Ariano Suassuna, o palhaço-professor
e sua Pedra do Reino
por
Anna Paula Soares Lemos
Departamento de Ciência da Literatura
Rio de Janeiro/ UFRJ
2007
Ariano Suassuna, o palhaço-professor
e sua Pedra do Reino.
por
Anna Paula Soares Lemos
Departamento de Ciência da Literatura
Dissertação de Mestrado em Literatura Comparada apresentada ao
Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura
da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ,
como parte dos requisitos necessários à obtenção
do título de Mestre em Ciência da Literatura
Orientador: Professor Doutor André Luiz de Lima Bueno
Rio de Janeiro/ UFRJ
2007
2
LEMOS, Anna Paula Soares. Ariano Suassuna, o palhaço-professor e sua Pedra do Reino. Rio de
Janeiro, UFRJ, Faculdade de Letras, 2006.132 fl. mimeo.
Dissertação de Mestrado em Literatura Comparada.
BANCA EXAMINADORA
______________________________________________
Professor Doutor André Luiz de Lima Bueno
Orientador
______________________________________________
Professor Doutor Frederico Augusto Liberalli de Góes
UFRJ – Depto. de Ciência da Literatura
______________________________________________
Professor Doutor Latuf Isaias Mucci
UFF – Instituto de Artes e Comunicação Social
SUPLENTES:
______________________________________________
Professor Doutor Luiz Edmundo Bouças Coutinho
UFRJ – Depto. de Ciência da Literatura
______________________________________________
Professor Doutor Nonato Gurgel
UFRJ – Depto. de Literatura Brasileira
Defendida a Dissertação:
Conceito:
Em 15 de março de 2007.
3
Este trabalho é dedicado ao meu avô José Maria Franco Soares.
Um sertanejo, “antes de tudo um forte”. Ele inventava e recontava histórias que sempre
começavam com “Diz que era uma vez...”. Um mentiroso lírico!
4
Agradecimentos:
A todos os que fizeram parte desta caminhada, o meu muito obrigado,
o meu sonho, o meu riso, a minha festa!
Ao meu orientador André Bueno,
por toda a paciência, pela amizade,
pela confiança e pelas inúmeras sessões de terapia.
Ao Coordenador do Depto. de Ciência da Literatura da UFRJ, Alberto Pucheu,
por reger a banda com toda a maestria e sempre acreditar
na celebração da “festa do pensamento”.
Aos meus pais, José Alberto e Henriqueta Lemos,
porque sem eles o meu espetáculo da vida jamais teria começado.
Ao amigo Nerval Mendes Gonçalves, que fez a revisão deste trabalho
e que nunca me abandona mesmo com todos os meus sumiços.
Todo carinho àqueles que colaboraram de forma direta e rica com a minha pesquisa.
São eles: Antonio Luiz Mendes, Antonio Sanseverino, Bete Rabetti, Cristina Câmara,
Fred Góes, Eleonora Ziller, Grupo de Pesquisa CNPq Formação do Brasil Moderno:
literatura, cultura e sociedade, Guga Monteiro, Iziane Mascarenhas,
José Almino de Alencar, Júlio Dalóes, Luis Alberto Nogueira Alves,
Nonato Gurgel e Vera Lins.
E a todos os que, mesmo não citados, sabem que passaram pelo picadeiro
e que fizeram parte deste espetáculo. A vocês o meu agradecimento
pelo trágico e pelo cômico que formam o circo da vida.
Aplausos, muitos aplausos antes que as cortinas se fechem e o sonho acabe!
5
“[...] Escrever é estar no extremo
De si mesmo, e quem está
Assim se exercendo nessa
Nudez, a mais nua que há,
Tem pudor de que outros vejam
O que deve haver de esgar,
De tiques, de gestos falhos,
De pouco espetacular
Na torta visão de uma alma
No pleno estertor de criar [...]”
João Cabral de Melo Neto
6
“[...] o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre
iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas estão sempre mudando.
Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou.”
Guimarães Rosa
7
“O homem, dizem, é um animal racional. Não sei por que não se disse que é um animal
afetivo ou sentimental. Talvez, o que o diferencie dos outros animais seja muito mais o
sentimento do que a razão. Vi mais vezes um gato raciocinar do que rir ou chorar. Talvez
chore ou ria por dentro, mas por dentro talvez também o caranguejo resolva equações
de segundo grau.”
Miguel de Unamuno
8
Resumo:
A presente dissertação de Mestrado trata do Romance da Pedra do Reino e o
príncipe do sangue do vai-e-volta do escritor paraibano Ariano Suassuna. O fio condutor
é o narrador Dom Pedro Dinis Ferreira Quaderna, que, do centro de uma narrativa meio
palco, meio picadeiro, na posição de um palhaço-poeta, lida com as diversas tensões de
pensamento que seu discurso provoca. Em última análise, a pesquisa aponta como, no
romance, o autor Ariano Suassuna faz a mediação entre a cultura popular e a erudita, o
arcaico e o moderno, o rural e o urbano, a cultura oral e a letrada, o Brasil Real e o Brasil
Oficial.
Abstract:
The present Master´s thesis intends to discuss the Romance da Pedra do Reino e o
príncipe do sangue do vai-e-volta by Ariano Suassuna, author from Paraíba, which is a
state in the northeast of Brazil.
The focus is on the narrator Dom Pedro Dinis Ferreira
Quaderna who tells his story from the center of a half-stage narrative - half circus ring,
enacting as a clown - poet, deals with the many thought provoking tensions which his
speech instigates. Hereafter, the research indicates how, in the romance, the author
Ariano Suassuna, makes the mediation between popular culture and the highbrow,
the ancient and the current, the rural and the urban, the oral culture and the lettered, the
real Brazil and the official Brazil.
9
SUMÁRIO:
O professor , REI e PROFETA...
1.
1.1
1.2
1.3
1.4
1.5
Pequeno cantar acadêmico a modo de introdução
O professor em tensões armoriais
O palhaço-professor...
...da cultura popular
O “emparedado” e a “antena parabólica”
O intelectual mediador gramsciano
12
15
17
22
25
28
2.
2.1
2.2
2.3
Regionalismo e cosmopolitismo: da utopia ideológica à modernidade capitalista
José de Alencar e Ariano Suassuna: o encontro de românticos
A “catequese às avessas”
Da Oralidade Popular à Oralidade “Transfigurada”
34
36
43
45
O POETA, O palhaço...
3.
3.1
3.2
3.3
3.4.
3.5.
Ariano Suassuna e suas dualidades
O popular e o erudito Quaderna
A morte Caetana e a religiosidade popular
O narrador e romancista-homenagem
O castelo poético – um aspecto da transfiguração
O Brasil Real versus o Brasil Oficial: Quaderna, Corregedor, Dona Margarida
50
54
57
62
66
69
4
4.1
A Pedra do Reino no debate cultural do país
D. Pedro Dinis Ferreira-Quaderna: letrado, trovador, cangaceiro, palhaço
77
82
5
5.1
5.2
5.3
O memorialista Quaderna: Rei do Quinto Naipe do Baralho
O romanceiro popular do Nordeste
A literatura de cordel: um parêntesis histórico
O jogo da onça
88
92
93
96
6.
Tia Filipa, o cantador João Melchíades e a velha Maria Galdina, a Louca
102
7.
A Diana do Pastoril.
105
8.
O palhaço, mestre de pista...
9.
...e o espetáculo não pode parar
119
10.
Referências Bibliográficas
127
.
110
10
O Professor, Rei e Profeta...
“[...] quem disser que escreve, pinta, esculpe ou canta para recreação própria, se der ao
público o que faz, mente; mente se assinar seu escrito, sua pintura, sua estátua ou sua
canção. Quer, quando menos, deixar uma sombra de seu espírito,
algo que sobreviva a ele.”
Miguel de Unamuno
11
1. Pequeno cantar acadêmico a modo de introdução
“Os palhaços estão presentes em todos os circos. No entanto, suas funções e
inserções alteram-se de acordo com o tipo de espetáculo.”1 Os circos médios e
pequenos colocam o palhaço no centro da trama e, de acordo com o enredo, o palhaço
adapta-se à personagem. Eram esses pequenos circos que, na década de 1930,
passavam pela também pequena cidade de Taperoá, no sertão da Paraíba, onde o
escritor paraibano Ariano Suassuna passou a infância e começou a construir todo o
imaginário dual – popular-erudito – que retrata e transfigura em sua obra.
O mundo é um circo e o mundo de meu teatro procura se aproximar dele: um mundo de
sol e de poeira, como o que conheci em minha infância, com atores representando gente
comum e, às vezes, representando atores, com cangaceiros, santos, poderosos,
assassinos, ladrões, prostitutas, juízes, avarentos, luxuriosos, medíocres – enfim, um
mundo de que não estejam ausentes nem mesmo os seres de vida mais humilde, as
pastagens, o gado, as pedras, todo este conjunto de que o sertão, como qualquer terra do
mundo, está povoado. (SUASSUNA, 2000. In O PERCEVEJO, p. 110 e 111)
Ao se referir à sua produção literária, Suassuna diz “o meu teatro”. Define-se ator
e circense frustrado. “Eu tenho voz baixa, feia e rouca [...] é por isso que eu escrevo para
teatro, para botar os outros para falar por mim.”2 E escreveu mesmo a maioria de seus
textos para teatro: em 1947, o então estudante de direito escreve o primeiro deles, Uma
mulher vestida de sol, e daí por diante são mais 16 peças escritas.3 Mas não só por isso
ele se resume teatral. A estrutura de seu romanceiro não foge à regra. Seus romances
transbordam em teatro circense, que engloba inclusive o mundo do teatro grego e da
commedia dell’arte, que por sua vez influenciam o Romanceiro popular do Nordeste
(literatura de cordel), fio condutor de toda a obra do autor.
1
BOLOGNESI, Mário Fernando. Palhaços. In: O PERCEVEJO. Número 8, 2000. p. 65 a 73.
In SUASSUNA, Ariano. Aula Magna à Universidade Federal da Paraíba. 1994. p.20.
3
O desertor de princesa (1948), Os homens de barro (1949), Auto de João da Cruz (1950), Torturas de um coração
ou em boca fechada não entra mosquito (1951), O arco desolado (1952), O castigo da soberba (1953), O rico
avarento (1954), Auto da Compadecida (1955), O casamento suspeitoso e O santo e a porca (1957), O homem da
vaca e o poder da fortuna (1958), A pena e a lei (1959), Farsa da boa preguiça (1960), A caseira e a Catarina (1962),
além dos espetáculos de dança A demanda do Graal dançado e Pernambuco do barroco ao armorial (1998).
2
12
É por influência da cultura oral e de cima de um palco ou do centro de um
picadeiro que ele sempre se expressa – por meio de suas aulas-espetáculo e de sua
literatura – e o bibliotecário, editor de folhetos, astrólogo e memorialista Dom Pedro Dinis
Ferreira-Quaderna, narrador-personagem de O Romance da Pedra do Reino e o príncipe
do sangue do vai-e-volta, não é diferente. O tom circense aparece logo na primeira
página do romance, lembrando os palhaços que chegam anunciando o espetáculo pelo
megafone que reverbera pela cidade:
Romance da Pedra do Reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta – Romance-enigmático
de crime e sangue, no qual aparece o misterioso Rapaz-do-Cavalo-Branco. A emboscada
do Lajedo sertanejo. Notícia da Pedra do Reino, com seu Castelo enigmático, cheio de
sentidos ocultos! Primeiras indicações sobre os três irmãos sertanejos, Arésio, Silvestre e
Sinésio! Como seu Pai foi morto por cruéis e desconhecidos assassinos, que degolaram o
velho Rei e raptaram o mais moço dos jovens Príncipes, sepultando-o numa Masmorra
onde ele penou durante dois anos! Caçadas e expedições heróicas nas serras do Sertão!
Aparições assombráticas e proféticas! Intrigas, presepadas, combates e aventuras nas
Caatingas! Enigma, ódio, calúnia, amor, batalhas, sensualidade e morte! (SUASSUNA,
1971)
Repara-se aí o tom tragicômico dessa obra que já se anuncia palco do que se
propõe a trilogia ainda inacabada: A maravilhosa desventura de Quaderna, o decifrador
e que continua com a História do rei degolado nas caatingas do sertão: ao sol da onça
caetana e segue com O romance de Sinésio, o Alumioso, príncipe da bandeira do divino
do sertão, em produção desde o fim da década de 1970 e que, segundo Suassuna, terá
mais de oitocentas páginas. Vontade de Sherazade, de As mil e uma noites, como
veremos mais adiante. “Muita fé em Deus”, diz Suassuna em entrevista4. Religiosidade e
vaidade que buscam a imortalidade do artista e do discurso.
O personagem-narrador Quaderna, do centro do picadeiro, medeia, qual palhaço
em função de mestre de pista, cada dualidade, cada discurso que perpassa a obra. Ele é
ao mesmo tempo fidalgo e popular, tradicional e peculiar, religioso e satírico, sangrento e
cheio de gargalhadas. Do risível e cômico ao dramático e trágico, Quaderna, nesse
ponto, transparece a voz de seu criador Suassuna e é um maestro conciliador de suas
4
In O Globo, 6 de agosto de 2006, p. 13.
13
contradições e das tensões de pensamento que provoca com o seu discurso. Regente
de tensões opostas. O que coincide diretamente com a noção de artista do teórico
espanhol Miguel de Unamuno em seu O sentimento trágico da vida. Ao tom de
Unamuno, o artista espalha contradições. “Contradição naturalmente. Pois que a vida é
uma tragédia, e a tragédia é perpétua luta, sem vitória nem esperança de vitória, é
contradição.” (UNAMUNO, 1913, p. 13).
Durante todo O Romance da Pedra do Reino, Quaderna – narrador que nos
parece também a representação em personagem do próprio Movimento Armorial criado
por Suassuna em 1970 – está sempre em questionamento, sob juízo, no meio de
tensões de pensamento, entre o popular e o erudito: mora em uma casa que é também
biblioteca e Academia de Letras dos Emparedados do Sertão, tem dois tutores de
ideologias opostas – o promotor alourado e poeta de direita Samuel Wandernes e o
advogado negro e filósofo de esquerda Clemente Hará de Ravasco Anvérsio. O próprio
título do primeiro capítulo do romance já mostra o encontro entre o popular e o erudito:
Pequeno cantar acadêmico a modo de introdução. Além disso, Quaderna responde a um
inquérito pela morte de seu padrinho Sebastião Garcia Barreto e pela (possível)
participação nos acontecimentos que levariam à entrada de uma cavalgada moura
trazendo o Príncipe do Cavalo Branco (Sinésio, o Alumioso) à Vila de Taperoá. É
durante esse inquérito que ele conta sua epopéia ao Corregedor e a sua escrivã, Dona
Margarida. E é durante esse depoimento, e mesmo entre personagens de tons de
legalidade – Clemente é advogado e Samuel é promotor –, que constrói o seu castelo
poético, a sua “obra lapidar” que une o popular e o erudito numa única obra. Na voz de
Quaderna, Suassuna concilia, observa e justifica as críticas que seu discurso Armorial
provoca. Transfigura as tragicidades de um sertão nordestino que ele pretende universal
e raiz da cultura brasileira, deixando transparecer nesse momento o tom professoralideológico do autor: eis aí o coração do problema.
14
1.1 O professor em tensões armoriais
Em 1969, Ariano Suassuna é convidado, pelo então reitor Murilo Guimarães, para
dirigir o Departamento de Extensão Cultural da Universidade Federal de Pernambuco. À
época, Suassuna, já conhecido por seus textos teatrais, convoca, então, Capiba, GuerraPeixe, Cussy de Almeida, Jarbas Maciel e Clovis Pereira para juntos procurarem uma
música erudita nordestina, a música “armorial”, baseada em raízes populares e que
viesse se juntar a seu teatro, à pintura de Francisco Brennand, Ângelo Monteiro e
Marcus Accioly, e ao romance de Maximiano Campos. Pretendia criar uma arte brasileira
erudita baseada na cultura popular. Em 18 de outubro de 1970, com o concerto Três
séculos de música Nordestina – do barroco ao armorial, e com uma exposição de
gravura, pintura e escultura, lança-se, no Recife, o Movimento Armorial, base de toda a
sua obra.
É a arte popular nordestina, portanto, que alinhava e dá forma ao Movimento
Armorial criado por Ariano Suassuna e tem no seu O Romance da Pedra do Reino e o
príncipe do sangue do vai-e-volta e na continuação – História d’O rei degolado nas
caatingas do sertão: ao sol da onça Caetana – suas representações através da literatura.
A teórica Idelette Muzart-Fonseca do Santos, que defendeu tese de doutorado na
Sorbonne sobre o assunto, bem lembra que essa arte popular é orientadora da pesquisa
armorial e condiciona a criação de artistas cultos que se reúnem por “confluência de
interesses” para recriar ou, nas palavras de Suassuna, “transfigurar” esse material
popular segundo modos pertencentes à prática artística erudita. O Movimento Armorial,
que tem sua base no romanceiro popular nordestino (literatura de cordel), difere, então,
do Regionalista, manifestado por Gilberto Freyre em 1926, porque destaca uma estética
que se compromete com a religiosidade e a transfiguração poética da realidade (tal qual
no teatro grego, no medievo ibérico, no circo e na commedia dell’arte), e dá menos peso
15
(e “menos” aqui quer dizer mesmo um tom a menos) ao tom sociológico/histórico
predominante em Freyre. Vejamos o que é dito textualmente na apresentação do
manifesto O Movimento Armorial, de 1974:
[...] tem-se que perquirir as origens de nossa cultura, respeitando sua forma pura e
simples de apresentação, e procurando encontrar [...] uma Arte e uma Literatura eruditas
nacionais, com base em suas raízes populares. (SUASSUNA, 1974, p. 5)
Pretende, portanto, um Nordeste como representação da cultura brasileira, filtrada
por uma dimensão erudita. Essa referida dimensão erudita armorial, ainda seguindo
Idelette Muzart, se manifesta tanto na reflexão teórica, desenvolvida em paralelo à
criação, quanto na multiplicidade de referências culturais. É por isso que Suassuna se
definiu certa vez como um “intelectual de gabinete que homenageia a fala desse povo
[nordestino] sem efetivamente fazer parte dele”. Ariano Suassuna é filho de João
Suassuna, governador da Paraíba que foi morto na década de 1930 por desavenças
políticas. Portanto, é parte do chamado Brasil Oficial, na expressão de Machado de
Assis. Brasil Real e Brasil Oficial – expressão machadiana que está muito presente na
obra em questão – será mais bem desenvolvida durante o estudo.
Com base nessas afirmações – e sem esquecer as tensões ideológicas
provocadas por teóricos como José Miguel Wisnik, defensor de uma visão multifacetada
das manifestações populares –, este estudo procura, por outras palavras, localizar as
mediações do palhaço Suassuna diante de tais tensões ideológicas na modernidade,
além das buscas de intertextualidade e interdiscursividade do intelectual “tradicional”,
(professor Suassuna), com os demais representantes da cultura popular do Nordeste, os
intelectuais “orgânicos”, principalmente os cantadores e cordelistas. Veremos o que
Suassuna consegue em sua obra ao se pretender esse intelectual mediador da cultura
popular, no sentido gramsciano, ao transfigurar a realidade, já que se diz não um
regionalista, mas escritor de um Realismo Transfigurado. Em que medida ele busca, na
Pedra do Reino, a pureza na cultura e “o galope do sonho” como resistência e em que
16
medida essa resistência grita e encobre, encobre e grita, seco como pedra, o peso
trágico do sertão através de um romance em estrutura de picadeiro. Um circo como
metáfora da vida.
1.2 O palhaço-professor...
Tanto a voz tradicional do professor quanto a voz circense e mediadora do
palhaço são configuradas no narrador Quaderna, que é o homem que fala no romance e
figura principal de nossa análise. Então, segundo Quaderna, o romance é o único gênero
literário “que concilia tudo”:
[...] Quando cheguei na palavra ‘romance’, tive um sobressalto: era o único gênero que me
permitia unir, num livro só, um ‘enredo, ou urdidura fantástica do espírito’, uma ‘narração
baseada no aventuroso e no quimérico’ e um ‘poema em verso, de assunto heróico’ [...] O
romance conciliava tudo! [...] Faria do meu Castelo sertanejo a única Obra ao mesmo
tempo em prosa e em verso, uma Obra completa, modelar e de primeira classe!
(SUASSUNA, 1971, p.198)
Tomando o teórico russo Mikhail Bakhtin e a sua Teoria do Romance como base,
podemos dizer que Quaderna tem sua ação sempre iluminada ideologicamente, sempre
associada ao discurso. “A ação, o comportamento do personagem no romance são
indispensáveis tanto para a revelação como para a experimentação de sua posição
ideológica, de sua palavra.” (BAKHTIN, 1993, p. 136) Quaderna ainda encontra Bakhtin
e o seu plurilingüismo do romance quando diz que “o romance conciliava tudo!”.
Segundo Bakhtin, o pesquisador depara-se em tal gênero com combinações de
unidades estilísticas. O estilo do romance é uma combinação de estilos. Então, não é à
toa que Suassuna escolheu o romance como estilo que resume toda a sua obra. Ariano
diz que A Pedra do Reino é um resumo de tudo o que fez e pensou até hoje. É por isso
que combina todos os estilos e formas de expressão alinhavadas pela cultura popular
nordestina que, em seu pensamento armorial, constroem, dão forma à cultura brasileira:
17
as xilogravuras que ilustram e “são parte importante do inquérito” – palavras de
Quaderna – e as citações (em poema de cordel) do Romanceiro Popular do Nordeste.
A literatura de cordel é a fonte autêntica de uma literatura nos termos que eu busco: uma
literatura brasileira feita à margem da civilização urbana e suas influências cosmopolitas.
(SUASSUNA, Jornal do Brasil, 10 de setembro de 1971).
Suassuna diz que não o compreenderá quem não o focar pelas lentes de um
caleidoscópio. Mas há ressalvas na composição alquímica dessa heterogeneidade
estilística que fundamenta o caleidoscópio de Suassuna. A contradição que persegue e
angustia sua personalidade e proposta artística é que, mesmo defendendo uma
ideologia que nega as influências, incorporações e o cosmopolitismo da cultura de
massa ao buscar a forma pura e simples da nossa cultura, como diz textualmente no
depoimento acima, é de lá, do urbano cosmopolita, que ele recebe atualmente os
(merecidos) aplausos por sua estética, que se quer, a um só tempo, regional e universal.
Aceitação que se traduz em adaptações constantes para a televisão e o cinema de suas
obras, que, com isso, passam a fazer parte do jogo de livre uso comercial de vozes de
diversas procedências da indústria do entretenimento, o que implica falar em
contaminações inevitáveis do mundo globalizado na busca da pureza original da arte
popular...5
No fragmento inicial de O Romance da Pedra do Reino é possível perceber como,
por meio do narrador, o autor expõe suas angústias e medeia o tom trágico desse sertão
a que pertence e está... preso, como num isolamento causado por uma modernidade,
uma urbanização e uma “oficialidade” que o sufocam, mas às quais, ao mesmo tempo,
ele não pode negar que faça parte, já que é nesse urbano, nessa modernidade, nessa
“oficialidade” que ele – Suassuna – constrói todo o arcabouço teórico que aplica ao
5
Entre suas obras adaptadas para a tevê estão: O santo e a porca, O auto da compadecida (também adaptada para
cinema), Uma mulher vestida de sol. Em 2007, serão adaptados pelo diretor Luiz Fernando Carvalho oito capítulos de
O Romance da Pedra do Reino para um projeto da TV Globo intitulado Quadrante. O Romance da Pedra do Reino
também foi adaptado para o teatro pelo diretor Antunes Filho.
18
analisar a cultura popular nordestina. Haja vista o fragmento do primeiro folheto d´A
Pedra do Reino “Pequeno Cantar Acadêmico a Modo de Introdução”:
[...] talvez por causa da situação em que me encontro, preso na Cadeia, o Sertão, sob o
sol fagulhante do meio-dia, me parece, ele todo, como uma enorme cadeia, dentro da
qual, entre muralhas de serras pedregosas que lhe servissem de muro inexpugnável a
apertar suas fronteiras, estivéssemos todos nós, aprisionados e acusados, aguardando a
decisão da justiça; sendo que, a qualquer momento, a Onça-Malhada do Divino pode se
precipitar sobre nós, para nos sangrar, ungir e consagrar pela destruição [...]
(SUASSUNA, 1971, p. 32)
Suassuna, então, coloca o narrador Quaderna como esse artista emparedado
(preso) porque são seus desejos ideológicos que o prendem e o distanciam do veloz e
impaciente crescimento do cosmopolitismo6 que o assusta. Aqui, podemos traçar uma
analogia, um possível intertexto com o poema em prosa de Cruz e Sousa, “O
Emparedado”, que trata justamente dessa impossibilidade dos desejos vitais do poeta,
do emparedamento da Arte – “Desde que o Artista é um isolado, um esporádico, não
adaptado ao meio, mas em completa, lógica e inevitável revolta contra ele [...]” (CRUZ E
SOUSA, p.392)
Veja que, mesmo ao escolher o plurilíngüe e híbrido gênero romanesco como
síntese de toda a sua obra, Quaderna, em A Pedra do Reino, ao construir sua “obra
lapidar”, só aceita referências e influências específicas e vinculadas às questões da Arte
Armorial.
“[...] aquela que tem como traço comum principal a ligação com o espírito mágico dos
folhetos do Romanceiro Popular do Nordeste (Literatura de Cordel), com a Música de
viola, rabeca ou pífano que acompanha seus “cantares” e com a xilogravura que ilustra
suas capas [...]” (SUASSUNA, 1974, p. 7)
6
Pela filosofia kantiana, o cosmopolitismo é uma atitude ou doutrina que prega a quebra das fronteiras entre as
culturas, os interesses e/ou soberanias nacionais com a alegação de que a pátria do homem é o universo. (In KANT,
Immanuel. Idea for a Universal History with Cosmopolitan Intent. In: The Philosophy of Kant: Immanuel’s Kant
Moral; and Political writings. Translation by C. Friedrich. New York: p. 116-131,1949).
19
Portanto o “híbrido” de sua obra tem o seu limite ideológico armorial.7 E aí
também um ponto de conciliação em que Suassuna, parece-nos, mesmo transitando
pelos veículos de massa, não se mostra nem o integrado e nem o apocalíptico de
Umberto Eco. Na voz do personagem-narrador Quaderna, sua pretensão é ainda maior e a partir desse momento o palhaço, o bufão Suassuna começa a se entremostrar - ao
escrever um “Romance heróico-brasileiro, ibero-aventuresco, criminológico-dialético e
tapuio-enigmático de galhofa e safadeza, de amor legendário e de cavalaria épicosertaneja” ou ainda “uma espécie de Sertaneida, Nordestíada ou Brasiléia”: Ao tom de
um riso tragicômico universal.
Importante perceber que o sertão descrito no “realismo transfigurado” de
Suassuna tem um tom romântico, idealizado, muito semelhante ao que podemos
identificar nos romances de José de Alencar. Alencar segrega o sertanejo no sentido de
colocá-lo num limiar à parte do mundo, num instinto de proteção da velocidade urbana,
em tom lírico e, talvez, ingênuo. Assim ele faz com seu personagem Arnaldo em O
sertanejo, quando descreve a relação deste com uma onça pintada e brava. Alegorias do
arcaico protegido, de olho num “cosmopolita” que ameaça:
Devia de achar-se mais de cem pés acima da terra; e nessa grande altura, suspenso por
duas finas cordas de algodão trançado, estava mais tranqüilo do que se pousasse no
chão, onde o poderiam incomodar a má companhia dos répteis e a visita de alguma fera
[...] Não somente por esta razão estava Arnaldo seguro de si, mas também pela confiança
em sua superioridade [...] (ALENCAR, p. 53 e 58)
“Estava mais tranqüilo do que se pousasse no chão”... Suspensão de realidade
empírica, possibilidade de segurança - tom romântico sertanista. Aliás, veja que esse
“romantismo sertanista” iniciado em Alencar tem o exato tom ideológico do armorial de
Suassuna. Vale destaque o que Nelson Werneck Sodré8 fala ao analisar o Alencar
sertanista (vale lembrar, em obras do século XIX):
7
O Romance da Pedra do Reino traz citações do romanceiro popular do Nordeste e é todo ilustrado com xilogravuras
de brasões e insígnias armoriais.
8
In BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Editora Cultrix, p. 156.
20
[...] como aspecto formal e insistente na intenção de transfundir um sentido nacional à
ficção romântica. Tal preocupação importa em condenar o quadro litorâneo e urbano com
aquele em que a influência externa transparece, como um falso Brasil. Brasil verdadeiro,
Brasil original, Brasil puro seria o do interior, o do sertão, imune às influências externas,
conservando em estado natural os traços nacionais.
Conteúdo que poderia ter sido análise do próprio texto armorial. Como se
Suassuna o tivesse retirado lá do século XIX e tentasse continuar essa mesma ideologia
dois séculos depois. A diferença estética é que Suassuna apresenta um sertanejo mais
erudito (no caso da Pedra do Reino) e de esperteza admirável (no caso, por exemplo, de
Chicó e João Grilo de O auto da compadecida) e o liberta, de certa forma, “salva” esse
mesmo sertanejo por intermédio do riso, da carnavalização. Do “riso a cavalo”
ambivalente, para não perder o forte tom medieval da obra. Por intermédio de seu
castelo poético que é a literatura. Portanto num tom mega, que é de nuances diferentes
das de Alencar, lírico e, seguindo ainda a expressão utilizada pelo próprio Werneck
Sodré, “ingenuamente minucioso”. Então, no sentido estético, Ariano afina mais ao tom
do romantismo de Dom Quixote de Cervantes. Quixote, como o narrador Quaderna de
Suassuna, se liberta no âmbito do castelo poético de tom letrado. Mas ambos estão
presos: Quaderna “emparedado”, encarcerado na cadeia pública de Taperoá, e Quixote
preso em sua própria loucura alegórica. Ambos numa tentativa de libertação e
imortalidade por meio da literatura.
Suassuna é o palhaço quando - ou ele próprio ou suas personagens - serve de
mediador de oposições aparentes. Isso porque, como já se viu no início do capítulo, no
universo circense, é o corpo do palhaço que surge intermediando o sério e o risível, o
trágico e o cômico, a morte e o riso. A matriz do circo é o corpo, ora sublime, ora
grotesco. Diferentemente do ator de teatro, o artista, no circo, não representa; ele vive
seu próprio tempo, com ritmo e pulsação próprios. Ou melhor, ele “representa” porque
está inserido em um espetáculo, mas é representação de si mesmo. No circo, o sublime
é representado pelo corpo perfeito e o desempenho do acrobata; já o grotesco é
21
representado pelo corpo disforme e desajustado dos palhaços. O espetáculo circense
desloca-se facilmente entre a morte e o riso. A exposição do grotesco – no corpo do
palhaço – serve de antídoto para sedimentar a experiência de assombro (sublime) que o
público vivencia com as acrobacias que trazem a morte como possibilidade constante. É
nesse sentido – morte e riso – que, em sua obra, Suassuna utiliza o circo como metáfora
da vida e é nesse contexto que homenageia e defende a cultura popular em que
acredita. Transforma-se no bobo que trata rindo de questões trágicas e trata sério de
questões cômicas. Num jogo de espelhos constante entre o bobo e o professor (entre o
Rei e o Palhaço, que segundo Suassuna são as duas vertentes da alma humana). Joga
a isca e deixa que essas dualidades – tragédia e comédia - se choquem.
1.3. ...da cultura popular
Agora, será importante destacar o contorno conceitual da idéia de “popular”
utilizado por Ariano Suassuna. Conceito muito específico, pois o autor quer reconceber o
sentido da palavra “folclore”, ao tentar definir a base cultural do povo nordestino que o
influencia.
