua vida. Quaisquer
atos médicos devem ser autorizados pelo
paciente. A Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia (FIGO), por meio
do seu Comitê para Assuntos Éticos da
Reprodução Humana e Saúde da Mulher,
divulga, desde 1994, em um dos seus marcos de referência ética para os cuidados
ginecológicos e obstétricos: O princípio
da autonomia enfatiza o importante papel
que a mulher deve adotar na tomada de
decisões com respeito aos cuidados de
sua saúde. Os médicos deverão observar
a vulnerabilidade feminina, solicitando
expressamente sua escolha e respeitando
suas opiniões.”
Não é responsável obrigar uma mulher a
continuar com uma gestação que já é considerada, por muitos, de risco levando-se em conta
apenas aspectos religiosos, confundindo-se
direito e religião.
4. Direitos fundamentais:
precisamos que eles sejam
concretizados
Com o advento da Constituição de 1988,
chamada de Constituição cidadã, tida por muitos
com a mais democrática, afinada com a evolução
constitucional contemporânea e o direito internacional, houve um agasalhamento de muitos
bens jurídicos importantes para o bem estar do
homem, estando boa parte desses direitos elencados nos artigos quinto e sexto. É com uma
propriedade extrema que José Afonso da Silva
[13] versa sobre os direitos fundamentais:
“Direitos Fundamentais do homem constitui a expressão mais adequada a este
estudo, porque, além de referir-se aos
princípios que resumem a concepção do
mundo e informam a ideologia política de
cada ordenamento jurídico, é reservada
para designar, no nível do direito positivo, aquelas prerrogativas e instituições
que ele concretiza em garantias de uma
convivência digna, livre e igual de todas
as pessoas. No qualitativo fundamentais
acha-se a indicação de que se trata de
situações jurídicas sem as quais a pessoa
humana não se realiza, não convive e,
às vezes, nem mesmo sobrevive; fundamentais do homem no sentido de que a
todos, por igual, devem ser, não apenas
formalmente reconhecidos, mas concreta e
materialmente efetivados. Do homem, não
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 193-205, fevereiro/2010
197
OLIVEIRA, R. G.
integram, ao lado dos princípios estruturais e organizacionais (a assim denominada parte orgânica ou organizatória da
Constituição), a substância propriamente
dita, o núcleo substancial, formado pelas
decisões fundamentais, da ordem normativa, revelando que mesmo num Estado
constitucional democrático se tornam
necessárias (necessidade que se fez sentir
da forma mais contundente no período
que sucedeu a Segunda Grande Guerra)
certas vinculações de cunho material para
fazer frente aos espectros da ditadura e do
totalitarismo.”
como macho de espécie, mas no sentido
de pessoa humana. Direitos fundamentais
do homem significa direitos fundamentais
da pessoa humana ou direitos humanos
fundamentais. É com esse conteúdo que
a expressão direitos fundamentais encabeça o Título II da Constituição, que se
completa, como direitos fundamentais da
pessoa humana, expressamente, no art. 17.
“A expressão Direitos Fundamentais
do homem, como também já deixamos
delineado com base em Pérez Luño, não
significa esfera privada contraposta à atividade pública, como simples limitação
ao Estado ou autolimitação deste, mas
limitação imposta pela soberania popular
aos poderes constituídos do Estado que
dela dependem. Ao situarmos sua fonte
na soberania popular, estamos implicitamente definindo sua historicidade, que
é precisamente o que lhes enriquece o
conteúdo e os deve pôr em consonância
com as relações econômicas e sociais de
cada momento histórico. A Constituição,
ao adotá-los na abrangência com que o fez,
traduziu um desdobramento necessário da
concepção de Estado acolhida no art. 1°:
Estado Democrático de Direito. O fato
de o direito positivo não lhes reconhecer
toda a dimensão e amplitude popular em
dado ordenamento jurídico (restou dar, na
Constituição, conseqüências coerentes na
ordem econômica) não lhes retira aquela
perspectiva, porquanto, como dissemos
acima, na expressão também se contêm
princípios que resumem uma concepção
do mundo que orienta e informa a luta
popular para a conquista definitiva da
efetividade desses direitos.”
Mesmo com a regulamentação de muitos
direitos fundamentais o homem continua sofrendo muitos abusos aos seus direitos. Isso acontece
porque apesar de legislados os direitos fundamentais não estão sendo efetivados. O Estado
precisa efetivar esses direitos, pois é responsável
pela prestação material, e “de nada serve definir regras quando elas não são desrespeitadas”
[15]. Com a propriedade que lhe é peculiar,
José Joaquim Gomes Canotilho [16], professor
da Faculdade de Direito de Coimbra, assevera:
“O reconhecimento e garantia de direitos
econômicos, sociais e culturais, a nível
constitucional, é, pois, uma resposta à
tese da impossibilidade de codificação
de valores sociais fundamentais (Soziale
Grundrechte) na Constituição e à tese
do principio da democracia social como
simples linha de atividade do Estado. Por
outro lado, não se trata de reconhecer apenas o direito a um standard mínimo de vida
ou de afirmar tão somente uma dimensão
subjectiva quanto a direitos a prestações
de natureza derivada (derivative Teilhaberechte), isto é, os direitos sociais que radicam em garantias já existentes (ex: direito
à reforma, ao subsídio de desemprego, à
previdência social). Trata-se de sublinhar
que o status social do cidadão pressupõe,
de forma inequívoca, o direito a prestações
sociais originarias como saúde, habitação,
ensino - originare Leistungsanpruchen.”
Esses direitos fundamentais foram fundamentados com a intenção de estabelecer limites
ao Poder Público, tornando nosso país mais democrático, devendo ter uma aplicação imediata.
Ingo Wolfgang Sarlet [14] pondera com muita
propriedade sobre os direitos fundamentais:
“Os direitos fundamentais, como resultado da personalização e positivação
constitucional de determinados valores
básicos (daí seu conteúdo axiológico),
198
Levando em consideração o que foi exposto acima podemos citar o caso das mães gestantes
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 193-205, fevereiro/2010
ExISTE ESTE DIREITO DE NASCER PARA MORRER?
de fetos com anencefalia. Será que essas mães
não possuem o direito de interromper uma gravidez que não vingará, trazendo muito sofrimento
não só para ela, mas para toda família? Será que
o direito a vida dessa mãe fica só na teoria?
Essas mães não podem ser constrangidas a
continuar a gestação, pois um de seus principais
direitos fundamentais, direito à vida, estaria
sendo ameaçado. Os aplicadores devem levar
em conta que em alguns casos a legislação a
ser consultada já está ultrapassada, como é o
caso do código penal. O direito do cidadão não
pode ficar a mercê de um código ultrapassado,
já que o desenvolvimento tecnológico ajudaria
em muitos casos, para que a legislação fosse
complementada, deixando o individuo amparado
judicialmente.
O código penal foi elaborado em 1940,
época em que não havia sido criado o exame
ultra-sônico, que diagnostica as anomalias fetais, por isso não se pode fechar os olhos para
as inovações tecnológicas pelo simples fato que
o código não versa sobre determinado assunto.
A sociedade passa por avanço grande e as leis
que administram essa sociedade devem estar
adaptadas ao tempo dela, caso contrário haverá
uma colisão de direitos.
É importante que os legisladores deixem
o caráter anacrônico religioso e entendam que
vivemos em um país laico, onde não se tem uma
religião que nos represente, cada um é livre para
fazer suas escolhas, não podendo o legislador ao
analisar os projetos deixem seus princípios religiosos e morais atrapalharem o desenvolvimento
de matérias para o bom andamento da sociedade.
5. Princípios constitucionais
Os princípios são definidos por Laurenz
[17] como um tipo de norma que possui grande
importância para o ordenamento jurídico, já que
tem como finalidade estabelecer fundamentos
normativos para que haja uma interpretação e
aplicação do direito, decorrendo deles, normas
do tipo comportamental.
Alguns princípios são deixados de lado
quando nos referimos à operação terapêutica para
retirada de feto anencefálico. Ao descobrir que
está grávida a mulher já faz muitos planos para
essa criança e em momento posterior, quando
há a descoberta que esse feto não prosperará, há
um sofrimento muito grande, que é aumentado
quando não existe a possibilidade legal de retirada desse feto. Levando em consideração essa
mesma linha, a ilustríssima Débora Diniz [18]
discorre:
“[...] o princípio da dignidade da pessoa
humana deve ser considerado fundamental
para a ética da antecipação terapêutica.
O diagnóstico da má formação fetal
incompatível coma vida é uma situação
de extremo sofrimento para as mulheres
e os futuros pais. São situações em que
todos os recursos científicos disponíveis
para reverter o quadro da má formação
são nulos.”
Nesse momento há a violação inútil e cruel
da integridade física e psicológica da gestante,
em situação equiparada a tortura, atingindo de
maneira muito incisiva o princípio da dignidade
humana. Fazendo referencia ao principio exposto, RABENHORST [19] acrescenta:
“[...] assumamos que a dignidade humana
não é uma propriedade observável e que,
como tal, não pode ser provada ou negada
sobre bases meramente fáticas. Isto significa que ela seria apenas uma ideologia
criada pela visão de mundo ocidental? Não
necessariamente. Ela pode significar, também, que a idéia de que todos os homens
são indistintamente dignos repousa em
um conjunto de crenças morais que não
podem ser plenamente justificadas. Essas
crenças, escreve o filósofo canadense
Charles Taylor, se agregam em torno do
sentido de que a vida humana deve ser
respeitada e de que as proibições que isso
nos impõe contam-se entre as mais ponderáveis e sérias de nossa vida.”
Outro principio afetado com a falta de
legislação da antecipação do parto no caso de
anencefalia é o principio da autonomia de vontade, pois a capacidade potencial de decidir sobre
a continuidade ou não da gestação é dos pais.
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 193-205, fevereiro/2010
199
OLIVEIRA, R. G.
Nessa linha, Flávia Piovesan e Daniel Sarmento
formulam questionamentos contundentes:
“Com fundamento nos direitos à liberdade, à autonomia e à saúde, entendemos
caber à mulher e aos casais, na qualidade
de plenos sujeitos de direitos, a partir de
suas próprias convicções morais e religiosas, a liberdade de escolha quanto ao procedimento médico a ser adotado em caso
de anencefalia fetal. A responsabilidade
de efetuar escolhas morais sobre a interrupção ou o prosseguimento da gravidez
não apenas assegura à mulher o seu direito
fundamental à dignidade, mas permite a
apropriada atuação dos profissionais de
saúde. Impedir a antecipação terapêutica
do parto, em hipótese de patologia que
torna absolutamente inviável a vida extrauterina, significa submeter a mulher a um
tratamento cruel, desumano ou degradante, equiparável à tortura, porque violatório
de sua integridade psíquica e moral. Além
disso, se a interrupção do parto for caracterizada como aborto, recairá sobre a mulher
o aparato penal repressivo e punitivo, por
meio das sanções que prevêem a pena de
detenção de um a três anos, nos termos do
artigo 124 do Código Penal. A resposta
da legislação brasileira à problemática do
aborto viola flagrantemente os parâmetros
internacionais que demandam do Estado
compreender o aborto como grave problema de saúde pública, exigindo-lhe a
imediata revisão de legislação punitiva.”
[20]:
Os princípios constitucionais devem ser
respeitados, pois tem uma importância fundamental para que haja um abrandamento das
condições sociais negativas. A utilização desses
princípios de maneira apropriada traz como
conseqüência a maior possibilidade de respeito
por parte do Estado sobre eles fazendo com
que a democracia seja cada vez mais efetiva,
deixando de lado as disparidades e fazendo
com que os direitos fundamentais sejam não só
fundamentados, mas que na prática haja uma
concretização destes.
6. Laicização e argumentos falhos
da igreja católica
um país laico não é um país ateu, mas sim
aquele país onde há um respeito ao pluralismo religioso, não influenciando as pessoas a adotarem
determinada crença. Levando em consideração o
Brasil como Estado laico, aponta a antropóloga
Débora Diniz [21]:
“[...] vivemos em um país onde a liberdade
de culto fundamenta o direito inalienável
à expressão moral de nossas crenças. Não
apenas buscamos apenas um estado que
garanta nossa pluralidade, mas também
que proteja todas as mulheres em suas
escolhas, quaisquer que sejam elas.”
Complementado, pondera Nery e Junior
“O princípio da autonomia requer que os
indivíduos, capacitados de deliberarem
sobre suas escolhas pessoais, devam ser
tratados com respeito pela sua capacidade
de decisão. As pessoas têm o direito de
decidir sobre as questões relacionadas
ao seu corpo e a sua vida. Quaisquer
atos médicos devem ser autorizados pelo
paciente. A Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia (FIGO), por meio
do seu Comitê para Assuntos Éticos da
Reprodução Humana e Saúde da Mulher,
divulga, desde 1994, em um dos seus mar-
200
cos de referência ética para os cuidados
ginecológicos e obstétricos: O princípio
da autonomia enfatiza o importante papel
que a mulher deve adotar na tomada de
decisões com respeito aos cuidados de
sua saúde. Os médicos deverão observar
a vulnerabilidade feminina, solicitando
expressamente sua escolha e respeitando
suas opiniões.”
Mesmo com a promulgação da Constituição de 1988, trazendo em seu texto que o Brasil
é um país laico, não se encerraram as discussões
seculares entre religiosidade e Estado. Celso
Ribeiro Bastos [22] com muita propriedade
pondera sobre esse panorama:
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 193-205, fevereiro/2010
“A liberdade de organização religiosa tem
uma dimensão muito importante no seu re-
ExISTE ESTE DIREITO DE NASCER PARA MORRER?
lacionamento com o Estado. Três modelos
são possíveis: fusão, união e separação.
O Brasil enquadra-se inequivocadamente
neste último desde o advento da República, com a edição do Decreto119-A, de
17 de janeiro de 1890, que instaurou a
separação entre a Igreja e o Estado.”
No Brasil há uma predominância de pessoas católicas.
Fica evidente que a busca pela concretização de alguns direitos fundamentais não está
ligada a crença alguma. As pessoas tem direito
de exercer seus direitos elencados na Constituição, sem nenhum constrangimento, não dando
margem para que grupos religiosos as tratem
diferentemente. Ocorre que em matérias importantes, como o caso da anencefalia, há um
predomínio de questionamentos infundados da
igreja, fazendo com que esse tema não tenha uma
abordagem aberta e sem preconceitos. Essa atitude preconceituosa deixa pessoas que precisariam
antecipar o parto, por motivo de risco de vida,
desamparadas, evidenciando que por conta de
algumas religiões os direitos fundamentais não
podem ser efetivados.
Na maioria dos casos, juízes e promotores
concedem o alvará para que a mãe retarde o
sofrimento de uma gestação que não prosperará. Abaixo estão elencados alguns motivos
pelos quais a Igreja considera que a antecipação
terapêutica do parto não deve ter sua matéria
aprovada.
1º Caso: Eugenia.
Os grupos que são contra a antecipação do
parto consideram que este tipo de procedimento
é igual ao aborto eugênico. Eugenia segundo o
dicionário Aurélio [23] “é o estudo das condições
mais propícias à reprodução e melhora da raça
humana”. Busca-se com a antecipação do parto
que os direitos fundamentais da mulher sejam
respeitados, que os faça valer, já no tocante a
eugenia os direitos fundamentais e suas liberdades foram totalmente desrespeitados, pois
fizeram parte de um período obscuro da história
da humanidade. Não há a busca de selecionar indivíduos para ter-se uma raça melhor, há apenas
um incessante luta para que a mãe tenha os seus
direitos reprodutivos garantidos, não a obrigando
a nenhuma prática, mas sim deixando-a decidir
o que é melhor para si, já que essa criança não
amadurecerá.
2º Caso: Ladeira escorregadia.
Os que são contra a liberação da antecipação do parto acreditam que se o Supremo
Tribunal Federal autorizar a operação terapêutica
no caso de anencefalia abrirá precedente para
autorizar futuramente a interrupção em outros
casos de má-formação como lábio leporino ou
ausência de dedos. Para os adeptos dessa teoria,
para não abrir precedente é melhor que não se
permita qualquer mudança.
3º Caso: Comparação entre Anencefalia e
deficiência.
Neste caso há uma equiparação entre
anencefalia e deficiência. Não há motivos para
que haja essa equiparação já que a anencefalia
é uma má-formação incompatível com a vida
extra-uterina. Não há registro de adulto vivo não
possuidor da parte principal do cérebro, contudo
nos deparamos diariamente com pessoas portadoras de deficiência, pois 14,5 % da população
possui algum tipo de deficiência.
Os casos citados acima mostram o despreparo e a falta de conhecimento de pessoas
que fazem comentários de assuntos tão sérios,
vindo a influenciar de forma negativa nossos
legisladores e juristas. Não há como continuarmos com um legislativo que se baseia em
princípios religiosos para organizar um Estado
que é laico. Por tudo que foi demonstrado devemos nos utilizar do nosso direito a autonomia
de vontade no momento de escolhermos nossos
representantes, para que situações como essas
não se repitam, fazendo com que as nossas leis
sejam mais inclusivas.
7. Jurisprudência
O código Penal que está em vigência no
país deixa um pouco a desejar no tocante aos no-
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 193-205, fevereiro/2010
201
OLIVEIRA, R. G.
vos avanços tecnológicos e técnicas medicinais,
pois em alguns casos com a utilização desses
novos atributos, muitos litígios seriam resolvidos
de forma ágil, trazendo maior conforto para as
partes autoras. Como conseqüência de um código
desatualizado há o aparecimento de lacunas, que
em muitos casos não são preenchidas de forma
satisfatória para sociedade, sendo o legislativo
responsável pela caducidade de muitas leis.
A questão da antecipação do parto no caso
de anencefalia trás consigo uma divergência
muito grande, entretanto muitos procedimentos
são liberados, sendo que são constatados mais
de cinco mil alvarás para que a gestação seja
interrompida neste caso. Devemos levar em
conta que em muitos casos o judiciário dá sua
resposta tardiamente.
A seguir, vejamos como a jurisprudência
se posiciona sobre o tema.