Sobre o conceito de “cultura popular”, o teórico Peter Burke, em seu Cultura
popular na idade moderna, destaca que o problema é que “uma cultura” é um sistema
com limites muito indefinidos. Concorda José Miguel Wisnik quando critica o tom
nacionalista de determinados movimentos que tentam colocar num “estojo museológico”
as manifestações populares que, do seu ponto de vista, não podem ser precisamente
definidas, nem em suas ações, nem em suas influências, que mudam, se movimentam e
assimilam constantemente uma diversidade de influências. São, portanto, híbridas e
renováveis. Se pensasse assim, Suassuna deixaria de sentir-se “emparedado”.
Entenderia, nas palavras do teórico Stuart Hall, que os espaços são fixos, mas que os
22
locais são móveis. Que a “identidade cultural” se move do que parece ser definido pelo
território, pela geografia, para o campo aberto da constante reinvenção. Movimento que
passa de uma busca de identidade para um processo de identificação. Ao pensar nessa
identificação, vamos entender que para Suassuna – “intelectual tradicional” gramsciano o seu “popular”, o que ele visita e interpreta com o seu recorte “erudito”, é aquele das
manifestações artísticas “orgânicas” do sertão do Nordeste brasileiro. O seu espaço fixo
é então o sertão nordestino e as suas manifestações que aparecem (a contragosto) na
maioria das vezes denominadas de “folclore”.
Sobre a palavra “folclore”, Câmara Cascudo nos diz, em seu livro Literatura oral
no Brasil, que tem essa denominação tudo aquilo que decorre da memória coletiva, que
é “popular”, mas que não pode ser exatamente localizado no tempo senão como
anônimo e antigo, resistindo ao esquecimento pela oralidade. Não será, portanto, diz ele,
um documento literário ou um índice de atividade intelectual. Suassuna, quando cria em
1970 o Movimento Armorial, mostra um contraponto à definição de Cascudo, já que, com
esse movimento, quer destacar o que há de documento poético, literário e de “relevância
intelectual” na cultura popular nordestina. Portanto, quer trazer essa cultura popular ao
âmbito do erudito, documentando-a na sua própria obra e, ao fazer isso, “desfolcloriza”
essa cultura.
“Desfolcloriza”, entretanto, ao mesmo tempo em que a coloca num “estojo
museológico das correntes nacionalistas”, na expressão de Wisnik. É que, ao “poetizar”,
ao “sacralizar” e “recortar em tom erudito”, por intermédio do armorial, essa arte popularsertanejo-nordestina, Suassuna não afina em discurso com o outro tom, aquele das
massas urbanas e do cosmopolitismo que, espalhados e envoltos na modernidade das
cidades, provoca um quê de desconforto ao discurso de quem - mesmo quando também
entende e bebe das múltiplas referências populares que a cultura urbana moderna
híbrida assimila - procura uma voz da terra, afastada e protegida das influências
23
externas, “americanizadas”. Isso se mostra quando Suassuna diz que o sertão
nordestino é - por ser distante do litoral - mais protegido da “americanização” que assola
a modernidade. Para Suassuna, o sertão é um mundo fechado, intocado pela
modernização e, portanto, reserva da nação.
Essa busca do nacional-popular sem influências externas teve início já em Mário
de Andrade em seu Ensaio sobre a música brasileira (1928), quando ele se referia às
virtudes “autóctones” e “tradicionalmente nacionais” da música rural que serviriam de
base à pesquisa da expressão artística brasileira e que deveriam ser cuidadosamente
separadas da “influência deletéria” do urbanismo9. Hoje, ao tratar do tema - a música Wisnik reconhece que tal escolha correspondia à paixão e à defesa de uma espécie de
inconsciente musical rural, regional, comunitário contido nos reisados, cantos de
trabalho, músicas religiosas, cantorias e repentes que fundiam a música ibérica,
sagrada, profana e carnavalesca com a música negra e indígena, o que promovia a
magia, o trabalho, a festa, a improvisação. Mas aponta um problema no que se refere a
essa busca nacional-popular modernista:
É que o nacionalismo musical modernista toma a autenticidade dessas manifestações
como base de sua representação em detrimento das movimentações da vida popular
urbana porque não pode suportar a incorporação dessa última, que desorganizaria a visão
centralizada homogênea e paternalista da cultura nacional. O popular pode ser admitido
na esfera da arte quando, olhado à distância pela lente da estetização, passa a caber
dentro do estojo museológico das correntes nacionalistas, mas não quando, rebelde à
classificação imediata pelo seu próprio movimento ascendente e pela sua vizinhança
invasiva, ameaça entrar por todas as brechas da vida cultural, pondo em xeque a própria
concepção de arte do intelectual erudito. (WISNIK, 1982, p. 133)
9
Mário de Andrade registra essa busca também em O turista aprendiz, nas questões estéticas propostas no próprio
romance Macunaíma etc. Sobre Macunaíma, para quem se interessar por aprofundar as questões de Mário de Andrade,
vale uma leitura da pesquisa da teórica Gilda de Mello e Souza – O tupi e o alaúde.
24
1.4 O “emparedado” e a “antena parabólica”
A escolha ideológica de Suassuna tem o tom nacional-popular modernista que
tenciona as influências cosmopolitas. O autor transparece na obra que analisamos, pela
voz de Quaderna, uma angústia de “emparedamento” da cultura do sertão diante da
cultura de massa urbana ainda que essa mesma cultura urbana o receba – o autor
Suassuna – com aplausos, reconhecimentos e adaptações.
Parece-nos que Suassuna receia que as culturas locais percam suas próprias
vozes, sob um pseudomanto unificador de um outro padrão cultural, supostamente
dominante e internacionalizado. Teme uma substituição de valores centrais da
identidade nordestina por outros que sejam estranhos às raízes regionais. Mas,
paradoxalmente, tenta não aceitar que essas chamadas “raízes regionais” reverberem
por conta própria pela modernidade, colocando-se como o mediador, o filtro
representante dessa cultura. Escolhe quem pode adaptar e como cada uma de suas
obras deve ser adaptada, acompanha de perto, traz a voz de “controle” para o “seu
sertão”. É então fiel em ação de proteção, ao mesmo tempo em que forte em certo poder
midiático.
Assim, olhou com desconfiança o movimento Mangue Beat, que surgiu na década
de 1990, liderado pelo músico pernambucano Chico Science (ou, para Suassuna, –
Chico Ciência), que, numa espécie de tropicalismo tardio em Pernambuco, utiliza como
metáfora a fertilidade dos mangues do Recife. Essa fertilidade é justamente associada à
troca incessante de matéria orgânica entre as águas doces do rio e as salgadas do mar.
Diz Science, com tal metáfora, que há de se intensificar trocas culturais entre as mais
diversas tradições de vida. O isolamento cultural para ele, assim como o aterro dos
estuários dos rios, só bloqueia a permuta de diferenças. A imagem do Mangue Beat é
uma “antena parabólica enfiada na lama”. Com essa imagem, ele quis mostrar que era
25
possível “conectar o espaço fértil dos manguezais à rede mundial de circulação de
informações [representada à época pela antena parabólica]”10. O mangue é para o
Mangue Beat qualquer parte, qualquer ponto de partida do qual um artista faz e desfaz
articulações com outras partes. Eles partiram então de suas toadas de cavalo-marinho,
emboladas, batidas quebradas de coco e maracatus e divulgaram-nas tanto em suas
primeiras manifestações regionais como por meio do hibridismo musical.
Mostra-se aí que, com a globalização, ainda que os espaços de vida permaneçam
fixos, os locais de interação – que registram a individualidade dos grupos – sofrem
desterritorialização e estranhamento, desmanche da geografia. Então, por intermédio da
mídia, do ambiente acadêmico, dos museus, da Internet, as relações não são
estabelecidas de modo polarizado; ao contrário, há uma negociação da diversidade. E
esses contatos constantes com o que é diferente produzem, por fim, o caráter das
sociedades contemporâneas. E Suassuna, que tem certa dificuldade em aceitar essa
negociação, se sente emparedado, preso, ainda que paradoxalmente aplaudido pela
mesma contemporaneidade. No entanto é importante ter um olhar crítico a tal visão de
negociação da diversidade para que não se tenha uma impressão de que todas as
misturas são válidas quando feitas indiscriminadamente. O “[...] Chiclete eu misturo com
banana e o meu samba vai ficando assim [...]” do Jackson do Pandeiro define e dá uma
medida crítica ao que o Tropicalismo na década de 1960 queria: a mistura do moderno
com o arcaico, do artesanal com o industrial, do rural com o urbano, do chiclete –
representante forte da indústria americana – com a banana – principal fruta tropical
brasileira. Tanto assim que a própria palavra tropicalismo, escolhida para dar nome ao
manifesto criado por Caetano Veloso e Gilberto Gil, foi inspirada na palavra tropicália por
causa das afinidades com o trabalho de mesmo nome do artista plástico Hélio Oiticica.
Tratava-se de uma instalação que consistia num labirinto ou mero caracol de paredes de
madeira, com areia no chão para ser pisada sem sapatos, um caminho enroscado,
10
In ANJOS, Moacir dos. Local/ Global: arte em trânsito. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005, p. 62.
26
ladeado de plantas tropicais, indo dar, ao fim, num aparelho de televisão ligado, exibindo
a programação normal11. Portanto um caminho tortuoso com representações da floresta
tropical que chegam à modernidade do veículo de massa mais moderno da época – a
televisão. Caetano Veloso, em Verdade tropical, diz que não gostava muito do tal ismo
inserido à palavra tropicália pelo então jornalista iniciante Nelson Motta.
[...] eu achava que, ao contrário de tropicália, uma palavra nova, tropicalismo, me
soava conhecida e gasta, já a tinha ouvido significando algo diferente, talvez ligado ao
sociólogo pernambucano Gilberto Freyre12 (o que mais tarde se comprovou), de todo
modo algo que parecia excluir alguns dos elementos que mais nos interessava ressaltar,
sobretudo aqueles internacionalizantes, antinacionalistas, de identificação necessária com
toda a cultura urbana do Ocidente (VELOSO, 1997, p. 192).
Nesse sentido, se a visão nacionalista extrema provoca a tal sensação de
emparedamento, como transparece nos emparedados do sertão do Suassuna, a
“antinacionalista” e “internacionalizante” não deve perder de vista que a negociação da
diversidade - que se iniciava nesse momento tropicalista de tom urbano – não era e não
é feita sem alguns prejuízos das forças mais “frágeis” e periféricas da cultura. As forças
econômicas européias e americanas, por exemplo, influenciam muito e em certa medida
ditam regras culturais aos países ditos subdesenvolvidos. E aí Jackson do Pandeiro
critica e defende a sua escolha: “Eu só boto bip-bop no meu samba quando o Tio Sam
tocar um tamborim [...]”.13 Vamos trocar de igual para igual? – é o que pergunta. Então,
se há tal diversidade, há também o direito de escolha crítica. Suassuna sabe disso.
Como artista que espalha contradições, se por um lado criticava o movimento Mangue
Beat – que no próprio nome nacionaliza e internacionaliza a cultura: mangue da terra em
beat, em ritmo de mutação –, por outro, como quem em gestos reconhece tal valor, se
debruça e chora no caixão de Chico Science quando este prematuramente morre. De um
11
In VELOSO, Caetano. Verdade tropical, p. 188.
Gilberto Freyre utiliza pela primeira vez o conceito de tropicalismo ou luso-tropicalismo em novembro de 1951,
numa conferência realizada em Goa. Tal conceito, primeiro descrito em duas publicações – Aventura e rotina e Um
brasileiro em terras portuguesas – deu origem à luso-tropicologia, que era uma proposta de ciência ligando a
antropologia à ecologia de modo a estudar a cultura européia e a cultura tropical.
13
Chiclete com banana fez sucesso na voz de Jackson do Pandeiro e é de autoria de Gordurinha e Almira Castilho.
12
27
choro que pode ter sido ambivalente (e aqui, dizendo isso, nos permitimos que seja
apenas uma provocação): tanto pelo reconhecimento da perda de um artista rico em
idéias e expressões culturais como pela incapacidade que ele próprio – Suassuna, no
tom de quem se mostra o forte da mediação com o Nordeste – teve de arrebanhar para o
Armorial tal artista criativo. Constante vontade de mediação que nos parece rondar o
projeto Armorial de Suassuna. Vem daí a necessidade de olhar com cuidado as
questões do intelectual mediador da cultura de Gramsci. Próximo tópico, onde utilizamos
como fonte as análises de Marilena Chauí.
1.5 O intelectual mediador gramsciano
Diante desse panorama, e de todas as ambivalências suassunianas, é preciso,
mesmo assim, entender a sua escolha: a identificação de um artista/escritor que não é
ingênuo com a expressão nacional-popular. Tal expressão é constantemente convertida
em nacionalismo cultural ou em populismo nacionalista, como bem lembra Marilena
Chauí. Conceitos controvertidos como já vimos até aqui. Então, na busca por entender
esse nacional-popular e traduzir a interpretação da postura de Suassuna com relação ao
popular diante da modernidade, encontramos em Marilena Chauí (e depois conferido na
fonte: O Intelectual e a formação da cultura) a definição dos conceitos de intelectual
mediador da cultura popular de Antonio Gramsci que em certa medida coincide com a
posição de Suassuna e de seu chamado “realismo transfigurado”. Para Gramsci, a
mediação do popular é14:
1. A capacidade de um intelectual ou de um artista para apresentar idéias,
situações, sentimentos, paixões e anseios universais que, por serem universais, o povo
reconhece, identifica e compreende espontaneamente.
14
In: CHAUÍ, Marilena. Seminários. O Nacional e o popular na cultura brasileira. SP: Editora Brasiliense, 1983. p. 15.
28
2. Também a capacidade para captar no saber e na consciência populares
instantes de “revelação” que alteram a visão de mundo do artista ou do intelectual, que,
não se colocando numa atitude paternalista ou tutelar diante do povo, transforma em
obra o conhecimento assim adquirido.
3. A capacidade para transformar situações produzidas pela formação social em
temas de crítica social identificável pelo povo.
4. Por fim, a sensibilidade capaz de “ligar-se aos sentimentos populares”, exprimilos artisticamente, não interessando qual é o valor artístico da obra.
Marilena Chauí complementa e resume a posição de Gramsci:
O popular na cultura significa, portanto, a transfiguração expressiva de realidades vividas,
conhecidas, reconhecíveis e identificáveis, cuja interpretação pelo artista e pelo povo
coincide. [grifo meu] (CHAUÍ, 1983, p. 15).
Se pudermos fazer então um paralelo dessa teoria de Gramsci com as
características da obra de Suassuna, tomando por base os seus depoimentos e o
romance que analisamos aqui, podemos entender que ele “pretende” ser esse intelectual
mediador da cultura popular quando destaca os anseios universais da cultura nordestina
por meio da construção da obra do narrador-personagem Quaderna – que pretende um
sertão universal –, mostra os instantes de “revelação” do personagem que alteram a
visão do mundo do artista ou do intelectual quando fala de sua cegueira epopéica e da
Demanda do Sangraal – relação direta com a Demanda do Santo Graal – e trata das
revelações e cegueiras por que passa. Haja vista a fala do narrador durante o
depoimento ao personagem Corregedor e à escrivã Dona Margarida:
29
-- Uma cegueira? E o senhor cegou? Está cego? [...]
-- Sr. Corregedor, de fato, é uma cegueira muito estranha, essa que me assaltou os olhos,
naquele dia. A meu ver, ela é parenta próxima da epilepsia-genial que também me atacou,
como lhe disse. Deixaram-me as duas numa espécie de vidência-penumbrosa, na qual o
Mundo me parece com um Sertão, um Desertão, o De-Sertão [...] Há pouco, quando eu
vinha chegando aqui para a cadeia, tive essa idéia de que o próprio sertão era uma Cadeia
enorme, cercada de pedras e sombras, de lajedos fantásticos e solitários, parecidos com
lagartos venenosos, cinzentos e empoeirados que dormissem numa terra desolada [...]
nós, Sertanejos, somos descendentes diretos do Tapuia, do “Homem castanho inicial”,
brotado da terra parda do sertão num dia em que ela estava umedecida e, depois, errante
por entre os espinhos e as muralhas de pedra sertanejas [...] (SUASSUNA, 1971, p. 573).
E veja ainda que, utilizando a mesma alegoria da cegueira, Suassuna estrutura na
voz do narrador Quaderna a sua formação, que encontra o popular-erudito-católico
citando as influências do professor de esquerda, Clemente, e do filósofo de direita,
Samuel:
[...] sou, ao mesmo tempo, clássico e romântico, isto é “completo, genial, modelar e régio”.
Eu, Sr. Corregedor, tendo nascido com dois olhos sertanejos, solares e clássicos, sofri
depois, no Seminário, a influência romântica e profética do genial Bardo alagoano e
judaico, o Padre Ferreira de Andrade, ficando daí em diante, no mundo, com um olho
cego – queimado pela demência romântica do Deserto judaico e sertanejo assim como
pela asa de fogo e navalha da Musa do genial poeta paraibano Augusto dos Anjos. O que
é mais curioso, porém, é que o olho romântico e queimado, que é o direito, depende do
olho clássico e vidente, que é o esquerdo! E vice-versa! Porque, se o Gavião romântico e
fogoso-desértico não tivesse queimado e despedaçado um dos meus olhos, o outro não
teria obtido o privilégio de ver, na realidade parda e afoscada, essas Cavalhadas e
batalhas, cheias de bandeiras, essas Estrelas e moedas que vejo de vez em quando
coroando as frontes dos Cavaleiros sertanejos. Também, se eu não gastasse toda a prata
e todo o Sol do meu sangue com o olho clássico e vidente, o outro não seria capaz de
enxergar o sofrimento e a miséria, a feiúra desdentada e barriguda das pessoas, os
morcegos, os urubus e as corujas das furnas sertanejas, onde moram as Divindades
infernais, satúrnicas e subterrâneas do meu Mundo astrológico e zodiacal!
(SUASSUNA, 1971, p. 576-577)
A tradição das publicações populares em versos vem da Europa. No século XVIII,
já era comum entre os portugueses a expressão literatura de cego, por causa da lei
promulgada por Dom João V, em 1789, permitindo à Irmandade dos Homens Cegos de
Lisboa negociar com esse tipo de publicação. Então, ao se dizer acometido de cegueira,
Quaderna quer mostrar também à oficialidade – representada pelo Corregedor – que
pode e tem todo o direito de representar, transitar e “comercializar” (aí muito mais no
sentido de distribuir) os folhetos que o inspiram.
30
Por outro lado, tal cegueira descrita por Quaderna também remete àquela
relatada por Euclydes da Cunha. É dito em Os sertões que o sertanejo sofre de uma
“moléstia extravagante”, uma “falsa cegueira” feita pelas reações da luz do sertão: “[...]
nasce nos dias claros e quentes dos firmamentos fulgurantes, do vivo ondular dos ares
em fogo sobre a terra nua. É uma pletora do olhar. Mal o sol se esconde no poente a
vítima nada mais vê. Está cega. A noite afoga-a, de súbito, antes de envolver a terra. E
na manhã seguinte a vista extinta lhe revive, ascendendo-se no primeiro lampejo do
levante, para se apagar, de novo, à tarde, com intermitência dolorosa”. (CUNHA,
Euclydes da, 2000, p.116)
Ariano transparece em Quaderna a consciência do peso trágico sertanejo, mas,
ao tomar consciência desse mesmo trágico da “pedra”, poetiza e se dá o direito de
construir e ser o rei do seu Castelo poético quando se assume cego e dá o tom medieval
à “joiaria” popular:
[...] tanto acho belas as partes esquerdistas e despojadas da realidade sertaneja – fosca,
parda, empoeirada, faminta, miserável, cheia de ossamentos de Vacas, Cabras e
jumentas mortas – como acho belo o Sonho de prata e joiaria que, às vezes, vem se
juntar a ela para transfigurá-la. Muitas vezes já me aconteceu isso, quando nas tardes de
muito sol, estou, por acaso, em cima do meu lajedo. Estou ali, em cima , olhando o Mundo
sertanejo, fosco e empoeirado, porém já se animando de uma Coroa gloriosa que o Ouro
do sol-poente vai lhe emprestando. [...] na mesma hora dá-se, em mim, uma “viração”;
meu sangue e minha cabeça se incendeiam, e a realidade parda e afoscada se funde ao
fogo do sol e dos diamantes do sonho. O Sertão selvagem, duro e pedregoso, vira o
“Reino da Pedra do Reino” [...] (SUASSUNA, 1971, p. 564)
Na narrativa, Suassuna dá o tom medieval carnavalizando o mito da busca do
Graal arthuriano. Parece-nos importante então exemplificar a medida dessa analogia.
Diz-se do romance arthuriano que, no início (em fins do século XII), Persival ou o conto
do Graal, de Chrétien de Troyes, teve como característica dominante o tom guerreiro
com destaque para a cavalaria dos nobres; logo depois começam a se esboçar traços de
nítida conotação mística, anunciando assim a passagem à cavalaria celestial; mais
adiante, embora os valores mais altos sejam ainda a cavalaria e o sacerdócio, e ainda se
31
destaque a aventura assumindo o sentido de “sentimento heróico da vida”, o romance já
dedica certo destaque à descrição de trajes, jóias e recepções mundanas. No entanto o
romance em prosa mais célebre do ciclo é mesmo aquele o qual Ariano toma de
referência – A Busca do Santo Graal. Nele o leitor encontra o drama da condição
humana, tomada entre o pecado e a beatitude e permeado de significação eucarística. À
medida que nos afastamos da Idade Média e penetramos no Renascimento, a noção de
viagem espiritual, de busca, perde a pureza e a narrativa assimila os elementos da
cultura popular: o grotesco, a paródia, o detalhe obsceno, a alegria solar, o destaque
para o riso e para o corpo que veremos mais detalhadamente em seguida. Por enquanto
diremos que é nesse ponto que Ariano toma a influência com o “vinho do Sangraal”:
mostra Quaderna entre pecado e beatitude, dá volta e meia um tom grotesco e
parodístico à narrativa, carnavaliza e destaca as ambigüidades do personagem que é,
entre outras coisas, um “herói carnavalizado” de um romance de ritmo trotantecavaleiresco.
Ariano é o professor, o intelectual tradicional, quando defende suas questões
armoriais, “mesmo correndo riscos”, mesmo se sentindo “emparedado” por uma cultura
múltipla em suas influências e impossível de ser “encaixada” em limites de puras “raízes
nacionais” andradianas. Mais ainda na contemporaneidade quando vai se tornando
impossível, pela velocidade e fácil acesso às tecnologias modernas para as mais
diferentes classes e culturas, que exista esse intelectual “mediador da cultura popular”
de Gramsci.
Mas Ariano é, além disso, o bufão, o palhaço inventivo quando, travestido dessa
máscara, carnavaliza, transfigura, poetiza, ri – de um riso tragicômico – com a força vital
da cultura popular do seu sertão nordestino por intermédio da sua festa, a sua literatura.
Brinca, transforma, transfigura as máscaras do palhaço quando, por meio de sua arte,
reconhece e incorpora o erudito no popular; e brinca com as vozes de tensão que seu
32
discurso causa na modernidade, criando embates entre elas e aplaudindo, ao fim, do
centro de seu picadeiro. E ele deve ser aplaudido, reverenciado e incorporado ao mundo
contemporâneo, justamente pela especificidade de sua voz criativa.
Dito isso, vamos continuar a observar essa aula-espetáculo15 produzida pelo
“mega” palhaço-professor, “regionalista–transfigurado”, “emparedado” pela modernidade.
No próximo capítulo, o panorama regionalista aprofunda algumas influências diretas de
Suassuna e traz Antonio Candido como base teórica, o que nos deixa numa posição
nem integrada e nem apocalíptica, e, no entanto, sempre crítica, com relação à
modernidade e às negociações e trocas das diversas vozes culturais.
15
A primeira aula-espetáculo aconteceu quando Suassuna era secretário de Cultura do governo de Miguel Arraes em
Pernambuco. A partir do Recife, Ariano Suassuna queria deflagrar uma discussão sobre a cultura brasileira e, para isso, criou
as aulas-espetáculo dadas nos teatros, universidades e espaços públicos de todo o país. Falas emolduradas por músicas,
danças e artes plásticas da cultura popular brasileira e de artistas do Movimento Armorial. Cultura popular discursada no
picadeiro, contornada pela estética da máscara da bufonaria.
33
2. O regionalismo e o cosmopolitismo: da utopia ideológica à modernidade
capitalista
Para Antonio Candido, existem duas formas de pensar o “atraso e a dependência
cultural” dos países da América Latina: a primeira é associada à noção de país novo e
uma consciência amena do atraso; a segunda é a consciência de país subdesenvolvido
e a visão catastrófica do atraso. Para Candido, ambas se entrosam intimamente e
orientam a atuação intelectual latino-americana. Explica que a idéia de país novo produz
na literatura algumas atitudes derivadas da surpresa, do interesse pelo exótico, de certo
respeito pelo grandioso. Que tal idéia destacou um tom de esperança de que a América
fosse um lugar privilegiado e isso se exprimiu em projeções utópicas que atuaram na
fisionomia da conquista e da colonização. O primeiro documento relativo ao nosso
continente, a carta de Colombo, inaugura o tom de deslumbramento e exaltação que se
comunicaria à posteridade. E nesse ponto é impossível não incluir, na seqüência
histórica, a carta de Pero Vaz de Caminha, que seguia o mesmo tom e à qual Suassuna
se refere constantemente como um poema. Antonio Candido continua sua análise e
lembra que no século XVII, misturando pragmatismo e profetismo, Antonio Vieira
aconselhou a transferência da monarquia portuguesa para o Brasil, que estaria fadado a
realizar os mais altos fins da história como sede do Quinto Império.
Nessa noção de país novo é que se encontram certos valores da ficção
regionalista: a pátria é relacionada com a natureza exótica, percebida como
grandiosamente bela e fértil, e por isso capaz de justificar todo o sentimento de otimismo
social. E os intelectuais latino-americanos, que herdaram esse estado de euforia,
transformaram-no em instrumentos de afirmação nacional e em justificativa ideológica.
Na literatura, em se tratando deste contexto, há uma opção por um tom celebratório, cuja
34
linguagem, influenciada por tendências românticas, se apóia no sentimentalismo, na
hipérbole, na exotização.
No entanto, logo que os discursos regionalistas começaram a vir à tona, esses
intelectuais eram ambivalentes: ao mesmo tempo em que imitavam sem filtro as
sugestões e influências européias, buscavam uma independência radical. Os
movimentos regionalistas brasileiros, desde quando surgiram no fim do século XVIII, em
vozes do romantismo como a de José de Alencar, seu indianismo e seu sertanismo
romântico, ou de Franklin Távora e o prefácio de seu livro O cabeleira, de 1876,
pendulavam entre a aceitação dessas influências européias e a “utopia ideológica”16 de
encontrar raízes puramente nacionais. Franklin Távora, por exemplo, vê no Norte (que
para ele engloba o Nordeste) o “verdadeiro” Brasil. É possível comparar o seu discurso
com o de Suassuna no Movimento Armorial. Veja o que Távora diz em O cabeleira:
As letras têm, como a política, certo caráter geográfico; mais no Norte, do que no Sul
abundam os elementos para a formação de uma literatura propriamente brasileira, filha da
terra. A razão é óbvia: o Norte ainda não foi invadido como está sendo o Sul de dia em dia
pelo estrangeiro. A feição primitiva, unicamente modificada pela cultura que as raças, as
índoles e os costumes recebem dos tempos ou do progresso, pode-se afirmar que ainda
se conserva ali em sua pureza, em sua genuína expressão.
Mesma voz ideológica do “puro” e do “genuíno” que Ariano utiliza no Manifesto
Armorial, em 1974, com o objetivo de destacar essa “cor local” do sertão. Não à toa, por
intermédio do narrador Quaderna, Ariano assume a influência de Franklin Távora, assim
como agradece e homenageia também José de Alencar em toda a trajetória do livro.
Separadamente analisaremos esse encontro de discursos Alencar-Suassuna. Um
(Alencar) no século XIX e outro (Suassuna) um século depois, no entanto com os
mesmos fundamentos. Veremos tal comparação – Alencar-Suassuna – no próximo
tópico. Mas não sem antes lembrar que o que Antonio Candido chama de visão
catastrófica do atraso está mais bem analisado no tópico Catequese às Avessas.
16
Expressão de Antonio Candido.
35
2.1 José de Alencar e Ariano Suassuna – o encontro de românticos
O intertexto entre o discurso de Suassuna no Manifesto Armorial e o discurso
romântico de Alencar é claro e direto, sendo este inclusive citado em lista de
homenagens logo no início do livro e depois durante O Romance da Pedra do Reino. O
narrador Quaderna, no folheto “O Caso dos Três Emparedados”, assume claramente a
influência de Alencar:
[...] eu, tendo lido, aos quinze anos, os heroísmos e cavalarias de Peri e Arnaldo Louredo,
assim como as safadezas de alcova de Lucíola, fiquei fascinado e me tornei também,
devoto do autor de O Sertanejo, a quem Clemente [filósofo, negro e de esquerda] e
Samuel [poeta, alourado e de direita] consideravam um “autor de segunda ordem”.
(SUASSUNA, 1971. p. 178)
E no folheto “Cantar de Nossos Cavalos”, Quaderna fala do seu cavalo Pedra-Lispe, da
“honra de ter um cavalo de sela” e de, também metaforicamente, cavalgar pelos
caminhos de suas influências:
[...] todos os heróis de José de Alencar, meu mestre e precursor, andavam a cavalo,
principalmente aqueles que, como Arnaldo Louredo – Príncipe guerreiro daquela
epopéia17 que é O Sertanejo -,eram ao mesmo tempo Fidalgos, vaqueiros e cavaleiros do
Sertão. (SUASSUNA, 1971, p. 272).
Nesse ponto, pela voz de Quaderna, Suassuna tensiona e discorda de críticas
como a do próprio Antonio Candido, que diz que “[...] aqui [no Brasil] o regionalismo
inicial, que principia com o Romantismo, antes dos outros países nunca produziu obras
consideradas de primeiro plano, mesmo pelos contemporâneos, tendo sido tendência
secundária, quando não francamente subliterária, em prosa e verso.” (CANDIDO, 1983,
p. 161) Inclui então a obra de José de Alencar como tendência secundária. Tal crítica a
autores como Alencar, é mostrada no romance sob a voz dos personagens Clemente e
17
Grifos meus.
36
Samuel. São eles que criticam as preferências de Quaderna. E este, por sua vez,
defende sempre suas escolhas.