HABEAS CORPuS - ANENCEFALIA
- ABORTO - ALVARA DE AuTORIZACAO
“Habeas Corpus”. Anencefalia. Alvará
de autorização para intervenção cirúrgica.
Presença do “fumus boni iuris” e do “periculum in mora”. Feto portador de anencefalia,
observada a presença de diversas anomalias. A
Comissão de Ética Medica do Instituto Fernandes Figueira, vinculado a Fundação Oswaldo
Cruz, emitiu parecer favorável a interrupção
da gravidez, por se tratar de concepto portador
de graves más formações no sistema nervoso
central, incompatíveis com a vida extra-uterina,
tornando a gestação freqüentemente complicada
por polidramnia, que acarreta graves conseqüências a saúde da gestante. Precedentes jurisprudenciais. A intervenção se faz necessária,
justificada a realização da intervenção cirúrgica
para remoção de feto anencefálico pelo estado
de necessidade, reconhecendo-se o perigo de
grave dano a pessoa, em face das conseqüências
morais, familiares e sociais do parto. Conduta
atípica por não atingir qualquer bem jurídico
penalmente tutelado. Ordem concedida. PROCESSO: 2004.059.06681 (TJRJ). DES. DES.
SUELY LOPES MAGALHAES. JULGADO EM
27/01/2005
202
ADPF-QO 54 / DF. ADPF - ADEQUAÇÃO - INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ - FETO
ANENCÉFALO - POLÍTICA JUDICIÁRIA MACROPROCESSO. Tanto quanto possível,
há de ser dada seqüência a processo objetivo,
chegando-se, de imediato, a pronunciamento
do Supremo Tribunal Federal. Em jogo valores
consagrados na Lei Fundamental - como o são
os da dignidade da pessoa humana, da saúde,
da liberdade e autonomia da manifestação da
vontade e da legalidade -, considerados a interrupção da gravidez de feto anencéfalo e os
enfoques diversificados sobre a configuração
do crime de aborto, adequada surge a argüição
de descumprimento de preceito fundamental.
ADPF - LIMINAR - ANENCEFALIA - INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ - GLOSA PENAL
- PROCESSOS EM CURSO - SUSPENSÃO.
Pendente de julgamento a argüição de descumprimento de preceito fundamental, processos
criminais em curso, em face da interrupção da
gravidez no caso de anencefalia, devem ficar
suspensos até o crivo final do Supremo Tribunal
Federal. ADPF - LIMINAR - ANENCEFALIA
- INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ - GLOSA
PENAL - AFASTAMENTO - MITIGAÇÃO. Na
dicção da ilustrada maioria, entendimento em
relação ao qual guardo reserva, não prevalece,
em argüição de descumprimento de preceito
fundamental, liminar no sentido de afastar a
glosa penal relativamente àqueles que venham
a participar da interrupção da gravidez no caso
de anencefalia.( GRIFOS NOSSOS) DECISÃO:
O Tribunal, por decisão unânime, deliberou que
a apreciação da matéria fosse julgada em definitivo no seu mérito, abrindo-se vista dos autos
ao Procurador-Geral da República. Presidência
do Senhor Ministro Nelson Jobim. Plenário,
02.08.2004. Decisão: Após o voto do Senhor
Ministro Marco Aurélio, Relator, resolvendo
a questão de ordem no sentido de assentar a
adequação da ação proposta, pediu vista dos
autos o Senhor Ministro Carlos Britto. Em seguida, o Tribunal, acolhendo proposta do Senhor
Ministro Eros Grau, passou a deliberar sobre
a revogação da liminar concedida e facultou
ao patrono da argüente nova oportunidade de
sustentação oral. Prosseguindo no julgamento,
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 193-205, fevereiro/2010
ExISTE ESTE DIREITO DE NASCER PARA MORRER?
o Tribunal, por maioria, referendou a primeira
parte da liminar concedida, no que diz respeito
ao sobrestamento dos processos e decisões não
transitadas em julgado, vencido o Senhor Ministro Cezar Peluso. E o Tribunal, também por
maioria, revogou a liminar deferida, na segunda
parte, em que reconhecia o direito constitucional
da gestante de submeter-se à operação terapêutica de parto de fetos anencefálicos, vencidos
os Senhores Ministros Relator, Carlos Britto,
Celso de Mello e Sepúlveda Pertence. Votou o
Presidente, Ministro Nelson Jobim. Falaram,
pela argüente, o Dr. Luís Roberto Barroso e,
pelo Ministério Público Federal, o Dr. Cláudio
Lemos Fonteles,Procurador-Geral da República. Plenário, 20.10.2004. Decisão: Renovado
o pedido de vista do Senhor Ministro Carlos
Britto, justificadamente, nos termos do § 1º do
artigo 1º da Resolução nº 278, de 15 de dezembro de 2003. Presidência do Senhor Ministro
Nelson Jobim. Plenário, 09.12.2004. Decisão:
Prosseguindo no julgamento, o Tribunal, por
maioria, entendeu admissível a argüição de
descumprimento de preceito fundamental e, ao
mesmo tempo, determinou o retorno dos autos
ao relator para examinar se é caso ou não da
aplicação do artigo 6º, § 1º da Lei nº 9.882/1999,
vencidos os Senhores Ministros Eros Grau, Cezar Peluso, Ellen Gracie e Carlos Velloso, que
não a admitiam. Votou o Presidente, Ministro
Nelson Jobim. Plenário, 27.04.2005.
STJ - HABEAS CORPUS: HC 54317 SP
2006/0029919-3 EMENTA HABEAS CORPUS.
ABORTO. INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ.
FETO ANENCÉFALO. PARTO. PERDA DO OBJETO. 1. Constatada a realização do parto pela
chegada a termo da gravidez, perde seu objeto o
presente writ que visava o deferimento de autorização para realizar o procedimento abortivo, por
ser o feto anencéfalo. 2. Writ julgado prejudicado Acordão Vistos, relatados e discutidos estes
autos, acordam os Ministros da Quinta Turma do
Superior Tribunal de Justiça, na conformidade
dos votos e das notas taquigráficas a seguir,
por unanimidade, julgar prejudicado o pedido.
Os Srs. Ministros Arnaldo Esteves Lima, Felix
Fischer e Gilson Dipp votaram com a Senhora
Ministra Relatora.
8. Considerações finais
A sociedade clama para que seus direitos
individuais e coletivos elencados na Constituição, que estão acima de qualquer outra norma
hierarquicamente, sejam postos em evidência,
fazendo com que a democracia seja vivida na
prática.
Apresentou-se como exemplo dessa falta
de efetivação dos direitos fundamentais a questão
da anencefalia. Mulheres são obrigadas a manter
uma gestação que poderá na grande maioria dos
casos trazer conseqüências negativas, ficando a
mercê da decisão de um juiz. Considera-se esse
tipo de atitude uma tortura, pois em alguns casos
quando a decisão é proferida a gestante deu à
luz ao bebê e este já está enterrado e com sua
certidão de óbito lavrada.
Outra questão muito bem suscitada é a da
tentativa de o legislativo acompanhar as mudanças que a sociedade vem passando nos últimos
tempos, devendo utilizar as inovações tecnológicas que poderão ajudar no desenvolvimento
do judiciário, fazendo com que os códigos não
fiquem tão defasados. Não podemos ficar nos
baseando em códigos que mantêm uma postura
com caráter religioso do legislador, pois vivemos
em um país laico, e a partir do momento que
decisões forem tomadas levando em conta os
princípios religiosos, não estaremos mais diante
do Direito, mas sim de uma nova religião.
A população menos favorecida deve ter
uma assistência de qualidade, seja no tocante a
saúde, seja na educação, ou seja, na sua participação no momento de utilizar o poder judiciário.
O direito à vida digna, à alimentação, deve estar
acima de tudo, pois segundo o principio da igualdade não se admite uma discrepância tão grande
só porque um indivíduo possui poder econômico
maior que o outro.
9. notas
1. Indagação feita pelo Ministro Carlos Ayres Brito no
julgamento da argüição de descumprimento de preceito
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 193-205, fevereiro/2010
203
OLIVEIRA, R. G.
fundamental que anulou a possibilidade de haver antecipação terapêutica do parto sem a necessidade de buscar-se
uma autorização judicial (alvará).
2. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro:
Campus, 1996, Pág.25.
3. DOTTI, Rene Ariel. Aborto de uma tragédia - Não há nada
que obrigue mulher a ter um filho sem cérebro. Disponível em: HTTP://conjur.uol.com.br/textos/247634/2005.
(Acesso em: 19/12/2008)
4.SANTOS, Marília Andrade dos. A Aquisição de Direitos
pela Anencéfalo e a Morte Encefálica. Disponível no
site: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8007/
(Acesso em: 21/01/2009)
5.PINOTTI, José Aristodemo. Anencefalia: Opinião. Disponível em: http://www.febrasgo.org.br/anencefalia2.htm.
(Acesso em 03/12/2008)
6. HuNGRIA, Nelson. Comentários ao código penal. Rio
de Janeiro: Forense, 1958, vol. v, Pág. 207-208
7. VEIRA, Tereza Rodrigues. Aborto por Anencefalia Fetal
e o Direito Atual. Ano VIII - nº. 174. Revista Jurídica
Consulex. Brasília: Consulex, 2004;
8. GOMES, Luiz Flávio. Aborto Anencefálico: exclusão
da tipicidade material. Elaborado em junho de 2006 e
disponível no site: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.
asp?id=8561 (Acesso em: 18/11/2008)
9. CONDE, Francisco Muñoz. Teoria Geral do Delito - Tradução de Juarez Tavares e Luiz Regis Prado. Porto Alegre:
Sérgio Antonio Fabris Editor, 1988, Pág. 132.
10. CERNICCHIARO, Luiz Vicente. Interrupção da
Gravidez e o Anteprojeto de Reforma do Código Penal.
Ano VIII - nº. 174. Revista Jurídica Consulex. Brasília:
Consulex, 2004;
11. HABIB, Sérgio. O Aborto por Anencefalia e a Cassação
da Liminar do Ministro Marco Aurélio. Ano VIII - nº.
188. Revista Jurídica Consulex. Brasília: Consulex, 2004;
12. MOISÉS DANTAS, Cristine Elaine et alli. Aspectos
éticos e legais do aborto no Brasil. São Paulo: Funpec
Ed. universidade de São Paulo - Faculdade de Medicina
de Ribeirão Preto - Departamento de Ginecologia e Obstetrícia, 2005, Pág. 20.
13. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional
Positivo. 14ª. Ed. São Paulo: Malheiros Editores Ltda.,
1997, p. 174.
14. SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 4ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2004, Pág. 68.
15. ISRAEL, Jean-Jacques. Direito das Liberdades Fundamentais. Barueri: Monole, 2005, Pág. 287.
16. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 6ª Ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1995, Pág. 544.
204
17. LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. 3
ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 575.
18. DINIZ, Débora &. RIBEIRO, Diaulas Costa. Aborto
por anomalia fetal. Brasília: Letras Livres, 2004, Pág. 81.
19. RABENHORST, Eduardo Ramalho. Dignidade Humana
e Moralidade Democrática. Brasília: Brasília Jurídica,
2001, Pág. 46.
20. Junior, N. N.; Nery, R. M. A. Código Civil Anotado e
Legislação Extravagante.. 2 ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2003, Pág. 8-9.
21. Conselho Regional de Medicina do Estado da Bahia.
Anencefalia e Supremo Tribunal Federal. Brasília: Letras
Livres, 2004, Pág.14.
22. BASTOS. Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 17ª ed. São Paulo: Saraiva, 1996, Pág. 184.
23. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Mini Dicionário Aurélio da língua portuguesa. 3ª Ed. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1993, Pág. 235.
10. Bibliografia
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BARROSO, Luis Roberto. Novo olhar - Ministro resolveu sofrimento de mães de fetos sem
cérebros. Disponível no site: http://conjur.uol.
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BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de
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CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito
Constitucional. 6ª Ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1995.
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da Gravidez e o Anteprojeto de Reforma do Código Penal. Ano VIII - nº. 174. Revista Jurídica
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Delito - Tradução de Juarez Tavares e Luiz Regis Prado. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris
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DINIZ, Débora &. RIBEIRO, Diaulas Costa.
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FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Mini
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 193-205, fevereiro/2010
ExISTE ESTE DIREITO DE NASCER PARA MORRER?
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RABENHORST, Eduardo Ramalho. Dignidade
Humana e Moralidade Democrática. Brasília:
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RIBEIRO, Diaulas Costa. Antecipação terapêutica de parto: uma releitura jurídico-penal
do aborto por anomalia fetal no Brasil. Artigo
publicado no livro Aborto por anomalia fetal,
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SANTOS, Marília Andrade dos. A Aquisição
de Direitos pela Anencéfalo e a Morte Encefálica. Disponível no site: http://jus2.uol.com.
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21/12/2008)
SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 4ª ed. Porto Alegre: Livraria
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Editores Ltda., 1997.
VEIRA, Tereza Rodrigues. Aborto por Anencefalia Fetal e o Direito Atual. Ano VIII - nº. 174.
Revista Jurídica Consulex. Brasília: Consulex,
2004.
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 193-205, fevereiro/2010
205
206
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, fevereiro/2010
VISÃO CRíTICA SOBRE A CONVENÇÃO DA BIODIVERSIDADE - SEuS OBJETIVOS, SOBERANIA
Artigo
ESTATAL E ACESSO AO CONHECIMENTO TRADICIONAL
viSão CrítiCA SoBrE A ConvEnção
DA BioDivErSiDADE - SEuS oBJEtivoS,
SoBErAniA EStAtAL E ACESSo Ao
ConhECimEnto trADiCionAL
Sandra Akemi Shimada Kishi1
rESumo: A aplicação integrada dos princípios relacionados ao acesso ao conhecimento
tradicional e ao patrimônio genético com os
objetivos da CDB constitui o link jurídico entre
o direito indígena e das minorias com o direito
da sociedade envolvente, desdobrando-os com
efetividade e ligando todo o sistema jurídico
de modo suficientemente elástico e eficaz, para
então alcançar a compatibilidade entre o direito consuetudinário, na prática, com o direito
positivo vigente. Essa aplicação integrada dos
princípios e do devido procedimento do consentimento prévio informado parece ser em
última ratio a meta da CBD ao compor o tríade
de objetivos: conservação da biodiversidade,
utilização sustentável de seus componentes
e repartição justa e eqüitativa dos benefícios
derivados da utilização dos recursos genéticos,
mediante acesso adequado.
Palavras-chave: Acesso ao conhecimento
tradicional e repartição de benefícios. Princípios.
Objetivos do CDB. Aplicação integrada. Link
entre o direito indígena e das minoriais com o
direito da sociedade envolvente.
ABStrACt: The integrated application
of principles related to access to traditional
knowledge and to genetic patrimony with the
objectives of the CBD constitutes the legal link
between indigenous and minority law and the law
1
Procuradora Regional da República; mestre em direito ambiental, professora convidada nos cursos de pós-graduação lato sensu em direito ambiental
na universidade Metodista de Piracicaba. Coordenadora do Grupo de Trabalho sobre águas do Ministério Público Federal e coordenadora adjunta
do VI Curso de Ingresso e Vitaliciamento da Escola Superior do Ministério Público da união – Meio Ambiente e Patrimônio Cultural. Pesquisadora
no grupo de pesquisa DFG/Brasil-Alemanha em parceria com a universidade de Bremen-Alemanha, sobre acesso ao patrimônio genético e ao
conhecimento tradicional associado e repartição de benefícios (2007-2009).
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 207-218, fevereiro/2010
207
KISHI, S. A. S.
of the surrounding society, clearly exposing them
and holding together the overall legal system in
a sufficiently flexible and effective manner, so
as to achieve compatibility in practice between
customary law and prevailing statutory law. The
integration of the application of these principles
and the due observance of prior informed consent procedures seems to be the ultimate goal
of the CBD’s three objectives: conservation of
biodiversity, sustainable use of its components
and fair and equitable sharing of benefits derived from the use of genetic resources, through
appropriate access.
Keywords: Access to traditional knowledge and
benefit sharing. Principles. Objectives of CBD.
Integrated application. Link between indigenous
and minority law and the law of the surrounding
society.
introdução
uma leitura do acesso ao patrimônio genético e ao conhecimento tradicional, a partir de
um olhar crítico sobre os objetivos da Convenção da Diversidade Biológica e noções principiológicas em matéria de soberania estatal é o
mote deste trabalho para ajudar na estruturação
de esperadas e eficientes normas jurídicas de
proteção dos mecanismos de acesso ao patrimônio genético e ao conhecimento tradicional
associado à biodiversidade e de repartição de
benefícios. São destacadas ainda neste trabalho
algumas inovações previstas em projetos de lei
que levam a necessárias reflexões críticas sobre
essa instigante temática.
1. objetivos da convenção da diversidade biológica
1.1. Três objetivos e suas três premissas
Os objetivos da Convenção da Diversidade
Biológica (CDB)2 elencados logo no seu art. 1º
são “...a conservação da diversidade biológica,
a utilização sustentável de seus componentes
e a repartição justa e eqüitativa dos benefícios
208
derivados da utilização dos recursos genéticos,
mediante, inclusive, o acesso adequado aos recursos genéticos e a transferência adequada de
tecnologias pertinentes, levando em conta todos
os direitos sobre tais recursos e tecnologias, e
mediante financiamento adequado.”3
Tal art. 1º, assim como os seguintes dispositivos da Convenção, tratam do termo “acesso”
sob dois contextos distintos de um mesmo fato
jurídico. De um lado, há o acesso aos recursos
genéticos e, de outro, o acesso à tecnologia, numa
linha horizontal de trocas na relação jurídica do
acesso. No entanto, no Brasil, de todas as mais
de 75 autorizações de acesso para pesquisa e
para bioprospecção concedidas desde 2003 pelo
CGEN – Conselho de Gestão do Patrimônio
Genético4, não houve, em contrapartida, acesso
à tecnologia, em nenhum dos casos. O acesso à
tecnologia é um campo ainda obscuro, sobre o
qual há poucas publicações elucidando sua implementação. A metodologia do acesso ou suas
finalidades não se confundem com a tecnologia
que será aplicada sobre o bem acessado. Mas,
se na coleta de conhecimentos tradicionais com
o “modus operandi” para a formulação de um
remédio, em contrapartida, não for informado ou
facilitado o acesso à tecnologia que será aplicada
para a produção do remédio em laboratório, então, a relação jurídica já se inicia desfalcada e em
desequilíbrio. O acesso à tecnologia empregada,
como uma forma de repartição de benefícios, já
deve ser disponibilizado desde o início da relação
jurídica sinalagmática de acesso ao patrimônio
genético e ao conhecimento tradicional, em
contrapartida aos conhecimentos tradicionais divulgados. Isto se pode depreender dos objetivos
da Convenção da Biodiversidade.
A CBD estabelece ademais que o acesso
deva ser “adequado” e mediante “adequado”
financiamento. Se houver financiamento, haverá
prestação de contas e auditoria. São instrumentos jurídicos que fatalmente poderão incidir no
acesso à sociobiodiversidade, num momento a
posteriori da relação jurídica.
1.2. Objetivos, premissas e correlações
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 207-218, fevereiro/2010
VISÃO CRíTICA SOBRE A CONVENÇÃO DA BIODIVERSIDADE - SEuS OBJETIVOS, SOBERANIA
ESTATAL E ACESSO AO CONHECIMENTO TRADICIONAL
O art. 1º da CDB prevê ainda que mediante
tais acessos buscam-se os seguintes objetivos:
a) conservação da diversidade biológica;
b) utilização sustentável de seus componentes;
c) repartição justa e eqüitativa dos benefícios derivados da utilização dos recursos genéticos.
Resulta deste enunciado do art. 1º que o
acesso ao patrimônio genético e em contrapartida
o acesso à tecnologia só se justificam se tiverem
como objetivos a conservação da diversidade
biológica, utilização sustentável de seus componentes e a repartição justa e eqüitativa dos
benefícios derivados da utilização dos recursos
genéticos. Do modo como está disposto no artigo
1º da CDB, verifica-se que a transferência de
tecnologias antecede a repartição de benefícios.
Duas correlatas obrigações jurídicas podem
ser extraídas desse art. 1º da CBD: a) o acesso
adequado com utilização sustentável de recursos
genéticos, e b) a transferência apropriada de tecnologias com direitos de propriedade intelectual.
Extrai-se ainda do art. 1º da CBD que
apenas um “financiamento adequado”, voltado
ao primado da sustentabilidade, da preservação
da diversidade biológica e para as políticas da
biodiversidade, pode apoiar o acesso ao patrimônio genético e a transferência de tecnologias.
Estes objetivos da sustentabilidade, da
preservação da diversidade biológica e da repartição justa e eqüitativa da CDB decorrem da
gênese histórica desse Tratado global que deveria
expressar “a necessidade da partilha de custos
e benefícios entre países desenvolvidos e em
desenvolvimento” e também “procurar formas
de apoiar as comunidades locais, em políticas de
conservação”.5 A CDB acabou assumindo contornos político-econômicos, porque reconhece
o componente econômico, além dos puramente
éticos, culturais e ambientais, dos recursos
genéticos e dos conhecimentos tradicionais
durante todo o processo de acesso, até a propriedade intelectual, numa valoração conjunta
lógica-temporal dessas referências – ambientais,
econômicas e culturais - no patrimônio genético
e no conhecimento tradicional a ele associado.
1.3 Acesso “adequado” e o acesso
“eqüitativo”
O termo “acesso adequado aos recursos
genéticos” no art. 1º CDB remete ao acesso eqüitativo aos recursos naturais, que no Brasil tem
força de princípio geral do direito ambiental6.
Paulo Affonso Leme Machado, ao tratar
do princípio do acesso eqüitativo aos recursos
naturais, observa que é preciso “verificar as
necessidades de uso dos recursos ambientais.
Não basta a vontade de usar esses bens ou a
possibilidade tecnológica de explora-los. É preciso estabelecer a razoabilidade dessa utilização,
devendo-se quando a utilização não seja razoável
ou necessária, negar o uso, mesmo que os bens
não sejam atualmente escassos. (...) A eqüidade
dará oportunidades iguais diante de casos iguais
ou semelhantes”7
2. Soberania estatal
2.1. Direitos soberanos e o bem tutelado
O preâmbulo (§ 4º), o art. 3º e o art. 15,
I da Convenção da Diversidade Biológica
fundamentam a soberania dos Estados para
estabelecer sua política de gestão do patrimônio genético e do conhecimento tradicional
associado.
A CDB foi ampla no tratamento do bem
jurídico tutelado pelos direitos soberanos dos
Estados “recursos biológicos”, os quais consoante o art. 2º da CBD: “compreende recursos
genéticos, organismos ou partes destes, populações, ou qualquer outro componente biótico
de ecossistemas, de real ou potencial utilidade
ou valor para a humanidade”. Mas no acesso,
conforme previsão do art. 15, da CBD, o bem
jurídico restringe-se aos recursos genéticos. É
uma distinção relevante. Significa dizer que em
matéria de acesso, “os recursos genéticos devem
ser compreendidos como recursos biológicos
necessários ou utilizados por seu material genético e não por outras funções que os mesmos
possuam. A extração de madeiras ou a caça, por
exemplo, não estão incluídos no mandamento
do art. 15.”8
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 207-218, fevereiro/2010
209
KISHI, S. A. S.
2.2. Soberania e propriedade
O expresso reconhecimento da soberania
nacional sobre os recursos biológicos, pertencentes ao território de um dado país, não compreende o conceito de propriedade. Os países não
possuem a titularidade dos recursos naturais,
mas possuem competência constitucional9 para
legislar e autonomia10 para fiscalizar o controle
e o uso desses recursos .
É importante ressaltar que a soberania
dos Estados-nações para autorizar o acesso aos
recursos genéticos do seu território não implica
em propriedade sobre esses recursos genéticos,
mas em gestão desses bens. A relação não é de
domínio, mas sim, de gerenciamento.
Como ato internacional, a CDB, ao tratar de
soberania reporta-se em verdade, à autonomia do
país para dispor sobre seus recursos genéticos e
permite a apropriação estatal dos recursos genéticos, dependendo do que regular o Estado parte
na implementação da CDB em nível nacional.
2.3. Soberania e responsabilidade por
danos transfronteiriços
Observa-se que, à luz do art. 3º da CBD11,
há uma responsabilidade imposta aos Estados
sobre danos transfronteiriços, que devem ser
evitados, sejam decorrentes de atividades sob
a sua jurisdição ou mesmo sob seu controle12.
2.4. Soberania e políticas públicas dos
estados-partes
Embora sem força vinculante, é importante
destacar o princípio nº 2 da Declaração do Rio
de Janeiro/92, como ato declaratório de relevância jurídica: “Conforme a Carta das Nações
unidas e aos princípios de direito internacional,
os Estados têm o direito soberano de explorar
seus próprios recursos em conformidade às
suas próprias políticas em matéria de ambiente
e desenvolvimento”.
A Convenção da Diversidade Biológica13,
que reúne normas com força cogente, é o primeiro tratado internacional a incorporar o princípio
21 da Declaração de Estocolmo, de 1972, que
210
versa sobre o direito soberano dos Estados de
explorar seus próprios recursos segundo suas
políticas ambientais, na parte operacional de
seu texto (artigo 3º), não se restringindo em
simplesmente expressá-lo em seu preâmbulo14.
Este direito soberano de exploração dos
próprios recursos à luz de sua política de gestão
orientar-se-á por princípios cujo objetivo geral
será a promoção de forma integrada da conservação da biodiversidade e da utilização sustentável
de seus componentes, com a repartição justa e
eqüitativa dos benefícios derivados da utilização
dos recursos genéticos, de seus componentes
e dos conhecimentos tradicionais associados a
esses recursos15. Neste último caso, mediante
o consentimento prévio fundamentado e com a
autorização do Estado provedor dos recursos.16
A notável relevância da variabilidade
biológica e a necessidade de sua preservação
dependem de uma política de meio ambiente,
voltada ao desenvolvimento sustentável. Mas,
não basta a implementação de tal política em
nível interno por determinados países (art. 3º,
CBD) , mesmo porque, em escala planetária, há
a invocação a uma política global de preservação
da diversidade biológica (par. 3º, preâmbulo da
CBD) e de utilização sustentável dos recursos
biológicos (par. 5º, preâmbulo da CBD).
É de suma relevância, destarte, que o Poder
Público efetivamente implemente a preservação
da integridade dos recursos biológicos e a proteção dos conhecimentos tradicionais associados à
biodiversidade, através de políticas públicas de
gestão de seu uso eqüitativo. No sistema brasileiro, isto vem prescrito na Constituição Federal
de 1988 (artigo 225, § 1º, I e II), no art. 1º da
Convenção da Diversidade Biológica, que tem
força normativa cogente, porque incorporada ao
sistema jurídico interno através de sua ratificação
pelo Congresso Nacional17 e ainda no art. 1º do
Decreto 6040/2007.
2.5. Soberania e cooperação internacional
Da mesma forma, a cooperação internacional em matéria de acesso à sociobiodiversidade
não deve tender a abolir as autonomias de outros
níveis de governo. Isto porque as nações estão
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 207-218, fevereiro/2010
VISÃO CRíTICA SOBRE A CONVENÇÃO DA BIODIVERSIDADE - SEuS OBJETIVOS, SOBERANIA
ESTATAL E ACESSO AO CONHECIMENTO TRADICIONAL
jungidas ao dever universal de desenvolvimento
sustentável, que corresponde a um direito fundamental da humanidade; Cabe a elas bem cooperar
de forma a reconhecer as peculiariedades locais,
regionais e nacionais, propiciando sinergias e
integração dessas ações nacionais com convenções, tratados e acordos internacionais. É
da gênese da Convenção da Biodiversidade “a
idéia da responsabilidade compartilhada pela
manutenção da biodiversidade do planeta”, como
enfatizado por Aurélio Veiga Rios18.
Da leitura do preâmbulo, bem assim dos
artigos 5, 11, 12, 15, 16, 17, 18, 19, 20 e 21 da
CBD depreendem-se as seguintes conclusões: Os
Estados, em ações de cooperação internacional
em matéria de biodiversidade, estão vinculados
aos princípios da sadia qualidade de vida e do
desenvolvimento sustentado, do acesso eqüitativo aos recursos naturais, da precaução, da informação e da participação e da reparação integral.
Os objetivos da preservação e da utilização sustentável da biodiversidade são uma preocupação
comum à humanidade (par. 3º do preâmbulo da
CBD), com responsabilidades diferenciadas,
incumbindo aos países desenvolvidos o aporte
de recursos financeiros novos e adicionais e a
facilitação do acesso às tecnologias pertinentes
para atender às necessidades dos países em desenvolvimento. O compromisso de cooperação
científica e de apoio financeiro (artigos 18 e 20)
é uma compensação pelo acesso à biodiversidade e ao conhecimento tradicional associado
aos recursos genéticos. Essa compensação deve
repousar em criteriosas bases jurídicas, de maneira a permitir a ruptura do processo crescente de
desigualdade social e tecnológica entre o bloco
dos países desenvolvidos e o dos subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, sob pena de se
tornar um perverso instrumento de reafirmação
dessas diferenças. A cooperação internacional e
os direitos soberanos são conciliáveis, de modo
que uma não deve anular ou enfraquecer a outra.
2.6. Soberania e patrimônio comum da
humanidade versus preocupação comum da
humanidade
Em matéria de preservação da diversidade
biológica, fala-se num princípio da soberania
sobre o patrimônio genético, à luz das regras e
princípios norteadores da Convenção da Biodiversidade.
A Convenção da Biodiversidade não considerou os recursos genéticos “patrimônio comum
da humanidade”, termo utilizado na Declaração
de Estocolmo em relação ao bem ambiental e a
Convenção das Nações unidas sobre o Direito
do Mar, de 198219, relativamente aos fundos
marinhos. O que é comum da humanidade para
a Convenção da Biodiversidade (conforme seu
preâmbulo e art. 5º) e para a Convenção-quadro
da Mudança do Clima (art. 3º) é a preocupação
pública com a conservação da diversidade biológica. Portanto, a leitura adequada de patrimônio
comum da humanidade é preocupação comum
da humanidade.
Com efeito, como observa Nicolao Dino
de Castro e Costa Neto, embora a Declaração de
Estocolmo/72, no princípio 18, prescreva meio
ambiente como patrimônio comum da humanidade, em verdade, principalmente, com relação
aos recursos genéticos, o que deve existir é um
“pensar coletivo, em prol da realização de ideais
comuns da humanidade”.20
Desde 1972, já constava tal princípio da soberania dos Estados para estabelecer sua política
ambiental e de desenvolvimento com cooperação internacional, no art. 21 da Declaração de
Estocolmo, consoante segue: “ de acordo com
a Carta das Nações unidas e com os princípios
de direito internacional os Estados têm o direito
soberano de explorar seus próprios recursos de
acordo com sua política de meio ambiente”21.
Insta anotar que a Convenção da Biodiversidade relacionou o conceito de soberania
nacional sobre os recursos biológicos com o
conceito de preocupação comum da humanidade (preâmbulo da CBD) e não utilizou o termo
“patrimônio comum da humanidade”. Tratase de uma expressão inovadora que vem em
substituição ao conceito de patrimônio comum
da humanidade, previsto na Declaração de Estocolmo/72. Ao substituir o termo patrimônio
comum, res communes, pelo de “preocupação
comum”, a CBD derrubou a concepção de que
os recursos naturais pertenceriam à humanida-
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 207-218, fevereiro/2010
211
KISHI, S. A. S.
de, autorizando-se um livre acesso sem levar
em conta as particularidades distintas de cada
Estado nacional.
O conceito de patrimônio comum revela-se
inadequado diante das diferenças do atual sistema global, das distintas situações de cada Estado
nacional e das distintas capacidades científicotecnológicas e econômicas das corporações
transnacionais.22
Pode-se afirmar que a expressão patrimônio comum da humanidade já a partir de 1982
adquiria significado de necessária preocupação
global com a biodiversidade. Com efeito, em
1982, a Convenção Internacional sobre o Direito
do Mar reconheceu em seu artigo 136 que o leito
do mar, os fundos marinhos e seu subsolo, além
dos limites da jurisdição nacional constituem
patrimônio da humanidade. Tal concepção, no
entanto, está inserida numa perspectiva claramente solidária, pois devem ser considerados, de
modo particular, “os interesses e as necessidades
especiais dos países em desenvolvimento, quer
costeiros quer sem litoral, como declarado no
preâmbulo da Convenção23.
2.7. Direitos soberanos e limitações
Considerando o item 1, do artigo 15 da
Convenção da Biodiversidade, que prescreve:
“Em reconhecimento dos direitos soberanos
dos Estados sobre seus recursos naturais, a
autoridade para determinar o acesso a recursos
genéticos pertence aos governos nacionais e está
sujeita à legislação nacional”. Pode-se concluir,
inicialmente, que em matéria de preservação dos
recursos naturais e seus ecossistemas, nenhum
país tem a soberania absoluta para usá-los para
causar poluição, à luz também do artigo 3º da
CBD. A idéia de soberania do país em não utilizar
recursos biológicos para degradar ou poluir nem
autorizar que outro país assim o faça, também
está refletida no par. 2 do art. 15 da CBD, que
diz que “cada parte deve procurar criar condições
para permitir o acesso a recursos genéticos para
utilização ambientalmente saudável por outras
partes contratantes e não impor restrições contrárias aos objetivos desta Convenção.”24
Como anota Francisco Eugênio M. Arcan212
jo, o direito internacional ambiental não fica só
no reconhecimento da soberania dos Estados
na gestão de seus bens ambientais, exige mais,
pois invoca a regulação e implementação em
nível nacional das normas do CBD, numa obrigatoriedade da intervenção pelo poder público25.
2.8. Obrigatoriedade da intervenção pelo
poder público
Essa obrigatoriedade da intervenção
do Estado, decorrente dos direitos soberanos
sobre os seus próprios recursos biológicos
como prevista na CBD, desde 1972, já estava
na Declaração de Estocolmo, verbis: “Deve ser
confiada às instituições nacionais competentes
a tarefa de planificar, administrar e controlar
a utilização dos recursos ambientais dos Estados, com o fim de melhorar a qualidade do
meio ambiente.” (artigo 17)
Conforme encerrado no artigo 225, caput e
§ 1º, II, da Constituição Federal de 1988, o Poder
Público tem o dever de preservar a diversidade
e a integridade do patrimônio genético do País,
verbis:
“Todos têm direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado, bem de
uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao
Poder Público e à coletividade o dever
de defendê-lo e preservá-lo para as
presentes e futuras gerações.”
§ 1º - “Para assegurar a efetividade desse
direito, incumbe ao Poder Público:
II – preservar a diversidade e a integridade
do patrimônio genético do País e fiscalizar
as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético”
Esses comandos diretivos conformam
constitucionalmente o Estado de Direito Ambiental e consagram o paradigma da sustentabilidade como meta no sistema brasileiro.
Segundo José Manuel Pureza, o “eixo ordenador do Estado ambiental é antes o primado da
conservação do patrimônio natural”, porquanto,
invocando a lição de Bellver Capella, trata-se
afinal de “forma de Estado que se propõe aplicar
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 207-218, fevereiro/2010
VISÃO CRíTICA SOBRE A CONVENÇÃO DA BIODIVERSIDADE - SEuS OBJETIVOS, SOBERANIA
ESTATAL E ACESSO AO CONHECIMENTO TRADICIONAL
o princípio da solidariedade econômica e social
para alcançar um desenvolvimento sustentável
orientado para a procura da igualdade substancial
entre os cidadãos, mediante o controle jurídico
do uso racional do patrimônio natural”.26
A despeito desse dever universal de desenvolvimento sustentado, assevera Fábio Konder
Comparato que o cumprimento desse dever “não
pode ser deixado por conta do livre funcionamento dos mercados. É o Estado que deve atuar,
precipuamente, como o administrador responsável dos interesses das futuras gerações”.27
Este direito negativo imposto ao Estado-gestor,
dirigido à proteção ambiental, corresponde a um
dever de não agir de modo a pôr em risco a diversidade e a integridade do patrimônio genético.