Foi pela voz do escritor cearense José de Alencar que surgiu a primeira forma de
expressão do nacionalismo no Brasil com o indianismo. Essa forma de nacionalismo
literário romântico foi firmada na poesia com Gonçalves Dias (1846), também encontrado
como influência direta do narrador Quaderna da Pedra do Reino. À proporção que o
índio, como potencial de expressão mítico-heróica representante da mais pura
nacionalidade brasileira, começa a se esgotar, já que Alencar, em O guarani e Iracema,
cria a partir de um reduzido material histórico essas raízes míticas para a nacionalidade,
entra em cena na obra do autor o sertanejo – homem do interior, de regiões pouco
afetadas, segundo a visão romântica, pelo contato externo. Diz Alencar, referindo-se ao
sertanismo: “a poesia brasileira ressoa, não somente nos rumores da brisa e nos ecos
da floresta, senão também nas singelas cantigas do povo e nos íntimos serões de
família”. Discurso que, embora em tom bucólico e de certa ingenuidade, se assemelha
ideologicamente ao da defesa de Suassuna à cultura do sertão nordestino. Veja o que
diz Suassuna no Manifesto Armorial, referindo-se ao artigo que ele mesmo escreveu em
1950 sobre a música do sertão: “Nos centros mais populosos do Litoral, é difícil observar
os resquícios da Música primitiva. [...] No Sertão é fácil, porém, estudá-la, pois ali a
tradição é mais severamente conservada. A Música sertaneja se desenvolve em torno
dos ritmos que a tradição guardou.” (SUASSUNA, 1974, p. 57)
A gênese do sertanismo alencariano, do século XIX, foi o sentimento de ameaça
aos valores tradicionais provocado pela penetração cada vez mais intensa da influência
estrangeira no Brasil da época. É na segunda metade do século XIX que ocorre o
primeiro impulso para que o Brasil passe da fase agrícola e patriarcal para a fase
industrial e burguesa. As estradas de ferro chegam ao Brasil em 1854 sob as ordens do
Barão de Mauá, que inaugura a primeira delas entre Mauá e Petrópolis. Além disso, na
37
década de 1870 (O sertanejo é de 1875) há impactos diversos que refletem nas
expressões culturais brasileiras: o fim da Guerra do Paraguai, a propaganda republicana,
a intensificação do crescimento urbano e industrial, a divulgação de filosofias
materialistas como o positivismo, o darwinismo, o evolucionismo, além das correntes
estéticas – realismo e naturalismo – originárias da França e de Portugal que já eram
plantadas pelo país, mas que só frutificariam na década seguinte. Toda essa evolução
encontra repercussão direta na obra de Alencar18, que, com o sertanismo, passa um
sentimento de ameaça cosmopolita às tradições já formadas:
[...] nossa literatura [...] espera escritores que lhe dêem os últimos traços e formem o
verdadeiro gosto nacional fazendo calar as pretensões hoje tão acesas de nos
recolonizarem pela alma e pelo coração já que não o podem pelo braço. Neste período a
poesia brasileira, embora balbuciante ainda, ressoa, não já somente nos rumores da brisa
e nos ecos da floresta, senão também nas singelas cantigas do povo e nos últimos serões
da família. Onde não se propaga com rapidez a luz da civilização, que de repente cambia
a cor local19, encontra-se ainda em sua pureza original, sem mescla, esse viver singelo de
nossos pais, tradições, costumes e linguagem, com um sainete todo brasileiro.
Assim como em Suassuna, o texto de Alencar transparecia essa tal “consciência
do perigo que representava a importação indiscriminada de cultura em um país jovem
[...], tem apreço por tudo quanto represente uma tradição autêntica brasileira [...], situa a
oposição campo/cidade [...]”20. Mas é bom lembrar que essa oposição campo/cidade é
trabalhada no discurso por autores de formação urbana e que olha esse “campo” pela
janela de seus gabinetes, como já vimos na voz do próprio Suassuna. Portanto, na
modernidade, essa oposição campo/cidade passa a ser um falso problema e a
conciliação como preservação uma tentativa constante em diversas vozes estéticas,
inclusive a de Suassuna.
Sobre essas vozes e movimentos de destaque e preservação da “cor local”, é
possível perceber que surgem a cada momento histórico em que houve, de alguma
18
19
20
In prefácio de José de Alencar ao livro Sonhos d´ouro, de 1872.
Grifo meu.
ALMEIDA, José Maurício Gomes de. A tradição regionalista no romance brasileiro. Rio de Janeiro. Achiamé, 1981.
38
maneira, uma aceleração desenvolvimentista, urbanizadora: já vimos que no século XIX,
ao Movimento Republicano surge o Romantismo; no século XX, décadas de 1920 e
1930, a acelerada industrialização e desenvolvimento urbano, que abriu estradas e
facilitou o acesso ao interior, ouviu nas artes o Movimento Modernista com Mário de
Andrade, Oswald de Andrade, Villa-Lobos, entre outros; e, mais recentemente, na
década de 1990, quando houve, no Brasil, um acelerado desenvolvimento da Internet,
que facilitou o acesso a todas as informações culturais e novidades eletrônicas, eis que o
discurso de Alencar ganha atualidade com essa acelerada proliferação da cultura de
massa. Então a chamada “geração zabumba” e os adeptos do “samba de raiz”, por
exemplo, entram em cena. Além deles, ou mesmo, a reboque deste contexto, os
movimentos de origem Armorial, representados pelo músico e bailarino Antonio Nóbrega
e pelo próprio Suassuna, idealizador do projeto Armorial na década de 1970, voltam sob
holofotes da modernidade, com seus trabalhos (paradoxalmente) adaptados para a TV e
levando milhares de pessoas a seus espetáculos. Outro encontro entre Suassuna e
Alencar. É que, além de escritor, Alencar21 também era político homem de ação que não
podia recusar as vantagens que a moderna civilização industrial podia trazer, mas que
não conseguia dissimular a prevenção e hostilidade que alimentava contra ela. Veja uma
citação de O sertanejo:
De dia em dia aquelas remotas regiões vão perdendo a primitiva rudeza, que tamanho
encanto lhes infundia. A civilização que penetra pelo interior corta os campos de estradas
e semeia pelo vastíssimo deserto as casas e mais tarde as povoações. Não era assim no
fim do século passado... (ALENCAR, 1875. p. 7-8)
21
Também filho de político, o ex-seminarista e senador José Martiniano de Alencar, o escritor José de Alencar era
advogado, jornalista, político, orador, romancista e teatrólogo. Seu pai e sua avó Dona Bárbara de Alencar foram
presos na Bahia por aderirem ao movimento revolucionário de 1817 irrompido em Pernambuco. Alencar vai em 1844
para São Paulo, onde permanece até 1850, terminando os preparatórios e cursando direito. Formado, começa a advogar
no Rio e passa a colaborar no Correio Mercantil, convidado por Francisco Otaviano de Almeida Rosa, seu colega de
faculdade, e a escrever para o Jornal do Commercio os folhetins que, em 1874, reuniu sob o título de Ao correr da
pena. Redator-chefe do Diário do Rio de Janeiro em 1855. Filiado ao Partido Conservador, foi eleito várias vezes
deputado geral pelo Ceará; de 1868 a 1870, foi ministro da Justiça. Não conseguiu realizar a ambição de ser senador
como o pai. Desgostoso com a política, passou a dedicar-se exclusivamente à literatura.
39
Alencar no século XIX, assim como Suassuna no século XX, considera que o
sertão encanta por sua “primitiva rudeza” e que a modernização tem valor discutível. O
traço nacionalista, então, nunca abandona os românticos. E Suassuna é em certa
medida um romântico sertanista também. Mas se nega regionalista e naturalista. Tem a
habilidade de brincar e manipular as linhas que tencionam esse bufão-marionete de
vozes sertanejas duais. “Lanço mão do riso para me defender”, assumiu ele em seu
discurso de posse na Academia Brasileira de Letras. E manipula essas linhas da
marionete durante todo o romance: a cada tom de discurso ideológico, alterna-se uma
“rabelaisiada”. Essa imagem da marionete é de Henri Bérgson em seu livro O riso.
Voltaremos a ela mais adiante quando também discutiremos a medida do riso de
Rabelais em sua obra. Por ora, seguimos afirmando que Suassuna vai pintando,
colocando máscaras e dançando seu discurso quando diz em muitas entrevistas que tem
preguiça de explicar; quando o dizem regionalista, ele diz que é e pronto. Antonio
Candido lembra que, a partir de 1930, numa segunda fase, as tendências regionalistas,
já sublimadas e como que transfiguradas pelo realismo social, começam a demonstrar
amadurecimento e saem do descritivismo e da “cor local”. Candido ainda salva autores
como Graciliano Ramos mas não destaca Suassuna como autor de obras que saem da
estrutura do primeiro regionalismo (consciência amena do atraso), ponto em que, com
todo respeito, discordamos em parte (pelo menos no que trata da estética), já que,
parece-nos, Suassuna demonstra que há um tom mágico e poético em sua estrutura
narrativa que não se encontra na estética regionalista.
[...] no próprio enredo, o Auto da compadecida, como peça realista, não convence
ninguém. Porque não tem cangaceiro que caia numa cilada tão idiota como àquela de dar
a bexiga para o cachorro escondida numa camisa. Aquilo é uma coisa que, para gostar do
meu teatro, é preciso que o público faça um acordo com o autor: nós vamos acreditar
juntamente com você, para que a gente possa pensar que isso pode acontecer durante
duas horas. Então a diferença é colocada exatamente por isso, pela presença do
fantástico, do mágico, do poético [...]22
22
In: Revista Continente Multicultural . Acessada no endereço:
www.continentemulticultural.com.br/revista020/materia.asp?m=Especial&s=3 em 11 de agosto de 2006.
40
Tom poético que não encobre o trágico do sertão, visto que, a cada tom poético,
Quaderna ouve de algum personagem ou fala ele mesmo sobre o seco, o feio, a dor e a
pobreza que o real empírico mostra. Em seguida, o narrador defende a “função” da
poesia, da literatura e da arte para transfiguração desse real empírico. Suassuna deixa
essa preocupação mais clara em O Rei Degolado. É como se o primeiro volume da
trilogia, O Romance da Pedra do Reino, desse o tom mais poético de Quaderna, e o
segundo volume, O Rei Degolado, com a personagem Morte Caetana como centro,
transpareça no mesmo narrador Quaderna à consciência do “feio” real empírico:
[...] Foi um ano de terrível seca, no Sertão paraibano. Àquela hora, perto do meio-dia, o
Sol estava esbraseado, a Caatinga pardacenta e queimada, a terra cheia de gretas e
escaras, e a poeira, o sujo, a pobreza e a feiúra cobriam todo aquele velho pedaço deste
mundo velho de meu Deus. Ossos e carniças de homens e animais apodreciam, secavam
ou branquejavam ao Sol. Por outro lado, o Profeta Nazário vinha barbado, sujo, imundo
mesmo. Faltavam-lhe os dois dentes da frente, ele era feridento, gafo, fedorento, e, ainda
por cima, estava coberto de andrajos, de farrapos e molambos tão sujos quanto o dono.
Sua mulher, Siá Maria Umbelina, só não era paralítica: mas era tão feia, suja, desdentada,
fedorenta, esmolambada e feridenta quanto ele.
Assim, ninguém pode mais me acusar, a mim, Dom Pedro Dinis Quaderna, o Decifrador,
de esconder a feiúra do Sertão e a miséria sombria de meu Povo. (SUASSUNA, 1977, p.
5)
É aí o mentiroso lírico, mas não pelo enfoque de que a mentira é ausência de
verdade. O mentiroso que ele incorpora é aquele que se movimenta sempre para não
ser pego, que muda de máscara todo o tempo para que o seu discurso não seja
emparedado, ainda que se sinta assim o tempo todo. É ainda, e talvez principalmente, o
poeta “fingidor”. No entanto, parece-nos também, e paradoxalmente, que a obra de
Suassuna, apesar das diferenças estéticas, tem sim o tom ideológico romântico que
encontra muitos laços em comum com o regionalismo. Um regionalismo que, por sua
vez, enfatiza os elementos diferenciais que caracterizam uma região – no sentido amplo
– em oposição às demais regiões e busca que esses diferenciais sejam reconhecidos no
plano nacional e que abrange toda a ficção vinculada à descrição das regiões e dos
costumes rurais desde o romantismo. Aí, sob o enfoque ideológico, concordamos com a
crítica de Antonio Candido. Diz ele que a ambivalência do intelectual latino-americano,
41
traduzida por impulsos de cópia e de rejeição, aparentemente contraditórios quando
vistos em si, podem ser complementares se forem encarados por esse viés da “busca da
identidade nacional”. Candido diz que o regionalismo, ao parecer afirmação da
identidade nacional, pode ser na verdade um modo insuspeitado de oferecer à
sensibilidade européia o exotismo que ela desejava; e se torna desta maneira forma
aguda de dependência na independência. Com relação ao “impulso de cópia”, Candido
não alivia: “...a imitação servil dos estilos, temas, atitudes e usos literários tem um ar
risível ou constrangedor de provincianismo, depois de ter sido aristocratismo
compensatório de país colonial...” (CANDIDO, 1989: p. 157). E sobre o “impulso de
rejeição” diz assim:
(...) Talvez não sejam menos grosseiras, do lado oposto, certas formas primárias de
nativismo e regionalismo literário, que reduzem os problemas humanos a elemento
pitoresco, fazendo da paixão e do sofrimento do homem rural, ou das populações de cor,
um equivalente dos mamões e dos abacaxis. Esta atitude pode não apenas equivaler à
primeira, mas combinar-se a ela, pois redunda em fornecer a um leitor urbano europeu, ou
europeizado artificialmente, a realidade quase turística que lhe agradaria ver na América.
Sem o perceber, o nativismo mais sincero arrisca tornar-se manifestação ideológica do
mesmo colonialismo cultural que o seu praticante rejeitaria no plano da razão clara, e que
manifesta uma situação de subdesenvolvimento e conseqüente dependência (...).
(CANDIDO, 1983: p.157)
Vale aqui lembrar da expressão “catequese às avessas” que Candido utiliza. É
que, se por um lado, é importante perceber e criticar o tom um tanto radical e
arriscadamente “pitoresco” na fala regionalista, um tom pouco negociador com as
múltiplas referências da modernidade, por outro, o regionalismo foi uma etapa
necessária que fez da literatura um meio de apontar a realidade local; e essas múltiplas
referências, que, pelo desenvolvimento das tecnologias, estão à mão para quem quiser
ter acesso a elas, também estão presas às rédeas dos veículos de massa que por sua
vez seguem a “catequese” do capitalismo. E, ao utilizar a palavra catequese, ouça-se um
poder de tom quase religioso.
Ou seja, não se pode perder de vista - mesmo
42
entendendo a riqueza das trocas culturais, como falamos no primeiro capítulo - que o
capitalismo-cosmopolita, utilizando as armas dos veículos de massa, “transfigura” a seu
favor qualquer que seja o discurso ideológico. Mesmo os que se acham mais
radicalmente opostos a ele ou se acham capazes de impedir a sua total assimilação. E
absolutamente tudo, então, é assimilado, é transformado em mercadoria, transfigurado
segundo os seus interesses. Contradizemo-nos nesse ponto? Afinal afirmamos
anteriormente que Suassuna encontra a conciliação, uma brecha, entre o apocalíptico e
o integrado de Umberto Eco. E agora, fomos radicais em dizer que absolutamente tudo
se transforma em mercadoria. Vamos por partes então e diremos que Suassuna,
ambivalente, é e não é uma exceção quando se trata desse assunto: transformação
absoluta das obras em mercadoria. Para isso falaremos um pouco mais, em tópico
separado, sobre a expressão de Antonio Candido, “catequese às avessas”.
2.2 A “catequese às avessas”
Antonio Candido, ao utilizar a expressão “catequese às avessas”, se refere ao
que acontece com o homem que tendo crescido no campo, com as influências rurais e
alfabetizado no imaginário oral (do cordel, por exemplo), quando chega à cidade, no
ambiente urbano, é jogado diretamente nos veículos de massa, que o re-alfabetizam na
oralidade urbana.
... No tempo da catequese os missionários coloniais escreviam autos e poemas, em língua
indígena ou em vernáculo, para tornar acessíveis ao catecúmeno os princípios da religião
e da civilização metropolitana, por meio de formas literárias consagradas, equivalentes às
que se destinavam ao homem culto de então. Em nosso tempo, uma catequese às
avessas converte rapidamente o homem rural à sociedade urbana, por meio de recursos
comunicativos que vão até à inculcação subliminar, impondo-lhe valores duvidosos e bem
diferentes dos que o homem culto busca na arte e na literatura... (CANDIDO, 1983, p.
145)
43
Portanto, esse homem passa do tom oral rural para o tom oral urbano sem ter
muito ou quase nenhum acesso à literatura que, em sua maioria, tem sido filtrada,
adaptada e readaptada pelos veículos de massa. Como se o exercício da leitura fosse,
em certa medida, na modernidade, trocada gradativamente pelo audiovisual. Então,
nesse contexto, o discurso Armorial de Suassuna ganha variações de força estética, mas
perde força ideológica. O tom “desfolclorizante” desse discurso acaba, paradoxalmente,
sendo “espetacularizado” por uma modernidade altamente audiovisual. Veja que não é o
caso aqui de entender que Suassuna é um desses homens rurais e nem que ele se
deixa assimilar totalmente por essa catequese. Já deixamos claro que ele é um
“intelectual de gabinete”, como ele mesmo se define:
Não pretendo passar pelo que não sou. Egresso do patriarcado rural derrotado pela
burguesia urbana de 1889, 1930 e 1964, ingressei no patriciado das cidades como o
escritor e professor que sempre fui. Continuo, portanto, a integrar uma daquelas classes
poderosas [...] Sei, perfeitamente, que não é o fato de me vestir de certa maneira, e não
de outra, que vai fazer de mim um camponês pobre. Mas acredito na importância das
roupagens para a liturgia, como creio no sentido dos rituais. E queria que minha maneira
de vestir indicasse que, como escritor pertencente a um País pobre e a uma sociedade
injusta, estou convocado, “a serviço”.23
Ele, portanto, fala desse homem rural do sertão, mas é um homem de formação
letrada e urbana. E se coloca, como iniciamos a discutir, pretendente a mediador desse
povo. De forma sonhadora, mas por outro lado pragmática. Então, levando em conta “o
sistema” (ao tom de Candido), no qual fazem parte autor, obra e público, é possível que,
no movimento acelerado capitalista, poucos leiam O Romance da Pedra do Reino e o
príncipe do sangue do vai-e-volta com suas mais de setecentas páginas e que continua
ainda com O rei degolado nas caatingas do sertão ao sol da onça Caetana. Questão que
fez com que o romance ficasse mais de vinte anos sem ser reeditado. O Romance da
Pedra do Reino foi lançado em 1971; em 2005, uma edição revisada foi relançada pela
editora José Olympio e, ao ser adaptada para a TV pelo diretor Luiz Fernando Carvalho
23
Fragmento do discurso de posse da Academia Brasileira de Letras.
44
em 2007, e ainda antes, em 2006, adaptado para o teatro por Antunes Filho, vai
significar, provavelmente, que o primeiro contato do grande público com o livro será pelo
filtro audiovisual. E provavelmente poucos letrados terão acesso ao livro em si. Então, na
contemporaneidade, concordo com Candido quando ele diz que a grande maioria de
leitores em potencial passa pela obra de escritores como Suassuna vendo e ouvindo
suas histórias mais do que lendo. Suassuna parte da oralidade dos cordéis e do sertão,
filtra, poetiza, transfigura e dá tom erudito a seu texto, mas, paradoxalmente, atinge a
grande maioria contemporânea pelas adaptações e “aulas-espetáculo”, portanto por uma
“oralidade transfigurada” pelos veículos de massa modernos. Nesse sentido não é
exceção: espetaculariza suas obras e atinge o grande público por meio da indústria da
cultura. Mas, por outro lado, quando não simplesmente aceita, mas negocia
esteticamente suas adaptações, escolhe seus diretores, cuida de perto da seleção dos
textos e é produzido em empresas escolhidas e aprovadas por ele, sem sair de
Pernambuco, é exceção porque consegue caminhar pela brecha, pela linha tênue,
palhaço-equilibrista entre o integrado e o apocalíptico. Transitando pela modernidade,
dando voltas e cambalhotas no cosmopolitismo, na indústria cultural e nas críticas que o
emparedam.
2.3 Da oralidade popular à “oralidade transfigurada”
O que chamamos de “oralidade transfigurada” é aquilo em que se transforma uma
obra que já tem uma influência oral rural ao ser adaptada para o oral urbano através dos
“intelectuais mediadores” e dos veículos de massa. Essa “transfiguração” é então,
segundo Antonio Candido, o recorte, a delimitação, as escolhas e as cores das
figurações do real. É figuração da figuração. Ariano Suassuna, quando adaptado, não
perde força estética nem sua força de voz, mas é como se ele mesmo assumisse por
45
ações, não por palavras, que a busca de raízes puramente nacionais começadas lá em
Mario de Andrade não fosse mais uma voz possível. Mas, mesmo assim, Suassuna não
deixa de, no papel desse personagem palhaço, mediador do trágico e do cômico da vida,
gritar sua ideologia até o fim e, por meio do narrador Quaderna da Pedra do Reino,
reconhece os discursos que o questionam e ri de um riso de absolvição. Afinal, é a
oralidade, a cantoria, a poesia e a literatura que o fazem “Rei sem risco”. Veja a voz do
narrador Quaderna – figuração de sua ideologia Armorial:
[...] Era me tornando Cantador que eu poderia reerguer, na pedra do Verso, o Castelo do
meu Reino, reinstalando os Quadernas no Trono do Brasil, sem arriscar a garganta e sem
me meter em cavalarias, para as quais não tinha nem tempo nem disposição, montando
mal como monto e atirando pior ainda! Assim firmou-se em mim a importância definitiva da
Poesia [...] continuei a refletir e sonhar, errante pelo mundo dos Folhetos. (SUASSUNA,
1971, p. 107)
E se torna rei, paradoxalmente, quando é incorporado pela modernidade como
mais uma voz. Aquela que trata do acesso às letras pela oralidade. Ou seja, o homem
contemporâneo, quando alfabetizado – já que em países subdesenvolvidos o grau de
analfabetismo é altíssimo se comparado aos países ditos desenvolvidos –, recebe muito
mais estímulos vindos da televisão, do cinema etc. Portanto, sai pouquíssimo da
oralidade para entrar de fato na ação de leitura e escrita. E nesse contexto a literatura
atinge uma minoria letrada. Ariano, portanto, inicialmente, filtra a cultura popular e a
oralidade nordestina, incorpora seu viés erudito e constrói a sua literatura intertextual
para a leitura de um terceiro público também letrado. Só quando se permite adaptar
pelos veículos de massa, aos quais ideologicamente critica, é que consegue atingir um
âmbito maior com a sua obra. Lembremos, no entanto, que, assim como Candido
cuidadosamente destaca, não se trata aqui de fazer parte do grupo dos absolutamente
“integrados” e “catequizados” pela indústria da cultura, já que entendemos também o
perigo iminente para a cultura e para a literatura caso se viva em função plena e acrítica
do discurso de massa urbano. No entanto, não vamos aderir também aos
46
“apocalípticos”, que são radicais contra as negociações e intercâmbios de influências e
discursos da modernidade. No livro Apocalípticos e Integrados, Umberto Eco propunha a
divisão nas categorias que davam título à obra relativamente às reações em face da
cultura de massas e da indústria cultural: de um lado, os apocalípticos, que
consideravam que a massificação da produção e consumo constituía a perda da
essência da criação artística, da aura24 de que falava Walter Benjamin, e, do outro, os
integrados, que acreditavam estar perante enormes avanços civilizacionais, de uma
efetiva e criadora democratização da cultura.
É preciso ter noção da impossibilidade de defender uma cultura pura quando o
acesso à informação se faz de forma tão simples e rápida; toda cultura é inegavelmente
híbrida e é preciso negociar criticamente influências e incorporações a todo tempo diante
de uma indústria cultural que tende a uniformizar. Antonio Candido lembra desse olhar
crítico quando diz que “não há interesse, para a expressão literária da América Latina,
em passar da segregação aristocrática da era das oligarquias para a manipulação
dirigida das massas, na era da propaganda e do imperialismo total”. (CANDIDO, 1983, p.
146) É preciso sempre, então, fincar os pés em seu local e absorver criticamente o
global. Suassuna, então, por esse viés, finca os pés em seu palco e parte da sua
oralidade sertaneja nordestina.
Luiz da Câmara Cascudo, em seu livro Literatura oral no Brasil, diz que o termo
literatura oral, na qual se inclui o romanceiro popular nordestino, fonte de inspiração de
Suassuna, é uma denominação de 1881, criada por Paul Sébillot em sua Littérature Oral
de la Haute-Bretagne. Sébillot afirma que “La littérature orale comprend ce qui, pour le
peuple qui ne lit pas, remplace les productions litéraires”25. Portanto, sua característica
mais forte é a persistência pela oralidade. São duas as fontes que mantêm essa corrente
viva:
24
25
In: Walter Benjamin “A Obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade Técnica”.
Em livre tradução, Sebillot diz que se compreende por literatura oral aquela que é feita por pessoas que, porque não
sabem ler, substituem suas produções literárias escritas pela habilidade oral de contar uma história.
47
1. A exclusivamente oral: as histórias, os cantos populares e tradicionais, as danças
cantadas, de roda, acalantos, jogos infantis, anedotas, adivinhações, lendas, etc.
2. A reimpressão de antigos livrinhos vindos de Portugal e Espanha, a exemplo de
Donzela Teodora, Imperatriz Porcina, Carlos Magno e Os doze pares de França.
Impressos ou não impressos, todas essas fontes pertencem à literatura oral,
principalmente os livrinhos que no Brasil são chamados de “lunários perpétuos” e as
“novelas” ao estilo de Carlos Magno e os doze pares de França, e são citadas por Ariano
Suassuna em suas obras. As formas de expressão citadas acima são consideradas
matéria de literatura oral porque foram feitas para o canto, para a declamação, para a
leitura em voz alta. Assim, cada uma das fontes orais é rapidamente absorvida “nas
águas da improvisação popular”. Cada tema é assimilado na poética dos desafios, dos
versos, das quadras nos sertões do Brasil. As danças dramáticas, os autos populares, as
louvações e lapinhas também são elementos vivos da literatura oral e trazem uma alta
carga de religiosidade, que Ariano, por sua vez, também traz em sua obra. Construção
de raciocínio absolutamente compreensível, ao se levar em consideração que Ariano foi
educado em colégio protestante, optou mais tarde pelo catolicismo e cresceu com os
circos e cantadores que passavam ou viviam em sua cidade. Religiosidade, poesia,
erudição e transfiguração circense que veremos na obra durante o estudo.
Depois de expostas, em alguma medida, as questões ideológicas do professor,
vamos à visão estética, à Pedra do Reino. Ao castelo poético. Ás máscaras do palhaço
para cada peso do rei. Veremos, nos próximos capítulos, como cada personagem na
Pedra do Reino se faz representação da ideologia de Suassuna e em que medida a sua
obra é dual – popular e erudita – e representa, poetiza e supera o Manifesto Armorial de
1974.
48
Mateus do cavalo marinho, auto de Pernambuco.26
...O Poeta, o Palhaço.
“Bem vedes, não sou eu
O Pierrô bufo e belo,
Filho de Cassandrino
Ou de Polichinelo!
Não! Eu sou o Mateus
De vermelho e de preto.
Sou o Diabo-Encourado,
O Sangue-do-Esqueleto
Que procura espargir
Pelo Mundo tristonho,
No sangue e ao pó da Morte
O Galope do sonho,
Na Onça-do-imprevisto
O guizo do Burlesco,
No Mocho do fantástico
O Tigre romanesco!”
(SUASSUNA, 1971, p. 252)
26
O cavalo-marinho é um auto originário de Pernambuco, também conhecido noutras regiões como bumba-meu-boi,
boi-de-reis, bumba e tantas outras denominações. Sofreu influência do elemento holandês, do totemismo africano e do
espírito indígena, formando um amálgama das três raças que compõem o nosso povo. Surge no terreiro, onde dançam,
brincam, tiram a sorte e são acompanhados de tocadores de bumbo, triângulo, ganzá, violão e atabaque. Esse complexo
espetáculo, que envolve música, dança e teatro, chamado de “dança dramática” por Mário de Andrade e que até hoje
representa uma das manifestações mais ricas de Pernambuco, foi fotografado por Verger em Recife em 1947.
49
3. Ariano Suassuna e suas dualidades
“[...] o que não tem salvação metafísica tem salvação estética”
27
, diz Ariano
Suassuna quando dá à sua arte alguma função em sua vida. Se a arte não precisa ter
utilidade, ela pode, como na arte de Suassuna, ter essa “função estética” de tornar
eterna a vida. Uma arte que mescla literatura, artes plásticas e música produzida com
base na arte popular por um autor de formação erudita e católica.
Por isso, a obra de Suassuna é costurada por uma linha da cultura popular e de
superação e estetização da morte. A busca da eternidade. Da ressurreição. E, claro,
para um autor de formação inicialmente protestante, mas que buscou na religião católica
e “católico-sertaneja” a presença da Rainha do Meio-dia (persona de Nossa Senhora e
da própria mãe), o problema fundamental do qual todos os outros dependem é o de
Deus. Seja a afirmação, a negação ou a dívida com a existência Dele.
“[...] há uma ligação entre religião e arte: ambas têm um caráter de absolvição
[...]”, diz Suassuna28. E nesse sentido há, no Romance da Pedra do Reino e o príncipe
de sangue do vai-e-volta, a personagem Moça Caetana como possibilidade de “perdão
estético”, como uma forma de superação das mortes que perpassam a sua vida: a morte
do pai, o governador da Paraíba João Suassuna29, a morte da cultura popular nordestina
diante da urbanização e da modernização – um dos sentidos de ação quixotesca em boa
medida já discutido – e, também, a possível vontade de superação da sua própria morte.
“Não vou morrer. Já fiz minhas avaliações e vi que não é um bom negócio. A morte tem
um pouco de suicídio. Se você deixar, ela vem e te leva”.30 E quando diz isso, com a
27
28
29
Em entrevista à publicação “Cadernos de Literatura Brasileira” do Instituto Moreira Salles.
Idem.
João Suassuna, governador da Paraíba e deputado federal, foi assassinado em 9 de outubro de 1930 a tiros, em
conseqüência da divisão na política paraibana. Defensor da cultura rural nordestina, João Suassuna fazia oposição ao governo
de João Pessoa, defensor da cultura urbana e da modernização. Rixa que já contribuíra para a eclosão da Revolução de 30.
Dantas Suassuna, tio de Ariano, foi quem matou João Pessoa. E numa época e região em que sangue se lavava com sangue,
João Suassuna foi morto também. Ariano era um menino que tinha entre três e quatro anos nessa época.
30
Discurso proferido quando recebeu o título de Doutor Honoris Causa, no Teatro Odylo Costa Filho, na UERJ, Rio de
Janeiro em 2002.
50
ironia e a cambalhota do palhaço que lhe são peculiares, deixa claro para o ouvinte mais
cuidadoso que não pode nem quer ter seu discurso ou a si mesmo plenamente
entendido, criticado, analisado ou, principalmente, colocado em algum “estojo
museológico”31, se bem que paradoxalmente faça isso com seu próprio conceito de
cultura popular. Mas é que talvez saiba que o homem está sempre em constante
modificação e que nunca é possível compreender sua alma plenamente32, que nisso
difere da personagem que faz parte de uma “realidade criada”. Só é possível – ainda que
arbitrariamente – entender de uma forma mais completa o homem quando ele morre, já
que aí sim não tem mais como jogar com suas máscaras33. Suassuna, ao se recusar a
morrer, se mostra alguém que, a não ser por distração, não quer se deixar perceber (ou
aprisionar). Tem sempre um trágico de alma por trás de cada máscara do “riso de
absolvição”. E em O Rei Degolado ao Sol da Onça Caetana, a voz de Quaderna dá força
a essa afirmação:
[...] Sou um católico-sertanejo e sei, por experiência própria, que, na maior parte dos
casos, nosso perdão é feito somente de falta de coragem para a vingança, que nosso
pacifismo é, quase sempre, desculpa para a covardia. Assim, as crônicas feitas por
Epopeietas como eu, Homero e Euclydes da Cunha, talvez sejam apenas sucedâneos das
punhaladas e das balas que deveriam ter vingado os assassinatos da nossa família e da
nossa raça, ou vingado a nossa honra pessoal, ferida de qualquer acontecimento.
(SUASSUNA, 1977, p. 85)
Veja que a voz de Quaderna dessa vez está entre as tragicidades e simbologias
gregas representadas por Homero e o tom seco, sociológico, que poetiza sem encobrir o
sofrimento do sertão na representação de Euclydes da Cunha.
E então outra
personagem, o príncipe do Cavalo Branco, quer fazer parecer, com suas diversas
ressurreições, que a força e a esperança de vida do ponto de vista do sertão, do que ele,
31
Expressão de José Miguel Wisnik.
32
... o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram
terminadas - mas que elas estão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou. –
Riobaldo em Grande Sertão: Veredas de Guimarães Rosa.