O peso dos interesses públicos envolvidos na gestão do patrimônio genético impede
o Estado de querer reservar para si o poder de
decisão política relativamente àqueles interesses,
impedindo o concurso de grupos, das associações
civis ou das organizações não-governamentais28,
seja num regime de colaboração como canais de
comunicação, seja até como agentes provocadores da defesa desses interesses coletivos lato
sensu. No Brasil, como tais atores são legitimados a defesa desses interesses coletivos em juízo,
certamente podem atuar extra-judicialmente na
defesa daqueles direitos29.
3. Acesso ao conhecimento
tradicional e repartição de
benefícios (art. 8,”j”, cdb)
O art. 8º, “j” trata da conservação in situ e
diz que em conformidade com a legislação nacional é necessário respeitar, preservar e manter o
conhecimento, inovações e práticas das comunidades locais e populações indígenas com estilos
de vida tradicionais relevantes à conservação e à
utilização sustentável da diversidade biológica
e incentivar sua mais ampla aplicação com a
aprovação e a participação dos detentores desse
conhecimento, inovações e práticas, e encorajar
a repartição eqüitativa dos benefícios oriundos
da utilização desse conhecimento, inovações e
práticas.
Vê-se que a CDB reconhece que o conhecimento, inovações e práticas dessas comunidades
são relevantes para o manejo sustentável da
biodiversidade.
A primeira parte do artigo 8º, “j” ressalta
o valor intrínseco da diversidade biológica em
suas dimensões social e cultural, merecedor de
ser mantido e preservado mediante políticas
públicas adequadas.
Na legislação brasileira (art. 1º, I do Decreto 6040/2007), a preservação do conhecimento,
das inovações e das práticas das comunidades
tradicionais dá-se mediante ações voltadas para
o alcance dos objetivos da Política Nacional
de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e
Comunidades Tradicionais.
Segundo o art. 1º, xIV do Dec. 6040/2007,
a preservação dos direitos culturais, o exercício
de práticas comunitárias, a memória cultural e
a identidade racial e étnica são um dos princípios da política de desenvolvimento dos povos
tradicionais.
Pode-se concluir que a CDB faz um link
entre desenvolvimento sustentável, valor comercial30 e acesso ao patrimônio genético e ao
conhecimento tradicional diante da expressão
“incentivar sua mais ampla aplicação”. Assim,
a CDB sustenta-se em uma tríade em que cada
vértice da base está representada pela “utilização
sustentável (art. 1º) e o valor econômico (art. 8º,
“j”), a “conservação da diversidade biológica”
(art. 1º) e o valor cultural (art. 8º, “j”) e “acesso
adequado” (art. 1º) e repartição de benefícios,
ligados por cipoais ou pontes em que transitam
em direções opostas e por vezes convergentes
mas com certa flexibilidade, o sistema positivo
de proteção jurídica da sociedade envolvente e
o direito das minorias das comunidades tradicionais envolvidas no procedimento de acesso.
O termo “aprovação” no art. 8º, “j” da Convenção da Diversidade Biológica, base estrutural
do consentimento prévio fundamentado pelas
comunidades tradicionais, é repetido expressamente no § 5, do artigo 15, da CBD.
Da expressão “participação dos detentores desse conhecimento, inovações e práticas”
extrai-se que a representatividade das comuni-
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 207-218, fevereiro/2010
213
KISHI, S. A. S.
dades tradicionais realiza-se, por elas próprias
ou por suas organizações, no exercício do direito
fundamental à autodeterminação. No Brasil, a
CF/88 (art. 232) atribui ao povo indígena um
sistema próprio de representação, munus que não
deve ser exercido por órgão do poder público,
especialmente do Poder Executivo. Portanto, os
povos indígenas detêm legitimidade para figurarem como partes no consentimento prévio informado e no contrato de utilização e repartição de
benefícios, respeitando-se seus próprios métodos
tradicionais de escolha de seus representantes.
Para a efetividade dessa participação, é preciso
que as trocas de informações constantes e as
tratativas para o contrato de acesso e utilização
dêem-se na língua ou dialeto dos detentores, com
assessoria jurídica e apoio de profissionais das
multidisciplinas de interface. O laudo antropológico independente é um dos instrumentos de
política de acesso que pode abrigar informações
técnicas sobre a cultura e o sistema de organização sócio-político da comunidade tradicional e
sobre o grau da dinâmica de troca de informações
e de esclarecimento por parte dos provedores
sobre as finalidades do acesso. Tudo isso deve
ser precedido da prévia revelação da metodologia
de pesquisa; das conseqüências previsíveis, da
completa identificação, com todos os dados, da
pessoa física ou jurídica interessada no acesso.
4. Considerações sobre o acesso à
luz do artigo 15 da cdb
4.1. Condições para o acesso.
O 2º § desse dispositivo da Convenção
prescreve que cada Estado deve procurar “criar
condições para permitir o acesso a recursos genéticos para utilização ambientalmente saudável
por outros Estados e não impor restrições contrárias aos objetivos” da CBD. A expressão “deve
procurar criar condições para permitir” e que a
recomendação “a não impor restrições contrárias
aos objetivos desta Convenção” leva a duas conclusões: a de que “o acesso a recursos genéticos
não constitui um dever do Estado que os possui
nem um direito de outras partes contratantes ou
particulares que pretendam aceder”31 e a de que
214
a CDB “limita a liberdade de um país de fechar
a porta de seu invernadouro”32.
4.2. Irretroatividade da lei
O § 3º do art. 15 da CDB estabelece que os
recursos genéticos providos por um Estado “são
apenas aqueles providos por Partes Contratantes
que sejam países de origem desses recursos ou
por Partes que os tenham adquirido em conformidade com esta Convenção”, invoca-se o
princípio da irretroatividade da lei. Ou seja, não
há a obrigação de repartição dos benefícios das
aquisições e utilizações realizadas antes da CDB.
4.3. Natureza jurídica do acesso
O § 4º, art. 15 da CDB valoriza o aspecto
contratual do acesso, mediante mútuo consentimento e consentimento prévio informado após a
concessão para o acesso pelo órgão competente.
Assim, concebe-se que tanto o consentimento
prévio informado quanto o contrato de utilização e repartição de benefícios detêm natureza
de transação. Não há um modelo estanque ou
padrão para este contrato, diante das distintas
circunstâncias de cada hipótese de acesso.
4.4.Consentimento prévio informado.
O § 5º do art. 15 vem na mesma linha de
valoração da vontade legítima da parte provedora, tomada previamente ao contrato de acesso,
através do consentimento prévio informado, “a
menos que de outra forma determinado por essa
parte”. O consentimento prévio informado é o
instrumento jurídico garantidor da observância
dos demais princípios relacionados no artigo 15,
da CDB, imprimindo legitimidade ao acesso e
segurança jurídica ao solicitante. Além disso,
a gama de informações encerrada nesse procedimento de consentimento prévio informado
ajudará na indicação dos benefícios decorrentes
da utilização dos recursos genéticos e do conhecimento tradicional acessados e de sua repartição, de forma justa e eqüitativa. Com efeito, o
consentimento prévio informado está longe de
se resumir a um mero ato formal de anuência
prévia. Trata-se de um procedimento formado
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 207-218, fevereiro/2010
VISÃO CRíTICA SOBRE A CONVENÇÃO DA BIODIVERSIDADE - SEuS OBJETIVOS, SOBERANIA
ESTATAL E ACESSO AO CONHECIMENTO TRADICIONAL
por trocas de informações e esclarecimentos em
sede de reuniões, palestras e audiências públicas,
que culmina na anuência ou na decisão de negar
o acesso.
Autores ressaltam que “não é exagero sustentar que o consentimento prévio fundamentado
é a questão chave do art. 15”33.
Esse fundamental caráter da essencialidade do consentimento prévio informado impede
qualquer interpretação ampliativa quanto à
expressão “a menos que de outra forma determinado” pela parte provedora, sob pena de ofensa
aos demais princípios prescritos na CDB. Neste
diapasão, Márcia Rodrigues Bertoldi observa
que esta excepcionalidade expressa no art. 15,
§ 5º não significa que o consentimento prévio
informado é apenas uma sugestão, pois constitui
uma condição ao acesso.34 Demais disso, se não
fosse uma condição essencial, mas uma opção
apenas, não se utilizaria o verbo “deve”, mas sim
“pode”, no § 5º do art. 15, da CDB. A hermenêutica jurídica recomenda que referida expressão
poderia no máximo significar que a parte provedora tem autonomia para regular determinados
casos em que não se aplicaria o consentimento
prévio informado, justificadamente e num regime
de exceção e desde que a situação seja excepcionada mediante lei. Com efeito, sobre essa
expressão, Glowka, Burhenne-Guilmin e Synge
ilustram hipóteses passíveis de não aplicação do
consentimento prévio informado: “Por exemplo,
o “PIC”35 poderia aplicar-se a todos os recursos
genéticos dentro de sua jurisdição ou somente a
categorias particulares”36.
4.5. Facilitação à repartição de benefícios
Os §§ 6º e 7º, do art. 15 tratam do retorno
dos benefícios derivados da utilização dos recursos genéticos. A obrigação do usuário de recursos
genéticos, como prevista no § 7º começa no procedimento do PIC, ocasião em que as condições
a serem mutuamente acordadas num contrato de
acesso são informadas e discutidas. Em contrapartida à facilitação ao acesso pelos provedores
vem a facilitação à repartição justa e eqüitativa
dos benefícios e dos resultados37 derivados das
biotecnologias baseadas em recursos genéticos
ou no conhecimento tradicional a eles associa-
dos, aliada à obrigação de facilitar o acesso e a
transferência de tecnologias38 e a obrigação de
realizar e promover investigações científicas com
base nos recursos genéticos e conhecimentos tradicionais acessados39, assegurada a participação
nas atividades de investigação sobre biotecnologias40, mediante a efetiva adoção de medidas
administrativas e legislativas.
Algumas medidas relevantes para a efetivação da obrigação de facilitação do acesso
e transferência da tecnologia já foram implementadas na legislação brasileira. Por exemplo,
a demonstração de provas do consentimento
prévio informado na permissão de importação do
recurso genético importados; os registros dos recursos genéticos importados, indicando a origem
e demais informações; o formal requerimento
de distribuição de resultados por associação de
países provedores em atividades de pesquisa e
desenvolvimento, dentre outras medidas41.
4.6. Os vários projetos de lei de acesso no
Brasil
No Brasil, há 5 projetos e anteprojetos de
lei de acesso, sendo que a última, de dezembro
de 2007 que não exclui as demais, prevê a figura
do conhecimento tradicional disseminado42 ,
dispensando, neste caso43, a licença do CGEN
– Conselho de Gestão do Patrimônio Genético
(art. 32) assim como para acessos para pesquisas.
Mas, ainda permanece a necessidade de licença
para a remessa para o exterior de material biológico com a finalidade de pesquisa científica
ou tecnológica, gerando dúvidas sobre uma
suposta facilitação ao acesso para a pesquisa44.
Atualmente, já há previsão legal de uma licença
permanente a determinados pesquisadores45 para
a coleta e transporte de materiais biológicos46
com finalidade científica ou didática no território
brasileiro47. A licença permanente de acesso para
pesquisador não é válida para recebimento ou
envio de material biológico ao exterior48.
4.6.1. Conhecimento tradicional disseminado:
Segundo o mais recente anteprojeto de
lei de dezembro de 2007 49 (art. 7º, xIx) é
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 207-218, fevereiro/2010
215
KISHI, S. A. S.
aquele conhecimento tradicional difundido na
sociedade brasileira, de uso livre de todos, não
reconhecido como sendo associado diretamente
à cultura de comunidades indígenas, quilombolas
ou tradicionais identificadas. A dificuldade está
em identificar o alcance do significado de não
associado “diretamente” à cultura de comunidades tradicionais “identificadas”. Diante dessa
redação, não há como se afastar o procedimento
de formalização do consentimento prévio informado no acesso ao conhecimento tradicional
disseminado. Isto porque o procedimento do
consentimento prévio informado com trocas de
informações, reuniões, palestras e elaboração de
laudo antropológico proporcionaria chegar-se à
identificação dos detentores do conhecimento
tradicional. A maior dificuldade reside em se
esclarecer o que significa como distinguir conhecimento tradicional “diretamente” ou “indiretamente” associado à cultura de comunidades
tradicionais. Se não for diretamente relacionado
seria ainda assim um conhecimento tradicional?
Estar-se-ia criando uma nova modalidade de
conhecimento tradicional associado à cultura e
não ao material biológico? Neste caso, o folclore
estaria incluído como conhecimento tradicional
disseminado? E se o conhecimento tradicional
disseminado não for difundido em toda a sociedade brasileira, ciente de que o Brasil é um país
de grande extensão territorial e multicultural?
Conclusão
No acesso aos conhecimentos tradicionais e ao patrimônio genético, diversas são as
questões ainda desafiantes e em aberto. O texto
buscou evidenciar os aspectos principiológicos
encontrados na Convenção da Diversidade
Biológica, que merecem sempre ser aplicados
de forma integrada na matéria. Talvez, melhor
que vivenciar uma hipertrofia legislativa, seria
buscar a práxis, sempre sustentada em princípios
atinentes ao acesso ao conhecimento tradicional
e à repartição de benefícios e que jamais desconsidere os objetivos da Convenção da Diversidade
Biológica, já incorporados no nosso ordenamento jurídico. Isso certamente contribuiria para um
216
eficiente sistema jurídico de proteção do acesso
ao patrimônio genético e ao conhecimento tradicional no Brasil.
notas
A Convenção da Diversidade Biológica foi incorporada no
nosso ordenamento jurídico, visto que ratificada pelo Congresso Nacional pelo Decreto legislativo 2, de 3.2.2004
e promulgada pelo Decreto n. 2519, de 16.3.1998 (DOU
de 17/3/98).
3
In Convenção da Biodiversidade, Entendendo o Meio
Ambiente, Secretaria de Estado do Meio Ambiente de São
Paulo, São Paulo: SMA, 1997, p. 15-16.
4
http://www.mma.gov.br/cgen
5
BuRHENNE apud ALENCAR, Gisela S. de, Biopolítica,
biodiplomacia e a Convenção sobre Diversidade Biológica/1992: Evolução e Desafios para Implementação in
BENJAMIN, Antonio Herman e MILARÉ, Edis (coord),
Revista de Direito Ambiental, nº 3, São Paulo, Editora RT,
jul-set, 1996, p. 91.
6
MACHADO, Paulo Affonso Leme, Direito Ambiental Brasileiro, 16ª ed., São Paulo, Malheiros Editores, 2008, p. 59.
7
Op.cit., p. 59 e 60.
8
COSTA E SILVA, Eugênio da, “Ciência, Direitos Intelectuais e Biodiversidade”, in Revista da ABPI, Associação
Brasileira de Propriedade Intelectual, nº 21, São Paulo,
mar/abr 1996, p. 3.
9
Art. 24, VI da Constituição da República Federativa do
Brasil: “Compete à união, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: ... VI – florestas,
caça, pesca, fauna, conservação da natureza, defesa do
solo e dos recursos naturais, proteção do meio ambiente
e controle da poluição”.
10
Art. 23 , VI da Constituição da República Federativa do
Brasil: “proteger o meio ambiente e combater a poluição
em qualquer de suas formas”.
11
responsabilidade de assegurar que atividades sob sua
jurisdição ou controle não causem dano ao meio ambiente
de outros Estados ou de áreas além dos limites da jurisdição nacional”
12
O art. 13 da Declaração do Rio de Janeiro expressa nesse
mesmo sentido a responsabilidade dos Estados por danos
transfronteiriços
13
Convenção foi ratificada pelo Congresso Nacional pelo
Decreto legislativo 2, de 3.2.2004 e promulgada pelo
Decreto n. 2519, de 16.3.1998 (DOu de 17/3/98)
14
SANDS, Philippe, Principles of international environmental law, frameworks, standarts and implementation,
vol. I, Manchester, uK: Manchester university Press,
1995, p. 382.
15
No Brasil, há previsão legal neste sentido (Decreto 6040,
de 7/2/2007, art. 1º).
16
PEA 2186-16 provides about the institution of prior
consent by the providers and authorization and approval
of the agreement by the GRMC. (art. 16, § 9 c.c. art. 8, §
1 and art. 9, II and art. 11, IV, “b”, and V, all included in
PEA 2186-16/81).
2
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 207-218, fevereiro/2010
VISÃO CRíTICA SOBRE A CONVENÇÃO DA BIODIVERSIDADE - SEuS OBJETIVOS, SOBERANIA
ESTATAL E ACESSO AO CONHECIMENTO TRADICIONAL
Assinada no Rio de Janeiro, na Conferência das Nações
unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, em
05.06.1992, ratificada pelo Congresso Nacional pelo
Decreto Legislativo 2, de 03.02.1994 e promulgada pelo
Decreto 2.519, de 16.03.98 (DOu de 17.03.98).
18
RIOS, Aurélio Veiga Rios, O Direito da Biodiversidade,
in Seminário Internacional sobre Biodiversidade e Transgênicos, Brasília: Senado Federal, 1999, p. 112. Anais.
19
No Preâmbulo da Convenção sobre o Direito do Mar de
1982, afirma-se que os “fundos marinhos e seu subsolo
além dos limites da jurisdição nacional (“a Zona”) e os
recursos da Zona são patrimônio comum da humanidade”.
20
Castro e Costa Neto, Nicolau Dino, Proteção Jurídica
do Meio Ambiente - Florestas, Del Rey Editora , Belo
Horizonte/MG: 2003, p. 138.
21
SILVA, Geraldo Eulálio do Nascimento e, Direito Ambiental Internacional, Meio Ambiente, Desenvolvimento
Sustentável e os Desafios da Nova Ordem Mundial, Rio
de Janeiro: Thex Editora, 2002, p. 325.
22
ALENCAR, Gisela S. de, Biopolítica, biodiplomacia e a
Convenção sobre Diversidade Biológica/1992: Evolução
e Desafios para Implementação in BENJAMIN, Antonio
Herman e MILARÉ, Edis (coord), Revista de Direito
Ambiental, nº 3, São Paulo, Editora RT, jul-set, 1996, p. 95.
23
COMPARATO, Fábio Konder, A Afirmação Histórica dos
Direitos Humanos, 3ª edição, São Paulo: Editora Saraiva,
2003, p. 404.
24
Art. 15, item 2, da Convenção da Biodiversidade.
25
ARCANJO, Francisco Eugênio M., Convenção sobre Diversidade Biológica e Projeto de Sei do Senado 306/95, in
BENJAMIN, Antônio Herman e MILARÉ, Édis, Revista
de Direito Ambiental, nº 7, Ano 2, São Paulo: Editora RT,
jul/set. 1997, p. 148.
26
PuREZA, José Manuel, O Estatuto do Ambiente na Encruzilhada de Três Rupturas, Coimbra: Centro de Estudos
Sociais, nº 102, dez/97, p. 15.
27
COMPARATO, Fábio Konder, A Afirmação Histórica dos
Direitos Humanos, 3ª edição, São Paulo: Editora Saraiva,
2003, p. 425.
28
Conforme Rodolfo de Camargo Mancuso, em seu Interesses Difusos, Conceito e Legitimação para agir, 3ª
edição, Editora Revista dos Tribunais, 1994, p. 99/100:
“...nos países mais civilizados e democráticos, admite-se
a colaboração dos indivíduos, agrupados ou não, servindo
como canais de comunicação para os interesses difusos,
conduzindo-os até os centros de decisão do Estado. Assim se passa nos Estados Unidos, com a instituição do
ideological plaintiff, onde uma pessoa ou grupo funciona
como porta-voz de todos os indivíduos abrangidos numa
situação homogênea; na França, onde associações se fazem
portadoras de interesses difusos, como dos consumidores
ou de certas minorias; na Suécia, onde associações de
consumidores os representam junto à Corte de Mercado; na
Itália, onde associações são admitidas à tutela de interesses
difusos, como os de proteção à paisagem.”
29
Art. 5º da Lei 7347/1985 (Lei da Ação Civil Pública).
30
COSTA E SILVA, Eugênio, Ciência, Direito Intelectuais
e Biodiversidade, in Revista da ABPI n. 21– Associação
Brasileira de Propriedade Intelectual, São Paulo, mar-abr,
1996, p. 5
17
BERTOLDI, Márcia Rodrigues, Regulação Internacional
do acesso aos recursos genéticos que integram a biodiversidade” in Revista de Direito Ambiental nº39, jul-set,
2005, pág. 131.
32
GOLLIN, M., La Convención sobre la Diversidad Biológica y los Derechos de Propiedad Intelectual, VV.AA,
in La Prospección de la Biodiversidade: el uso de los
recursos genéticos para el desarrollo sostenible. EuA:
World resources Institute (WRI), 1994, p. 333.
33
HENDRICKS, F.; KOESTER, V.; PRIP., C; Convention
on Biological Diversity, access to Genetic Resources: A
Legal Analysis, in Environmental policy and law, 23/6,
1993, p. 252.
34
BERTOLDI, Márcia Rodrigues, Regulação Internacional
do acesso aos recursos genéticos que integram a biodiversidade” in Revista de Direito Ambiental nº 39, jul-set,
2005, p. 136.
35
PIC ou prior informed consent é a sigla em inglês para
consentimento prévio informado.
36
GLOWKA, L.; BuRHENNE-GuILMIN, F.; SYNGE,
H., apud BERTOLDI, Márcia Rodrigues, op. cit, p. 136.
37
Art. 19, § 2º, CBD
38
Art. 16, §§ 3º e 4º, CBD
39
art. 15, § 6º, CBD.
40
Art. 19, § 1º, CBD.
41
DOC uNE/CDB/EP-ABS/2. apud BERTOLDI, Márcia
Rodrigues, op. cit. p. 140/141.
42
Art. 7º, xIx, Anteprojeto de lei acesso , de dezembro
de 2007.
43
Art. 45, par. único, Anteprojeto de lei de acesso (2007),
embora o caput e o seu par.único versem sobre distintas
matérias não resguardando relação de pertinência.
44
Art. 58, caput, do Anteprojeto de lei de acesso (2007)
45
pesquisador cadastrado junto ao SISBIO Sistema de Autorização e Informação em Biodiversidade, com título de
doutor ou equivalente, reconhecido no Brasil, e vínculo
empregatício efetivo com instituição científica (art. 11, da
IN 154, de 1/3/2007, do IBAMA)
46
Art. 3º, I e IV da IN 154/2007 do IBAMA.
47
Art. 3º, caput, da IN 154/2007 do IBAMA
48
Art. 12, III, da IN 154/2007 do IBAMA.
49
www.mma.gov.br/cgen0
31
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Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 207-218, fevereiro/2010
O TRIBuNAL PENAL INTERNACIONAL (TPI) E CRIANÇAS EM SITuAÇõES DE CONFLITOS ARMADOS
Artigo
o triBunAL PEnAL intErnACionAL (tPi) E
CriAnçAS Em SituAçõES DE ConfLitoS
ArmADoS
Sylvia Helena F. Steiner1
rESumo: Responsabilização pessoal do líder
militar Thomas Lubanga Dyilo, da República
Democrática do Congo, levado a julgamento pelo
Tribunal Penal Internacional (TPI) de Haia, pelo
crime de guerra de recrutamento e utilização de
crianças-soldado por grupos armados atuantes
no território. Violações a direitos fundamentais,
e por isso previstas como crimes de guerra,
que põem em risco a paz e a sobrevivência da
humanidade. Danos físicos e psicológicos de
toda natureza. Utilização das crianças como
combatentes e em atos de terrorismo. Afirma
a autora a idéia de que o ciclo de impunidade
começa a ser desafiado, que há arcabouço legal
à disposição da comunidade internacional e resta
apenas efetividade.
Palavras-chave: Tribunal de Haia. Crime de
guerra. Crianças-Soldado. Arcabouço Legal.
Efetividade. Responsabilização pessoal de líder
militar.
ABStrACt: Personal liability of the military
leader Thomas Lubanga Dyilo, from the Democratic Republic of Congo, brought to trial by the
International Criminal Court of Hague for war
crime of recruitment and use of children-soldiers
by armed groups operating in the territory.
Violations of fundamental rights, and therefore
typified as war crimes, which threaten peace and
the survival of humanity. Physical and psychological damage of all nature. Use of children as
combatants and in acts of terrorism. The author
advocates the idea that the cycle of impunity is
beginning to be challenged, that there is a legal
1
Juíza brasileira junto ao Tribunal Penal Internacional (TPI) desde 2003, presidente da Câmara Preliminar I. Foi Procuradora da República de 1982
a 1995 e Desembargadora Federal do Tribunal Regional Federal da Terceira Região de 1995 a 2003.
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 219-225, fevereiro/2010
219
STEINER, S. H. F.
framework available to the international community and we only need effectiveness.
Keywords: International Criminal Court of
Hague. War crime. Children-soldiers. Legal
framework. Effectiveness. Personal liability of
military leader.
O primeiro caso submetido a julgamento
pelo recém criado Tribunal Penal Internacional,
com sede em Haia, refere-se ao crime de guerra
de recrutamento e utilização de crianças-soldado
por grupos armados atuantes no território da
República Democrática do Congo. A conduta é
considerada como crime de guerra, nos termos
do artigo 8 do Estatuto de Roma.2 Tendo atuado
como juíza na fase preliminar do processo, que
culminou com a decisão que enviou o acusado a
julgamento, creio que posso tentar traduzir, em
poucas palavras, o impacto que o recrutamento
e utilização de crianças em conflitos armados
produz sobre milhares de crianças em diversas
partes do mundo. Essas condutas são consideradas pelo Estatuto de Roma como dentre as mais
sérias violações a direitos fundamentais, e por
isso previstas como crimes de guerra, que põem
em risco a paz e a sobrevivência da humanidade.
Começo chamando a atenção para as
palavras de Chérif Bassiouni, jurista considerado como um dos principais idealizadores
do Tribunal Penal Internacional, segundo o
qual « depois de conhecidas as atrocidades
cometidas durante a segunda guerra mundial, a
comunidade internacional prometeu que ‘nunca
mais’. Entretanto, desde então ocorreram cerca
de 250 conflitos armados, internos, regionais
e internacionais. Esses conflictos, ao lado de
violações de direitos fundamentais perpetradas
por regimes repressivos, produziram de 70 a
170 milhões de mortos. O alcance em conjunto
de todas essas consequências danosas excede
nossa capacidade de compreensão, mas temos
que confrontar a realidade. É trágico, mas não
foram desenvolvidos quaisquer mecanismos de
responsabilização e, em consequência, não tem
havido nenhuma prevenção. »3
Pode-se sem dúvida afirmar que a maior
parte dos conflitos armados ocorridos desde a
220
segunda grande guerra aconteceram, e ainda
acontecem, em situações de lutas internas ou
regionais. Em outras palavras, em conflitos de
caráter não internacional.
Como uma das consequências desse fato, o
perfil das partes envolvidas nesses conflitos também mudou. Hoje, se pode afirmar que a quase
maioria das partes envolvidas em conflitos armados são civis, e que a quase maioria das vítimas
desses conflitos armados são também civis não
envolvidos de qualquer modo nas hostilidades.
Ao assassinato sistemático, à transferência forçada de populações inteiras, à destruição de vilas e
cidades, soma-se nesses conflitos o recrutamento
cada vez mais intenso de meninos e meninas e
sua utilização como combatentes, por grupos
armados que se estruturam, geralmente, sobre
as bases da nacionalidade, etnia ou religião de
seus membros.
Em verdade, é necessário distinguir-se, em
breves palavras, o conflito inter-étnico como base
da realização de condutas consideradas como
crimes de guerra, do conflito inter-étnico assim
considerado como consequência de uma disputa
gerada por outros interesses, em geral econômicos, de outros atores distintos daqueles que
se enfrentam em combate. Em outras palavras,
distingue-se o conflito inter-étnico que é a causa
do cometimento de crimes, do conflito interétnico que é o meio utilizado para a obtenção
de determinados resultados.
Essa última forma de conflito que, a nosso
ver, nem deveria ser considerado como « interétnico » no sentido estrito do termo, está na
origem de grande parte dos conflitos armados
de caráter não internacional que vêm merecendo
a atenção da comunidade internacional. Esse
parece ser, a exemplo, o caso do conflito armado
na região de Ituri, na República Democrática
do Congo, primeiro caso trazido ao Tribunal
Penal Internacional, onde as rivalidades tribais
são estimuladas, manipuladas, e muitas vezes
mesmo geradas, por grupos, empresas ou estados
interessados na apropriação de áreas ricas em
recursos minerais.
Assim, vemos que na maioria dos conflitos
armados da atualidade a disputa por terras, por
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 219-225, fevereiro/2010
O TRIBuNAL PENAL INTERNACIONAL (TPI) E CRIANÇAS EM SITuAÇõES DE CONFLITOS ARMADOS
riquezas naturais, por espaços de poder político,
terminam por apropriar-se das diferenças entre
grupos raciais, religiosos, étnicos, a fim de fomentar o ódio racial, religioso ou étnico.
Nesse quadro, fica mais simples entenderse a relação causal entre os conflitos assim chamados de « inter-étnicos » e a vitimização cada
vez mais de meninos e meninas, incluindo-se aí
sua utilização como combatentes. Esses meninos
e meninas são recrutados, geralmente, à força,
mas muitas vezes são entregues às milícias por
seus próprios pais, pois estes se sentem incapazes
de proteger a sua própria comunidade. Muitas
vezes, as crianças se alistam voluntariamente,
porque vêem nos grupos armados a única maneira de protegerem às suas famílias. Outros, porque
ficaram órfãos, e querem vingar a perda dos pais
e parentes assassinados por outros grupos rivais.
Não é incomum o alistamento voluntário como
forma de obtenção de comida e de uma suposta
proteção.
Há depoimentos e provas incontestáveis de
sequestro de crianças, de suas casas ou de suas
escolas, ou mesmo em plena rua, à luz do dia.
São enviados a campos de treinamento, onde são
submetidos a rigoroso treinamento nas mesmas
condições de soldados adultos. São ameaçados e
punidos em caso de tentativa de deserção. Muitas
vezes permanecem nas milícias para proteger
suas famílias contra retaliações.
Ao lado do treinamento militar rigoroso,
as meninas são destinadas a prestar todo tipo
de serviços domésticos, além de servirem de
“esposas” aos comandantes do campo militar.
A escravidão sexual de meninas menores de
quinze anos é a lamentável prática comum de
quase todos os grupos armados.
As crianças acabam envolvidas, à força ou
voluntariamente, em conflitos internos que, em
suas manifestações externas, parecem adequar-se
ao conceito de “conflitos inter-étnicos” – embora,
como mencionado anteriormente, não o sejam
na maior parte das vezes. Contudo, a aceitação
da existência de uma disputa étnica é fator
fundamental de motivação para o recrutamento
forçado ou o alistamento voluntário de crianças,
uma vez que se lhes é cobrada a lealdade e a
defesa de suas tribos, aldeias, etnias.
Por fim, afirma-se haver uma relação direta
entre o tráfico cada vez mais intenso de armas
leves, cujo manejo por crianças é mais fácil,
fazendo com que a participação de crianças
em conflitos armados passasse a ser de efetiva
participação em combate, e não mais como
anteriormente, quando eram utilizados quase
sempre como mensageiros, espias, carregadores
de apetrechos etc..
Não seria possível, no espaço destas poucas
páginas, levar a cabo uma análise completa de
todas as consequências desastrosas dos conflitos armados nas crianças. Portanto, vamos nos
referir, ainda que brevemente, ao melhor e mais
completo estudo já apresentado sobre o tema,
que é o relatório do grupo de experts nomeados
pela Assembléia Geral das Nações unidas4, entitulado « As repercussões dos conflitos armados
em crianças »5. As conclusões desse relatório
pioneiro podem ser também encontradas na obra
publicada em 2001 pela relatora Graça Machel6.
A partir das conclusões do referido relatório, começamos por compartilhar a idéia segundo
a qual os conflitos armados da atualidade são
muito mais letais para as crianças, uma vez
que pouca ou nenhuma diferença se faz entre
combatentes e não combatentes, ou entre combatentes e civis que não estejam tomando parte
nas hostilidades, estes últimos protegidos pelas
Convenções de Genebra e seus dois Protocolos
Adicionais. Segundo a relatora, nos anos 90
mais de dois milhões de crianças foram mortas
em consequência de conflitos armados, muitas
vezes deliberadamente feridos ou assassinados.
Apurou-se ser três vezes maior o número de
crianças permanentemente incapacitadas. Cresceu o número de crianças vítimas de desnutrição
e de enfermidades. Por fim, o número de crianças
vítimas de todos os tipos de violência sexual
atingiu cifras assustadoras.
à época do relatório, calculou-se em cerca
de vinte milhões o número de crianças sem teto,
vivendo como refugiados ou em campos de
pessoas internamente deslocadas.7 A vitimização
de meninos e meninas nos conflitos armados,
além das consequências diretamente ligadas às
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 219-225, fevereiro/2010
221
STEINER, S. H. F.
hostilidades, envolve também a fome, as doenças, os abusos sexuais, a perda de pais e mães, o
abandono, o deslocamento forçado, enfim, danos
físicos e psicológicos de toda natureza.8
Os informes apresentados anualmente às
Nações unidas sobre crianças afetadas por conflitos armados definem, como exemplo de graves
abusos cometidos contra meninos e meninas, o
assassinato, a mutilação, o recrutamento e utilização de crianças- soldado em combates, os
ataques contra escolas e hospitais, a denegação
de acesso à ajuda humanitária, o sequestro e o
estupro ou outras formas de violência sexual.
Igualmente se dá ênfase à atenção especial
necessária para atender crianças deslocadas
para campos de refugiados como consequência
dos conflitos, já que nesses campos acabam por
enfrentar novas formas de perigo, inclusive de
recrutamento forçado, e de atentados à integridade física e mental, especialmente a separação
forçada de suas famílias, os abusos sexuais e a
sujeição ao tráfico de seres humanos.
Como dito anteriormente, após a apresentação do relatório Machel, o Conselho de
Segurança da ONU incluiu em sua agenda o
tema de crianças afetadas por conflitos armados,
através da Resolução S/1261/1999, assinalando
que a violência contra crianças em situações de
conflito armado constitui uma ameaça legítima à
paz e a segurança da humanidade. Desde então,
o Conselho de Segurança adotou mais seis Resoluções sobre esse tema.9 Criou-se igualmente
a partir desse marco, como já mencionado anteriormente, um sistema de informes periódicos
enviados ao Secretário Geral das Nações unidas,
e deste ao Conselho de Segurança.10
Em seu último informe, o Secretário Geral
refere ao Conselho de Segurança a situação sobre
utilização de crianças-soldado e outras violações
graves cometidas contra crianças em conflitos
armados relativas ao período entre setembro
de 2007 e dezembro de 2008, referentes aos
conflitos armados existentes no Afeganistão,
Burundi, República Centroafricana, Costa do
Marfim, Chad, República Democrática do Congo, Georgia, Haiti, Iraque, Libano, Mianmar,
Nepal, Somalia, Sudão, territórios ocupados
da Palestina e Israel, todos considerados como
222
situações de preocupação intensa e por tal motivo
presentes na agenda do Conselho de Segurança.