33
Na perspectiva de Antonio Candido em “A Personagem de Ficção”.
51
seguindo Machado de Assis, chama de Brasil Real, estão sempre sendo assassinadas,
mas sempre retomam a vida. Sempre vão e voltam, como explícito no próprio título.
Esperança de ressurreição que se mostra quando Ariano relembra nessa personagem o
mito de Dom Sebastião34.
Vale repetir que O Romance da Pedra do Reino – um romance armorial – com
mais de setecentas páginas – que poderiam ser menos, não fosse essa vontade de
infinito - ainda quer mais, é o início de um plano de trilogia de romances que se pretende
A maravilhosa desventura de Quaderna, o Decifrador e que segue ainda com as
chamadas novelas romançais a História d’O Rei Degolado nas caatingas do sertão: ao
sol da Onça Caetana e continua com O romance de Sinésio, o Alumioso, Príncipe da
Bandeira do Divino do Sertão, em produção desde o fim da década de 1970 e que,
segundo Suassuna, terá mais de oitocentas páginas. Encontra-se aí um Suassuna em
tom de Sherazade de As mil e uma noites. Contar, contar e contar, assim se evita a
morte em tons de poesia. Porque a ação poética não acaba. Haja vista o fragmento de
Paul Valéry em Situação de Baudelaire:
O dever, o trabalho, a função do poeta são colocar em evidência essas forças de
movimento e de encantamento, esses excitantes da vida afetiva e da sensibilidade
intelectual em ação que, na linguagem usual, são confundidos como sinais e meios de
comunicação da vida comum e superficial. O poeta consagra-se e consome-se, portanto,
em definir e construir uma linguagem dentro da linguagem; e a sua operação longa, difícil,
delicada, que exige as qualidades mais diversas do espírito e que nunca se acaba, da
mesma forma como nunca é exatamente possível, tende a construir o discurso de seu ser
mais puro, mais poderoso e mais profundo em seus pensamentos, mais intenso em sua
vida, mais elegante e mais feliz em suas palavras que qualquer pessoa real. (VALERY,
1991, p. 30)
A cultura oral, base da obra de Suassuna, é mais que um conto, um recado35. Os
repentes, os folhetos, as histórias populares são do âmbito do recado. Não à toa,
34
D. Sebastião I (20 de janeiro de 1554 - 4 de Agosto de 1578), décimo sexto rei de Portugal, e sétimo da dinastia de
Avis. Era neto do rei João III, tornou-se herdeiro do trono depois da morte do pai, o príncipe João de Portugal, duas
semanas antes do seu nascimento e rei com apenas três anos, em 1557. Em virtude de ser um herdeiro tão esperado
para dar continuidade à dinastia de Avis, ficou conhecido como O Desejado; alternativamente, é também memorado
como O Encoberto ou O Adormecido, graças à lenda que se refere ao seu regresso numa manhã de nevoeiro, para
salvar a nação.
In: http://pt.wikipedia.org/wiki/Dom_Sebasti%C3%A3o Acesso em: 5/7/2006.
35
Do ponto de vista de José Miguel Wisnik em ensaio sobre o conto “Recado do Morro” de Guimarães Rosa.
52
Guimarães Rosa conta em Corpo de baile o conto “Recado do Morro”. Recado. Palavra
que pressupõe continuidade, o “passe adiante e não deixe que se acabe”. Quem manda
um recado o joga no mundo. E quem dá o recado, o faz com tons e enfoques de sua
própria interpretação. No conto de Guimarães, um eremita ouve um recado que vem do
fundo da terra. Esse recado é passado, de boca em boca, das mais diversas formas, por
sete personagens, entre visionários, crianças e débeis mentais, até que o último deles, o
cantor popular, lhe dá a forma de uma canção. E só aí o herói toma consciência de que
está sendo vítima de uma cilada. José Miguel Wisnik, em seu ensaio O Minuto e o
milênio, diz que a canção popular é uma “rede de recados” em que a base é uma só e
“está enraizada na cultura popular: a simpatia anímica, a adesão profunda às pulsações
telúricas, corporais, sociais, que vão se tornando linguagem”. A cultura oral popular é,
portanto, esse repassar constante de idéias fragmentadas, “dionisíacas” – numa
expressão em que Wisnik lembra Nietzsche – até uma forma final que, no entanto, não
se fixa. É por isso que, segundo Suassuna, na cultura oral popular é comum um
repentista, um cordelista ou um cantador retirar um da obra do outro, sem a menor
cerimônia, partes de histórias que reconta em suas próprias. Mas há a obrigação de
enriquecer a herança, de incorporar novas histórias. “Não se pense que estou
inventando ou partindo do nada. É claro que, como todos os poetas, eu recrio e
transfiguro os mitos de meu Povo.”36 Dessa maneira há toda uma intertextualidade, uma
ponte com os cordéis nordestinos em sua obra.
Segundo
Julia
Kristeva,
que
pela
primeira
vez
utilizou
a
expressão
intertextualidade, em 1969, todo texto é a absorção e transformação de outro texto. E
ainda Voltaire, postulava esse princípio quando dizia: “Quase tudo é imitação [...] Há
livros como fogo em nossos lares; busca-se o fogo no vizinho, acende-se-o a outros e
ele pertence a todos” (Coutinho e Carvalhal, 1994, p. 36).
36
SUASSUNA, Ariano. O Rei Degolado nas Caatingas do Sertão – Ao sol da Onça Caetana. José Olympio Editora.
Rio de Janeiro, 1977. In Notas do Autor (p. 131).
53
Portanto, quando Ariano cita os poemas dos folhetos, descreve as danças e
tradições religiosas da cultura nordestina em sua obra, ele, com essa ação intertextual,
universaliza uma expressão popular que em princípio seria conhecida apenas em âmbito
local. Por outro lado, ao ser esse intelectual mediador, ao recortar em tom erudito/
armorial, ele corre sempre o risco de encobrir ou transfigurar em certa medida o peso
trágico das expressões populares. Mas em seu romance Suassuna não o faz quando
transparece esse entendimento do risco e assume – em Quaderna – uma cegueira.
Cegueira alegórica que ora atinge o olhar estético e poético para que transpareça o
trágico da “carnadura concreta” do real, ora atinge o olho trágico para que a poesia tenha
espaço para encher de brilhos a pedra do sertão e a transforme na pedra do reino. E
transitando por esse limiar sonho-real empírico, o narrador Quaderna vai conciliando
contrários e trazendo o popular pelo viés erudito em cada passo de sua obra.
3.1. O popular e o erudito Quaderna
Dividido em cinco livros e 85 folhetos, não em capítulos, O Romance da Pedra do
Reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta mostra em primeira análise uma
homenagem aos folhetos do romanceiro popular do Nordeste. Mas essa divisão é
também uma forma conscientemente escolhida por Ariano para conservar a
simultaneidade e até certa independência das múltiplas narrativas do personagemnarrador Quaderna na Pedra do Reino, formando um mosaico, um labirinto que, segundo
Idelette Muzart, torna difícil até para quem leu diversas vezes o romance, fazer um
resumo da obra sem traí-la ou subtraí-la de alguma maneira. Compartilhamos da mesma
angústia. Parece-nos que esse próprio estudo vai ficando em pedaços, tantas as
possibilidades. Esse labirinto (de histórias, acontecimentos, casos e mitos) é costurado
tanto por citações dos poemas de cordel como por poemas eruditos de autores como
Álvares de Azevedo e Gonçalves Dias.
Um Gonçalves Dias citado como “poeta
54
visionário” dos acontecimentos do sertão logo no início do romance. É uma longa
citação, mas vale a pena para perceber o tom da narrativa:
Há três anos passados, na Véspera de Pentecostes, dia 1º de junho de 1935, pela estrada
que nos liga à Vila de Estaca-Zero, vinha se aproximando de Taperoá uma cavalgada que
iria mudar o destino de muitas das pessoas mais poderosas do lugar, incluindo-se entre
estas o modesto Cronista-Fidalgo, Rapsodo-Acadêmico e Poeta-Escrivão que lhes fala
neste momento [o narrador Quaderna] [...] Era realmente uma verdadeira “desfilada
moura” [...] uma atmosfera de feira-de-cavalos; de sortilégios e encantamentos; de
companhia de Circo; de comboio-de-mal-assombrados; de cavalaria de rapina; de
comércio de raízes, augúrios e zodíacos [...] uma tribo de Ciganos sertanejos em viagem.
Uma coisa que talvez cause estranheza aos menos avisados é que o genial Poetabrasileiro e Patrono-acadêmico, Antônio Gonçalves Dias, tendo vivido um século antes
dessa cena, já previsse que ela ia acontecer [...] “os poetas são verdadeiros visionários”:
Eram ciganos errantes,
Atilados e torcidos,
Trocadores de Cavalos
Com semblantes de atrevidos:
Causa medo vê-los tantos,
Tão astutos e crescidos.
Vinham Ladrões de cavalo,
Vinham muitos Raizeiros,
Vinham, do Sol abrasados,
Nossos bárbaros Guerreiros,
Bons dizedores de Sortes,
Muitos e bons Cavaleiros!
E vinha o Donzel errante
No cerco dos roubadores!
De sua Dama-de-Copas
No Escudo trazia as cores:
Tinha amor pela Sonhosa,
Eram claros seus amores!
Enfim, dizer quanto vimos
Não cabe neste papel:
Vinham muitas alimárias
- são roubadas a granel –
e vinha o Alumioso,
montado em branco Corcel!
(SUASSUNA, 1971, p.35 - 37)
Logo no primeiro fragmento, Dom Pedro Dinis Ferreira-Quaderna se apresenta
como “Cronista-fidalgo, Rapsodo-Acadêmico e Poeta-Escrivão”, se refere eruditamente a
Gonçalves Dias e às novelas de cavalaria (que já percebemos anteriormente ao falarmos
da Demanda do Santo Graal, que é do ciclo arthuriano), dá tom de religiosidade ao citar
a época de Pentecostes e tom popular ao destacar o clima circense. É então o popular e
55
o erudito caminhando lado a lado. Uma dualidade que se mostra em movimento
constante em toda a obra de Ariano Suassuna. A própria expressão aula-espetáculo,
que Suassuna escolhe para denominar as suas apresentações pelo país, demonstra
esse tom erudito da aula somado ao tom popular do espetáculo. No Romance da Pedra
do Reino, a maioria das personagens tem ponto e contraponto. Quando o narrador
Quaderna começa a descrever as personagens da trama, desde sua família, passando
pela descrição de sua casa, que é também biblioteca, os opostos se apresentam. Como
exemplo, apresentamos, além daqueles que destacamos para analisar separadamente,
seus primos Arésio e Sinésio (o Alumioso), que são filhos do padrinho Dom Pedro
Sebastião (aquele que foi “misteriosamente” assassinado e que gera o inquérito37 ao
qual Quaderna responde).
Arésio é duro, solitário, violento, moreno, de barba cerrada e negros cabelos
encaracolados. Já Sinésio, dez anos mais moço, é calmo, alumioso, alourado, estimado
por todas as pessoas, principalmente pelos pobres, da fazenda e da vila.
Durante a trajetória, o narrador Quaderna está sempre entre pontos de
oposição, e a dualidade está inclusive na própria imagem da pedra, dois rochedos
gêmeos da região de Pedra Bonita, mais especificamente na cidade de São José de
Belmonte, divisa de Pernambuco e Paraíba, no meio árido do sertão do Cariri. É, aliás,
entre esses dois estados, que Ariano cresce e constrói suas referências. Nasceu em 16
de junho de 1927, na cidade de Nossa Senhora das Neves, então capital da Paraíba,
atual João Pessoa e cresceu em Taperoá no sertão da Paraíba divisa com Pernambuco
para onde fugiu com a família depois da morte de João Suassuna, uma das
conseqüências da luta política da Revolução de 1930. Durante todo o romance contado
pelo narrador Dom Pedro Dinis Ferreira-Quaderna, é também possível observar: o Brasil
Real e o Brasil Oficial, o sagrado e o profano, o arcaico e o moderno, a literatura oral e a
37
“Sinésio foi raptado de maneira enigmática em 24 de agosto de 1930 (...) meu padrinho foi encontrado morto dentro
do aposento alto da torre da capela que ele mesmo fechara por dentro (...) Morrera como São Sebastião”
(SUASSUNA, 1971, p. 163). É assim que Quaderna descreve o inquérito ao qual responde.
56
escrita, o local e o universal. Do ponto de vista do castelo poético, do “riso a cavalo no
galope do sonho”, do rei e do palhaço como facetas da alma humana.
3.2 A morte Caetana e a religiosidade popular
As formas de catarse de expressão e revolução popular do Nordeste se dão
freqüentemente de duas formas: ou pela revolução sanguinária há exemplo do cangaço,
ou pelo messianismo religioso, como o sebastianismo. Mas Suassuna constrói uma
terceira forma de grito de vida e impedimento de sofrimento por intermédio da poesia e
da arte – no caso de Suassuna, a literatura. E desse palco literário é que o narrador
Quaderna descreve a morte – Moça Caetana – e a estetiza para que logo depois tente
superá-la. É, aliás, em O Rei Degolado que Caetana chega com mais força. Na Pedra
do Reino, a personagem representante da morte não está tão em foco, apesar de
Suassuna assumir que é na fala da personagem na Pedra do Reino que ele quis deixar o
resumo de toda a sua obra.
Da estetização da morte, veja fragmento de O Rei
Degolado:
Como Divindade tapuia-sertaneja, Caetana era bela, imortal e eternamente jovem, dotada
daquela beleza ao mesmo tempo cruel, terrificante e fascinadora que é própria de sua
hierarquia divina. Já fulminara muita gente com o toque de sua mão e com seu mortal
abraço. Já farejara e bebera muito sangue entre aquelas pedras selvagens do Reino do
Sertão. (SUASSUNA, 1977, p. 11)
57
58
Para encarar a morte é preciso que ela seja bela, sublime, fascinadora, ainda que
fulminante. Nesse ponto, Ariano traz à tona o que há na Poética de Aristóteles. O
sublime é, por esse enfoque, aparentado ao trágico porque “ambos despertam o terror e
a piedade”38. E são ambos vertentes da beleza, que não é só relacionada com o belo
mas também com o cômico, com o sublime, com o gracioso, com o risível, com a beleza
do feio e com a beleza do horrível. Cada uma dessas categorias é explorada por
Suassuna na voz de Quaderna na Pedra do Reino e em O Rei Degolado. Veja o que diz
Quaderna em O Rei Degolado:
[...] eu acho o Sertão bonito exatamente por causa daquilo que os delicados acham feio
nele – o nosso Povo mameluco, tapuio-ibérico, de cara-de-bronze e pedra; os nossos
estranhos heróis, personagens de uma legenda obscura e extraviada; as estradas e
caatingas empoeiradas, pedreguentas e espinhosas; as casas-fortes quadradas, brancas,
achatadas e baixas, meio mouras, de paredes de pedra-e-cal ou de taipa, e de chão de
tijolo; e a caatinga espinhosa e selvagem, povoada de répteis envenenados, de aves-derapina, escorpiões, marimbondos e piolhos-de-cobra. (SUASSUNA, 1977, p. 66)
Então, ao encarar o tom trágico da vida, é preciso “transfigurá-lo”, para que seja
belo, sublime e fascinador, ainda que fulminante. Ariano bufão com corpo do palhaço
cria um Quaderna mediador do trágico e do cômico, do popular e do erudito, que faz jogo
de espelhos entre o palhaço e o professor, como já vimos anteriormente e
desenvolveremos melhor em capítulo à parte.
Nessa mediação fala o professor que faz com que o romance também se abra a
inúmeras referências que se movimentam pela obra – de Cervantes a Nietzsche, de
Euclydes da Cunha a Alencar, de Homero a Commedia dell’arte –, que se misturam e
criam a cada movimento novas imagens sem perder a força de suas próprias vozes.
Como num caleidoscópio que a cada força externa recria uma nova forma, mas deixa
clara cada parte ou pequeno pedaço da recriação num texto quase sempre
38
In: ARISTÓTELES, Poética.
59
metalingüístico que cita explicitamente as influências do autor. Veja o tom explicativo
quando Quaderna se utiliza de um canto do cordelista Leandro Gomes de Barros para
ilustrar o seu “reino”. Primeiro cordelista brasileiro segundo consta39, Leandro é citado
por Quaderna como “profunda influência na minha formação político-literária”
(SUASSUNA, 1971, p. 322). Ele explica em tom professoral quase didático a relação do
canto com sua obra e transparece o vaidoso rei:
Creio, nobres Senhoras e belas Damas, que com o que Vossas Excelências já conhecem
sobre mim, bem podem avaliar o sentido cifrado, astrológico e sagrado desse Canto e do
meu Castelo: “as Pedras do Reino por outras pedras cercada” são alusões do romance
aos dois rochedos gêmeos da Pedra Bonita, de onde, há um século, meus antepassados
reinaram sobre o nosso País; o Reino é o Brasil, este Sertão do mundo; o Rei, sou eu;
também sou eu o Cantador cuja voz se ouvia, clamando às armas; a Serra mais alta, é a
Borborema; a Fortaleza que salva é esta minha obra, este meu Castelo, Fortaleza, Marco
e Catedral-soterrada que eu possuo, como todos os Cantadores e Cangaceiros possuem
os seus; a princesa encantada é Dona Heliana, a dos Olhos Verdes; assim como o
Prinspe ou Príncipe legendário de quem eu conto a legenda é o meu primo e sobrinho
Sinésio, o Alumioso, que tanto a amou; finalmente, a busca da Pedra Perdida da Coroa
Imperial (busca na qual o Povo mouro-cruzado do Brasil empenha seu sangue) é a
“Revolução da Guerra do Reino”, que, se Deus bem me ouve, o Rapaz-do-Cavalo-Branco,
enquanto eu permaneço aqui aprisionado, estará lá fora levando a bom termo, para glória
do nosso sangue e da nossa Raça.” (SUASSUNA, 1971, p. 323)
Nesse movimento constante de peças e pedaços, o fragmentário Suassuna usa
na Pedra do Reino, entre outras “insígnias”, a imagem das cartas de baralho, lembrando,
entre outros aspectos que desenvolveremos a seguir, que se há a força externa das
interpretações do leitor e dos contextos históricos, há também a força, intuição e decisão
de um “mentiroso lírico”, de um “epopeieta” e de um sertanejo, antes de tudo um forte40,
que tem o “direito e liberdade” de transfigurar o caminho dessa pedra.
[...] A grande vantagem dos Zodíacos, cartas de Baralho, bandeiras, Brasões, mantos com
Cruzes e Crescentes, estrelas de Prata, Lanças e outras insígnias régias da minha Igreja
e da minha Monarquia, era que, com eles, eu enchia o Buraco cego e vazio do Mundo e o
Deserto-assírio da minha alma... (SUASSUNA, 1971, p. 560)
39
40
In: www.ablc.com.br (site da Academia Brasileira de Literatura de Cordel).
DA CUNHA, Euclydes. In Os sertões, p. 99.
60
É ele, portanto, que dá as cartas sob as rédeas do seu Movimento Armorial.
Mesmo que essa força não impeça que, na modernidade, essa pedra mude de posição,
transite “de mão em mão”, a ação de força, a pura e simples intenção da ação, é, para
ele, necessária à vida. E aí o coração da trajetória. E aí também a tensão com teóricos
como José Miguel Wisnik. Suassuna trabalha para que a pedra – a cultura popular – seja
fixada na ideologia Armorial. Pensa que só assim ela não morre. Veja a fala da
personagem Moça Caetana em O Romance da Pedra do Reino:
[...] Entre o sol e os cardos, entre a pedra e a estrela, você caminha no Inconcebível. Por
isso, mesmo sem decifrá-lo, tem que cantar o enigma da Fronteira, a estranha região
onde o sangue se queima aos olhos de fogo da Onça-Malhada do Divino. Faça isso, sob
pena de morte! Mas sabendo, desde já, que é inútil [...] (SUASSUNA, 1971, p. 306)
Entre tantos enigmas pincelados pelo discurso da morte, que se encontra no
Folheto XLIV – Visagem da Moça Caetana e que, diz Suassuna, é um resumo do que
pretende no romance, o que a própria representação da personagem chama de “inútil”
nesse fragmento se mostra desde o início da narrativa da Pedra do Reino. E quer
mostrar que caminhar no limiar do sonho e da realidade empírica, “sol e cardos”/ “pedra
e estrela”, leva o narrador Dom Pedro Dinis Ferreira-Quaderna – que, mais uma vez
lembrando, se descreve como “Cronista-Fidalgo, Rapsodo-Acadêmico e Poeta-Escrivão”
– à prisão, onde se encontra envelhecido e dolorido, e olha o que chama de “tripla face”
– paraíso, purgatório e inferno – do Sertão por uma janela gradeada. Influência direta de
Dante e a Divina comédia ou da Barca do inferno de Gil Vicente. Tanto a referência de
Dante quanto a de Gil Vicente remetem ao tom religioso medieval da cultura popular, a
busca da absolvição e da defesa de julgamentos e liberação das culpas por que passa o
homem quando se encontra sob a mira de Deus e do Diabo. Quaderna inicia, portanto, a
sua narrativa, que é um “pedido de clemência” em tom agreste, espinhento e pedregoso
no qual descreve a Terra como “esta Onça-Parda em cujo dorso habita a Raça piolhosa
dos homens” mas ao mesmo tempo esperançoso de que por meio de tal “pedido de
61
clemência” em forma de romance consiga atingir especialmente “o coração mais brando”
das mulheres e filhas da justiça. Tom do “valha-me, Nossa Senhora”, da força da Rainha
do meio-dia, que acompanha Suassuna desde O auto da compadecida, ou melhor, que o
acompanha desde sempre. Em O Rei Degolado, veja como Quaderna traça essa relação
de Marias – mãe e santa – e tange corda por corda essa lira ao mesmo tempo forte e
frágil da religiosidade maternal sertaneja popular:
Minha mãe, uma santa mulher, cantava em algum lugar, ali perto:
Estrela dos heróis,
Santelmo do lepanto,
Estende sobre nós
O teu sagrado Manto!
E então eu como que vi a figura estrelada e maternal da Virgem, a parte fêmea da
divindade estendendo sobre o Sertão o seu manto sagrado, para nos abrigar contra o fogo
terrível de Deus e da Santa Ardente. A Virgem chamava-se Maria, como nos ensinava Tia
Felipa nas lições de catecismo; e como o nome de minha mãe era também Maria, eu
ligava tudo aquilo à ela, à sua pele alva e fresca, às suas mãos abençoadas que
pousavam sobre a minha testa quando eu estava abandonado e solitário. (SUASSUNA,
1977, p. 103-104)
Transparece aí a sociedade matriarcal e a religiosidade mariana católica41 que
transborda na cultura popular do Nordeste e que é homenageada por Suassuna em sua
obra. Falaremos um pouco de tal forma de referência a seguir, quando nos parece que
Suassuna é um “narrador e romancista-homenagem”.
3.3 O narrador e romancista-homenagem
Entre outros encontros, nesse da arte e da religião popular, Ariano estrutura,
esteticamente, o que vou chamar de uma voz de “narrador e romancista-homenagem”.
Homenagem à cultura popular sob a voz da cultura erudita e a transfiguração que isso
acarreta. Lembre-se que Quaderna é um letrado que tem sempre a necessidade ou age
41
Vide O auto da compadecida.
62
em busca de uma aprovação do viés oficial – Igreja, academia de letras, corregedoria –,
como veremos sempre na estrutura do romance.
O Romance da Pedra do Reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta é, aliás,
romance quando encontra a Mnemosyne – deusa grega da reminiscência descrita em O
narrador de Walter Benjamin – e registra, por escrito, por intermédio da personagem
escrivã Dona Margarida, as “rememorações perpetuadoras” de Quaderna, que consagra
heróis históricos, peregrinações e combates transfigurados pelo relato poético do
narrador.
[...] Sou um epopeieta, de modo que tenho certas liberdades que me são outorgadas
pelo Gavião Macho-e-fêmea sertanejo que me serve de musa [...] entre essas liberdades,
está a de adivinhar e profetizar as conversas que não ouvi! – (SUASSUNA, 1971, p. 487)
Ao citar Benjamin, no entanto, é preciso lembrar que o contexto de seu Narrador é
o da crítica ao capitalismo e que apenas em certa medida seus conceitos servem ao
narrador Quaderna de Suassuna. Há exemplo da reminiscência. É igualmente
importante destacar, mesmo que correndo o risco de cair em obviedades, que Suassuna
fala pela voz do narrador Quaderna, mas nunca o narrador é o autor ele próprio. Fazem
parte de mundos diferentes mas que, afinando no diapasão do crítico de cinema Ismail
Xavier42, desenvolvem uma relação de cumplicidade sutil que envolve todas as partes –
autor, narrador, leitor - desse “jogo da linguagem” no “jogo de metamorfoses da ficção”.
Segundo Ismail, o autor é aquele que se transforma em alguém que acredita no que
conta como se tivesse testemunhado o fato e então se empenhasse em encantar os
leitores. Em contrapelo e, na medida em que usa os fatos históricos de sua vida em sua
obra, Ariano Suassuna se transforma naquele que, ao acreditar no encantamento dos
fatos que testemunhou, joga a transfiguração desses fatos na voz do narrador Quaderna.
Diz o próprio Suassuna: “[...] quem narra A Pedra do Reino é Quaderna: assim, o que
42
In: XAVIER, Ismail. Sertãomar – Glauber Rocha e a estética da Fome. São Paulo: Editora Brasiliense, 1983.
63
parece mágico aí pode ser sonho, ou alucinação, ou astúcia dele – é isso que, a meu
ver, permite-lhe a bipolaridade entre o realismo fantástico e o realismo crítico”. 43 O leitor,
por sua vez, aciona em que medida quer se envolver nesse jogo e aceitar a
autenticidade dos eventos. Em que medida é, enfim, cúmplice do “faz-de-conta”. O
narrador é então, completando o circuito de cumplicidades, a figura mediadora que
resulta da metamorfose do autor, de sua invenção, do seu trabalho. Então, com essa
estrutura em mente, parece-nos que o leitor está sentado entre os “Nobres Senhores e
belas Damas de peitos fartos” aos quais Quaderna se refere volta e meia em ação de
parábase e a posição e a representação de Quaderna durante a narrativa é a do
narrador “epopéico” e rural que conta oralmente uma história, registrada letra a letra,
com os tons de oralidade, pela personagem Dona Margarida, a escrivã. E conta a tal
“epopéia” a um Corregedor, que questiona, recorta e observa com os tons oficiais e
urbanos. Caricaturas em personagens do Brasil Real versus Brasil Oficial, face a face,
com suas respectivas figurações e transfigurações. Veja o fragmento:
-- E é verdade tudo isso? Todas essas roupas fidalgas, essas bandeiras, essas onças,
esses acontecimentos estranhos, tudo isso é verdade ou é “estilo régio”?
-- Bem, se o senhor quiser, pode imaginar somente uns cavalos pequenos, magros e
feios, uma porção de gente suja, magra, faminta e empoeirada, arrastando por aquela
estranha Estrada uma porção de velhos animais de Circo, famélicos e desdentados, numa
tropa pobre e amontoada. Para mim, porém, somente o facho sagrado da Poesia régia é
capaz de dar a medida daquele evento extraordinário, de caráter epopéico! [...]
(SUASSUNA, 1971, p. 398-399)
O Brasil Real, em tal exemplo, claramente transfigurado pela poesia na tal
epopéia que ele diz construir. É, então, importante aqui, para entender o castelo poético
construído por Suassuna em seu reino, destacar as características da epopéia, já que o
narrador Quaderna se diz um epopeieta. A epopéia é um poema heróico ou sacro,
protagonizado por um ou vários personagens idealizados, que celebra feitos
43
In: Posfácio a MARINHEIRO, Elizabeth – A intertextualidade das formas simples (aplicada ao Romance da Pedra do
Reino). Rio de Janeiro: 1977. (p.183).
64
significativos de um povo ou nação. Esse gênero literário foi cristalizado na antiguidade
greco-romana, com a Ilíada e a Odisséia de Homero.
As epopéias têm em comum, na origem, o caráter espontâneo, popular e coletivo.
Constituíam o modo pelo qual as lendas eram normalmente transmitidas, obedecendo ao
impulso humano de contar histórias. Em muitas delas, porém, a começar pela Ilíada e
pela Odisséia, parece decisiva a ação final de um único artista – o poeta –, que organiza
o todo num enredo harmonioso e o transforma em poema de efeito grandioso e
características universais.
O estilo, nobre e grandiloqüente se prestava à exaltação dos fatos narrados,
desenredados em cenários freqüentemente monumentais. Batalhas heróicas, viagens
prolongadas e exóticas, presença e ação de seres sobrenaturais. Bem ao estilo de Dom
Pedro Dinis Ferreira-Quaderna, que se compara durante toda a narrativa a Homero e
Euclydes da Cunha, querendo superá-los. Segundo Lukács em sua Teoria do romance,
na epopéia, enquanto a alma parte em busca de aventuras e as vive, ignora o tormento
efetivo da busca e o perigo real da descoberta; nunca se põe em jogo; não sabe ainda
que pode se perder e não imagina nunca que lhe é necessário procurar-se. Ser e
destino, aventura e acabamento, existência e essência são para a epopéia noções
idênticas. E o Quaderna epopeieta sonha então um sonho grandiloqüente: “[...] Meu
sonho é misturar os Fidalgos ibérico-brasileiros com os Fidalgos brasileiros negrovermelhos, porque aí eu mostro que todos os Brasileiros são fidalgos e nossa gloriosa
História do Brasil é uma Epopéia da gota-serena!” (SUASSUNA, 1971, p. 352)
Transparece no fragmento um discurso ideológico de tom integralista44 que merece
crítica. Mas vamos partir pelo viés da poesia por enquanto.
44
Veja o fragmento do Manifesto Integralista de 7 de outubro de 1932: “O nosso nacionalismo – O
cosmopolitismo, isto é, a influencia estrangeira, é um mal de morte para o nosso Nacionalismo . Combatê-lo é o
nosso dever [...] E somos contra a influência do comunismo, que representa o capitalismo soviético, o
imperialismo russo, que pretende reduzir-nos a uma capitania. Levantamo-nos, num grande movimento
nacionalista, para afirmar o valor do Brasil e de tudo que é útil e belo, no caráter e nos costumes brasileiros; para
unir todos os brasileiros num só espírito: o tapuio amazônico, o nordestino, o sertanejo das províncias nortistas e
65
3.4. O Castelo Poético – um aspecto da transfiguração
O realismo transfigurado pelas métricas da poesia é a opção por figurar
simbolicamente os fatos históricos, documentados e datados da cultura oficial e dos
livros eruditos, transformando tais fatos em referências recobertas por camadas de um
imaginário que só admite a sobrevivência de fragmentos selecionados, assumindo um
estatuto de “lenda narrada” que projeta o processo histórico num campo alegórico que
encaixa esses mesmos elementos históricos no âmbito de um essencial definido pelo
narrador. No entanto vale lembrar que o sentido do cineasta Glauber Rocha analisado
por Ismail em O Sertãomar é a revolução, é o desejo de história se resolvendo pela
violência revolucionária, como parto necessário para superar a miséria, o atraso e o
subdesenvolvimento. Para Ariano Suassuna, essa imagem do sertão mar não se aplica
diretamente; o sentido de sua obra tem outro tom, o tom do riso – trágico – que liberta,
que absolve pelo sonho, pela poesia. Para Suassuna, as questões são muito mais
voltadas para o que se pode ter de superação estética, de comicidade e tragédia
“ambivalentes” que servem na arte justamente para impedir essa ação violenta direta.
Então essas figuras históricas que aparecem durante toda a narrativa, tanto da Pedra do
Reino quanto de O Rei Degolado, como Antonio Conselheiro e Lampião, por exemplo,
que também aparecem em Deus e o Diabo na Terra do Sol de Glauber, não se
pretendem – em Suassuna – como rigorosas representações de suas respectivas
histórias datadas, senão como figuração simbólica de um relato epopéico. “[...] na Arte, a
gente tem que ajeitar um pouco a realidade que, de outra forma, não caberia bem nas
centrais, os caiçaras e piraquaras, vaqueiros, calús, capichabas, calungas, paroaras, garimpeiros, os boiadeiros e
tropeiros de Minas, Goiás, Mato Grosso; colonos, sitiantes, agregados, pequenos artífices de São Paulo;
ervateiros do Paraná e Santa Catarina; os gaúchos dos pampas; o operariado de todas as regiões; a mocidade das
escolas; os comerciantes, industriais, fazendeiros; os professores, os artistas, os funcionários, os médicos, os
advogados, os engenheiros, os trabalhadores de todas as vias-férreas; os soldados, os marinheiros – todos os que
ainda têm no coração o amor de seus maiores e o entusiasmo pelo Brasil. Temos de invocar nossas tradições
gloriosas, temos de nos afirmar como um povo unido e forte, que nada mais poderá dividir [...]” (Grifo meu). In
www.integralismo.org.br Acesso em 7 de fevereiro de 2007.
66
métricas da poesia”, diz Quaderna quando explica que, apesar de partir da realidade
“rasa e cruel do mundo”, como o professor Clemente (a quem ele atribui o gosto pelo
rústico), dá também razão às transfigurações do poeta Samuel (a quem ele atribui as
transfigurações quadernescas). Transformação ou transfiguração que evidencia um
estilo de relato poético cuja inspiração, em Suassuna, está, como em Glauber, na
literatura de cordel. Portanto é relativo ao que faz Glauber apenas no que tange à
estrutura narrativa: transfigura simbolicamente os fatos históricos, admite a sobrevivência
de fatos selecionados, trabalha a dialética Deus e Diabo, mas cada um dentro do que
pretende com a própria arte. No Romance da Pedra do Reino Quaderna começa dizendo
que está preso, mas sua última ação da obra que continua em aberto é o sonho, um
sonho de levar a cultura popular ao âmbito erudito – Quaderna sonha que está sendo
coroado na Academia Brasileira de Letras como “Rei da Távola Redonda da Literatura
do Brasil” sob as bênçãos da Igreja e entre José de Alencar – um romântico – e
Euclydes da Cunha – um realista. Glauber, por sua vez, começa o filme com a referência
messiânica, portanto religiosa, de uma representação sebastianista de um Deus Negro e
termina com o grito de Corisco – o Diabo Louro – baleado a queima-roupa por Antonio
das Mortes. Mas Manoel, personagem principal que transita pela religião e pela guerra –
duas formas de força de revolução popular – foge e segue uma reta pelo sertão que não
tem fim também. O espectador não sabe aonde ele vai chegar, representando uma
esperança e uma vontade de vida por meio desse caminho que não acaba. Mas a última
das imagens é o mar: “o sertão vai virar mar”... Representação também de um tom
inconcebível, incontrolável, misterioso, perigoso da vida real empírica. Então, parece-nos
duas obras que terminam ou não terminam porque em aberto com a vontade de
libertação. Uma pelo sonho, outra pela revolução, mas ambos dentro do que há de
imaginário na própria vida de cada autor.
67
Não é do cordel (ou folheto), como prefere Suassuna, no entanto, a única e última
palavra em sua obra. Ele – o cordel – representa sim a identificação com o discurso de
raízes rurais, mas interage todo o tempo com outros discursos de origem urbano-erudita
que fazem parte da composição, como, por exemplo, entre outras, as referências
medievais dos clássicos de cavalaria e as tragédias gregas que se deslocam e se
multiplicam em importância durante a construção desse chamado castelo poético, lugar
de múltiplas vozes e da busca pelo universal, como no trecho a seguir de O Rei
Degolado:
Eu acreditava que, se dissesse certas palavras desconhecidas, a mim sopradas por
lagartos desenhados ou entalhados nas pedras pela estranha Raça Cariri, o Lajedo se
abriria, não para revelar simplesmente a entrada do Castelo, mas para me abrir seu
próprio interior sagrado, onde, vencida a dura crosta cinzenta de granito, eu encontraria,
aprisionados por grades de diamante, Arcanjos de quartzo e de cristal-de-rocha, que me
revelariam o sentido do Mundo. (SUASSUNA, 1977, p. 80)
O próprio registrar das cantorias e narrativas em formato de cordel é como uma
voz erudita que encena o popular e depura esse cantar em versos, garantindo a
imortalidade do recado. É então a voz do povo mediada por certa erudição que é
manifestada nessa literatura de cordel, e não a voz do povo ela própria. A representação
desta “ação de registro” é dada na Pedra do Reino por Dona Margarida – que, na
descrição feita pelo narrador Quaderna, mostra o que é, desse ponto de vista, o rústico
quando, para além da eruditização da escrita, ainda se aceita “lapidado” pela
oficialidade: “Ao seu lado [do Corregedor], estava a minha adversária e antiga
companheira de viagem, Margarida Torres Martins, loura, distinta e acessível, sentada
com ar virginal e eficiente diante de uma banqueta baixa, onde tinham colocado uma
velha e enferrujada máquina de escrever.” É então ela que registra o depoimento do
narrador Quaderna sob a orientação e mediação constante do olhar Oficial do
Corregedor. Real e Oficial em tons machadianos, como veremos a seguir.
68
3.5. O Brasil Real versus o Brasil Oficial: Quaderna, Corregedor, Dona Margarida
As expressões “país real” e “país oficial” foram criadas por Machado de Assis em
crônica publicada no Diário do Rio de Janeiro, de 29 de dezembro de 1861. Dizia ele que
o país real é bom e reserva os melhores instintos e que o país oficial é caricato e
burlesco45. Ao descrever o Corregedor – personagem oficial na Pedra do Reino –, o tom
do narrador Quaderna é grotesco (caricato e burlesco).
O Corregedor era um homem gordo, moreno, de cabeleira lisa e negra, com astutos olhos
de porco implantados numa testa baixa, e com uma crueldade dificilmente dissimulada [...]
parecia a cabeça de um cruzamento de Catitu com Cascavel [...] eu dizia que o Doutor
Joaquim Cabeça-de-Porco era uma mistura de caititu com cascabulho [cobras
venenosíssimas do sertão]. (SUASSUNA, 1971, p. 334 - 335).
Segundo Mikhail Bakhtin em Cultura popular na Idade Média e no Renascimento,
onde analisa a obra de François Rabelais, o realismo grotesco se caracteriza por
“rebaixar” os ideais da “alta cultura” (de origem clássica, elitista) ao plano terreno e
corporal. Valoriza o “baixo corporal”, os pontos nos quais o corpo se abre ou se liga ao
mundo a sua volta.
Bakhtin identifica ainda em tal realismo grotesco a ambivalência regeneradora, ou
seja, a capacidade de destruir e reconstruir na mesma ação. Como nas paródias que
escarnecem e louvam na mesma medida e nas manifestações culturais que têm o poder
de degradar e elogiar simultaneamente.
45
Na íntegra, o fragmento do artigo de Machado de Assis diz o seguinte: “A sátira de Swift, nas suas engenhosas
viagens, cabe-nos perfeitamente. No que respeita à política, nada temos a invejar ao reino de Lilliput. Não é desprezo
pelo que é nosso, não é desdém pelo meu país. O país real, esse é bom, revela os melhores instintos; mas o país
oficial, esse é caricato e burlesco”. Citação in Notas do artigo de Idelette Muzart Fonseca dos Santos para os
Cadernos de Literatura Brasileira, p. 110.
69
Foi o poeta Carlos Drummond de Andrade que, em texto de 4ª capa ao Romance
da Pedra do Reino, despertou para as “rabelaisiadas” do narrador Quaderna. Disse
assim: “[...] Ler esse livro em atmosfera de febre, febril ele mesmo, com a fantasmagoria
de suas desaventuras, que trazem a Idade Média para o fundo Brasil do Novecentos,
suas rabelaisiadas, seu dramatismo envolto em riso [...]” E aí, não é que Suassuna
chegue com Quaderna ao chão de Pantagruel ou Gargantua, mas, dentro dos “limites
morais cristãos”, dá sim seus tons “grotescos” à obra. Aprofundaremos a medida do riso
bakhtiniano mais adiante, porém vamos logo perceber o peso do grotesco em alguns
momentos do romance. Momentos que acontecem quando o personagem-narrador está
a caminho do encontro com o Juiz-Corregedor para o seu depoimento. É um caminho
cheio de simbologias que vai do sagrado ao profano e que, no profano, vai ao baixo
corporal grotesco. Logo após ter saído de casa absolutamente perdoado por Pedro
Beato, ex-marido de sua mulher Maria Safira, Quaderna vê que saiu muito cedo de casa
e resolve pegar o trajeto mais longo e mais difícil. Veja o fragmento:
O mais curioso é que não me encaminhei para a Ponte, que seria o local mais indicado
para passar o tempo, pois ali eu poderia me acolher à sombra das pilastras e descansar
um pouco. Em vez disso, entrei pelo Beco que fica no oitão do Chafariz, demandando o
trecho de beira-rio [...] aquele é um lugar imundo, que servia há tempo de monturo e
depósito de lixo [...] Do cais desce uma ladeira até o leito do rio, lá embaixo; e o terreno
dessa ladeira é coberto de lixo, velhos chifres de boi, pedaços de couro apodrecido,
cascos, costelas e caveiras, pois o Matadouro é logo ali perto, também à beira do rio.
Assim, só se explica que eu me dirigisse para lá por alguma razão obscura, pela
perturbação em que me encontrava, porque é realmente um lugar repugnante.
(SUASSUNA, 1971, p. 324 - 325)
Em tal caminho repugnante ele encontra Eugênio Monteiro, irmão de um amigo,
que é descrito como alguém de corpo forte e gorda nuca. Alguém que só vestia roupa
preta, chapéu duro e abaulado, era entroncado, moreno, calvo, de barba raspada mas
fechada, e que andava perto dos cinqüenta anos. Era ele que sabia de uns crimes
estranhos nos quais pelo menos três padres eram encontrados mortos. Tal homem
70
cumprimentou Quaderna assim: “– O Diabo, Quaderna!” – e apontou na direção de uns
cachorros que disputavam carniça:
-- Sabe o que é que eles estão disputando?
-- Não! Deve ser algum pedaço de carne que trouxeram do Matadouro e largaram por aí!
-- Bem, você tem certa razão. Que é um pedaço de carne, é, e que passou por um
matadouro, passou, se bem que não pelo Matadouro em que você está pensando! Aquilo,
Quaderna, é um menino recém-nascido, morto, que foi abandonado aí, hoje de
madrugada!
Horrorizado, olhei de novo para lá, e vi, realmente, algo que parecia um boneco flácido e
esbranquiçado, lívido, puxado pr’aqui e pr’ali pelos dentes e patas dos cachorros. Eugênio
deu uma espécie de risadinha, satisfeito pela impressão que, afinal, me causara. E
continuou:
-- O menino nasceu há poucas horas. É filho daquela moça que, segundo diziam, ia casar
com o tal do Gustavo Moraes, filho do usineiro ricaço do Recife que, ninguém sabe por
qual motivo, veio comprar terras e minas aqui. Gustavo deve ter emprenhado a moça, que
pariu esta noite. A mãe dela [...] matou o menino.
-- Matou? – falei, recuando um pouco.
-- Sim, matou! Vá lá e olhe, Quaderna: a moleira do menino está afundada, como se
alguém tivesse enfiado o dedo nela até matar o coitadinho! Agora, lhe pergunto: que é que
você vai fazer?
-- Eu? Nada! Nem fui eu que emprenhei a moça, nem fui eu que matei o menino, nem fui
eu que achei o corpo!
[...] Naquele momento, lembrei-me de que Maria Safira sonhara comigo como se eu fosse
um Diabo apalhaçado e ridículo; e não pude me impedir, também, de pensar que o próprio
Eugênio era um Diabo, um Diabo vestido de preto, grosso, entroncado e de chapéu-coco.
Tinha certeza de que suas botinas pretas escondiam um pé de cabra e de que, se ele
tirasse a bácora, apareceria em sua testa um par de chifres retorcidos e grotescos. Senti
um profundo desgosto de ser quem era e de viver como vivia. Mas não disse nada.
Rodando nos calcanhares, dei-lhe as costas e saí. (SUASSUNA, 1971, p. 330 - 331)
Logo em seguida, para continuar ao tom grotesco do caminho, Quaderna
encontra Maria Safira, sua “possessa” mulher de olhos verdes, que provoca uma ação
profana em ambiente sagrado. Parece-nos, então, que aí também, no folheto chamado A
Confissão da Possessa, tal rabelaisiada ocorre:
Ali, antes de eu me dirigir finalmente à Cadeia, ainda teria que acontecer outra cena
estranha [...] Foi que, na esquina da Rua Grande com o Beco da Prefeitura, uma mulher,
Maria Safira, estava à espreita, esperando-me. Depois que notou que eu a tinha visto, fezme um aceno com a cabeça em direção à Matriz, deu-me as costas, cruzou o largo
deserto e começou a subir a ladeira da Igreja [...]. Baixei a cabeça, cruzei o largo, subi a
ladeira e entrei na Igreja [...] vi que o Padre Renato, sonolento, quase cochilando, estava
sentado no confessionário, com Maria Safira ajoelhada, sussurrando seus pecados
estranhos ao ouvido dele. Ela já me dissera que fazia confissões propositadamente
71
incompletas, deixando escapar, porém, de vez em quando, coisas inconfessáveis,
destinadas unicamente a perturbar o velho e honrado padre. [...] De repente, porém,
notando que eu a olhava, apoiou-se somente com o braço esquerdo na borda de madeira
da grade do confessionário e, com a mão direita, desabotoou a blusa, puxando para fora o
belo peito branco, que me exibiu agressivamente. Depois, baixando a mesma mão, pegou
o vestido pela orla inferior e ergueu-o. Fascinado, vi que ela estava nua, sob o vestido.
Dali dava para eu ver perfeitamente as coxas e o belo ventre, com o selvagem tufo de
pêlos sobressaindo embaixo. (SUASSUNA, 1971, p. 333)
Aqui diremos que é, nessa medida “grotesca”, que Suassuna trabalha esses
conceitos Oficial e Real na Pedra do Reino. Diz ele: “Eu nasci e fui criado no Brasil
Oficial, sou branco e rico, mas não tenho culpa disso não. Divulgo e olho para o Brasil
Real por onde passo e de onde estiver.”46 O sertanejo é, por sua vez, a parte desse
Brasil Real que é para Suassuna a “rocha viva”47 da civilização brasileira. É a Pedra de
João Cabral, a carnadura concreta que entranha alma. “É que cada vez que o Brasil
Real ergue a cabeça”, diz Suassuna, “o Brasil Oficial vem e corta. Assim aconteceu em
Canudos, assim na guerra do Contestado, assim também nas favelas urbanas.”
Portanto, ao contrário do que se pode inicialmente imaginar, falar do Brasil Real não é só
falar do Brasil rural; e falar da cultura brasileira popular também não é só falar da terra e
do sertão. É também falar da terra e do sertão. E é nesse recorte sertanejo que
Suassuna fala, porque é essa “terra sertaneja” que ele escolhe em sua obra – sertão
com geografia especificada em sua Pedra do Reino: o sertão que ele conta é o sertão do
Cariri, entre Pernambuco e Paraíba, seguindo, segundo o narrador Quaderna, no
máximo até o Rio Grande do Norte. Então, inclusive quando neste estudo falamos sobre
as influências dos pastoris e bumbas-meu-boi do Nordeste, lêem-se aqueles que
ocorrem nessa região específica. É esse o imaginário que escolheu da “janela do seu
gabinete”.
46
In Aula-espetáculo no projeto “Interculturalidades”. Teatro da Universidade Federal Fluminense. Outubro de 2005.
47
Expressão tirada por Suassuna de Os sertões de Euclydes da Cunha. Para ilustrar a idéia de que o sertanejo é um forte,
Euclydes da Cunha cria a metáfora da rocha viva. Na época em que escreveu Os Sertões Euclydes estava em São José para
reconstruir uma ponte que havia tombado e acabou encontrando uma base muito firme para essa reconstrução: o granito. A
partir daí desenvolve uma correlação entre a pedra e o homem do sertão.
72
Foto do sertão de São José do Belmonte, entre Pernambuco e Paraíba,
onde está a Pedra do Reino.
O Reino de Suassuna – entre Pernambuco e Paraíba.
Então, nesse Brasil Real há a transfiguração poética dos cantadores, dos
repentistas, dos reis, rainhas e fantasias das cavalhadas e carnavais. Carnavalização
que, ainda na voz de Quaderna, “é o protesto do sonho contra a injustiça”. Poesia que é
possível na arte e na literatura.
[...] Cada vez se enraizava mais, em mim, a decisão de tornar embandeiradas e cheias de
chuviscos prateados as pardas, miseráveis e sangrentas aventuras da Pedra do Reino,
tornando-me Rei sem degolar os outros e sem arriscar a minha garganta, o que somente
a feitura do meu romance, do meu Castelo perigoso e literário, possibilitaria [...]
(SUASSUNA, 1971, p. 198)
73
Esse trânsito entre o Real e o Oficial é claramente grotesco para o autor. Mas,
para alguns leitores, quando Machado estabelece essa diferença entre Brasil Real e
Brasil Oficial, a questão inquietante será a seguinte: É o Brasil Real estabelecido pela
pobreza? E o Brasil Oficial pela riqueza? Isso quer dizer que, ao levantar a cabeça, o
Brasil Real quer se transformar em Brasil Oficial e, no momento em que não tem a
“cabeça cortada”, é nele mesmo, Oficial, que o Real se transforma?
É possível arriscar um argumento, pelo menos do ponto de vista das
manifestações artísticas, traduzindo48 o que Machado considera Real – palavra de
significação complexa, afinal de contas o que existem são figurações do real, e não o
real ele mesmo – para espontâneo. A figuração adotada para esse Real, então, passa a
ser aqui o das manifestações espontâneas, democráticas, até mesmo cênicas, coloridas
e poéticas que independem da estrutura fechada, burocrática das metodologias
educacionais e da cultura de massa impostas pela “erudição” do Brasil Oficial. Se bem
que, paradoxalmente, é da janela de seu gabinete, sob lentes oficiais, que Suassuna
olha e homenageia esse Brasil Real. Mas isto, vamos decifrando aos poucos. Por
enquanto, diremos que tal espontâneo é também aquela reivindicação do sonho a que
sugere Suassuna na voz do narrador. Diz Quaderna em O Rei Degolado: “[...] Ao agir
assim, é como protesto, e não por desejo de fuga que o fazemos. Com isso, protestamos
contra a feiúra, a maldade, a miséria e a injustiça. E é assim que o pardo e triste mundo
cotidiano vira-se no Mundo, no Reino [...]” (SUASSUNA, 1977, p. 87)
Há então um exemplo disso, que foge um pouco dos exemplos dele, para que o
mesmo grupo de leitores inquietos não ache que ao falar disso diz-se que o
“espontâneo” da cultura brasileira é apenas o que se encontra no Brasil Rural,
esquecendo do urbano ou em detrimento deste. Então, de onde um compositor como
Cartola, compositor carioca, pobre, morador do morro da Mangueira, que pouco leu ou
freqüentou as escolas oficiais, tira inspiração para escrever coisas como “[...] As rosas
48
Vale lembrar que tradução é sempre uma traição com pontos de silêncios e impossibilidades.
74
não falam/ Simplesmente as rosas exalam/ O perfume que roubam de ti [...]”? De sua
própria experiência, da interação que consegue com a própria vida, da transfiguração de
sua própria realidade urbana, pobre, da favela. Então a cultura popular é a estetização
da pobreza? Ao acabar a pobreza acaba também a cultura popular? Não. Porque,
mesmo que pareça, a cultura popular não consegue ser limitada como estética da
pobreza nem rotulada em nenhum outro estojo de definição. Definir é limitar. E ela, na
modernidade, mostra as mais diversas expressões que interagem umas com as outras
como num mosaico ou mesmo num caleidoscópio de referências.
E Ariano Suassuna, como mais uma voz, grita aquele tom da cultura popular
nordestina por intermédio de sua obra, transfigura essa realidade escolhida e
homenageia o tom arcaico sertanejo diante da correria moderna (assim como os
românticos). É, aliás, importante destacar que a palavra “arcaico” traz em sua etimologia
o prefixo Arché, que é o princípio original. É arcaico aquele que busca descobrir a
realidade primordial, assim como o poeta da idade de ouro grega, conhecida como
Arcádia, que desenvolveu três aspectos da função poética: organização, conservação e
criação. Arcaico não tem, portanto, nesse caso, significação tão pejorativa quanto se
imagina. É a lente da poesia em Suassuna. Há aí o elogio da poesia árcade, portanto
aquela que faz de um simples mortal o igual do rei. O arcadismo nos remete à noção do
fantástico, do sublime e do divino em sua forma mais pura.
Suassuna, no entanto, comete seus excessos por um discurso de tom “afetivo”
encontrado também nas referências barrocas. Alfredo Bosi diz que a arte barroca
transita pelo mundo dos afetos “de modo a camuflar a percepção nítida”.
O Sertão [...] é o mundo, que o homem tem que decifrar, para dar-lhe aquilo que ele não
tem por si só, um sentido. É a esfinge a resolver, a Onça a domar, mesmo sabendo que
essa fera, bela como seja, é hostil e feroz, e terminará por nos despedaçar com suas
garras. (SUASSUNA, 1961, Encantação de Guimarães Rosa, p. 84, In: Mª Aparecida
Lopes Nogueira – Ariano Suassuna, o Cabreiro Tresmalhado, p. 45).
75
Ariano, com sua “esperança posterior à agonia”, afirma ainda que essa agonia só
não o leva ao desespero porque “transfigura a realidade”. Trágico e cômico são portanto
faces do mesmo signo (do palhaço em picadeiro).
Quaderna em O Rei Degolado destaca, em tom barroco e grandiloqüente
medieval, o valor que tem a palavra pedra em sua obra. Diz ele que quem ouve a sua
história, ao ouvir Trinta, deve saber que, mais que um simples número, Trinta é o nome
de “uma revolução gloriosa, sangrenta e terrível para o sertanejo” e para Suassuna, que
perdeu o pai por ela; ao ouvir Princesa, deve tanto evocar uma mulher coroada como a
épica cidade sertaneja no alto de uma serra pedregosa. Ao ouvir um galope, ou ouvir a
descrição de um telegrama, deve ter a dor intranqüila de quem sabe quantas vezes
foram trazidas assim, em telegrama a cavalo, notícias de trucidamento e morte que
desencadeavam a mais profunda dor nas famílias do sertão. Deve, enfim, ler cada
palavra como a palavra-pedra entranhada de alma e dolorida de fala que João Cabral de
Melo Neto descreve: “Daí porque o sertanejo fala pouco: as palavras de pedra ulceram a
boca e no idioma pedra se fala doloroso; o natural desse idioma fala à força.” (JOÃO
CABRAL, Educação pela pedra, 1965, p.8)
Suassuna entremostra então o “homem sentimental” do teórico espanhol Miguel
de Unamuno em seu Sentimento trágico da vida:
O homem, dizem, é um animal racional. Não sei por que não se disse que é um
animal afetivo ou sentimental. Talvez o que o diferencie dos outros animais seja
muito mais o sentimento do que a razão. Vi mais vezes um gato raciocinar do que
rir ou chorar. Talvez chore ou ria por dentro, mas por dentro talvez também o
caranguejo resolva equações de segundo grau. Assim, o que mais se deve
importar num filósofo é o homem. (UNAMUNO, 1913, p. 3).
Chegamos, então, no próximo capítulo, ao Circo Suassuna, à estrutura da obra,
na qual, por intermédio da máscara quadernesca, veremos as medidas estéticas das
personagens da Pedra do Reino.
76
4. A Pedra do Reino no debate cultural do país
O Romance da Pedra do Reino e o príncipe de sangue do vai-e-volta começou a
ser escrito em 1958 e foi lançado em 1971. Então, para situá-lo no debate cultural do
país, é preciso destacar que sua produção ocorreu num período dos mais conturbados
de nossa história: os anos 60 e início dos 70. Período mais duro do regime militar no
Brasil, conhecido como “anos de chumbo”. Nessa época, movimentos sociais de massa,
estudantis e de esquerda foram calados à força. É nesse cenário que Suassuna lança as
bases do seu Projeto Armorial, colocando-se como um projeto diferente tanto dos grupos
que propunham uma arte politicamente engajada – a exemplo do Teatro de Arena e do
Centro Popular de Cultura (CPC) – quanto dos grupos ligados à vanguarda e ao
experimentalismo, como os neoconcretistas e os tropicalistas. Por conta disso, Suassuna
foi muito criticado e identificado com o ideário do regime militar, já que a política cultural
do Estado buscava naquele momento justamente essa imagem integrativa do país por
meio da eliminação de barreiras entre o popular e o erudito para que houvesse em certa
medida controlável, uma identidade nacional “conciliadora das diferenças”. Tal crítica
talvez não seja infundada quando percebemos no Romance da Pedra do Reino o
encontro desse popular-erudito em toda a narrativa, como já viemos delineando desde o
início deste estudo. Na própria capa do livro49 há a representação do duelo entre o
professor Clemente e o filósofo Samuel, mestres do narrador Quaderna e de ideologias
opostas. Tal ilustração, em que se percebe que cada um segura um penico – ponto em
que o riso popular chega em cambalhota –, é rodeada por uma carta de baralho onde
constam todos os naipes. Veja ilustração:
49
Utilizamos para a nossa análise a 5ª edição do Romance da Pedra do Reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta
lançada em 2004 pela Editora José Olympio.
77
Se por um lado há um discurso de conciliação de contrários, há também, quando
vemos a representação de uma carta de baralho onde constam todos os naipes, a
intenção de dizer que a obra literária (e também a arte como um todo) transita por todos
os discursos sem querer prender-se a nenhum. Por isso Suassuna, ao que nos parece,
é, para além das críticas, alguém que sabe habilmente, como esse pretendente a
“intelectual mediador”, trazer a sua cultura nordestina ao foco, sem “arriscar a garganta”,
dito assim, palavra por palavra, na voz do narrador Quaderna, e ainda, em outro
momento, entremostra que reconhece que esse tipo de ação gera muitas críticas. Veja
fragmento de A Pedra do Reino:
Saí para a calçada, enceguecido ao mesmo tempo por minha má visão e pelo terrível sol
sertanejo, que fulgurava nas pedras e nos cristais do chão, àquela hora zodiacal (...)
Deixando a calçada, comecei, agora como um desafio, a caminhar pelo meio da rua,
hábito que sempre tive e que sempre foi alegado, na Vila, como um dos argumentos mais
definitivos contra o meu caráter. (SUASSUNA, 1971: p. 320 - 321).
Bem lembra Idelette Muzart-Fonseca dos Santos que resumir a Pedra do Reino
seria como destruí-la, pois a obra é composta por todas essas idas e vindas, lirismos e
comicidades, debates políticos e filosóficos, múltiplas citações, alusões e referências
78
históricas e literárias que são contadas por um narrador que se diz Rei do Quinto Naipe
do Baralho, o coringa. Voltando ao criador Suassuna, este acompanhou os tons oficiais
do contexto político da época apesar de, em seu discurso, mostrar ou transfigurar o seu
Brasil Real (armorial). Paradoxal sempre e com a fala simpática e conquistadora.
Vejamos fragmento do jornal O Globo do Rio de Janeiro, de 6 de agosto de 2006,
quando ele mesmo explica essa questão:
... Ariano Suassuna, que na década de 60 não se aliava politicamente ao então
governador Miguel Arraes por detestar o marxismo, ainda tem críticas à doutrina.
- Eu realmente não apoiava Arraes, devido à sua ligação com os marxistas, que naquela
época eram intolerantes e dogmáticos. Eram os tempos do stalinismo e, quando eu falava
mal do imperialismo americano, eles batiam palmas. Quando dizia que a União Soviética
estava fuzilando os intelectuais, eles diziam que eu estava vendido ao ouro americano.
Sempre fui de esquerda, mas nunca fui nem serei marxista. (p.13)
Essa intolerância ao marxismo se explica pelo tal excesso do “homem emocional”
de Miguel de Unamuno na fala de Suassuna: “A emoção é, para a Arte, tão fundamental
quanto a reflexão [...]”, diz ele. “[...] Shakespeare, que não tinha medo do choro nem do
riso, [...] trata de política sem fazer teatro político [...]” (SUASSUNA, 1973, p.158). E tal
impressão também se explica pelo enfoque de sua religiosidade, que não permite
nenhuma ação ou ideologia que não creia na existência do Deus cristão. Sua posição e
ação política ficam claras em correspondência que escreveu ao poeta Manuel Bandeira
em 1956. É uma carta de agradecimento pelo fato de Bandeira ter liberado o poema
“Cotovia” para ser musicado por um instrumentista e compositor do Quinteto Armorial.
Data de 19 de novembro de 1956. Então, em meio ao assunto, ele diz assim:
[...] Aproveito a oportunidade para mandar-lhe meu abraço pelo poema que você publicou
sobre a espada de ouro de Lott. Coisa rara uma pessoa que tem essa coragem,
principalmente na atual situação. O poema foi uma pancada terrível, ao mesmo tempo na
cupinchada, na vaidade do general e na lei de imprensa, principalmente partindo de quem
partiu. Isso sem se falar nas qualidades do poema em si: nunca pensei que um poema de
combate como aquele pudesse ficar tão grande. Grande lição para os poetas novos e
comunistas ou para-comunistas, que vivem tentando isso há anos e nunca fizeram nada
que se aproveitasse. Quanta tinta gastaram acusando nossos maiores, você e
Drummond, de reacionários, indiferentes, etc. Agora é o reacionário que vem ensinar a
eles como é que se faz o que eles queriam fazer e não conseguiam. Digo isso porque o
79
ato da espada foi realmente lamentável. [...] Assim, acho que, apesar de todos os defeitos
– cupinchada, vaidade do líder, pelegada rondando de longe, espada de ouro, etc. – é
melhor apoiar, por enquanto, dentro de tudo isso, uma certa corrente nacionalista e
popular que apesar de tudo existe em torno de Lott: talvez mais adiante isso torne
possível um socialismo sem tirania política e sem ateísmo que possa substituir as
mentiras e maldades do comunismo e do capitalismo [...] em todo caso, daqui é muito
difícil julgar o movimento político e posso estar errado [...]
Portanto um socialismo cristão, sem ateísmo, mas também sem ditadura. Além, é
claro, da defesa da corrente nacional popular a qual estamos tentando mostrar e mediar
as fragilidades. E é assim na voz do narrador Dom Pedro Dinis Ferreira-Quaderna. Ele
tem a fala inserida num contexto também conturbado: década de 1930 – a trama se
passa entre 1935 e 1938, em pleno Estado Novo50, era Vargas – transparece um
Suassuna que define a sua forma de luta: usa de seu riso, de seu castelo poético para
falar também das questões sociais do Nordeste – Nordeste, no entanto, do seu recorte
Armorial, delimitado claramente na obra:
[...] Era um decreto da Providência Divina, que desejava fixar os Ferreira-Quadernas
exatamente na fronteira das duas Províncias mais sagradas do Império do Brasil, a
Paraíba e Pernambuco, às quais somente o Rio Grande do Norte pode ser ajuntado em
absoluto pé de igualdade. Delineavam-se assim, aos poucos, as fronteiras do nosso
Império da Pedra do Reino, cortado pelos sete Rios sagrados e integrado por seus sete
Reinos tributários. (SUASSUNA, 1971, p. 71)
É sua estética que nos impressiona, pela riqueza e criatividade de tal
transfiguração que pesa, desconstrói e ri de cada crítica ou tom ideológico.