Nessas situações se constata a utilização mais
frequente de crianças como combatentes, e nas
quais se vêem presentes outras graves infrações
e abusos cometidos contra crianças.11
Vale lembrar que existe um extenso rol
de diplomas legais internacionais relativos aos
direitos das crianças em conflitos armados, a
exemplo, as Convenções de Genebra de 1949
e seus Protocolos Adicionais de 1977, a Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989 e
seu Protocolo Adicional sobre a utilização de
Crianças em Conflitos Armados, de 2000, e a
Convenção 182 da Organização Internacional
do Trabalho (OIT) sobre a Proibição e Ação
Imediata para a Eliminação das Piores Formas
de Trabalho Infantil, de 1999, entre outros.12
No último informe, a utilização de crianças por todos os grupos armados envolvidos
no conflito cresceu expressivamente, conforme
acima mencionado, constata-se que em algumas
regiões, como na República Democrática do
Congo, o alistamento e recrutamento de crianças
junto às forças armadas decresceu. No entanto,
com a proliferação de grupos armados atuantes
principalmente na região dos Kivus, a utilização
de crianças por todos os grupos envolvidos no
conflito cresceu expressivamente. Já na região
de Ituri, na qual os líderes dos principais grupos
rebeldes armados foram detidos e entregues ao
Tribunal Penal Internacional, não foram constatados novos casos de recrutamento de crianças.
Ainda assim, o informe de 2008 dava conta da
existência de pelo menos 3.500 crianças-soldado
em campos de batalha na República Democrática
do Congo. Do infome consta ainda que, desde
2004, mais de 31 mil crianças haviam sido desmobilizados e liberados, tanto das forças armadas
como de grupos rebeldes.
Já em 2006, havia referências, no informe
anual, sobre a existência de indícios de que a
utilização de crianças-soldado começava a “migrar” dentro de certas regiões.No último informe,
há relatos de crianças sendo sequestradas na
República Democrática do Congo pelo movimento rebelde LRA ( Lord’s Resistance Army),
originário de uganda13. Outros fenômenos preo-
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 219-225, fevereiro/2010
O TRIBuNAL PENAL INTERNACIONAL (TPI) E CRIANÇAS EM SITuAÇõES DE CONFLITOS ARMADOS
cupantes seriam a utilização de crianças-soldado
por grupos de mercenários e, mais recentemente,
a comprovada utilização de crianças em atos de
terrorismo. O último informe relata, a exemplo,
três casos de crianças menores de quinze anos
que foram utilizadas no Iraque para transporte
de explosivos e como suicidas, além de centenas
sendo recrutadas e treinadas para combate14. No
conflito entre Israel e Palestina, há relatos sobre
a utilização, por ambas as partes, de crianças
como escudos humanos.15
O primeiro caso trazido a julgamento pelo
Tribunal Penal Internacional trata exatamente do
crime de recrutamento e utilização de crianças no
conflito armado que se desenrola na República
Democrática do Congo.
A gravidade excepcional da situação pôde
ser verificada no informe preparado pela Missão Especial das Nações unidas para o Congo
(MONuC), apresentado pelo Secretário Geral ao
Conselho de Segurança em 2004.16 O caso trazido ao TPI envolve exatamente os fatos narrados
nesse informe especial.
Nos termos desse informe, milhares de
crianças, com idades entre 7 e 17 anos, foram
levados a lutar, voluntariamente ou à força, pelos grupos armados. A partir do final de 2001, o
conflito entrou em uma nova etapa de violência
com a intensificação de ataques com motivações
étnicas, sendo que distintas facções rebeldes
continuaram tirando proveito de antigos ressentimenos étnicos criados pela disputa e distribuição
de terras. Na região de Ituri, existem cerca de
18 etnias, mas os conflitos mais significativos
ocorreram entre a população Hema e a população Lendu, como herança de antigas rivalidades
fomentadas pelos colonizadores entre esses
grupos étnicos.
Segundo o informe, todos os grupos armados rebeldes cometeram, de maneira contínua,
graves violações de direitos humanos, incluindose aí crimes de guerra e crimes contra a humanidade. Ainda, que todos os grupos armados
recrutaram e treinaram crianças para utilizá-las
como combatentes. Segundo a MONuC, as
condições de treinamento eram extremamente
difíceis para as crianças em termos de raciona-
mento de comida, de exercícios físicos levados
até à fadiga, e de castigos físicos que incluíam
tortura e execuções. De acordo com estimativas, cerca de 40% das principais milícias eram
compostas, à época, por crianças com menos
de 18 anos de idade17. Seguindo a lógica da sobrevivência, essas crianças seguiram os grupos
representativos de suas etnias, e participaram
ativamente de ataques, assassinatos, pilhagens,
abusos sexuais etc.
Na fase preliminar da ação penal18 movida
pelo promotor do TPI contra Thomas Lubanga
Dyilo19foram apresentados à câmara os relatos
de cinco meninos e meninas cujas trajetórias de
vida ilustram o que foi destacado pelo informe
acima mencionado.
O menino número 1, de etnia hema, foi
retirado à força de sua casa quando tinha 12 anos,
e levado a um campo de treinamento no qual sua
primeira tarefa foi a de construir uma cabana para
abrigar-se. O menino descreve seu treinamento
dizendo que era acordado às 4 horas da manhã,
corria por 4 horas, treinava o manejo e limpeza
de armas e a disparar. A comida era escassa, e
somente a recebia uma vez ao dia. As crianças
eram também orbigadas a cantar canções que
incitavam ao ódio étnico. O menino participou
de vários ataques, e foi ferido.
O menino número 2, também de etnia
hema, foi retirado à força de sua casa quando
havia completado 12 anos de idade. Sua história
não é distinta da anterior. Em seu testemunho,
acrescentou que o comandante de um dos campos de treinamento por onde passou tinha duas
meninas como “esposas”, da mesma idade que
ele. Uma das meninas tinha que fazer os serviços
domésticos, e a outra era abusada sexualmente.
O menino também participou de vários ataques,
e por sua ‘bravura’ acabou sendo escolhido como
escolta de um dos comandantes.
A menina número 3, de etnia hema, foi
recrutada à força quando tinha 14 anos, diante de
ameaças de morte à sua mãe. Recebeu o mesmo
treinamento destinado aos adultos, e depois foi
enviada aos campos de combate. Descreve que
a estratégia militar que era ensinada no treinamento consistia em matar a todos os inimigos, os
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 219-225, fevereiro/2010
223
STEINER, S. H. F.
lendus, que fossem encontrados pelo caminho,
sem importar se eram civis ou combatentes. Foi
tomada como “esposa” por um dos comandantes
do campo de treinamento, aceitando por temer
por sua vida e a de sua família. Faz ainda referência ao fato de ter presenciado outras meninas
que não somente eram obrigadas a relacionar-se
com seus “maridos”, como também tinham que
cozinhar para todos os outros comandantes.
A menina número 4, recrutada sob as
mesmas condições, acrescenta que durante seu
treinamento sofreu tentativa de estupro por parte
de um comandante de menor posto. Participou de
ataques até que foi ferida. Passou então a fazer
escolta de comandantes.
Por fim, a menina número 5 diz que foi
sequestrada junto com outras crianças no meio da
rua. Tinha 13 anos de idade e todos foram levados imediatamente para um campo de treinamento. Foi também destinada a servir como escolta
de um dos comandantes, e afirma que tal escolha
foi para ela uma ‘honra”, já que assim receberia
alguns trocados para poder comprar sabão para
se lavar. Afirma também que essa forma de servir
lhe trazia proteção contra qualquer tentativa de
abuso sexual por parte de outros soldados.
Esses e outros testemunhos, ao lado dos
informes das Nações unidas e de organizações
não governamentais envolvidas no trabalho
de desmobilização de crianças-soldado foram
considerados como provas suficientes para que
o líder militar Thomas Lubanga Dyilo fosse
levado a julgamento.
Esse é um breve relato do procedimento
levado a cabo no primeiro caso em julgamento
perante o Tribunal Penal Internacional. O caso
apresenta um quadro emblemático da situação
que ocorre atualmente em dezenas de países.
Apesar de serem uma dezena os países objeto de
‘preocupação especial’ pelo Conselho de Segurança, há informes confiáveis sobre a existência
de crianças diretamente envolvidas em situações
de conflito armado em pelo menos 86 países, aí
incluindo-se recrutamento forçado por grupos
armados, recrutamento ou alistamento pelas
forças armadas governamentais, e recrutamento
por milícias locais20.
224
São considerados como conquistas fundamentais da comunidade internacional os
primeiros passos dados no sentido de responsabilizar pessoalmente aqueles que recrutam e
utilizam crianças como soldados. Nesse sentido,
a exemplo, os procedimentos diante do Tribunal
Penal Internacional, a condenação, em 2007, pela
Corte Especial de Serra Leoa de quatro pessoas
envolvidas em recrutamento forçado de crianças
durante a guerra civil, a criação da Comissões
de Verdade naquele país, no Timor Leste e mais
recentemente na Libéria, todas elas investigando
igualmente o recrutamento e utilização de crianças em conflitos armados21.
Confirma-se assim, a meu ver, a idéia de
que o ciclo de impunidade, que levou o mundo
do pós guerra à situação descrita por Chérif
Bassiouni na introdução deste relato, começa
a ser desafiado, ao menos no que diz respeito à
proteção das crianças desta e das futuras gerações
em situações de conflito armado. Estão colocados à disposição da comunidade internacional o
necessário arcabouço legal, e instituições legais
internacionais, regionais e locais de responsabilização individual. Resta a pressão da comunidade internacional para que tais instrumentos e
instituições sejam efetivamente utilizados para
acabar com essa forma dramática de vitimização
de crianças.
notas
2
O Estatuto de Roma entrou em vigor em 1 de julho de
2002. Essa data marca o início da jurisdição temporal do
TPI. O Estatuto de Roma é um tratado, e conta atualmente
110 Estados Partes.
3
Bassiouni, Chérif M., Nota Explicativa sobre el Estatuto
de la Corte Penal Internacional, in Revue Internationale
de Droit Penal ( Extracto). Toulouse : Érès, 1er et 2ème
trimestre, p.1 ( tradução livre)
4
Resolução A/48/157, de 1993, busca em www.un.org
5
A/51/306 e Add. 1, de 6.9.96. Ver também : A/55/749, de
26.1.2001 ; A/61/529-S/2006/826. O relatório, conhecido
como Relatório Machel ( pois que coordenado por Graça
Machel), gerou o estabelecimento, pela Assembléia Geral,
de uma função permanente de Representante Especial do
Secretário Geral para a questão de Crianças e Conflitos
Armados ( A/RES/51/77, 20.2.1997). A partir daí, informes
periódicos são apresentados à Assembléia Geral (Terceiro
Comitê sobre Direitos da Criança), ao Conselho de Segu-
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 219-225, fevereiro/2010
O TRIBuNAL PENAL INTERNACIONAL (TPI) E CRIANÇAS EM SITuAÇõES DE CONFLITOS ARMADOS
rança e ao Conselho de Direitos Humanos. Ver : www.
un.org/children/conflict
6
Machel, Graça, The Impact of War on Children. London:
Hurst &Company, 2001
7
Opus cit., p.1
8
Ibis,ibidem. Ver também : David Nosworthy (ed), Seen,
but not heard: Placing Children and Youth on the Security
Governance Agenda. Graça Machel, Foreword. Geneva
Centre for Democratic Control of Armed Forces (DCAF),
2009, p. vii
9
S/1314(2000); S/1379(2001),S/1460(2003),S/1539(2004),
S/1612(2005) e S/1882(2009);
10
Ver, a exemplo: A/61/275(2006),A/62/228(2007)
,A/63/227/2008; A/64/254(2009); Ver ainda: S/2007/757
,S/2008/532,S/2009/158;
11
A/63/785-S/2009/158
12
Sugere-se a consulta igualmente aos Princípios de Paris (
The Principles and Guidelines on Children Associated with
Armed Forces or Armed groups), de 2007, assim como
ao Machel 10 Year Review, A/62/228, em www.un.org/
children/conflict/english/keydocuments
13
A/63/785-S/2009/158, para.45
14
Idem, paras.60 e 61
15
Idem, paras.87, 88 e 92
16
UN, Special Report on the Events in Ituri, January
2002-December 2003. S/2004/573
17
Vale aqui lembrar que o Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança, relativo à participação de
crianças em conflitos armados, considera como “criança”o
menor de 18 anos, e proíbe expressamente não somente a
utilização de crianças em conflitos armados, mas também
seu recrutamento.O Protocolo já foi ratificado por 120
países. Igualmente, a Convenção 182 da Organização
Internacional do Trabalho estabelece que os Estados
devem abster-se de recrutar e utilizar menores de 18 anos
em conflitos armados, e que atos de recrutamento e utilização de crianças em conflitos armados são equiparados
às piores formas de trabalho infantil. O Estatuto de Roma,
entretanto – e inexplicavelmente, a nosso ver – fixou a idade de 15 anos como limite para recrutamento e utilização
de crianças-soldado ( art. 8(2)(b)(xxvi) e art. 8(2)(c)(vii),
constituindo, assim, a nosso ver, um retrocesso.
18
De acordo com as Regras de Procedimento e de Prova,
um caso tem início no TPI perante a Câmara de questões
Preliminares com a expedição de um mandado de prisão,
ou uma ordem de comparecimento, contra um suspeito.
Após uma série de atos processuais, quando as provas
incriminatórias, exculpatórias ou dirimentes são comunicadas pela Promotoria à Defesa, e dando-se à Defesa prazo
razoável para sua preparação, realiza-se a audiência de
confirmação da acusação, na qual a Câmara deverá decidir
se o caso merece ser levado a julgamento pela Câmara
de Julgamento.
19
Ver: www.icc-cpi.int – situations and cases – case The Prosecutor v. Thomas Lubanga Dyilo – ICC-01/4-01/06, agora
em fase de julgamento perante a Câmara de Julgamento I
( Trial Chamber I ). As sessões de julgamento podem ser
acompanhadas peloao vivo site do TPI – www.icc-cpi.
int – proceedings- courtroom I, em inglês ou francês.
20
Child Soldiers Global Report 2008, Coalition to Stop the
use of Child Soldiers, p. 12 Ver: www.child-soldiers.org
21
Idem, p.12
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 219-225, fevereiro/2010
225
226
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, fevereiro/2010
A PROTEÇÃO PREVIDENCIáRIA DOS SERVIDORES PúBLICOS APóS AS REFORMAS CONSTITuCIONAIS
Artigo
A ProtEção PrEviDEnCiáriA DoS
SErviDorES PúBLiCoS APóS AS rEformAS
ConStituCionAiS1
Zélia Luiza Pierdoná 2
rESumo: Com as reformas constitucionais
implementadas pelas EC nº 20/98, 41/03 e 47/05,
a proteção previdenciária dos servidores públicos
sofreu profundas alterações. A aposentadoria
deixou de ser integral, para a ser calculada com
base na média das remunerações. Os seus reajustes passaram a ser iguais aqueles concedidos
ao Regime Geral da Previdência Social e não
mais com base na mudança da remuneração dos
servidores ativos. Além disso, foi introduzida
uma idade mínima para fins de aposentadoria por
tempo serviço. A pensão, acima de determinado
valor, não é mais integral. As referidas emendas
instituíram regras de transição.
Palavras-chaves: Previdência social. Servidores
públicos. Reformas constitucionais. Regras de
transição
ABStrACt: With the constitutional reforms
implemented by the EC nº 20/98, 41/03 and
47/05, the protection of social security to public
servants has gone through substation changes.
Retirement shall no longer be a full payout calculated based of the average of the remunerations.
His adjustments have to be equal to those granted
to the general social security and no longer based on the change of the remuneration of public
servants. Furthermore, it introduced a minimum
age for service time retirement. Pensions above
of determined value are not full anymore. These
amendments have instituted transistion rules.
Keywords: Social security. Public servants.
Constitutional reforms. Transition rules.
2
Procuradora da República em São Paulo; Mestre e Doutora pela PuC/SP; Professora de Direito Previdenciário da Graduação e da pós-graduação
da universidade Presbiteriana Mackenzie em São Paulo; autora do livro “Contribuições para a seguridade social”, LTr, 2003, e de diversos artigos
em revistas especializadas.
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 227-236, fevereiro/2010
227
PIERDONá, Z. L.
Os direitos sociais estão elencados no
Capítulo II, do Título II da Constituição Federal, o qual versa sobre os direitos e garantias
fundamentais. Dentre os direitos fundamentais,
o nosso ordenamento constitucional inclui os
direitos sociais.
No art. 6º da CF estão arrolados referidos
direitos, nos quais se incluem a saúde, a previdência e a assistência, que juntas formam o
que a Constituição denomina seguridade social.
No entanto, cada uma das subáreas integrantes
da seguridade apresenta preceitos específicos,
o que nos leva a diferenciar o regime jurídico
aplicável a elas.
O art. 196 dispõe que a “saúde é direito
de todos e dever do Estado”; por sua vez, o art.
203 estabelece que “a assistência social será
prestada a quem dela necessitar, independente de
contribuição à seguridade social”. Assim, tanto
os direitos relativos à saúde como os vinculados
à assistência independem de contraprestação
direta dos beneficiários para terem acesso as
suas prestações.
Já no que se refere à previdência social, as
disposições do art. 201, bem como do art. 40,
ambos da Constituição, exigem contribuição
dos segurados para que eles e seus dependentes
façam jus às prestações previdenciárias.
Definindo previdência social, assim nos
manifestamos3:
direito fundamental social assegurado a
todos os trabalhadores e seus dependentes,
que garante recursos nas situações em que
não poderão ser obtidos pelos próprios
trabalhadores, em virtude de incapacidade
laboral. É, no entanto, direito fundamental
que depende do cumprimento de um dever
fundamental correlato: necessidade de
contribuição do segurado (...).
Apresenta proteção obrigatória e facultativa. Aquela abrange todos os trabalhadores
que estarão vinculados ao regime geral
ou aos regimes próprios. O regime geral
é abrangente e residual e tem por finalidade proteger todos os trabalhadores,
excetuando apenas aqueles vinculados aos
228
regimes próprios, os quais são instituídos
pelos respectivos entes federativos para
dar proteção previdenciária aos seus servidores titulares de cargos efetivos. Assim,
a proteção obrigatória se dá pelo regime
geral e pelos regimes próprios dos entes
federativos, sendo que os citados regimes
excluem-se mutuamente. Por meio dos
dois regimes o Estado viabiliza a todos o
acesso à previdência e, com isso, o trabalhador estará protegido das contingências
geradoras de necessidades, uma vez que
será garantido recurso quando o trabalhador, em virtude de sua incapacidade
laboral, não os obtém com o fruto de seu
trabalho.