Vemos que, trazendo no próprio nome a vaidade, as armas do sertão e a
capacidade da transfiguração poética e do riso da absolvição, Quaderna pretende
construir a sua obra popular-erudita numa década de 1930 em que, segundo Antonio
50
O período autoritário que ficou conhecido como Estado Novo teve início no dia 10 de novembro de 1937, com um
golpe liderado pelo próprio presidente Getúlio Vargas, e apoiado, entre outros, pelo general Góes Monteiro. Para que
ele tivesse êxito, foi preciso eliminar as resistências existentes nos meios civis e militares e formar um núcleo coeso
em torno da idéia da continuidade de Vargas no poder. Esse processo se desenvolveu principalmente ao longo de 1936
e 1937, impulsionado pelo combate ao comunismo e por uma campanha para a neutralização do então governador
gaúcho Flores da Cunha, considerado, por seu poder político e militar, um obstáculo ao continuísmo de Vargas e à
consolidação de um exército forte, unificado e impermeável à política.
80
Candido em seu ensaio A Revolução de 30 e a cultura, foram anos de engajamento
político, religioso e social. Diz ele que houve nos anos 30 uma espécie de convívio
íntimo entre a literatura e as ideologias políticas e religiosas.
[...] traço interessante ligado às condições específicas do decênio de 1930 foi a extensão
das literaturas regionais e sua transformação em modalidades expressivas cujo âmbito e
significado se tornaram nacionais, como se fossem co-extensivos à própria literatura
brasileira... naquela altura o catolicismo se tornou uma fé renovada, um estado de espírito
e uma dimensão estética. (CANDIDO, 1989, p. 187)
A escolha histórica de Suassuna, para além do fato amplamente difundido de que
em sua Pedra do Reino há a dimensão de superação da morte de seu pai ocorrida em
1930, e que ele estetiza na obra uma voz que se opõe ao desenfreado crescimento
urbano da época, essa escolha implica um projeto ideológico que encontra tanto a sua
dimensão religiosa católica quanto a busca da “pureza da cultura popular” modernista
em Mário de Andrade, por exemplo.
O próprio Antonio Candido afirma, no mesmo
ensaio, que são os decênios de 1930 e 1940 que assistem à consolidação e difusão
política modernista e também à produção madura de nomes como Mário de Andrade.
Portanto o panorama histórico da trama – de 1935 a 1938 – traz também essa dimensão
ideológica do Manifesto Armorial que, como já dissemos, encontra o modernista
andradiano.
Para uma avaliação mais clara desse encontro Mário-Suassuna vale trazer, da
nota de rodapé (p. 24) para o centro do estudo, um ponto da análise feita por Gilda Melo
e Souza sobre o Macunaíma de Mário de Andrade e então construir um paralelo com o
que se disse até agora sobre a Pedra do Reino. Não há aqui, é claro, pretensão
nenhuma de esgotar tal comparação, mas apenas a intenção de apontar exemplos
desse encontro tão mencionado até aqui. Assim, Gilda percebe no Macunaíma de Mário,
algumas características que também são claras na Pedra de Suassuna. Entre elas, a
simbologia da pedra, por exemplo, é núcleo da narrativa central tanto de um quanto de
81
outro romance: Quaderna transfigura a “dupla” pedra de São José do Belmonte em
castelo poético, é Pedro (de pedra) Diniz Ferreira-Quaderna e Macunaíma sai em busca
da Pedra Muiraquitã. Pedra como castelo e como reino em Suassuna, pedra como força,
como esperança em Mário. Segundo Câmara Cascudo, a Muiraquitã é “artefato de jade,
que se tem encontrado no Baixo Amazonas, especialmente nos arredores de Óbidos e
nas praias, entre as fozes dos rios Nhamundá e Tapajós, a que se atribuem qualidades
de amuleto. Segundo uma tradição ainda viva, o Muiraquitã teria sido presente que as
amazonas davam aos homens em lembrança da sua visita anual. Conta-se que para
isso, nas noites de lua cheia, elas extraíam as pedras ainda moles do fundo do lago em
cuja margem viviam, dando-lhes a forma que entendiam, antes de ficarem duras com a
exposição do ar [...]” (CÂMARA CASCUDO, Dicionário do folclore brasileiro, p.509). A
utilização da pedra como imagem central, parece-nos referência de busca de identidade.
A geologia explica que os elementos que compõe os minerais fazem parte da matériaprima da Terra, cuja estrutura está em contínua mudança há 4,6 bilhões de anos. Essa
matéria-prima se solidifica de formas diferentes, dependendo das variações climáticas.
Então cada pedra é diferente, cada uma traz uma identidade vinculada à terra e ligada
ao clima que a solidificou. Logo, pedra é símbolo de memória, força de identidade.
4.1 Dom Pedro Dinis Ferreira Quaderna: letrado, trovador, cangaceiro, palhaço
A Pedra do Reino é apresentado como o primeiro romance armorial brasileiro e
diz-se da palavra armorial que é relativa à armaria, aos brasões, que por sua vez são
insígnias ou distintivos de famílias ou pessoas nobres, além de designar também os
escudos das armas. Vê-se, pela própria significação da palavra, que Suassuna usa sua
obra como arma de transfiguração do popular à “nobreza”. E vê-se ainda que na
estrutura do romance, os personagens centrais – Quaderna, Clemente e Samuel, Tia
82
Filipa e o Cantador João Melchíades, Dona Margarida e o Corregedor – são cada um
como que a transfiguração de uma tensão ideológica que interage com o próprio
Movimento Armorial que nos parece representado principalmente no personagem
central, o narrador Dom Pedro Dinis Ferreira-Quaderna.
Quaderna traz no próprio nome esse encontro popular-erudito. Podemos ler o
poeta-escrivão, acadêmico, ex-seminarista e astrólogo Dom Pedro Dinis FerreiraQuaderna como uma referência e uma união entre:
A) O letrado:
Dom Pedro II entrou para a história como o monarca intelectual; se bem que
Quaderna se diz Dom Pedro IV, e não o II, que em sua irônica “cambalhota” é “um
impostor”. Nesse sentido dá força ao Pedro IV, que remete ao Império Mítico de Dom
Sebastião, e ao mesmo tempo ao Pedro IV em que se transformou o I quando voltou
para Portugal na tentativa de unir as duas coroas Brasil e Portugal. Essa aliás é uma
tentativa explícita de mostrar as influências ibéricas na cultura popular e de como essas
duas culturas podem se unir. Quaderna diz que, ao se tornar rei de sua Pedra do Reino,
sua coroa é de ouro e de couro, como na figura abaixo:
83
B) O trovador:
É também Dom Dinis, monarca trovador e poeta. Durante a narrativa, é possível
perceber que sua Tia Filipa, religiosa e rendeira, e seu padrinho de crisma, o Cantador
João Melchíades, o chamam de Dinis. Diferente da maioria das personagens que se
referem a ele como Quaderna. Isso transparece o tom da infância do narrador na
Fazenda da Onça Malhada. Criado, após a morte da mãe, por uma artesã e um
cantador, é tratado pelo nome que mais se enquadra nesse imaginário.
C) O cangaceiro:
E é Ferreira, parece-nos como referência a Virgulino Ferreira da Silva – o
Lampião, referência do cangaço que simboliza, ao mesmo tempo, a coragem e o
sangue. Sangue em Lampião vinculado à superação de morte dos seus antepassados,
assim como acontece com Quaderna e com seu próprio criador Suassuna. Vale destacar
que no sertão, a violência armada, principalmente à época de Lampião e de Quaderna,
era prática recorrente que orientava o comportamento dos seres humanos em todos os
níveis. Assim, estímulos como o fanatismo religioso, o coronelismo, a vingança familiar e
o nepotismo, o assassinato de adversários políticos, a corrupção eleitoral eram práticas
rotineiras que desencadeavam guerras, rebeliões e revoluções. Quaderna em seu
depoimento-memorial destaca a Guerra de Princesa na Paraíba, as rebeliões de Pedra
Bonita, Canudos e Contestado. Disse ter querido esquecer a participação de seu avô no
episódio sebastianista sanguinário de Pedra Bonita, até o dia em que ouviu o sermão do
padre Daniel pregando que “todos nós éramos assassinos de Jesus Cristo”. Transparece
aí a religiosidade da absolvição. Uma absolvição religiosa que encobre as armas e o
84
sangue. Lembramos aqui da Cavalgada Moura que chegou a Taperoá e que foi um dos
motivos do inquérito a que Quaderna foi submetido. Nela havia um frei Simão que era
“frade-cangaceiro” e “por baixo do hábito usava guarda-peito e gibão, um cinturão
sertanejo de sola, cartucheira e talabartes atulhado de balas; assim como trazia às
costas um mosquetão atravessado”. (SUASSUNA, 1971, p.40) Sagrado e profano, morte
e absolvição nesse mesmo arquétipo. Absolvição tanto pelo sangue quanto pela religião.
Por Deus ou pelo Diabo, lembrando o filme de Glauber Rocha ao qual nos referimos
anteriormente.
Além disso, de Tia Filipa, o narrador-personagem Quaderna ouvia histórias não
sobre Virgulino, mas sobre Jesuíno Brilhante; dizia ela que ele era “o mais corajoso e
cavaleiro do Sertão, um cangaceiro muito diferente desses cangaceiros safados de hoje
em dia, que não respeitam mais as famílias”. (SUASSUNA, 1971, p.90) E Quaderna
repassava a admiração para todos os outros cangaceiros no que se referia a coragem de
enfrentar “morte cruel e sangrenta”. (Idem, p. 90-91). E assim Quaderna tem no nome a
referência do cangaceiro-letrado Lampião, que mata para vingar a família; e tem na
formação por meio de Tia Filipa a referência de Jesuíno Brilhante, conhecido como “o
cangaceiro gentil-homem”, o bandoleiro romântico, espécie matuta de Robin Hood,
adorado pela população pobre, defensor dos fracos, dos anciões oprimidos, das moças
ultrajadas, das crianças agredidas. Em diferentes momentos da narrativa, Quaderna se
define como alguém entre Deus e o Diabo, salvo pela poesia, errante pelos folhetos que
o impediam de colocar sua mão em armas, a não ser transfiguradas.
Na infância, quando apresentado aos cordões Azul e Encarnado do pastoril, se
depara pela primeira vez com uma representação do que pode ser tanto do sagrado
quanto do profano – o Cordão Encarnado. É que Tia Filipa, ao torcer pelo Cordão Azul
(de Nossa Senhora), tenta convencer Quaderna de que o Encarnado era coisa do Diabo.
85
No entanto, Quaderna já tinha ouvido falar que o Encarnado era representação de Jesus
Cristo:
Espantei-me de que uma cor só, o Vermelho, pudesse ser, ao mesmo tempo, do Cristo e
do Diabo. Só depois de adulto, aprofundando meus conhecimentos religiosos e
astrológicos e estudando o Catolicismo da Pedra do Reino, foi que descobri que essa
noção é profunda, zodiacal e estrelar! (SUASSUNA, 1971, p. 91)
D) O Rei e o Palhaço em quatro pilares da alma:
Parece-nos que, em sua literatura, Suassuna canta, dança, critica e aponta sim,
mas na voz de Quaderna ele explica: “Entretanto, é desse relato que depende a minha
sorte e ninguém é tão fanático a ponto de fazer Literatura em troca de cadeia. Devo ser
exato: e infelizmente, no mesmo instante em que consigo arrumar tudo, tenho que
desarrumar tudo de novo.” (SUASSUNA, 1971, p. 51) É então a cambalhota do palhaço
que nos remete diretamente ao último sobrenome do narrador, Quaderna, palavra que
designa todo objeto que se sustenta em quatro pilares; parece-nos relação direta com o
que Suassuna considera a alma humana. Diz ele, como já vimos, que o homem se divide
em quatro vertentes: o rei, o profeta, o poeta e o palhaço. O rei se complementa com o
profeta, o poeta com o palhaço.
O rei tem aí o tom e o peso da “vaidade imperial”, mas também da “realidade
empírica”. O rei se vincula à realeza do império ibérico, do patriarcado rural a que
pertence Suassuna, mas traz, ao mesmo tempo, o peso do real empírico, do trágico, do
sangue, da fome, da terra seca do sertão. Por esse viés, o rei se complementa então
com o profeta que, se por um lado remete à religiosidade do sertão que é forte e
ambivalente, que perpassa Deus e Diabo, bem e mal, sagrado e profano, tem também
por outro lado a crença em uma Nossa Senhora eternamente compadecida, que
absolve, que intercede, e a crença nos mitos que remetem a esperança da vinda de um
86
São Sebastião (de influência ibérica) que liberta da fome, que liberta da pobreza. Mas,
ainda quanto à relação rei-profeta, pode haver uma vaidade de quem prediz um futuro,
de quem tenta, portanto, ter o controle pelo poder e pela transcendência.
Neste ponto, quase que de interseção com o rei-profeta, parece-nos, o poeta traz
o tom do sonho e da transfiguração estética da realidade empírica. Diz Quaderna: “Eu
me recuso a me meter em matanças e morrências é na vida; na literatura isso não faz
mal a ninguém!” – ponto em que o palhaço é o mediador do trágico e do cômico da vida.
Portanto, diz ele, quando o rei e o profeta pesam nos ombros, o poeta e o palhaço dão
uma cambalhota.
[...] No hemisfério Rei eu coloco tudo o que há de mais elevado e nobre. Se a pessoa
exacerbar o hemisfério Rei, ela cai numa excessiva crueldade, torna-se uma pessoa
autoritária. [...] É o hemisfério Palhaço que equilibra o hemisfério Rei, e isso se dá através
do riso. 51
Um riso que se explicita quando Quaderna se apresenta como Rei do Quinto
Naipe do Baralho, como veremos a seguir.
51
In entrevista aos Cadernos de Literatura Brasileira, nº 10, novembro de 2000, p. 29.
87
5. O memorialista Quaderna – Rei do Quinto Naipe do Baralho
O narrador Quaderna se apresenta assim:
Sou o mesmo Dom Pedro IV, cognominado “O Decifrador”, Rei do Quinto Império e do
Quinto Naipe, Profeta da Igreja Católico-Sertaneja e pretendente ao trono do Império do
Brasil. Por outro lado, consta na minha certidão de nascimento ter nascido eu na Vila de
Taperoá. É por isso, então, que pude começar dizendo que neste ano de 1938 estamos
ainda “no tempo do Rei”, e anunciar que a nobre Vila sertaneja onde nasci é o palco da
terrível “desventura” que tenho a contar.
(SUASSUNA, 1971, p. 33)
Na própria apresentação, Quaderna já transparece a ideologia unificadora e
universalizadora da cultura Armorial – um tom nacionalista-religioso que destaca as
raízes ibéricas quando se diz “Rei do Quinto Império”. A profecia do Quinto Império surge
em Portugal com contornos místicos. Autores como padre Antonio Vieira e Fernando
Pessoa mesclaram-na com as Profecias de Dom Sebastião. Idéia messiânica, o Quinto
Império reservava para a coroa portuguesa, sob o comando de Dom João IV, o destino
providencial de continuar os quatro grandes impérios da Antiguidade na América. Então,
como vimos, quando Quaderna se assume Dom Pedro IV, filho de Dom João IV,
transparece o vínculo à idéia nacionalista religiosa do Quinto Império. E é esse o tom
que também se encontra na Cavalgada Moura descrita em A Pedra do Reino e que traz
a Taperoá o Príncipe do Cavalo Branco, personagem que remete a Dom Sebastião. A
trama que envolve a família do narrador Quaderna em O Romance da Pedra do Reino é
inspirada em um episódio ocorrido no século XIX, no município sertanejo de São José do
Belmonte, a 470 quilômetros de Recife. Ali, em 1836, uma seita tentou fazer ressurgir o
rei Dom Sebastião, transformado em lenda em Portugal depois de desaparecer na
batalha de Alcácer-Quibir, quando tentava converter mouros em cristãos no Marrocos.
Sob o domínio espanhol, os portugueses sonhavam com o retorno do rei que restauraria
a nação usurpada.
88
A manifestação de sebastianismo no Brasil ainda é lembrada em Pernambuco
durante a Cavalgada da Pedra do Reino, que acontece anualmente no lugar onde
inocentes foram sacrificados pela volta do rei.
Na trama, o avô do narrador Quaderna é quem lidera a manifestação que mata
inocentes no sertão, e o narrador tenta superar essas mortes quando escreve suas
memórias. Há aí uma utilização do mito ibérico como vontade de superação de mortes
que perpassam a família do próprio autor. Suassuna diz assim: “Foi mais do que uma
vingança. Foi uma forma de evitar o crime e buscar a redenção. É a descoberta do rei
que nunca morre.”52 Mas, por outro lado, também transparece uma ideologia messiânica,
seja ela estética ou ideológica, que gera críticas. Tanto o messianismo como o cangaço
– aos quais a construção do narrador Quaderna está vinculada – são voltados para a
busca de uma nacionalidade que Antonio Candido chama de “consciência amena do
atraso”. Essa busca de um passado idealizado, no qual as hierarquias são da ordem do
tradicional ou espiritual e têm a marca do poder simbólico – o sebastianismo é um
exemplo –, é reação de muitos que se sentem “emparedados” quando percebem que a
esfera “culta” se desenvolve junto ao crescimento da televisão, dos jornais, da Internet,
estando, portanto, entrelaçada com a esfera da cultura de massa. Ao perceber a
impossibilidade de impedir essa ambigüidade – ou seja, a cultura popular de Suassuna
não está protegida das múltiplas influências, tanto da esfera culta quanto da esfera de
massa –, busca-se o tradicional-mitológico. Um movimento pendular entre cópia e
rejeição, também trabalhado por Candido em seu Literatura e subdesenvolvimento. Esse
movimento pendular é mostrado nas personagens Clemente e Samuel, que
transparecem as perspectivas do povo – em Clemente – e da aristocracia – em Samuel.
Mas, paradoxal e dualmente, além de “Rei do Quinto Império”, Quaderna se diz
“Rei do Quinto Naipe”. Usa a simbologia das cartas do baralho para ser um regente
desses antagonismos. Mas nos parece também que não é impossível dizer, por outro
52
In www.nordesteweb.com/not07_0905/ne_not_20050822d.htm. Acesso em 16/8/2006.
89
enfoque, que Quaderna é uma tentativa de ser ele mesmo uma espécie de artesão que
costura as diversas possibilidades de um tema complexo como o nacional-popular. É
que, se nas cartas do baralho existem quatro naipes – copas, ouros, espadas e paus –,
ser o “Rei do Quinto Naipe” transparece a possibilidade de transitar por onde quiser
como “Rei do inconcebível”. É ser rei do seu próprio “Castelo Poético”, daquele reino que
imagina e constrói, mesmo que tal reino imaginado seja impossível na modernidade (ou
num contexto histórico de repressão). Nesse ponto, então, lança mão da possibilidade
poética árcade. Por outro enfoque, pode-se dizer também que o “Quinto Naipe” é o
curinga. E nesse sentido transparece o bobo, o palhaço, que transita pela modernidade
tomando a forma que lhe convier para que nunca deixe que o seu discurso morra. É
função do bobo dizer “brincando” coisas sérias. Tem plena liberdade para devanear,
esquivar-se, lorotear, fazer troça, trocar identidades e assim ver-se livre de culpas e
julgamentos. Com a máscara do curinga, Quaderna assume ser a Cavalgada Moura um
dos motivos do inquérito que o levou preso, transparecendo aí o entendimento e a
“brincadeira” com as críticas que recebe.
Principalmente no que se refere ao seu
discurso nacionalista. Crítica não sem fundamento quando lembramos que Quaderna se
diz sempre uma espécie de “harmonia de contrários”. Em sua infância, quando tem de
optar entre torcer pelo Cordão Azul ou pelo Cordão Encarnado, diz o seguinte:
[...] eu achava ambas as bandeiras bonitas: o Azul era tranqüilo e fraterno, mas o
vermelho era festivo e corajoso, e eu gostava era de todos os dois! Só havia, portanto,
uma solução, e foi a que adotei: resolvi pertencer aos dois partidos de uma vez...
(SUASSUNA, 1971, p. 100).
Mais tarde, entre os conflitos ideológicos do professor Clemente e do filósofo
Samuel, Quaderna se posiciona assim:
90
Eu tinha lido um dia, no Almanaque53, um artigo onde se dizia que “uma Obra, para ser
clássica, tem que condensar, em si, toda uma Literatura, e ser completa, modelar e de
primeira classe”. Isso me garantia que nem Samuel nem Clemente, um do Cordão Azul, e
o outro do Encarnado, podia ser completo, pois cada um era radical por um lado só.
Somente eu, juntando as opiniões azuis de um com as vermelhas de outro, poderia
realizar a receita do Almanaque. (SUASSUNA, 1971, p. 197)
Essa “busca de harmonia” pode ser facilmente vinculada às questões populistas e
mesmo integralistas. Marilena Chauí, ao falar do tema nacional-popular, lembra que a
política cultural desenvolvida no Brasil a partir de 1964 e, mais precisamente, de 1968 –
época em que Suassuna escreve o seu romance – assenta-se sobre três pilares: a
integração nacional ( a consolidação nacional buscada no Império, na República Velha e
no Estado Novo), a segurança nacional (contra a guerra interna e externa subversiva) e
o desenvolvimento nacional (nos moldes das nações ocidentais cristãs). No entanto,
pontuamos essa questão para afirmar que, Suassuna se posiciona e transita por entre
essas críticas. Nas diversas máscaras do palhaço, faz parte de um quinto naipe, é o
poeta.
É permitido ao curinga transitar por todos os naipes, completando os jogos,
transformando-se em outras cartas. É como bobo – que é a ilustração de tal carta – que
Quaderna dá as cambalhotas sem ser pego.
Quaderna, então, como Rei do Quinto Naipe do baralho, e também, como
veremos, nas máscaras de Mateus do bumba-meu-boi54 (que funciona como um
53
O narrador Quaderna refere-se aí ao Lunário Perpétuo, espécie de almanaque muito lido pelos poetas populares
nordestinos. Câmara Cascudo conta que, durante dois séculos e meio, esse livrinho pequeno em tamanho e gordinho de
páginas, foi um dos mais lidos nos sertões do Nordeste. Ele era uma das principais fontes de referência e conhecimento
para os poetas populares. Um dos livros básicos para o domínio da arte de versejar.
Cascudo diz ainda que o Lunário trazia um pouco de tudo: astrologia, horóscopo, receitas médicas, mitologia,
rudimentos de física, calendários, vidas de santos, biografia de papas, conhecimentos agrícolas, generalidades,
processo para construir um relógio de sol, procedimento para se conhecer a hora pela posição das estrelas e conselhos
de veterinária.
54
O bumba-meu-boi é um espetáculo popular que faz parte do ciclo natalino e é apresentado por vezes também no
carnaval. Sua denominação varia de acordo com os estados. No Amazonas, boi-bumbá; no Maranhão, boi-de-reis; no
Ceará, boi-surubi; no Rio Grande do Norte, boi-calemba; em Santa Catarina, boi-de-mamão; na Paraíba, cavalomarinho. É característico da região Nordeste do Brasil graças a suas músicas e seus personagens e sua origem data do
fim do século XVII. O espetáculo é representado com o público de pé, formando um círculo. O boi, personagem
principal, é feito de uma armação de madeira coberta de pano colorido e enfeitado. Uma pessoa fica dentro do boi,
91
apresentador da trama, assim como Quaderna) e de Branco e Augusto, palhaços do
circo, constrói sua narrativa oralmente, como num palco, entre as tensões de
pensamento, e sobre uma estrutura de romanceiro popular do Nordeste pensada por seu
criador Suassuna.
5.1 O romanceiro popular do Nordeste
Ariano Suassuna estrutura a chamada literatura de cordel da seguinte maneira:
Romanceiro
popular do Nordeste – poesia improvisada
- Sextilhas e estrofes delas derivadas.
- Décimas e estrofes delas derivadas.
- Outras estrofes.
- Literatura de cordel
E de tradição oral decorada – romances.
- Ciclo heróico.
- Ciclo do maravilhoso.
- Ciclo religioso e de moralidades.
- Ciclo cômico, satírico e picaresco.
- Ciclo histórico e circunstancial.
- Ciclo de amor e fidelidade.
- Abecês.
- Pelejas.
- Cantigas.
pulando, dançando e avançando sobre o público. As personagens do bailado são humanos e animais. Os femininos são
representados por homens travestidos. O Capitão é o comandante do espetáculo. Há também Mateus e Catirina,
personagens bastante conhecidos que apresentam os bichos, cantam e dançam de forma engraçada, divertindo muito o
público. Catirina é uma negra muito desinibida, que em alguns bumbas é a mulher de Mateus. Fazem parte ainda do
elenco: Bastião, a pastorinha, a dona do boi, o padre, o doutor, o sacristão, Mané Gostoso, o Fanfarrão, a ema, a
burrinha, a cobra, o pinica-pau e ainda os personagens fictícios: o Caipora, o Diabo, o Babau, o morto carregando o
vivo e o Jaraguá. O enredo é que não muda em todos os bumbas-meu-boi. O boi da pastorinha se perde e ela sai a sua
procura pelos arredores e vai encontrando os vários personagens. No fim o boi é sempre morto e ressuscitado, e com a
morte dele se canta a seguinte lamentação, muito conhecida de todos:
O meu boi morreu
Que será de mim?
Manda buscar outro
Ô maninha, lá no Piauí
(In Fundação Joaquim Nabuco.
http://www.fundaj.gov.br/notitia/servlet/newstorm.ns.presentation.NavigationServlet?publicationCode=16&pageCode
=299&textCode=670&date=currentDate – Acesso em 2 de novembro de 2006.)
92
Pelo diagrama, o que ele sugere é que o nome “Literatura de Cordel” só abrange
os “folhetos” e “romances” impressos, e não os repentes e as poesias improvisadas. Já o
romanceiro popular do Nordeste engloba tudo. E quando Suassuna diz que seu
Romance da Pedra do Reino é uma homenagem ao romanceiro popular do Nordeste, é
possível identificar cada ciclo em sua obra. Há na Pedra do Reino cada um dos ciclos
em citações e criações: heróico, maravilhoso, religioso e de moralidades, cômico, satírico
e picaresco, histórico e circunstancial e até o de amor e fidelidade – que, no entanto, é
bem mais forte no primeiro de seus romances – A História de Amor de Fernando e
Isaura55. Mas também é possível perceber que por meio dessa homenagem quer
transparecer que seu romance – “gênero que dá todas as liberdades” – engloba tudo.
Toda a sua obra.
5.2 A literatura de cordel – um parêntesis histórico
Como parêntesis necessário, vale um pequeno histórico sobre a literatura de
cordel. Ela chegou à península Ibérica por volta do século XVI e recebeu inicialmente o
nome de “pliegos sueltos” na Espanha e de “folhas soltas”, ou “volantes”, em Portugal.
É por intermédio dos portugueses que o cordel chega ao Brasil, mais
especificamente à Bahia, já que Salvador é a capital até 1763. E a partir de Salvador se
irradiou pelos outros estados do Nordeste. Em Portugal havia uma especificidade: no
século XVIII, era comum entre os portugueses a expressão literatura de cego, por causa
da lei promulgada por Dom João V, em 1789, permitindo à Irmandade dos Homens
Cegos de Lisboa negociar com esse tipo de publicação. Talvez também por isso, quando
começa a contar sua epopéia ao Corregedor, o narrador Quaderna se diz cego. Assim
55
A história do amor de Fernando e Isaura – escrito em 1956 – é uma espécie de versão brasileira de Tristão e Isolda
(história imortalizada pela obra de Joseph Bédier) e, como o próprio Suassuna declarou, lhe serviu para avaliar e
exercitar as forças de que dispunha para escrever O Romance d'A Pedra do Reino, criado entre 1958 e 1970. Tristão e
Isolda é uma lenda de origem celta e cujos fragmentos mais antigos remontam ao século XII.
93
transparece uma permissão histórica de “transitar” por esses cordéis. Disse Glauber
Rocha em texto de apresentação ao filme Deus e o Diabo na terra do sol que “quem
anda pelo sertão conhece bem um cantador – velho e cego (que cego vê a verdade no
escuro e assim canta o sofrimento das coisas), bota os dedos no violão e dispara nas
feiras, levando de feira em feira e do passado para o futuro a legenda sertaneja; estória
e tribunal de Lampião, vida, moralidade e crítica [...] Na voz de um cantador está o não e
o sim [...]”. Desse modo, nas medidas de sonho e religiosidade em Suassuna, que se
afasta da medida revolucionária de Glauber, Quaderna cega pelo sol do sertão.
A denominação literatura de cordel surge porque este material – folhetos
impressos em linotipo, capa ilustrada com xilogravura de uma cor em papel simples de
gramatura baixa e dobrados também simplesmente, sem acabamento em cola ou
grampo (por isso “folhas soltas”) – começa a ser vendido nas feiras do Nordeste,
pendurados com grampos, num cordão que é uma espécie de varal. É ainda importante
lembrar que só em 1750 começam a surgir no Brasil os primeiros criadores de literatura
de cordel oral; antes disso, só os portugueses criavam seus cordéis, escritos, e eram
conhecidos como “poetas de gabinete” ou “poetas de bancada”. Exatamente como
Suassuna se descreve quando se diz um “intelectual que observa a cultura popular da
janela do seu gabinete”.
Segundo Luís da Câmara Cascudo, no livro Vaqueiros e Cantadores, os folhetos
foram introduzidos no Brasil pelo cantador Silvino Pirauá de Lima e depois pela dupla
Leandro Gomes de Barros e Francisco das Chagas Batista. No início da publicação da
literatura de cordel no país, muitos autores de folhetos eram também cantadores, que
improvisavam versos, viajando pelas fazendas, vilarejos e cidades pequenas do sertão.
Com a criação de imprensas particulares em casas e barracas de poetas, mudou o
sistema de divulgação. O autor do folheto podia ficar num mesmo lugar a maior parte do
94
tempo, porque suas obras eram vendidas por folheteiros ou revendedores empregados
por ele.
Foi o cordelista Leandro Gomes de Barros, nascido em 19 de novembro de 1865,
considerado um dos grandes da Literatura de Cordel, que contou em verso a peleja de
Riachão com o Diabo:
Esta peleja que fiz
Não foi por mim inventada,
Um velho daquela época
A tem ainda gravada
Minhas aqui são as rimas
Exceto elas, mais nada.
Além do exemplo de intertextualidade da cultura popular, em que um autor pega
fragmentos da obra do outro e incorpora em suas próprias, incorporação que remete à
palavra “recado”56, há a presença da religiosidade e da tragicidade. Na cultura popular
do Nordeste, então, além da forte tradição ibérica refletida na obra de Suassuna,
imagens como a do Diabo são arquétipos encarados pelos cantadores, contadores e
mesmo pessoas “comuns” nascidas nesse sertão não como transcendentes, mas quase
que como iguais. Deus, Diabo ou figurações religiosas como Nossa Senhora são citados
com uma intimidade carinhosa ou com um tom desafiador de quem encara o vizinho ou
recebe para um café. No Romance da Pedra do Reino, Tia Filipa – que cria Quaderna na
Fazenda da Onça Malhada – se refere ao Diabo com muita raiva, mas sem medo, e a
Nossa Senhora como a grande protetora que pode estar ao seu lado, em exemplo que
nos parece de forte amizade. Como se Nossa Senhora compreendesse como mulher as
aflições de Filipa. Um tipo de religiosidade popular que traz para o âmbito familiar o
56
Certa vez, Ariano Suassuna foi entrevistado por um crítico de jornal quando apresentou pela primeira vez sua peça O
auto da compadecida. Diz que o crítico perguntou: “Como foi que o senhor teve a idéia do cachorro que guarda
dinheiro para o próprio enterro?” Ele respondeu: “tirei de um folheto”. O crítico então continuou: “Como foi que o
senhor teve a idéia do gato que “descome” dinheiro?” Ariano respondeu: “tirei de um folheto também.” O crítico,
impaciente, disse então: “Ora, danou-se, o que dessa história foi o senhor que escreveu?” Ariano respondeu então: “Eu
escrevi foi à peça!” Li essa história já contada por Bráulio Tavares na edição comentada de O auto da compadecida.
95
transcendente. E é nesse encontro entre religiosidade e cultura popular oral que
Quaderna se forma no sertão. Assim descreve a formação de sua obra ao Corregedor:
[...] na minha epopéia, quando o senhor for lê-la, olhando com cuidado encontrará um
Inferno, um Purgatório e um Paraíso – o Pai, o Diabo, o Filho, a Mulher e o Espírito Santo
[...] é possível também, segundo vive dizendo Clemente em seus arrebatamentos de
filósofo sertanejo, que o próprio Mundo, [...] “fosse um animal monstruoso, uma OnçaParda enigmática, que nós tínhamos de capturar e domar, sob pena de morte” [...]
(SUASSUNA, 1971, p. 411)
Ao descrever essa formação da epopéia ao Corregedor transparece na obra o
ciclo religioso e de moralidades que tenciona bem e mal com a mesma naturalidade e
em pé de igualdade – em intertextualidade erudita com a Divina comédia de Dante.
Suassuna entremostra na fala de Quaderna citada acima uma quase “dogmática
posição” do intelectual mediador da cultura em defesa de certa “delimitação”. É preciso
capturar e domar o mundo sob pena de morte. Isso porque ele diz também que a onça é
“o mundo” e o homem uma raça piolhosa que vive agarrada ao seu pêlo. Mas, por outro
lado, Quaderna continua a fala: “Quem tem medo de Onça não se mete a andar no
mato.” Nesse ponto transparece em Quaderna um Suassuna do ciclo heróico e defensor
da cultura Armorial, sem medo da onça da modernidade, que o critica e aplaude, que o
desconstrói e ri. E nesse movimento pendular sabe ser o Rei do Quinto Naipe, o bobo
que equilibra ou tenta equilibrar a vaidade do rei e traz cada onça em sua jaula ou então
“domesticada em sua varanda”.
5.3 O jogo da onça
A onça é um animal sempre mencionado em toda a Pedra do Reino. O narrador
Quaderna diz que traz em seu sangue a onça e a cobra.
96
Idelette Muzart, em prefácio a O Rei Degolado, também destaca a importância da
onça no romance de Suassuna e em sua interpretação tal simbologia está ligada à do
Leopardo e da Pantera na heráldica medieval européia. Diz-se que estes dois animais –
Pantera e Leopardo – são ligados e que a transformação da pantera em leopardo, em
linguagem heráldica, é o resultado da influência da Igreja por meio da cristalização do
Graal. A pantera era um animal heráldico tradicional e significava animal do todo (panthér) – ela evocava o panteísmo e, pelas manchas de sua pelagem, simbolizava todos os
astros do cosmos. Ainda segundo Idelette, a substituição da pantera pelo leopardo
correspondia ao método experimentado pela Igreja medieval que consistia em batizar os
emblemas pagãos, modificando assim o seu sentido, já que o leopardo significaria um
“quase-leão”, “um animal mal diferenciado, em plena evolução, no caminho da graça, o
leão cristão”. Com base nessa explicação, Suassuna reencontra na onça o peso mítico
e cósmico da pantera:
97
No “catolicismo sertanejo” a Onça é a encarnação da divindade múltipla, é a herdeira
direta do “animal do todo”. A simbólica astrológica e a dimensão cósmica e heráldica da
vida e da morte se reúnem para a explicação armorial da criação do mundo e da morte. 57
Mas, além da análise “mítico-medieval” vinculada ao Santo Graal e à
religiosidade, que são tons de real destaque na obra do católico Suassuna, parece-nos
também possível arriscar uma interpretação da palavra onça, que nos leva a uma análise
da estrutura narrativa do romance. Para onça encontramos significações diversas e
ambivalentes e que perfeitamente integram e dão peso ao discurso dual de Suassuna de
forma aguda e certeira. Atentemos então para o seguinte: no discurso popular, diz-se
onça de pessoa muito valente, fortíssima, invencível. É também alguém ou coisa fora do
comum. Por outro lado, andar na onça é estar na miséria, sem dinheiro. Ainda há outras
significações e expressões: No tempo do onça é um tempo muito antigo; onça é também
uma espécie de jogo em tabuleiro como o de damas. As pedras são representadas pela
onça e 14 cachorros. Ganha a partida quem conseguir encurralar a onça na furna
formada por um triângulo com a base para cima. Comer a onça é comer devagar, aos
pouquinhos; amigo-da-onça é o amigo falso, importuno e inconveniente.
Portanto, é palavra que demonstra tanto grandeza quanto miséria, tanto força
quanto fraqueza, tanto a realeza quanto o súdito. Tanto esperteza, paciência e
perspicácia de um jogo de tabuleiro quanto a falsidade. A onça é o mundo, como afirma
Quaderna. Paremos, então, para analisar as regras do “jogo da onça”58. Quaderna utiliza
imagens que lhe são caras, como as do baralho ou do tabuleiro de xadrez. Mas o jogo
da onça parece-nos imagem interessante para analisar a estrutura narrativa. Jogo
indígena semelhante ao jogo de damas, ganha a partida quem encurrala a onça na furna
57
FONSECA DOS SANTOS, Idelette Muzart. Uma Epopéia do Sertão. In SUASSUNA, Ariano. O Rei Degolado nas
Caatingas do Sertão – Ao sol da Onça Caetana. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1977.
58
Entre os guaranis o jogo é conhecido pelo nome de jagua ho.e xivi. Entre os bororos, é chamado de Adugo. O jogo
da onça tem similares em muitas outras culturas. Sua origem é provavelmente inca.
98
formada por um triângulo, que, se a imaginarmos com a base para cima, vira uma seta
(que aponta e critica).
Tabuleiro do jogo da onça riscado ao chão.59
Então não nos parece nada impossível que, ao estruturar as relações centrais da
trama sempre em três pontas, em triangulação, como veremos abaixo, Suassuna tenha
tido a intenção subliminar de encurralar uma onça – represente ela o cosmopolitismo, a
miséria, as críticas que recebe, ou mesmo destacar outras tantas – a sua própria
vaidade ou a cultura do sertão com influências ibéricas, indígenas e negras. A cada
aparição da onça contextualiza-se um tom ambivalente: a esquerda e a direita, o
sagrado e o profano, o popular e o erudito.
E Quaderna é sempre a ponta oposta à
base, aquela que aponta ou é apontada, incorpora ou é incorporada, mas sempre rege
as pontas contrárias. E se diz uma onça criada também. Uma onça, uma cobra-coral que
Clemente e Samuel “tinham caído na tolice de criar” (SUASSUNA, 1971, p. 740).
59
Foto in: http://www.estadao.com.br/ext/especiais/indios/bororos.htm. Acesso em: 17 de agosto de 2006.
99
QUADERNA
Imaginário
poético
Cantador
João Melchíades
Tia Filipa
QUADERNA
Emparedados
do Sertão
Clemente
Samuel
QUADERNA
Sagrado
X
Profano
Pedro Beato
Maria Safira/
Eugênio Monteiro
100
QUADERNA
Processo
Corregedor
Dona Margarida
Vamos transitar agora por cada uma dessas relações centrais: Tia Filipa –
Quaderna - João Melchíades, que constrói o imaginário poético popular de Quaderna;
Clemente - Quaderna - Samuel, que traz à tona sua formação ideológica; Pedro Beato Quaderna - Maria Safira e Eugênio Monteiro, que, já discutido em capítulo anterior,
entremostram o trânsito do narrador entre o sagrado e o profano com tons de grotesco
até chegar à triangulação Corregedor - Quaderna - Dona Margarida, que mostra o
narrador entre o Real e o Oficial machadiano.
101
6. Tia Filipa, o Cantador João Melchíades e a velha Maria Galdina, a Louca
Quaderna, em A Pedra do Reino, se conta criado na Fazenda da Onça Malhada
pela Tia Filipa, ouvindo suas histórias, contadas, cantadas e lembradas oralmente. Tia
Filipa é casada com o Cantador João Melchíades – padrinho de crisma de Quaderna –
que traz para o âmbito familiar os cantos e contos populares. Contos populares que
formam o imaginário do narrador que quer criar um “Reino literário, poderoso e sertanejo,
um Marco [...]”. Aliás, veja que – tomando Câmara Cascudo como fonte – “o conto
popular nunca é uno e típico, mas tecido de elementos vindos de muitas origens, numa
fusão que se torna nacional pelo narrador e internacional pelo conteúdo temático”60. A
variedade dos fios formadores do conto popular, diz Cascudo, dá a ilusão do inesgotável
em tal imaginação.
É essa imagem do inesgotável que transparece em Tia Filipa – uma mulher ao
mesmo tempo forte e delicada – que conta e canta as histórias populares, trazidas a
casa pelo Cantador João Melchíades, enquanto faz renda de bilro. Sobre Tia Filipa,
Quaderna dizia assim:
Impressionava-me a calma, a modéstia e a energia mansa que ela conseguia conciliar
com a coragem viril e os assomos cavaleiros dos dias em que estava azeitada. Nesses
dias de calma cotidiana, vestindo a saia comprida e o casaco com mangas que sempre
usou, punha óculos de aro de ouro e, sentando-se à almofada, fazia rendas e rendas,
cantando velhas cantigas e folhetos, que sabia de cor, às dúzias [...] fazendo renda e
cantando suas cantigas, ela dirigia tudo, despoticamente: desde a criadagem até a
educação, o catecismo e as diversões das filhas dos moradores e Vaqueiros.
(SUASSUNA, 1971, p. 86).
A feitura da renda é imagem que representa essa variedade de fios dos quais fala
Cascudo. Tia Filipa conta ao tecer... Tece, ao contar, com os fios das citações do
60
In CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. Prefácio de Antônio Balbino. 3ª edição revisada
e aumentada. Brasília: Instituto Nacional do Livro/ Ministério da Educação e Cultura, 1972, p. 303.
102
romanceiro popular do Nordeste, remetendo, então, ao fato já mencionado de que é a
arte popular nordestina que alinhava e dá forma ao Movimento Armorial. Que cria esse
tecido e que na Pedra do Reino constrói tal imaginário do narrador (armorial) Quaderna.
Mas Tia Filipa, em seu tom artesanal-guerreiro-religioso, não era a única
responsável por tecer o imaginário quadernesco. O cantador João Melchíades Ferreira e
a “Velha do Badalo” Maria Galdina, junto a Filipa, construíram o reino da poesia pelo
qual Quaderna transitava e que o ensinou a transfigurar sua “vida cinzenta, feia e
mesquinha”. A velha Maria Galdina era “meio abilolada”, dizia Quaderna, mas era muito
amiga da Tia Filipa. Ajudava-a na feitura das rendas... Era artesã importante nesse tecer
dos fios.
Maria Galdina era conhecida por três apelidos: Sá Maria Galdina, Galdina Gato e Sá
Maria do Badalo, pelo fato de ser da família Gato e de morar no “Badalo”, uma região de
nosso município onde só dá doido. Ela tinha horror a ouvir isso. Aparecia às vezes na
“Onça Malhada”, para vender ovos, coentro e galinhas. Tia Filipa comprava tudo, sem
precisar. E como só a chamava respeitosamente de Dona Maria Galdina, não ligando para
sua sandice, a velha era louca por ela. Braba com todo mundo, com Tia Filipa era um
cordeiro. [...] a amizade entre minha tia e a Velha do Badalo estreitou-se ainda mais
quando elas descobriram que ambas gostavam de umas velhas cantigas que somente
elas ainda sabiam. Depois daí, quando Sá Maria Galdina ia lá em casa, sentava-se no
chão, perto da almofada onde Tia Filipa fazia renda, e começavam a cantar, uma
ajudando a outra [...] (SUASSUNA, 1971, p. 90)
Surge aí, quando Quaderna destaca que Tia Filipa é sempre ajudada por Nhá
Galdina, mais uma vez, o “Rei do Quinto Naipe do Baralho”. É que a “abilolada” Galdina
parece-nos transparecer o “Louco” nas cartas de Tarô, que é simbologia equivalente ao
curinga do baralho. Diz-se do Louco que ele, como o curinga, se distingue pela ausência
de cifra para significar que está à margem de qualquer ordem ou sistema. Seu traje de
cores desencontradas lembra a de um bufão que, segundo o teórico russo Mikhail
Bakhtin, caricaturava a corte, os reis e os senhores. Mas a carta do Louco também
indica as múltiplas influências, à vezes até incoerentes, a que o narrador se submete. A
loucura é, enfim, uma capacidade de sublimação, impulsividade cega e certa solidão. No
103
entanto, como personagem singular, o Louco não se preocupa com os perigos do
caminho porque se sabe invulnerável e imortal, e, por isso mesmo, está exposto a todo o
tipo de faltas para que se transfigure o peso do real. Parece-nos dizer Suassuna, na
construção do imaginário do narrador Quaderna, que o poeta pisa no inconcebível e que
a loucura – representada por Sá Galdina (que pode muito bem, para não perder a
constante inspiração ibérica das obras de Suassuna, ser uma caricatura de Dona Maria
I61, a Louca, princesa da Beira e que se tornou Rainha de Portugal em 1777) – dá-lhe
certa liberdade e segurança – na poesia – ao transitar pela modernidade. É mais uma
vez a cambalhota do palhaço-poeta. Dizia Quaderna que todo esse ambiente em que
vivia o ajudava aos poucos, tornava aquele seu mundo – sertanejo, áspero, pardo e
pedregoso – num “Reino Encantado”:
.
[...] Tudo isso me ajudava aos poucos [...] Tornava também o mundo, aquele meu mundo
sertanejo, áspero, pardo e pedregoso, um Reino Encantado [...] Minha vida, cinzenta, feia
e mesquinha, de menino sertanejo reduzido à pobreza e à dependência pela ruína da
fazenda do meu pai, enchia-se dos galopes, das cores e bandeiras das Cavalhadas, dos
heroísmos e cavalarias dos folhetos. (SUASSUNA, 1971, p.100)
É a transfiguração do trágico pela poesia.
61
A referência a Dona Maria I também transparece o peso da erudição. Dona Maria I era uma criança precoce e muito
bonita. Aos quatro anos lia português e castelhano; aos cinco anos aprendia latim.
104
7. Diana do pastoril
Após falarmos da infância do narrador Quaderna, que trouxe os tijolos que
formaram o seu castelo poético oral-popular, é importante, agora, apresentar, em
detalhes, Clemente e Samuel, formadores da “erudição quadernesca”, para que se
percebam (em distância regular) as medidas das referências biográficas, estéticas e
ideológicas na construção de cada uma dessas personagens, além de entender a
Academia de Letras dos Emparedados do Sertão, que, nesse sentido, transparece a
vaidade “rei-professor” do autor Suassuna. O objetivo final do narrador Quaderna é
transformar-se no Gênio Máximo da Humanidade, construindo uma obra “completa,
lapidar e de primeira classe” que seja a “cristalização da nacionalidade brasileira”. Bem,
“cristalização da nacionalidade” já é uma expressão problemática, como vimos nas
palavras de José Miguel Wisnik quando tratava das questões da cultura popular e nos
chamava a atenção para os “estojos museológicos” criados pelos eruditos ao tratar das
manifestações populares. Ao usar “cristalização”, Suassuna transparece mais uma vez
uma nacionalidade estática.
Cristalizar é “permanecer em um mesmo estado. Não
experimentar mudança”.62 Para atingir esse objetivo durante a narrativa, Quaderna
disputa com seus dois mestres – o advogado Clemente Hará de Ravasco Anvérsio e o
promotor Samuel Wandernes – o título de Gênio da Raça Brasileira.
Essa luta pelo título e a construção da sua obra lapidar são um artifício estético,
por intermédio do narrador Quaderna, para que a voz de Suassuna aproveite para
tencionar críticas, confessar influências e manipular as linhas do personagem-marionete
Quaderna ao tom de uma “tríplice demanda novelosa”63: a demanda religiosa
(sebastianismo), a demanda política e a demanda literária.
62
In Novo Dicionário da Língua Portuguesa, Aurélio Buarque de Holanda Ferreira.
Essa expressão é utilizada por Sonia Ramalho de Farias. In FARIAS, Sonia Ramalho de. Ariano Suassuna: espaço
regional, cultura e identidade nacional. [online] In Revista Brasil de Literatura, 2002. Disponível na Internet via:
http://members.tripod.com/~lfilipe/soniaramalho.htm#S . Acesso: julho, 2006.
63
105
Clemente e Samuel são pensamentos em oposição, transfigurados em
personagens. Quaderna se quer a mediação, o “meio do caminho” dessas tensões.
Assim, coloca-se em posição de argumentação diante de cada parecer crítico que tem
sempre como tema a “identidade nacional”. Constrói um discurso de conciliação. Nessa
posição ele tenta, por vezes, harmonizar os antagonismos e, outras vezes, aplaude os
conflitos e deixa que esses mesmos antagonismos se choquem, caricaturando-os e
destacando suas fragilidades. É que cada um desses discursos também faz parte do
próprio Quaderna e do próprio autor Suassuna.
O professor Clemente, negro e de esquerda, é o preceptor da família Quaderna,
mora com eles na fazenda da Onça Malhada bem antes da chegada de Samuel. É,
segundo o narrador, uma sumidade. Bacharel em direito, historiador e “filósofo
sertanejo”, concebia há um tempo o “Tratado de Filosofia do Penetral”, destinado a
ultrapassar os “Estudos Alemães” de Tobias Barreto. Filho de pais desconhecidos,
Clemente é descrito como um “negrinho bonito de cabelo bom”, deixado na porta do
latinista Antonio Gomes de Arruda, que o criou e formou. Vale aqui destacar o sopro
biográfico: Antonio Gomes de Arruda, patrono da cadeira 9 da Academia Paraibana de
Letras, teve papel fundamental na formação de João Suassuna, pai do autor Ariano.
Casou-se, inclusive, em terceiras núpcias, com a tia, irmã mais velha de seu pai.
Clemente só aceita como valores “autenticamente brasileiros” a raça e a cultura
negro-tapuia. Propõe, como tema da "Obra da Raça", a mitologia negro-tapuia
(principalmente a história de Zumbi dos Palmares), à qual empresta um caráter social
revolucionário em contraposição à cultura hegemônica legada pela colonização
européia. E advoga então que "O Gênio da Raça Brasileira será um homem do povo, um
descendente dos negros e tapuias, que, baseado nas lutas e nos mitos de seu povo,
faça disso o grande assunto nacional, tema da obra da raça!".
106
Já Samuel defende a identidade brasileira da perspectiva da cultura e dos valores
do colonizador ibérico. Samuel, alourado de direita, era também formado em direito e
descrito como “um poeta do Sonho e pesquisador das Legendas” que planejara a “obra
de gênio O Rei e a Coroa de Esmeraldas”. Conta Quaderna que, para a feitura desse
“livro de tradição e brasilidade”, se dedicara a pesquisas genealógicas e heráldicas sobre
as famílias fidalgas de Pernambuco.
São, portanto, claras tensões opostas de pensamento que interagem com
Quaderna e propiciam as discussões e defesas de seu discurso da cultura nordestina
popular de filtro letrado que concilia. Clemente e Samuel, por exemplo, representam os
mestres-escola que, num sertão sem estrutura educacional, eram contratados por
famílias mais abastadas e, mediante hospedagem temporária, ensinavam às crianças. E
Quaderna, o sertanejo-letrado, harmoniza tensões de pensamento com o riso da
conciliação.
No folheto XXXIX, O Cordão Azul e o Cordão Encarnado, é que Quaderna se
apresenta como o Mateus de vermelho e de preto. Nesse capítulo, Suassuna já
transparece no título a disputa que se desencadeará entre Clemente e Samuel quando
Quaderna conta ter sido intimado a comparecer perante o Juiz-Corregedor. Tanto
Clemente quanto Samuel desenvolvem amplas teorias conspiratórias que explicam por
que nem um, nem outro, apesar de amigos, podem defendê-lo perante a oficialidade. Daí
transparece o fato de que seu discurso “nacional-popular-armorial-sertanejo” pode ser
criticado tanto por um lado quanto por outro, por isso deve transitar por todos os lados,
conciliando, como Rei do Quinto Naipe do Baralho. E aí, pela clara demanda política,
Clemente como caricatura da esquerda é integrante da Aliança Nacional Libertadora, “de
cujo Comitê local era Presidente” (SUASSUNA, 1971, p. 254) e Samuel como caricatura
da direita é da Ação Integralista Brasileira. Quaderna em mais uma ação de parábase
explica a relação e transparece o seu discurso mediador conciliatório:
107
[...] As relações existentes entre nós três, nobres Senhores e belas Damas, continuavam
de certa forma curiosas. Como rivais, não nos suportávamos; mas como também
precisássemos muito uns dos outros, não podíamos separar-nos. A rivalidade existente
entre Samuel e Clemente tinha muitas causas literárias, mas, como Vossas Excelências já
devem ter suspeitado, era principalmente de natureza política. [...] O pior, porém, é que a
desgraçada dissensão que se manifestara desde o princípio entre aquelas duas
personalidades geniais não se contentara em entravar somente o progresso político,
literário e filosófico do Sertão, separando em divisões estéreis aqueles dois grandes
homens que, de outra maneira, bem poderiam trabalhar juntos, com resultados
extraordinários para a nossa Pátria. Acontece que a luta ideológica travada entre os dois
estendera-se do campo puramente político até o literário, o histórico, o filosófico e até o
religioso, se posso falar assim [...] (SUASSUNA, 1971, p. 254)
No fragmento Quaderna diz “[...] bem poderiam trabalhar juntos”, conciliação de
contrários a que Clemente e Samuel chamavam de “a Diana Indecisa”, personagem do
pastoril64.
Sobre o pastoril, vale destacar que tal manifestação integra o ciclo das festas
natalinas do Nordeste, particularmente em Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e
Alagoas. É um dos quatro principais espetáculos populares nordestinos, sendo os outros
o bumba-meu-boi, o mamulengo e o fandango. De tais espetáculos participa o povo
ativamente, com suas estimulantes interferências, não se comportando apenas como
passivo espectador, a exemplo do que acontece com os espetáculos eruditos. Muitas
64
. In: Site da Fundação Joaquim Nabuco por Waldemar Valente.
108
dessas interferências servem de deixa para inteligentes e engraçadas improvisações,
imprimindo ao espetáculo formas diferentes e inesperadas de movimento e animação.
O Pastoril, embora não deixasse de evocar a Natividade, caracteriza-se pelo ar
profano. Por certa licenciosidade e até pelo exagero pornográfico, como aconteceu nos
Pastoris antigos do Recife. As pastoras, na forma profana do auto natalino, eram
geralmente mulheres de reputação duvidosa, sendo mesmo conhecidas prostitutas,
usando roupas escandalosas para a época, caracterizadas pelos decotes arrojados,
pondo à mostra os seios, e os vestidos curtíssimos, muito acima dos joelhos. Nos
Presépios atuais, como nos Pastoris, encontram-se ainda os dois cordões. O Encarnado,
no qual figuram a Mestra, a 1ª do Encarnado e a 2ª do Encarnado, e o Azul, com a
Contra-Mestra, a 1ª do Azul e a 2ª do Azul. Entre os dois cordões, como elemento
neutro, moderando a exaltação dos torcedores e simpatizantes, baila a Diana, com seu
vestido metade encarnado, metade azul.
Tal referência ao pastoril religioso-profano tem tal tom ambivalente, ou não? Diz
Quaderna: “[...] chamavam-me “A Diana Indecisa”, porque eu não me animava a aceitar
totalmente nem o Comunismo de um nem o Integralismo do outro.” (SUASSUNA, 1971,
p. 256) Se bem que tendendo mais para o integralismo de Samuel. Durante a narrativa,
no folheto em que trata do duelo entra as duas ideologias, Quaderna é padrinho de
Samuel:
[...] eu planejara uma manobra desleal para prejudicar Clemente e favorecer meu afilhado,
Samuel. Sabia que, com um pouco de dissimulação, teria oportunidade de levá-la a cabo:
os dois rivais, perdidos na grandeza de suas idéias e de seus sonhos, eram muito
distraídos para as ciladas da vida prática.
Por outro lado, à boa moda sertaneja, fui sempre muito sensível à honra de ser escolhido
como padrinho. Quem me escolhe pode contar com um coiteiro fiel e protetor
incondicional. Afilhado meu, para mim, nunca teve defeito nenhum. (SUASSUNA, 1971, p.
291)
109
8. O palhaço, mestre de pista
Para entender em que estrutura o narrador-personagem Quaderna concilia como
o palhaço – mestre de pista – as ideologias de Clemente e Samuel é preciso voltar ao
âmbito do circo. Mas é importante destacar que a escolha do circo como metáfora da
vida feita por Suassuna e também é fato que transparece uma cultura popular filtrada por
um âmbito não-popular. Escolha de quem olha o tom Real pelas janelas Oficiais.
Segundo o teórico Mário Fernando Bolognesi, a origem do circo é aristocrática. Em seus
primórdios, o circo não se destinava ao público das ruas e praças, freqüentador das
feiras que apreciava a cultura popular. Ao contrário, a apresentação eqüestre que deu
origem ao circo que se conhece hoje nada tinha de popular. Dirigia-se aos aristocratas e
à burguesia. “A aristocracia encontrou, com o circo, um modo de tornar espetacular o
seu mais caro símbolo social, o cavalo.” (BOLOGNESI, 2003, p. 34) A tendência
aristocrática do circo se acentuou, na França, por volta de 1830, com a criação da
chamada Alta Escola, que ressaltou mais a elegância da montaria que a proeza
acrobática em cavalos. Tal atividade procurava transparecer a recusa da desordem e a
busca do domínio do corpo humano e do animal. Bolognesi cita o estudioso da história
do circo, o francês Roland Auguet, que destaca que na Alta Escola, o cavaleiro e a
amazona adotaram os trajes suntuosos das altas esferas sociais e que, por essas
características, a Alta Escola poderia ser considerada uma espécie de síntese simbólica
e espetacular da união entre aristocracia e burguesia na consolidação do Estado
Nacional, sob a batuta de um imperador. Em outras palavras, diz Auguet, a Alta Escola
foi a expressão de uma cumplicidade entre as classes.
Mas, diante disto, como é que o circo começou a transitar pelo âmbito popular, da
maneira como herdamos no Brasil e tal qual se conhece hoje como estrutura dos circos
populares, estrutura que Suassuna incorpora em sua literatura?
110
É que, com o fim das guerras napoleônicas, muitos soldados e cavalos tornaramse inúteis e a disponibilidade de animais tornou possível a formação de trupes eqüestres
errantes, capitaneadas pelos saltimbancos. Assim, além do número artístico, o cavalo
serviu como meio de locomoção para o espetáculo que se tornou itinerante e que, como
era concebido a partir do cavalo, motivou a expressão “circo de cavalinhos”. No entanto,
a exibição passou a ser feita para uma platéia mais ampla, de gosto não
necessariamente aristocrático, que considerava a mera demonstração de habilidades de
cavaleiros alguma coisa um tanto monótona. A quebra dessa monotonia se deu com o
número de acrobacias inicialmente, e de diversos outros em seguida, todos oriundos das
feiras ambulantes, inclusive o clown. É essa estrutura do circo – o popular – que serve
como imagem e analogia filosófica. É tal estrutura que traz o âmbito espetacular utilizado
na obra de Suassuna.
O circo se torna então uma espécie de magia que nasce e morre na noite do
espetáculo. Lembra o teórico Mário Fernando Bolognesi que os números circenses
ganham um caráter espetacular porque neles estão contidos os seguintes elementos:
1. A habilidade propriamente dita, quando o artista domina o equilibrismo, a acrobacia,
o trapézio, os truques de magia e de prestidigitação, o controle sobre feras etc.
2. A coreografia, que confere às habilidades individuais ou coletivas um sentido na
evolução temporal e espacial.
3. A música, que contribui para a eficácia rítmica dos elementos anteriores.
4. A indumentária, que completa visualmente o espetáculo.
5. A narração do mestre de pista é ingrediente especial para a consecução do tempo
dramático, enfatizando os momentos da apresentação, o seu desenvolvimento, o
clímax e o conseqüente desfecho.
111
Desde a infância, Ariano Suassuna tem verdadeiro encantamento pelos circos
sertanejos que passam pela cidade de Taperoá. Infância que vivia no encontro entre o
riso do circo que passava pela cidade e a religiosidade do colégio protestante onde
estudava. Ambos reconciliadores em sua vida. Tal paixão o faz construir o seu próprio
circo, erguido com a lona e as estacas de suas palavras, de sua arte: a literatura. “A
literatura é a minha festa: é lá que eu canto e danço”, diz Suassuna.
Por intermédio de sua obra, Suassuna mostra o mundo como um vasto picadeiro
onde o palhaço, que tem também a função do mestre de pista, é o homem, é a alma do
circo. Uma alma circense que lida com o riso e com a morte. A morte se coloca como
possibilidade efetiva no circo, uma vez que pode ocorrer o fracasso do artista-acrobata
diante do risco e do limite a serem superados. Somente o espetáculo circense combina e
alterna emoções tão antagônicas como a gargalhada descompromissada e a aflição
diante do possível fracasso do acrobata em seu salto-mortal. O riso e a morte dão ao
circo um registro emocional único e contraditório. No artigo “O Teatro, o Circo e Eu”, da
Folha de S. Paulo de 23 de outubro de 1977, Ariano Suassuna diz o seguinte:
O Circo é, portanto, uma das imagens mais completas da estranha representação da vida,
do estranho destino do homem sobre a terra. O Dono-do-Circo é Deus. A arena, com seus
cenários de madeira, cola e papel pintado, é o palco do mundo, e ali desfilam os rebanhos
de cavalos e outros bichos, entre os quais ressalta o cortejo do rebanho humano – os reis,
atores trágicos, dançarinas, mágicos, palhaços e saltimbancos que somos nós.
Então, entre o riso e a morte, o palhaço65 está no centro do picadeiro desse circo
em metáfora; representa as dicotomias da alma humana nas figuras do palhaço augusto
e do palhaço branco. O branco é sério, autoritário e dominador. O augusto é, sobretudo,
anárquico.
65
Palhaço e clown em nossa cultura têm tons diferentes. É o palhaço que traz o tom das feiras, dos populares, dos
grotescos. E o clown o tom dos espetáculos de teatro, dos palcos, dos malabarismos. Como se o clown – pelo
anglicismo – trouxesse um tom erudito que palhaço – mais popular – não comportasse. Mas aqui, em Suassuna,
palhaço inclui clown. Mesmo que não fossem sinônimos em tradução, seriam simultâneos em representação de alma.
Clown é, em inglês, no entanto, palavra que quer dizer rude, torpe, rústico... Portanto ao tom do nosso palhaço se
quiséssemos, por acaso, vê-lo apenas pelo viés grotesco. Mas não é esse o caso.
112
O cineasta italiano Federico Fellini66, num artigo sobre seu filme Palhaços (I
Clowns, 1970), diz que o augusto é o adulto e o branco é a criança. Nesse sentido,
Ariano, pelo narrador Quaderna, em movimento pendular adulto-criança, riso-morte,
fracasso-sucesso, monta, pesa, desconstrói (em cambalhota) e ri do seu próprio discurso
e das reverberações que ele causa. O Romance da Pedra do Reino é romance com
estrutura narrativa construída em alma de circo; e branco e augusto vivem lado a lado no
palhaço (mestre de pista)-Quaderna. É também Fellini que lembra que o palhaço branco
“é a elegância, a graça, a harmonia, a inteligência, a lucidez, que se propõem de forma
moralista, como as situações ideais e únicas, as divindades indiscutíveis”67. No caso de
Quaderna, criação de Suassuna, essa “forma moralista” tem derivação católica. O
palhaço augusto, por sua vez, vê, no branco, lantejoulas cintilantes e se encanta com
tais perfeições e brilhos, não fossem elas ostentadas com tanto rigor e vaidade. E como,
assim, esse brilho se torna um fardo pesado e inalcançável, o palhaço augusto, que é a
criança, entra em cena, revolta-se ante tanta “perfeição” e “rola no chão e na alma”. Nas
palavras de Fellini: “essa é a luta entre o orgulhoso culto da razão – onde o estético é
proposto de forma despótica – [...] e a liberdade do instinto [...] São, em suma, duas
atitudes psicológicas do homem, o impulso para cima e o impulso para baixo, divididos,
separados”68.