A proteção previdenciária obrigatória
apresenta limites de proteção, os quais, ainda,
são diversos no regime geral e nos regimes próprios: o limite aplicável ao regime geral é de dez
salários-de-contribuição4; e, o limite do regime
dos servidores públicos está previsto no art. 40,
§ 11, da Constituição, o qual determina que aos
proventos de inatividade deverá ser aplicado o
limite fixado no art. 37, xI (teto remuneratório
dos servidores públicos). Dessa forma, ainda há
limites diferenciados para os dois regimes obrigatórios. No entanto, a Constituição preceitua
que os entes federativos poderão adotar o mesmo
limite aplicado ao regime geral, devendo, para
isso, criar previdência complementar aos seus
servidores, nos termos dos §§ 14 a 16 do art. 40.
Além da proteção previdenciária obrigatória acima referida, a CF prevê proteção
complementar, prevista no art. 202. O regime
de previdência complementar, de forma diversa
dos regimes obrigatórios, é facultativo e tem
como objetivo garantir a manutenção do mesmo
padrão de vida do trabalhador, complementando
a aposentadoria dos regimes obrigatórios. Citado
regime é estruturado pelas Leis Complementares
108 e 109, de 2001.
Assim, feitas as considerações gerais em
relação à previdência, passaremos a abordar o
regime previdenciário dos servidores públicos
previsto, conforme já referido, no art. 40 da CF,
o qual foi profundamente alterado pelas ECs nº
20/98; 41/03 e 47/05.
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 227-236, fevereiro/2010
A PROTEÇÃO PREVIDENCIáRIA DOS SERVIDORES PúBLICOS APóS AS REFORMAS CONSTITuCIONAIS
O regime próprio de previdência abrange
os servidores públicos titulares de cargos efetivos, excluindo, nos termos do § 13 do art. 40, os
servidores ocupantes, exclusivamente, de cargo
em comissão, bem como os ocupantes de cargo
temporário ou de emprego público, aos quais
se aplica o regime geral de previdência social.
As normas gerais sobre os regimes próprios
estão preceituadas no art. 40 da Constituição e
na Lei 9.717/98. Além disso, conforme dispõe o
§ 12 do art. 40, o regime de previdência dos servidores públicos deve observar, no que couber,
os requisitos e critérios fixados para o regime
geral de previdência social, o qual é considerado
regime básico.
O § 20 do art. 40 da CF veda a existência
de mais de um regime próprio para os servidores
titulares de cargos efetivos, bem como de mais
de uma unidade gestora do respectivo regime em
cada ente estatal.
As ECs nº 20/98 e 41/03 introduziram profundas mudanças na previdência dos servidores
públicos. A EC nº 47/05 amenizou as mudanças
da EC nº 41/03.
A EC nº 20/98 impôs a contributividade
e a observância de critérios que preservem o
equilíbrio financeiro e atuarial. Além disso,
proibiu a contagem de tempo fictício; introduziu
um limite mínimo de idade para a aposentadoria
por tempo de serviço/contribuição; e determinou
a permanência mínima de 10 anos de serviço
público e 5 anos de cargo para as aposentadorias
por tempo de serviço/contribuição e por idade.
Também vedou a concessão do auxílio-reclusão
aos dependentes dos servidores que recebiam,
antes da prisão, proventos superiores a determinado limite5.
A EC nº 41/03, por sua vez, terminou com
a integralidade (última remuneração como base
de cálculo das aposentadorias e pensões, tendo
mantido apenas nas regras de transição) e com
a paridade (reajuste dos benefícios de acordo
com o reajuste da remuneração dos servidores
em atividade); extinguiu definitivamente a
aposentadoria proporcional6, ao revogar o art.
8º da EC nº 20/98; permitiu a cobrança de contribuição dos aposentados e pensionistas, para
os benefícios acima de determinado valor7; e
criou um redutor de 30% para as pensões, nos
valores que superarem o limite do regime geral
de previdência social.
A EC nº 41/03 tinha garantido o reajuste
paritário (mesmo reajuste concedido aos servidores em atividade) apenas aos servidores que
já estavam aposentados quando da publicação
da referida emenda (31-12-03) e àqueles que
já tinham direito adquirido à aposentadoria (tinham preenchidos todos os requisitos para sua
concessão).
A EC nº 47/05 garantiu a paridade para a
aposentadoria por tempo de serviço/contribuição a todos os servidores que ingressaram no
serviço público antes da publicação da EC nº
41/03 (31-12-03). Além disso, criou uma regra de
transição para os servidores que ingressaram no
serviço público antes da EC nº 20/98 (16-12-98),
permitindo que se aposentem antes de atingir a
idade mínima.
Assim, feitas as considerações gerais sobre
as ECs nº 20/98, 41/03 e 47/05, passaremos, a
seguir, a apresentar os preceitos constitucionais
relacionados aos benefícios após as três emendas
referidas.
Em relação às aposentadorias, a Constituição prevê cinco tipos: por invalidez, compulsória, por idade, por tempo de serviço/contribuição
(com inclusão de idade mínima) e especial.
Aposentadoria por tempo de
serviço/contribuição:
Os servidores que preencherem os requisitos para a aposentadoria e optarem por
permanecer em atividade farão jus a um abono
de permanência, equivalente ao valor da contribuição previdenciária. O mencionado abono será
concedido tanto aos servidores que já tinham
direito adquirido à aposentadoria, quando da
publicação da EC nº 41/03 (§1º do art. 3° da Ec nº
41/03), como aos que preencherem os requisitos
posteriormente (§5º do art. 2º da EC nº 41/03 e
§ 19 do art. 40 da Constituição).
Conforme já referimos, com a publicação
da EC nº 41/03, foi definitivamente extinta a
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 227-236, fevereiro/2010
229
PIERDONá, Z. L.
aposentadoria proporcional do servidor público.
Assim, apenas aqueles que na data da publicação da referida emenda (31-12-2003) tinham
preenchidos todos os requisitos previstos no
art. 8º da EC nº 20/98 têm direito a aposentar-se
proporcionalmente.
os servidores que ingressaram8 no
serviço público até a promulgação
da EC nº 20/98 (16-12-98) têm três
opções para a aposentadoria por
tempo de serviço/contribuição:
1ª opção - Poderão aposentar-se quando,
cumulativamente, preencherem os seguintes
requisitos:
1) 53 anos de idade, se homem, e 48 anos, se
mulher;
2) 5 anos de exercício no cargo em que se der a
aposentadoria;
3) contar tempo de contribuição igual, no mínimo, à soma de:
a) 35 anos, se homem, e 30, se mulher; e
b) um período adicional de contribuição
equivalente a 20% do tempo que, na data
de publicação da EC nº 20/98, faltaria para
atingir o limite de tempo constante acima.
O servidor que cumprir as mencionadas
exigências terá os seus proventos de inatividade
reduzidos para cada ano antecipado em relação
aos limites de idade (60 anos, se homem e 55, se
mulher) na proporção de 3,5%, para aquele que
completar as exigências para aposentadoria até
31 de dezembro de 2005 e requerer o benefício
até a mencionada data; e, de 5%, para aquele
que completar as exigências a partir de 1º de
janeiro de 2006.
Importante ressaltar que os servidores que
optarem pela aposentadoria de acordo com essa
opção terão seu benefício calculado com base na
média das suas contribuições nos dois regimes
(próprio dos servidores e regime geral) e os
reajustes serão de acordo com critérios fixados
em lei, ou seja, tanto a apuração do valor da
aposentadoria como de seu reajuste seguirá a sis230
temática atualmente adotada para os benefícios
concedidos pelo regime geral (INSS). O cálculo
considerará as remunerações a partir de jul/94
ou da data em que houver remunerações quando
posterior àquela data (a MP 167/04, convertida
na Lei nº 10.887/04, determina que se utiliza 80%
dos salários-de-contribuições, retirando-se, para
o cálculo da média, os 20% menores).
O caput do art. 86 da Orientação Normativa
nº 02, de 31-03-2009 (publicada no DOu de
02-04-2009) estabelece que o servidor fará jus
ao abono de permanência quando preencher os
requisitos acima elencados. O seu § 2º preceitua
que o recebimento do abono, na forma desta
opção, não constitui impedimento à concessão
do benefício de acordo com outra regra vigente,
inclusive as previstas nos arts. 68 e 69 (2ª e 3ª
opções abaixo comentadas) desde que cumpridos
os requisitos previstos para essas hipóteses.
2ª opção - Poderão optar pela seguinte
situação, devendo atender cumulativamente, as
seguintes condições9:
1) 60 anos de idade, se homem, e 55, se mulher;
2) 35 anos de contribuição, se homem, e 30, se
mulher;
3) 20 anos de efetivo exercício no serviço público; e
4) 10 anos de carreira e 5 anos no cargo10.
Com a EC nº 41/03, os proventos da aposentadoria concedida na forma acima mencionada serão integrais e sua revisão será na mesma
proporção e na mesma data em que se modificar
a remuneração dos servidores em atividade, nos
termos da lei (paridade mitigada). A esses aposentados a EC nº 41/03 não estendia os benefícios e vantagens posteriormente concedidas aos
servidores em atividade, como fazia para os que
eram aposentados e pensionistas e para aqueles
que já haviam preenchido todos os requisitos em
31-12-2003. A EC nº 47/05 estendeu a esses servidores os benefícios e vantagens mencionados.
3ª opção - Poderão ainda optar pela seguinte situação:
A EC nº 47/05 amenizou a ausência de
regras de transição, permitindo que os servidores
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 227-236, fevereiro/2010
A PROTEÇÃO PREVIDENCIáRIA DOS SERVIDORES PúBLICOS APóS AS REFORMAS CONSTITuCIONAIS
públicos que ingressaram no serviço público
até a publicação da EC nº 20/98 (16-12-98),
aposentem-se com proventos integrais, desde
que preencham, cumulativamente, as seguintes
condições:
1) 35 anos de contribuição, se homem, e 30, se
mulher;
2) 25 anos de serviço público, 15 anos de carreira
e 5 no cargo em que se der a aposentadoria;
3) idade mínima resultante da redução, a qual
considera o mínimo de idade de 60 anos, se
homem, e 55, se mulher, e o tempo de contribuição do servidor. Reduz-se um ano de idade
para cada ano de contribuição que exceder a
35 de contribuição, se homem, e 30, se mulher.
A regra acima é aplicada apenas aos servidores que ingressaram no serviço público até
a data da publicação da EC nº 20/98, ou seja,
16-12-98, não sendo aplicada aos servidores
que ingressaram no serviço público de 17-12-98
a 31-12-98.
Entendemos correta a aplicação da referida
regra apenas aos que ingressaram no serviço público até a EC nº 20/98, uma vez que esta emenda
já havia fixado a idade mínima de 60 anos para
o servidor e 55 para a servidora. Assim, não há
que se falar de regra de transição para redução
de idade.
Servidores que ingressaram no
serviço público até a promulgação
da EC nº 41/03 (31-12-2003):
Para eles obterem a aposentadoria deverão cumulativamente atender as seguintes
condições:
1) 60 anos de idade, se homem, e 55, se mulher;
2) 35 anos de contribuição, se homem, e 30, se
mulher;
3) 20 anos de efetivo exercício no serviço público; e
4) 10 anos de carreira e 5 anos no cargo.
Com a EC nº 41/03, os proventos da aposentadoria seriam integrais e revistos na mesma
proporção e na mesma data em que se modificasse a remuneração dos servidores em atividade,
na forma da lei. A EC nº 41/03 não lhes estendia
os benefícios e vantagens posteriormente concedidas aos servidores em atividade, como o fazia
para os que eram aposentados e pensionistas e
para aqueles que já haviam preenchido todos os
requisitos em 31-12-2003. A lei é que determinaria se as vantagens seriam ou não estendidas.
Assim, a EC nº 41/03 instituiu uma paridade
mitigada, a qual foi modificada pela EC nº 47/05.
A EC nº 47/05 prevê a extensão dos benefícios e vantagens mencionados, como a EC
nº 41/2003 fez para quem já era aposentado.
Dessa forma, em termos de reajuste, com a EC
nº 47/05, tem-se a garantia de que os proventos
serão iguais aos vencimentos dos servidores em
atividade. Assim, podemos afirmar que, com a
última emenda, temos a paridade integral para
todos os servidores que ingressaram no serviço
público até 31-12-2003, quer seja antes da EC
nº 20/98 ou entre ela e a EC nº 41/03.
De maneira diversa dos servidores que
ingressaram no serviço público antes da EC nº
20/98 (os quais têm três opções de aposentadoria
por tempo de serviço/contribuição), os servidores
que ingressaram entre 17-12-98 e 31-12-2003
somente poderão aposentar-se atendendo os
requisitos acima (opção única). Aos que ingressaram depois dessa data, aplica-se a situação
descrita no parágrafo seguinte.
Servidores que ingressarem no
serviço público após a publicação
da EC nº 41/03:
Para eles aplica-se o art. 40, § 1º, III, “a”
da Constituição, com redação atual, o qual exige,
para a concessão da aposentadoria:
1) 10 anos no serviço público e 5 anos no cargo;
2) 60 anos de idade e 35 de contribuição, se homem, e 55 anos de idade e 30 de contribuição,
se mulher.
Os requisitos elencados no item dois acima
(idade e tempo de contribuição) serão reduzidos em 5 anos para o professor que comprove,
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 227-236, fevereiro/2010
231
PIERDONá, Z. L.
exclusivamente tempo de efetivo exercício das
funções de magistério na educação infantil e no
ensino fundamental e médio (§ 5º do art. 40 da
Constituição).
Os proventos de aposentadoria e as pensões
serão calculados de acordo com as remunerações
utilizadas como base para as contribuições do
servidor ao seu regime próprio e ao regime geral
(INSS), nos casos em que o servidor antes tenha
laborado na iniciativa privada. Após a concessão
do benefício, o reajuste atenderá a critérios fixados em lei, preservando em caráter permanente,
o seu valor real. Ressaltamos que o valor da aposentadoria é a média encontrada, a qual poderá
ser superior ao limite do regime geral. Teremos
a aplicação do mencionado limite apenas se e
quando for criada a previdência complementar.
Sobre os proventos da aposentadoria e da
pensão haverá incidência de contribuição quando
superarem o limite máximo estabelecido para os
benefícios do regime geral (INSS), com percentual igual ao estabelecido para os servidores em
atividade. Ressaltamos que a EC nº 47/05 dobrou
mencionado limite11 para fins de incidência de
contribuições quando o beneficiário for portador
de doença incapacitante.
Por fim, caso os entes federativos (união,
Estados, Distrito Federal e Municípios) instituam
regime de previdência complementar para os
seus respectivos servidores, poderão fixar, para
o valor da aposentadoria e pensão, o limite máximo estabelecido para os benefícios do regime
geral - INSS (atualmente R$ 3.416,54).
No entanto, destacamos que isso somente
ocorrerá com a instituição, pelos entes federativos, da previdência complementar. Enquanto
isso não ocorrer o servidor, mesmo aquele que
ingressar no serviço público após a EC nº 41/03
(31-12-2003), não está sujeito ao limite aplicável
aos segurados do regime geral – INSS. Ele contribuirá sobre a totalidade de sua remuneração,
sendo que na apuração do valor de sua aposentadoria serão considerados os salários de contribuição no regime próprio e no regime geral, caso
ele antes tenha trabalhado na iniciativa privada.
Portanto, serão consideradas as remunerações de
toda sua vida laboral e sua aposentadoria terá o
232
valor da média das mencionadas remunerações,
mesmo que seja superior ao limite do regime
geral. Os reajustes da aposentadoria serão efetuados com base em critérios estabelecidos em lei.
Aposentadorias por invalidez, por
idade e compulsória:
O art. 40, § 1º, da CF estabelece as regras
aplicáveis às aposentadorias no serviço público.
Além da aposentadoria por tempo de serviço/
contribuição, acima referida, o mencionado artigo constitucional trata das aposentadorias por
invalidez, por idade e compulsória.
No que tange à aposentadoria por invalidez, o texto constitucional estabelece que os
proventos serão proporcionais ao tempo, exceto
se decorrente de acidente em serviço, moléstia
profissional ou doença grave, contagiosa ou incurável. O fato gerador da citada aposentadoria é
a incapacidade total e insuscetível de reabilitação
para o exercício de atividade laboral, a qual deve
ser constatada por meio de perícia médica.
A base de cálculo será a média dos salários
de contribuição (tanto para os servidores que
ingressaram antes da emendas constitucionais
referidas como para aqueles que ingressaram
depois), sobre a qual é aplicada a alíquota de
100%, no caso de acidente em serviço, moléstia
profissional ou doença grave, contagiosa ou incurável e proporcional ao tempo, nos demais casos.
As aposentadorias compulsórias e por
idade sempre serão com proventos proporcionais
ao tempo de serviço. Ressaltamos que, desde a
redação originária da Constituição, os proventos
são proporcionais ao tempo de serviço.
Para a aposentadoria compulsória não há
requisito de tempo mínimo no serviço público ou
no cargo, a qual ocorre quando o (a) servidor (a)
atinge a idade de 70 anos (há PEC em andamento
para alterar a idade para 75 anos). Os proventos
são proporcionais ao tempo de serviço, no qual é
incluído, também, o tempo laborado na iniciativa
privada.
quanto à aposentadoria por idade, a CF
exige tempo mínimo de 10 anos de serviço públi-
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 227-236, fevereiro/2010
A PROTEÇÃO PREVIDENCIáRIA DOS SERVIDORES PúBLICOS APóS AS REFORMAS CONSTITuCIONAIS
co e 05 no cargo, bem como a idade mínima de
65 anos, se servidor e 60 anos, se servidora. Da
mesma forma que a aposentadoria compulsória,
os proventos são proporcionais ao tempo de serviço (de serviço público e de iniciativa provada).
Entretanto, a questão que se coloca não está
relacionada à proporcionalidade em relação ao
tempo de serviço/contribuição, mas em relação à
base de cálculo utilizada para efeitos de apuração
do valor do benefício, ou seja, à proporcionalidade relacionada ao tempo é aplicada a uma base
que pode ser a última remuneração ou a média
das remunerações.