Ao levar em consideração as “vertentes da alma humana” encontradas na obra de
Suassuna, o branco é o Rei, o augusto é o Palhaço. Branco e augusto oscilam em
impulsos “para cima e para baixo” no narrador Dom Pedro Dinis Ferreira-Quaderna.
Durante a narrativa, Quaderna se diz não o “Pierrô bufo e belo, filho de Cassandrino ou
de Polichinelo!”, mas se assume “Mateus de vermelho e de preto”, palhaço mediador da
66
Fellini nasceu em 1920, em Rimini, pequena cidade litorânea da Itália, e faleceu em 1993. Seus mestres no cinema
foram Rossellini, para quem trabalhou em vários projetos (inclusive Roma, cidade aberta e Paisà), e Lattuada, com
quem co-dirigiu seu primeiro filme. Tem inspiração neo-realista na primeira fase de suas obras, com muitos
personagens populares, de fácil identificação e grande carga emocional. A partir de Oito e meio (1963), no entanto,
estão presentes o sonho, a fantasia e o grotesco, que formariam a matéria-prima de sua carreira. Esse sonho e fantasia
tem seu ponto alto em I Clowns.
67
In Fellini por Fellini, L&PM Editores Ltda., Porto Alegre, 1974, págs. 1-7. Tradução de Paulo Hecker Filho.
68
Idem.
113
festa de bumba-meu-boi – é a voz que brinca com as tensões de pensamento
provocadas por seu criador Suassuna. É como se Quaderna, esse narrador bibliotecário
e memorialista, jogasse conscientemente a isca e deixasse depois que as tensões, elas
próprias, se batessem – “bumba-meu boi”! Segundo Câmara Cascudo em seu Dicionário
do folclore brasileiro, bumba é interjeição, zás, valendo a impressão de choque, batida,
pancada. Bumba-meu-boi será “Bate! Chifra meu boi!”, voz de excitação repetida nas
cantigas do auto mais popular do Nordeste, que aparece tanto em noite de Reis, fazendo
parte do ciclo do Natal, como no carnaval (apesar da contrariedade dos tradicionalistas).
E, na máscara do Mateus, apresentador desse auto “religioso-pagão”, Quaderna então
ri. E carnavaliza. E grita o “bate-meu-boi” em palhaço-cavaleiro, montado em seu magro
Pedra-Lispe, galopando seu sonho: “[...] Sou o Diabo-Encourado, o Sangue-doEsqueleto que procura espargir pelo Mundo tristonho, no sangue e ao pó69 da Morte, o
Galope do sonho [...]”. Isso porque transparece uma voz de autor que sabe do que traz
de enriquecimento ao discurso “popular” – que, por mais que seja “inútil” à modernidade,
não é ingênuo e incorpora sim estetizações que enriquecem esses retratos das
miragens70 que transfigura de sua janela de gabinete. Essa “inutilidade” se diz em muitas
críticas porque “o avanço da modernização desenraíza, desloca, [muitas vezes] destrói,
desvia, absorve, integra, muda de sentido, folcloriza”71 esse discurso popular. Então, a
não ser pelo viés que toca o populismo idealista, não se pode manter essa cultura
intacta, isolada dos processos de mudança que atingem a sociedade como um todo em
acelerações diferentes tanto no campo quanto na cidade. Ariano sabe disso, então
69
Referência ao Sermão de Quarta-feira de Cinzas do padre Antônio Vieira proferido em Roma na Igreja de S.
Antonio dos Portugueses em 1670. “[...] Os vivos são o pó levantado pelo vento, os mortos são o pó caído. Adão, feito
de pó, recebendo o vento do sopro divino, torna-se vivo. Nas Escrituras levantar é viver, cair é morrer. [...] Deu o
vento, levantou-se o pó; parou o vento, caiu. Deu o vento, eis o pó levantado: esses são os vivos. Parou o vento, eis o
pó caído: esses são os mortos. Os vivos pó, os mortos pó; os vivos pó levantado, os mortos pó caído; os vivos pó com
vento, e por isso vãos; os mortos pó sem vento, e por isso sem vaidade. Esta é a distinção e não há outra [...]”
70
Raquel de Queiroz no prefácio ao Romance da Pedro do Reino diz que Quaderna se quer um “retratista de
miragens”.
71
In BUENO, André. Formas da Crise – estudos de literatura, cultura e sociedade. Rio de Janeiro: Graphia Editorial,
2002, p. 165.
114
discursa com a máscara do Palhaço alternada com a do Rei (idealista) e bate essas
tensões de pensamento, rindo para se proteger do sofrimento.
É a representação do bater dessas tensões, é esse grito de bumba o que
acontece, por exemplo, no folheto XLII – O Duelo, onde os seus dois “mestres e rivais de
literatura”, o filósofo de esquerda Clemente e o poeta de direita Samuel, se enfrentam a
penicadas – de “penicos iguais e de mesmo peso” –, num duelo regido pelo próprio
Quaderna. No regrado papel de narrador de influência popular e erudita, age como os
cantadores, contadores e repentistas; como os apresentadores circenses, como o
palhaço de bumba; mas também como os narradores do teatro grego em ação de
parábase72:
Aqui, para que os nobres Senhores e belas Damas que me ouvem não pensem que o
ordálio ia ser brincadeira, devo esclarecer que as armas escolhidas por Clemente eram
realmente perigosas. Não eram penicos comuns, mas uns penicos especialíssimos,
desses que o Povo sertanejo chama de “cubas”, no masculino, “os cubas”. Eram enormes
e pesados, com cerca de setenta centímetros de altura. (SUASSUNA, 1971, p. 291)
Suassuna conta que, a cada má crítica que recebe, cria um novo personagem. E
talvez seja Pedro Beato, ex-marido de sua mulher, a sedutora Maria Safira, em uma das
possíveis interpretações, além de Clemente e Samuel, um desses personagens que
criam chances de interlocução para os desabafos do autor. E é, além disso, ponta de um
triângulo entre o profano e o sagrado – Pedro Beato e Maria Safira. Quaderna, nesse
momento, justifica ações entre a representação religiosa de Deus em Pedro Beato e a
representação profana do Diabo na sensual Maria Safira, mulher com quem é “amigado”,
ex-mulher de Beato. E dentro de sua obra Suassuna incorpora, ao mesmo tempo, o riso
que concilia, a religiosidade que supera os trágicos de sua vida, entre o popular e o
erudito como cenário geral, entre o autor e o narrador em questões específicas. Veja, por
72
No antigo teatro grego, parábase é a parte da tragédia ou da comédia em que um ou mais atores recobravam suas
verdadeiras personalidades e se dirigiam aos espectadores, com observações, opiniões, esclarecimentos ou apelos, o
que também pode ser feito pelo próprio autor. (Dicionário Aurélio Buarque de Holanda Ferreira.) Na Pedra do Reino
é ainda Quaderna o autor-narrador em ação de parábase, não Suassuna.
115
exemplo, que o narrador Quaderna, ao descrever a casa onde mora, diz que sua
biblioteca se confunde com ela. E quando autor e narrador se confundem, algumas
questões são resolvidas ou no ambiente da biblioteca ou diante da parede divisória em
que casa e biblioteca se encontram – “[...] a Biblioteca e minha casa pegada a ela por
uma porta larga que fazia dos dois casarões um só [...]” (SUASSUNA, 1971, p. 320) –
Como que representação de encontro autor-narrador que propicia a voz do próprio autor
por trás da máscara do personagem. Pedro Beato, o velho marido de Maria Safira, está
sentado no chão, encostado à parede, entre uma estante e a porta que ligava a
Biblioteca a casa, quando dá início a um diálogo que transparece o encontro das tais
duas vozes73 em confissão. Veja fragmento:
-- Dinis, estão dizendo na rua que você vai ser processado pelo juiz novo que chegou. É
verdade? [...]
-- Você acha que eu estou errado, Pedro? Acha que quem tem razão são os meus
inimigos? Sou mesmo um homem de mau caráter e de maus bofes como eles parecem
pensar? [...]
-- É difícil dizer assim, Dinis, sem pensar tudo com cuidado e sem explicar tudo direito!
Para mim, tudo isso que lhe aconteceu, vem de muito antes. Não foi a denúncia deles [os
homens com quem Quaderna havia brigado na rua de Taperoá] que meteu você no
processo, nem seus aperreios apareceram só por causa disso! Tudo é a maldita questão
de honra, Dinis! [...]
[...] Aquela frase me atingia com a força das revelações, iluminando zonas secretas e
subterrâneas do meu sangue, zonas de sombras, ocultas até ali, mesmo por mim. [...]
-- Você sabe melhor do que eu, Dinis! [...] Me diga uma coisa, por exemplo: por que é que
você vive inventando essas histórias de Imperador do Divino, de Auto dos Guerreiros,
vestindo-se de Rei e andando a cavalo pelo meio da rua, na frente de seus companheiros,
de manto nas costas e coroa na cabeça?
[...] para surpresa minha, aquele fora o ponto de ataque sobre o qual o meu rival e
opositor, que, pelo jornal de Campina, falara nas minhas “afetações de Rei apalhaçado de
Bumba-meu-boi” e nas minhas “fanfarronices de Cangaceiro e valentão de arraial das
festas de Reis”. [...]
-- Mas Pedro, que mal faz aos outros que eu me vista de Rei, se isso não toma o lugar de
ninguém [...] Essas coisas que eu faço são tão inocentes!
-- Dinis, meu filho, me perdoe, mas não existe nada inocente, no mundo! [...] o que queima
você por dentro, é o fogo de Deus e do Diabo. O que eu não sei é como esse fogo
aparece em você por dentro, porque em cada pessoa é diferente! [...] Me diga uma coisa,
por exemplo: você já perdoou os assassinos de seu pai? Já perdoou os assassinos de
seu padrinho?
-- Sei não, Pedro! (SUASSUNA, 1971, p. 308–310)
73
O encontro de vozes de Suassuna me remete a Mário Quintana: Bem! Eu sempre achei que toda confissão não
transfigurada pela arte é indecente. Minha vida está nos meus poemas, meus poemas são eu mesmo, nunca escrevi
uma vírgula que não fosse uma confissão. (In http://www.ccmq.rs.gov.br/novo/mario/mario2.php Acesso em
18/7/2006)
116
Nesse momento, encontrado no folheto XLV – “As Desventuras de um Corno
Desambicioso”, Quaderna é máscara que justifica a obra do autor como arma de
redenção.
Como forma de superação da morte, como artista que domina suas
acrobacias, como um “riso equilibrista”.
Portanto, pendulando em trapézio entre religiosidade e riso, entre circo e auto,
entre o trágico e o cômico, o popular e o erudito, o palhaço augusto e o palhaço branco,
Suassuna corporifica em seu “picadeiro literário” as tensões que o seu discurso causa. E
com sua bufonaria desconstrói seu próprio entusiasmo exagerado e os tons que
escapam de retórica empolada. Mais uma vez se liberta esteticamente do peso do Rei,
em máscara de bufão-Mateus. É importante aqui, então, lembrar de Antonio Candido no
livro A personagem de ficção, em que observa que quem não for capaz de sentir
vivamente todas as nuances dos valores não-estéticos – religiosos, morais, políticosociais etc. –, que sempre estão em jogo onde se defrontam seres humanos, não
apreenderá esteticamente a totalidade e a plenitude de uma obra. Suassuna, ao dizer
que quando o Rei pesa nos ombros o Palhaço dá uma cambalhota, entende que “o valor
estético suspende o peso “real” dos outros valores (embora os faça aparecer em toda a
sua seriedade e força...); integra-os no reino lúdico da ficção [que em Suassuna é o seu
Castelo Poético e o seu circo da vida], transforma-os em parte de sua organização
estética, assimila-os e lhes dá certo papel no todo”. (CANDIDO (org), 1970, p. 46-47)
Então, quanto maior for o peso, mais amargo o sátiro. Quanto mais alta a escravidão,
mais esmerada a bufonaria. Suassuna, nesse sentido, quando transfigura o sertão em
seu castelo poético, não perde de vista o peso trágico do real empírico. E quanto mais
lhe sente o peso nos ombros, mais cambalhotas. Por isso se explica a quantidade de
117
cavalhadas que muitas vezes é criticada74. Quanto maior o trágico, mais joiaria é
necessária para “torcer o pescoço da tragédia”.
74
Crítica feita pelo próprio Antonio Candido, quando diz que a alta expressão do regionalismo está em Vidas
secas de Graciliano Ramos, “sem vertigem da distância, sem torneios nem duelos, sem cavalhadas nem
vaquejadas, sem o centaurismo que marca os outros” [grifo meu]. (CANDIDO, 1989, p. 159).
118
9. (...) e o espetáculo não pode parar:
Segundo Henri Bergson, a comicidade pode nos informar tanto sobre a
imaginação humana quanto sobre os procedimentos de trabalho da imaginação coletiva,
social e popular. Existem três pontos nos quais tal comicidade deve ser procurada:
1.
Naquilo que é propriamente humano. Ou seja, não há comicidade fora
do homem. Fora do que lembra formas e atitudes propriamente
humanas. “O homem é um animal que sabe rir”, lembra Aristóteles.
2.
Na indiferença. Quer dizer, portanto, que “numa sociedade de puras
inteligências provavelmente não mais se choraria, mas talvez ainda se
risse” (BERGSON, 2001). É que o riso é um remédio específico para a
vaidade, de efeito – aliás – essencialmente risível.
3.
Na ação em grupo. Ou seja, entenda-se que o riso necessite de eco,
que é sempre a ação de um grupo, que esconde uma segunda intenção
de entendimento e cumplicidade com outros risos – reais ou imaginários
de um mesmo grupo.
O teórico russo Mikhail Bakhtin, por exemplo, diz que só se ri entre iguais. O riso
é então, uma espécie de “gesto social” que preocupa como sintoma justamente quando
a estrutura oficial percebe que o riso pode ser uma ação crítica de um grupo
prioritariamente não-oficial – exterior ao Estado e à Igreja. Bakhtin mostra em A cultura
popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais que o riso
se opunha à cultura oficial, ao tom sério, religioso e feudal da época e aparece em
119
diversidade de formas e manifestações. Forma e manifestações que, no entanto, tinham
datas específicas e permitidas pela própria oficialidade para acontecer. Festas públicas
carnavalescas, os ritos e cultos cômicos, os bufões e tolos, gigantes, anões e monstros,
palhaços de diversos estilos e literaturas paródicas possuem uma unidade de estilo e
constituem partes da cultura cômica popular que oferecem uma visão não-oficial.
Bakhtin distingue claramente a cultura carnavalesca da Antiguidade da cultura
festiva que se dá na atualidade. O carnaval contemporâneo segundo Ângela Mitchell75 é
só um pálido reflexo em comparação ao que havia de desenfreada luxúria, de loucura e
inclusive as mutilações físicas que tinham lugar durante o tempo carnavalesco daquela
época. A cultura carnavalesca do Renascimento implica a suspensão temporal de todas
as distinções hierárquicas e barreiras entre os homens... E das proibições da vida
cotidiana. A terminologia “carnavalesco” significa a carnavalização da vida cotidiana.
Com suas máscaras e monstros, festas e jogos, encenações e procissões, o carnaval
era muitas coisas ao mesmo tempo. Era um prazer festivo, um mundo de ponta-acabeça, destruição e criação, era uma teoria do tempo, da história e do destino. Era,
portanto, permitida fase dionisíaca na qual eram destaque as sobreposições
extravagantes, a mistura grotesca e as confrontações entre alto e baixo, classes
superiores e inferiores, espiritual e material, jovem e velho, homem e mulher, identidade
diária e fantasia (disfarce festivo), convenções sérias e suas paródias, tempos sérios
medievais e visões utópicas jocosas.
Mas o riso carnavalesco, na opinião de Bakhtin, também deseja descobrir,
escavar, inclusive para destruir, a hegemonia de qualquer ideologia que pretenda dizer a
última palavra sobre o mundo. Nesse sentido, o dialogismo76 bakthiniano é um aspecto
75
In El carnavalismo em Rabelais y su mundo. Ângela Mitchell é doutora em literatura inglesa pela
Universidade da Geórgia.
76
Dialogismo em Bakhtin: “Todas as palavras e formas que povoam a linguagem são vozes sociais e históricas, que
lhe dão determinadas significações concretas e que se organizam no romance em um sistema estilístico harmonioso
[...].” BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e estética: a teoria do romance. São Paulo: HUCITEC, 1988, p.
100-106.
120
fundamental do carnaval e da cultura popular como um todo. É uma pluralidade de
consciências válidas, cada uma delas defendendo o seu ponto de vista, a sua própria
forma de ver o mundo. Nesse ponto Bakhtin tem um discurso que tenciona com toda
propriedade o discurso Armorial de Suassuna, que, como palhaço, por um lado utiliza o
riso, em certa medida grotesco e conciliador, por outro limita ou atenua77 essa liberdade
“carnavalizante” por conta de sua forte religiosidade. Suassuna deveria, aliás, a partir do
ponto que desenvolveremos agora, escutar Bakhtin com bastante atenção. O teórico
afirma que é olhando de fora de sua própria cultura que se pode entendê-la. Esse
processo abre novas possibilidades para cada cultura, revela potencialidades ocultas,
promove a renovação e o enriquecimento e cria novas potencialidades, novas vozes,
que podem se tornar autênticas em uma futura interação dialógica. Dessa forma, os
grupos marginalizados pela ideologia dominante em tempos de não-carnaval não só
recuperam sua voz nos tempos de carnaval, como também dizem o que pensam sobre
os dominantes que os tentam silenciar. É assim que vozes diferentes se unem em uma
comunicação livre e franca que permite o carnaval, e que permite ainda que cada uma
conserve sua própria unidade e abra a totalidade, enriquecendo-se mutuamente.
Por esse prisma, então, o riso não é da alçada da estética pura, pois persegue um
objetivo “útil”. Mas ele tem, no entanto, algo de estético no momento preciso em que a
sociedade, ao dar o tom cômico a suas ações, liberta-se do zelo da conservação e
começa a se tratar como “obra de arte”. No carnaval, por exemplo, é o que acontece.
Festa pagã, liderada pelo povo, permitida pelos poderes oficial e religioso.
Ao tom dessa obra de arte, Ariano Suassuna diz que o trágico e o cômico em sua
arte são vertentes do mesmo signo, assim como no circo. É possível esmiuçar essa
afirmação pela imagem da marionete e seus cordões. Para atribuir tons de comicidade –
77
Bakhtin reconhece no circo e no palhaço uma sobrevivência atenuada da concepção de corpo do realismo
grotesco. Poderíamos dizer então que a carnavalização na obra de Suassuna, é uma carnavalização também
atenuada.
121
e, no caso de Suassuna, uma comicidade popular, derivada da linguagem carnavalesca
limitada pelos tons religiosos católicos – ao trágico da vida, é preciso imaginar que a
serenidade e a pretensa liberdade da vida encobrem uma trama de cordões que nos
torna marionetes cujos fios estão nas mãos da necessidade. É assim a esperteza de
Quaderna, e também de Chicó e João Grilo, que ao final do Folheto “A Cegueira
Epopéica”, saem de O auto da compadecida e encontram Quaderna em A Pedra do
Reino.
-- [...] fomos interrompidos pela entrada de João Grilo, uma figura que morava na “Távola
Redonda” – onde era meu assalariado – e que é personagem muito importante na minha
história. Moreno, magro, de estatura média, com os cabelos imundos, crescidos e
encaracolados, vestia sempre uma velha e esburacada camisa de meia, preta e
encarnada, com listas horizontais largas. Tinha um amigo e companheiro inseparável,
Chicó, tão sujo quanto ele, mas cuja camisa, também velha e esburacada, era de listras
azuis e amarelas. Eram camisas de dois Clubes de futebol de nossa Vila, o “Taperoá
Futebol Clube” e o “Esporte Clube Nordeste”, esquadrões famosos no Sertão e heróis de
jornadas heróicas que, a seu tempo, serão contadas.78 (SUASSUNA, 1971, p. 620)
“A astúcia do pobre é instinto de sobrevivência”, diz Suassuna nas suas aulasespetáculo. Ariano sabe, portanto, da força que tem esse riso como “gesto social” e
trabalha cada traço em sua obra. Traços no todo de uma comicidade popular que deriva
em certa medida da linguagem carnavalesca do barroco e do renascimento e que tem
tons de religiosidade. E nesse ponto é o mesmo Mikhail Bakhtin que tenciona que
também estabelece a medida da linguagem carnavalesca da qual deriva a comicidade
popular, fonte e forma de Suassuna.
78
Tal “história de clubes” não voltou a ser contada no romance. Aliás, algumas das histórias da Pedra do Reino são
anunciadas pelo narrador Quaderna e não são terminadas. Além dessa dos clubes de Chicó e João Grilo, a história do
velho pé de cajarana também é citado e nunca mais esclarecido. O leitor fica sabendo que “Era uma árvore enorme,
venerável, velhíssima, com tronco baixo e grosso, aqui e ali ocado por cupins [...] Todas as crianças das gerações de
Garcia-Barretos sertanejos iriam brincar debaixo dessa Cajarana, comendo seus frutinhos cheirosos, quando chegava a
safra [...] A velha Cajarana viu passar anos e anos, uns de seca, outros de boa chuva [...] Fui um dos que se criaram sob
a atração e o influxo daquela casa [da Onça-Malhada] e daquela árvore, ambas estranhas e solenes. Posso assegurar,
assim, que talvez a maior parte do seu encanto era a serenidade com que ambas viam passar as agitações humanas [...]
Essa impregnação de destinos falhados,de crimes e sofrimentos [...] foram a causa da reputação de “árvore fatídica e
agoureira”, que começou a se ligar ao velho pé de Cajarana e que terminou determinando sua derrubada sacrílega,
como será contado depois.[grifo meu]” (SUASSUNA, 1971, p. 161 e 162). Acontece que “sua derrubada sacrílega”
não foi mais contada, também caiu no esquecimento talvez como aconteça com as histórias passadas oralmente por
gerações. Partes que se perdem...
122
A linguagem carnavalesca se opõe a toda idéia de acabamento e perfeição, toda
pretensa imutabilidade e eternidade das festas oficiais. Precisa, ao contrário, se
manifestar por meio de formas de expressão dinâmicas e mutáveis, flutuantes e ativas.
Então, essa linguagem se caracteriza principalmente – em tons bakhtinianos – pela
lógica das coisas “ao revés”, pela permutação constante dos altos e baixos, pelas formas
de paródia, degradações, profanações, coroamentos e destronamentos bufões. O
mundo da cultura popular é uma paródia da vida, que, sem, no entanto, ser puramente
negativa e formal, a transfigura, a ressuscita e a renova ao mesmo tempo. “O príncipe
do sangue do vai-e-volta” suassuniano – personagem que, inspirado no Mito de Dom
Sebatião, é sempre aguardado como representação de força e imortalidade.
O riso carnavalesco – universal, “geral”, festivo – tem uma característica que em
Suassuna gostaria de destacar: ele é ambivalente. Isso porque “é alegre e cheio de
alvoroço, mas ao mesmo tempo burlador e sarcástico, nega e afirma, amortalha e
ressuscita simultaneamente [...] Essa é uma das diferenças essenciais que separam o
riso festivo popular do riso puramente satírico da época moderna [...] o riso popular
ambivalente expressa uma opinião sobre um mundo em plena evolução no qual estão
incluídos os que riem”. (BAKHTIN, 1996, p.10-11) Simultaneidade, característica deste
dual Suassuna.
Levando essa constante dualidade em consideração, e já com as características
da comicidade popular um pouco mais claras, é possível tratar da tensão dos cordões na
dança das marionetes de Bergson. No Romance da Pedra do Reino, o narrador
Quaderna, como a marionete que, em certa medida, também quer ter vida própria, se
encontra bem ao centro da estrutura narrativa, sempre entre tensões opostas –
apresentando o seu discurso num centro de picadeiro –, tendo diversos cordões que
amarram, movimentam, tensionam até que ele próprio dá sua cambalhota, pendurado no
mais forte dos cordões que dança na mão de seu criador Suassuna. Isso porque, como
123
criador da realidade que apresenta, tanto o romancista, como o artista em geral, domina,
delimita, mostra de modo coerente e nos comunica essa realidade imaginada da
personagem de forma mais coesa e completa que a que conseguimos captar nas
relações com as pessoas reais empíricas que nos são sempre fragmentárias. Diz
Candido que somente o “criador” de Napoleão, isto é, o romancista que o narra, em vez
de narrar dele, lhe conhece a intimidade de “dentro” (...) (CANDIDO, 1970, p. 27).
Suassuna quer garantir que seu discurso seja sempre colocado através das
máscaras que decide usar. Quaderna, como já vimos, está sempre no meio de opostos:
Clemente x Samuel, Casa x Biblioteca, Dona Margarida x Corregedor, Pedro Beato x
Eugênio Monteiro x Maria Safira, Vida x Obra. São esses opostos que tencionam as
pontas-representações do popular e do erudito, da cultura oral e da escrita, do trágico e
do cômico, do moderno e do arcaico, do rural e do urbano, do sagrado e do profano, do
Real e do Oficial e é a cada tensão que o boneco marionete Quaderna se movimenta
como signo ao mesmo tempo trágico e cômico do artista Suassuna, que se sente um
emparedado ideológico, mas que esteticamente se imbui do palhaço e dá uma
cambalhota a cada sensação de aprisionamento. É que, mesmo sendo quem mais
conhece a “intimidade de dentro” de sua própria obra, vale destacar que é ilusória a
declaração de um criador a respeito de sua criação. “Ele pode pensar que copiou
quando inventou; que exprimiu a si mesmo, quando se deformou; ou que se deformou
quando se confessou.” (CANDIDO, 1970, p. 69) Suassuna sabe disso e sabe
principalmente que não pode definir esses limites dentro de sua obra: invenção,
expressão, confissão se misturam e se dividem em linhas muito tênues. Além disso, as
coisas mudam no tempo e no espaço e desafiam cada olhar a compreendê-las
novamente. Nova mudança, novo desafio, tensão cíclica do pensamento. E Suassuna
cria o bibliotecário e memorialista narrador Quaderna, que lidera cada duelo de
124
pensamento e mais uma vez grita: Bumba! E sai pelo picadeiro em cambalhotas sem se
deixar aprisionar. Um mentiroso lírico!
[...] eu tenho a maior simpatia pelo mentiroso. Eu tenho pelo seguinte: o homem que é
mentiroso por vocação é um inconformado. Ele é um inconformado com o que o cotidiano
não deixa acontecer. Eu acho que ele dá vazão a uma verdade que às vezes é só dele,
que muita gente não viu.
Ariano Suassuna
Em seu romance, o narrador Quaderna tem em mãos um desses espelhos de
circo que ampliam, deformam e desfiguram, e ele sabe que o mundo é um jogo onde
todos nós pagamos a entrada com a vida. Em posfácio ao Romance da Pedra do Reino,
Maximiano Campos diz que os que sabem perder sem trapaça ganham o jogo. Mas,
parece-nos que no caso do palhaço, que é também poeta, equilibrista, mestre de pista,
marionete Quaderna, as trapaças existem. Esse espelho o ajuda. Elas, as trapaças, são
formas de sobrevivência e tentativas de libertação da morte, vontade de que o jogo não
acabe. O narrador que começa preso e termina sonhando diz suas últimas palavras ao
Corregedor assim:
Já que o senhor mandou que eu supusesse ser o juiz, peço ao senhor, também, para
supor que eu morra por acaso, antes de lhe dar outro depoimento [...] Meu depoimento
teria que ficar encerrado aqui, mas nem por isso o senhor deixaria de utilizá-lo no
inquérito, não é? [...] Quanto à epopéia, ficaria, como eu disse, uma história pelo menos
original, com essa história toda iniciada, mas sem conclusão nenhuma, como sucedeu
com a história de Peri e Ceci e como sucede sempre, aliás, na vida! (SUASSUNA, 1971,
p. 736)
Não à toa o elogio à mentira de seu criador Suassuna. Mentira, mais uma vez
como já dissemos, que não é oposição à verdade, mas formas, movimentos e
manipulação de máscaras para transitar pelo mundo sem ser pego. É o completo artista
do circo que domina o trapézio, a acrobacia, o equilibrismo, os truques, os espelhos.
Quando conta sua epopéia alinhavando mil e uma referências, caricaturas e
intertextualidades, nos parece em certa medida, que Quaderna se expressa em gromelô
125
– idioma específico do palhaço em picadeiro, que, semelhante a todos os idiomas do
mundo, não é nenhum de fato e é todos ao mesmo tempo. Tal narrador, que é criação
de um Suassuna medroso do cosmopolitismo que assola a modernidade, não deixa de
ser paradoxalmente um cosmopolita e transparece seu criador se pensarmos pelo viés
do teórico Jorge Schwartz, que diz que o homem cosmopolita é aquele que, em
conseqüência da multinacionalidade, é capaz de falar muitas línguas e se transportar de
um país para outro sem maiores dificuldades. Mas, continua o mesmo teórico, isso não
impede que autores de grande cultura universal, verdadeiros cosmopolitas do ponto de
vista de sua produção textual, nunca tenham saído de seus lugares de origem.79
Suassuna é assim, um cosmopolita que nunca saiu do sertão, e não precisa se sentir
emparedado e temeroso por isso.
O personagem, que já inicia a narrativa preso, se liberta pelo sonho, um sonho
de trazer a cultura popular ao âmbito oficial, já que Quaderna se vê em sonho sendo
coroado “Rei da Távola Redonda da Literatura do Brasil”, entre José de Alencar (um
romântico) e Euclydes da Cunha (um realista), sob as bênçãos da Igreja católica e com
as canções populares nordestinas como pano de fundo. Popular em homenagem sim,
mas da janela do gabinete. Paradoxal, conciliador, equilibrista, popular, erudito, em
constante pirueta. E a obra fica aberta, não se deixa aprisionar, assim como na vida.
Enquanto há vida, nada há de conclusivo. Concluir é morrer; assim a presente
dissertação não se conclui... é que as cortinas ainda não se fecharam, e as
possibilidades ainda são múltiplas. O espetáculo não pode parar e Ariano Suassuna,
esse palhaço-professor, continua em pirueta, continua pendulando, acrobata-equilibrista.
Merece críticas, mas também merece aplausos, e segue firme com seu projeto Armorial
no caminho da conciliação.
79
SCHWARTZ, Jorge. Vanguarda e cosmopolitismo na década de 20: Oliverio Girondo e Oswald de Andrade. São
Paulo: Perspectiva, 1983. p. 6. Referência in: DE ARAÚJO, Humberto Hermenegildo. Leituras sobre Câmara
Cascudo. João Pessoa: Editora Idéias, 2006, p. 23.
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MACHADO, Douglas. O Sertãomundo de Suassuna. Documentário. Produção : Trinca
Filmes. Teresina, PI, 2003.
ROCHA, Glauber. Deus e o Diabo na terra do sol. Longa-metragem de ficção em pretoe-branco. Produção: Copacabana Filmes. 125 minutos. Rio de Janeiro, 1964.
Sites Pesquisados:
Academia Brasileira de Literatura de Cordel - www.ablc.com.br
Centro Cultural Tempo Glauber – www.tempoglauber.com.br
Fundação Joaquim Nabuco – www.fundaj.gov.br
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Ariano Suassuna, o palhaço-professor e sua Pedra do Reino