As administrações públicas federal, estaduais, municipais e do Distrito Federal, em razão
de normas gerais infraconstitucionais editadas,
têm entendido que a base de cálculo será sempre apurada com base no § 3º do art. 40, o qual
preceitua que “para o cálculo dos proventos de
aposentadoria, por ocasião da sua concessão,
serão consideradas as remunerações utilizadas
como base para as contribuições do servidor aos
regimes de previdência de que tratam este artigo
e o art. 201, na forma da lei”.
Assim, a base sobre a qual é aplicada uma
alíquota (proporcional ao tempo de serviço/contribuição) sempre será a média das remunerações
e não a última remuneração recebida, mesmo
para aqueles servidores que ingressaram no
serviço público antes das ECs nº 20/98 e 41/03.
Ressaltamos que referida forma de apurar o benefício foi instituída pela EC nº 41/03.
O entendimento administrativo acima
referido baseia-se no fato de que as emendas
constitucionais ressalvaram apenas a aposentadoria por tempo de serviço/contribuição. Entretanto, entendemos que é necessário interpretar
sistematicamente a Constituição, aplicando-se a
nova base de cálculo apenas aos servidores que
ingressaram no serviço público após a EC nº 41,
de 31-12-03, sob pena de se violar o princípio da
segurança jurídica, o qual abrange o princípio da
proteção da confiança.12
A nova sistemática de cálculo deverá ser
aplicada a todos os tipos de aposentadorias, apenas aos servidores que ingressaram no serviço
público depois da EC nº 41/03. àqueles que
ingressaram antes da referida emenda constitucional, a base de cálculo a ser aplicada deverá ser
sempre a última remuneração, pois, do contrário,
estar-se-á privilegiando a aposentadoria por
tempo de serviço/contribuição, que é exceção
à regra em termos de benefício previdenciário,
em detrimento daquelas aposentadorias que
protegem a incapacidade real (invalidez) ou presumida (idade avançada). O equilíbrio financeiro
e atuarial determinado constitucionalmente será
atingido com a proporcionalidade relacionada
ao tempo (alíquota aplicada à base de cálculo).
Aposentadoria Especial:
A Constituição, no art. 40, § 4º, com redação dada pela EC nº 47/05, permite que lei
complementar adote critérios diferenciados
para a concessão de aposentadoria aos servidores portadores de deficiência, aos que exercem
atividades de risco, bem como àqueles cujas
atividades sujeitam-se a condições especiais
que prejudiquem a saúde ou a integridade física.
Na redação original do referido parágrafo,
havia a previsão apenas da adoção de critérios
diferenciados no caso de atividades exercidas
sob condições especiais que prejudicassem a
saúde ou a integridade física. Também havia
a exigência de lei complementar que definisse
referidas atividades.
Mencionada lei complementar ainda não
foi editada, o que tem levado muitos servidores
a buscar na Justiça13 regras para a adoção de
critérios diferenciados, por meio de mandado
de injunção, nos termos do art. 5º, LxxI, da
Constituição Federal.
Há os que defendam a aplicação analógica
das regras do regime geral de previdência social,
as quais estão fixadas nos artigos 57 e 58 da Lei
8.213/91. Na decisão do mandado de Injunção
nº 721 (transcrito na nota de rodapé), o STF
determinou a aplicação das regras do regime
geral. Ressaltamos que também para este regime
de previdência, atualmente, há a necessidade de
regulamentação por meio de lei complementar.
Entretanto, a EC nº 20/98 estabeleceu que até
a edição do citado instrumento normativo, de-
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 227-236, fevereiro/2010
233
PIERDONá, Z. L.
verão ser aplicados os mencionados artigos da
Lei 8.213/91.
Em razão da ausência da edição da lei
complementar acima referida, Estados, como por
exemplo o de Santa Catarina, já fixaram regras
para a aposentadoria especial. Entendemos que,
nos termos do §3º do art. 24 da CF, é possível
mencionada regulamentação. Quando for editada
norma geral pela união, nos termos do inciso xII
e §1º do art. 24 da CF, deverá ser aplicado o §4º,
do citado artigo.
Entendemos que a aposentadoria do professor é uma espécie de aposentadoria especial,
cujos requisitos foram fixados pela própria Constituição. Assim, o professor e a professora que
comprovem, exclusivamente, tempo de efetivo
exercício das funções de magistério na educação
infantil e no ensino fundamental e médio poderão
aposentar-se, desde que atendidos os seguintes
requisitos:
1) 10 anos no serviço público e 5 anos no cargo;
2) 55 anos de idade e 30 de contribuição, se professor, e 50 anos de idade e 25 de contribuição,
se professora.
Servidores aposentados e aqueles
que já eram pensionistas em
31-12-03:
A única mudança introduzida pela EC nº
41/03 para os servidores que já eram aposentados
ou pensionistas foi a instituição14 de contribuição
sobre seus proventos. Os valores a partir dos
quais há a incidência da contribuição hoje equivalem a R$ 3.038,99, ou seja, o limite do regime
geral de previdência social, conforme decisão do
STF, na ADIN 3099/DF, Rel. Min. Ellen Gracie.
Lembramos, conforme já mencionamos,
que a EC nº 47/05 dobrou mencionado limite15
para fins de incidência de contribuições sobre
os proventos de aposentadoria e pensão quando
o beneficiário for portador de doença incapacitante.
Pensão por morte:
234
O § 7º do art. 40 estabelece regras sobre a
pensão por morte, a qual será igual ao valor da
totalidade dos proventos do servidor falecido, até
o limite máximo estabelecido para os benefícios
do regime geral de previdência social (a EC nº
41/03 estabeleceu em R$ 2.400,00, atualmente
R$ 3.416,54), acrescido de 70% da parcela excedente a este limite, caso aposentado à data do
óbito; ou ao valor da totalidade da remuneração
do servidor no cargo efetivo em que se deu o
falecimento, até o limite máximo estabelecido
para os benefícios do regime geral, acrescido de
70% da parcela excedente a este limite, caso em
atividade na data do óbito. Sobre os valores da
pensão também incidem contribuições, no que
exceder ao limite acima referido.
Assim, considerando a nova sistemática de
cálculo, o preceito constitucional está criando
uma situação de extrema desigualdade entre os
pensionistas nos casos de o servidor ainda estar
em atividade ou aposentado, já que se estiver
em atividade será considerada sua remuneração
integral e se estiver aposentado será considerado
o valor da aposentadoria, a qual, pelas novas
regras, é a média dos salários-de contribuição
(remunerações no serviço público e sobre o valor
recolhido para o INSS).
A forma de reajuste das pensões é a mesma
que no regime geral (INSS), ou seja, pelos índices estabelecidos em lei, os quais devem garantir
a manutenção do valor real. Assim, não é mais
aplicado o mesmo reajuste dos servidores em
atividade, exceto na hipótese das pensões decorrentes das aposentadorias concedidas pela regra
de transição criada pela EC nº 47/03, prevista no
art. 3º (opção 3, acima comentada), aplicável aos
servidores que ingressaram no serviço público
até a EC nº 20/98.
Nesta hipótese, será adotado o critério de
paridade às pensões derivadas dos proventos de
servidores falecidos que tenham se aposentado
em conformidade com o mencionado artigo.
Dessa forma, se o servidor falecido se aposentar
com outras regras que não a de transição acima
mencionada, a pensão terá uma forma de atualização (correção com base na lei, preservando o
valor real); se a aposentadoria for deferida com
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 227-236, fevereiro/2010
A PROTEÇÃO PREVIDENCIáRIA DOS SERVIDORES PúBLICOS APóS AS REFORMAS CONSTITuCIONAIS
base nas citadas regras, o critério será outro (paridade com os servidores em atividade).
Previdência complementar para
os servidores públicos titulares de
cargos efetivos:
A Constituição, no art. 40, §§ 14 a 16
prevê que os entes federativos (União, Estados,
Distrito Federal e Municípios) podem adotar no
regime dos servidores públicos o mesmo limite
do valor dos benefícios adotado pelo regime
geral. Para tanto, devem instituir regime de previdência complementar para os seus respectivos
servidores titulares de cargo efetivo.
Nesse caso, a proteção obrigatória no serviço público será limitada nos valores do regime
geral (INSS). Assim, a manutenção do mesmo
padrão de vida do servidor será “garantida” pela
previdência complementar.
A instituição da previdência complementar
depende de lei de iniciativa do respectivo Poder
Executivo e deve observar, no que couber, as
disposições do art. 202 da CF. Serão entidades
fechadas de previdência complementar, com
planos de benefícios na modalidade de contribuição definida (define-se previamente o valor
das contribuições e não dos benefícios).
O limite referido acima será aplicado, obrigatoriamente, aos servidores que ingressarem
no serviço público após a data da publicação do
ato de instituição do correspondente regime de
previdência complementar. Aos que ingressarem
antes da mencionada data será dada opção para,
caso queiram, aderirem à previdência complementar. A lei instituidora deverá fixar data para
a citada adesão.
Ressaltamos que se e quando instituído o
regime de previdência complementar, os servidores estarão protegidos obrigatoriamente até o
limite do regime geral (atualmente R$ 3.416,54).
Acima do mencionado valor será dada a possibilidade de terem proteção complementar, cuja
adesão será facultativa.
A possibilidade de criação da previdência
complementar para os servidores públicos é uma
demonstração do caminho traçado pelo ordenamento jurídico atual: a criação de uma proteção
única a todos os trabalhadores, quer da iniciativa
privada, quer do setor público.
Considerações finais:
Apresentamos acima, de forma sintética, a
proteção previdenciária dirigida aos servidores
públicos titulares de cargos efetivos, após as
reformas previdenciárias implementadas pelas
EC nº 20/98, 41/03 e 47/05. Entendemos que era
necessário reformar o sistema anterior, uma vez
que representava, em alguns casos, verdadeiros
privilégios em relação à população em geral, a
qual financiava uma proteção em que não havia
qualquer exigência de tempo mínimo no serviço público, bem como não havia contribuição
para custear as aposentadorias (os servidores
pagavam contribuição para a pensão e saúde) etc.
Entretanto, observamos que as reformas
não foram acompanhadas por regras de transição
adequadas e proporcionais, quando, qualquer
mudança no ordenamento jurídico previdenciário
deve vir acompanhada das citadas regras. Assim,
algumas disposições das emendas referidas, bem
como interpretações administrativas (como por
exemplo a base de cálculo das aposentadoria por
idade, por invalidez e compulsória para os servidores que ingressaram no serviço público antes
da EC nº 41/03) devem ser afastadas pelo Poder
Judiciário, haja vista que violam princípios fundamentais do Estado instituído pela Constituição
de 1988, em especial o da segurança jurídica, o
qual inclui o princípio da proteção da confiança.
notas
3
Zélia Luiza PIERDONá, previdência social in Dimitri DIMOuLIS
(Coord.), Dicionário brasileiro de direito constitucional. São Paulo:
Saraiva, 2007, p. 296-297.
4
5
A partir de 01-01-2010 o limite corresponde a R$ 3.416,54.
Entendemos que o referido preceito não encontra fundamento de validade no ordenamento jurídico, já que veda o acesso ao benefício e,
com isso, viola o art. 60, §4º da Constituição, conforme sustentamos
no artigo “A proteção previdenciária dos dependentes dos trabalhadores presos: a inconstitucionalidade do limite instituído pela EC nº
20/98 ao auxílio-reclusão” in http://conpedi.org/manaus/arquivos/
anais/brasilia/13_187.pdf.
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 227-236, fevereiro/2010
235
PIERDONá, Z. L.
A aposentadoria proporcional, antes da EC nº 20/98 era devida aos 25
anos de contribuição, se servidora e 30 anos, se servidor. A referida
emenda garantiu a aposentadoria proporcional apenas aos servidores
que tivessem ingressado no serviço público até a sua publicação (1612-98), tendo estabelecido, em seu art. 8º, uma regra de transição,
a qual previa uma idade mínima e um período adicional de tempo.
Como a aposentadoria proporcional foi extinta definitivamente pela
EC nº 41/03, apenas aqueles servidores que na data da publicação da
mencionada emenda (31-12-2003) tinham completado o citado tempo,
mais o adicional (pedágio) a que se refere a letra “b” do inciso I do §
1º do art. 8º da EC nº 20/98 (40% do tempo que em 16-12-98 faltava
para 25 anos de contribuição, se mulher e 30 anos, se homem) e a
idade mínima mencionada no inciso I do art. 8º da EC nº 20/98 (53
anos de idade, se homem e 48, se mulher) têm direito à aposentadoria
proporcional, a qual poderá ser requerida a qualquer tempo. Sendolhes aplicada a legislação vigente quando da publicação da EC nº
41/2003, caso optem pela referida aposentadoria. Ou seja, o valor
de sua aposentadoria considerará o tempo de serviço existente no dia
31-12-2003, não sendo acrescido o tempo posterior.
7
A EC nº 41/03 estabeleceu que, para os servidores da união, a contribuição incidiria sobre a parcela que superasse 60% do limite máximo
estabelecido para os benefícios do regime geral de previdência social
(INSS), o qual, a emenda em discussão fixou em R$ 2.400,00, que
atualmente está em R$ 3.416,54. Já para os servidores dos Estados,
do Distrito Federal e dos Municípios a contribuição incidiria sobre
o que superasse 50% do limite retro referido. Entendemos que a
diferença entre os valores de contribuição dos servidores da União e
dos demais entes federativos não se justificava, uma vez que violava
o princípio da isonomia, previsto no art. 150, II, da Constituição
Federal. Melhor seria se tivesse sido considerado o limite aplicado
aos segurados filiados ao regime geral de previdência social (R$
3.416,54), haja vista a imunidade prevista no art. 195, II da CF. Em
nosso artigo “as questões tributárias da reforma da previdência dos
servidores públicos – EC nº 41/03” publicado no Repertório de Jurisprudência IOB – 1ª quinzena de junho de 2004, nº 11, defendemos
a constitucionalidade da contribuição dos aposentados e pensionistas
sobre os valores que excedam ao limite fixado pelo regime geral.
Essa diferença foi apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, tanto no
que se refere à diferença entre os valores fixados para os servidores
da união e dos demais entes federativos, como à diferença entre os
mencionados valores e o limite do regime geral de previdência social
citado, o qual é aplicado aos servidores que ainda estão em atividade
e aqueles que ingressaram no serviço público depois de 31-12-2003.
O STF (na ADIN 3099/DF, Rel. Min. Ellen Gracie) decidiu que a
contribuição é constitucional. Entretanto, a incidência é devida apenas
nos valores que superem o limite do regime geral de previdência
social (atualmente R$ 3.416,54).
8
A Orientação Normativa nº 02, de 31-03-2009 (Publicada no DOu
de 02-04-2009), da Secretária de Políticas de Previdência Social,
em seu art. 70 estabelece que, para fins de verificação do direito
de opção pelas regras de transição, será considerada a data da investidura mais remota dentre as ininterruptas no serviço público na
Administração Pública direta, autárquica e fundacional, em qualquer
dos entes federativos.
9
Aplica-se também aos servidores que ingressaram no serviço público
entre as EC nº 20/87 e 41/03, ou seja, entre 17-12-98 e 31-12-2003.
10
O Tribunal de Contas da união, no Acórdão 473/2005, entendeu que,
para garantir tratamento isonômico entre os servidores públicos e
membros do Ministério Público, o prazo referente ao cargo deve ser
entendido como carreira. Sustentamos isso em palestras proferidas
desde a edição da EC nº 20/98, tanto em relação ao Ministério Público,
quanto à Magistratura.
11
Incidirá apenas sobre as parcelas que superarem o dobro do limite do
regime geral. Considerando que atualmente o limite é de R$ 3.416,54,
a contribuição incidirá no que exceder a R$ 6.833,08.
12 J. J. Gomes CANOTILHO. Direito constitucional e teria da constituição, 3ª ed. Coimbra, Livraria Almedina, 1999, p. 250. “(...) O
princípio geral da segurança jurídica em sentido amplo (abrangendo,
pois, a idéia de proteção da confiança) pode formular-se do seguinte
modo: o indivíduo tem do direito poder confiar em que aos seus actos
ou às decisões incidentes sobre os seus direitos, posições ou relações
6
236
13
14
15
jurídicas alicerçadas em normas jurídicas vigentes e válidas se ligam
os efeitos jurídicos previstos e prescritos por essas mesmas normas”.
MANDADO DE INJuNÇÃO - DECISÃO - BALIZAS. Tratandose de processo subjetivo, a decisão possui eficácia considerada a
relação jurídica nele revelada. APOSENTADORIA - TRABALHO
EM CONDIÇõES ESPECIAIS - PREJuíZO à SAúDE DO SERVIDOR - INExISTÊNCIA DE LEI COMPLEMENTAR - ARTIGO
40, § 4º, DA CONSTITuIÇÃO FEDERAL. Inexistente a disciplina
específica da aposentadoria especial do servidor, impõe-se a adoção,
via pronunciamento judicial, daquela própria aos trabalhadores em
geral - artigo 57, § 1º, da Lei nº 8.213/91. (STF, Mandado de Injunção
nº 721, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 30/08/2007).
Desde a edição da EC nº 41/03 nos manifestamos favorável a instituição da contribuição sobre aposentadorias e pensões, conforme
artigo de nossa autoria, já referido acima, “as questões tributárias
da reforma da previdência dos servidores públicos – EC nº 41/03”
publicado no Repertório de Jurisprudência IOB – 1ª quinzena de
junho de 2004, nº 11.
Incidirá apenas sobre as parcelas que superarem o dobro do limite
do Regime Geral. Considerando que atualmente o limite é de R$
3.416,54, a contribuição incidirá no que exceder a R$ 6.833,08.
Bibliografia
Zélia Luiza PIERDONá, previdência social
in Dimitri DIMOuLIS (Coord.), Dicionário
brasileiro de direito constitucional. São Paulo:
Saraiva, 2007, p. 296-297.
J. J. Gomes CANOTILHO. Direito constitucional e teria da constituição, 3ª ed. Coimbra,
Livraria Almedina, 1999, p. 250.
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 6, p. 227-236, fevereiro/2010
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