A LUTA ENTRE MOUROS E CRISTÃOS: CAVALHADAS DE PIRENÓPOLIS –
GOIÁS
Ronypeterson Morais Miranda
(Mestrando, TECCER, U.E.G.)
[email protected]
Aline Santana Lôbo
(Mestranda, TECCER, U.E.G.)
[email protected]
Pirenópolis, assim como outras cidades goianas data do século XVIII, tornando-se muito
comum o grande volume de produção historiográfica à respeito desse município. É
indubitável o importante papel que essa cidade desempenhou durante o processo de ocupação
do Estado de Goiás e nos séculos subsequentes, passando por profundas mudanças, desde a
dinamização do seu espaço urbano, o desenvolvimento de seus esteios econômicos até à
continuidade de práticas culturais e religiosas. Atualmente, é um dos 65 destinos indutores de
atividade turística, além de ser muito associado ao seu extenso calendário festivo. Em sua
festa maior, a Festa do Divino Espírito Santo – Patrimônio Cultural Imaterial desde 2010 –
inúmeras foram as alterações e ressignificações ocorridas devido a dinamização da identidade
local. A presente pesquisa visa abordar de forma específica a prática teatral durante as
festividades do Divino Espírito Santo, uma tradição iniciada em 1826 e mantida até os tempos
atuais, visando discutir o processo de continuação dessa prática teatral. Assim posto, é salutar
informar que no decorrer dos séculos, cerca de 22 peças teatrais foram realizadas
simultaneamente com a Festa do Divino. Não obstante, uma delas é tradicionalmente
realizada até hoje: “As Cavalhadas”, que trata-se da encenação da batalha entre Mouros e
Cristãos na Península Ibérica. Abordar-se-á nesse estudo aspectos do gênero artístico, musical
e algumas alterações ocorrentes nessa encenação equestre. Apontar-se-á também como esse
enredo veio a compor a identidade local.
Palavras- Chaves: Cavalhadas. Festa do Divino. Musica. Pirenópolis. Tradição.
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Os estudos festivos e suas diversas análises, sejam elas antropológicas, geográficas,
históricas ou estéticas se tornou uma tendência em meios aos estudos acadêmicos. Em Goiás,
é relativamente nova a tendência de estudos acadêmicos acerca de festividades de cunho
popular. Todavia, para algo considerado inovador, existe um significativo número de
pesquisas que já foram conduzidas a respeito do agitado calendário cultural de Pirenópolis.
Exemplo disso é a obra de Carlos Rodrigues Brandão (1974), que já na década de 70
buscava descrever de forma etnológica as Cavalhadas, e mais tarde, em 1978 descrevia as
Festas de Negros que aconteciam em conjunto com a Festa do Divino. Acerca das
Cavalhadas, citar-se-á o trabalho de doutoramento de Carlos Eduardo Santos Maia (2002),
que fez uma análise da tradição Cavalheiresca, amalgamando a teoria das redes de tradição e
ruptura. Lôbo (2006) ao pesquisar as Festas de Negros em Pirenópolis associa o lugar festivo
e o processo de continuidade das tradições e a dinamização das mesmas. Silva (2001) ao
abordar a Festa do Divino expõe as alterações ocorridas nos festejos durante a Romanização
da Igreja Católica.
Assim posto, reconhece-se as inúmeras contribuições acerca das celebrações
pirenopolinas. E o município não apenas é percebido por suas festas, como existem também
uma grande demanda de pesquisas sobre as atividades comerciais e turísticas, além de grande
produção historiográfica do município e o importante papel desempenhado durante o período
de dinamização do Estado de Goiás.
Dito isso, Pirenópolis é conhecido não apenas por suas belezas naturais, como também
por sua história e cultura. Popularmente afamado por “Berço” da Cultura goiana, a cidade
desde seus primórdios possui um rico calendário festivo, além de ser sede do primeiro jornal
goiano – Matutina Meiapontense. As artes eram difundidas entre as famílias locais, pois “em
todas as casas, por mais humildes que fossem, sempre havia alguém que se dedicava à
música, à pintura, aos bordados, às leituras e aos trabalhos artesanais” (CURADO e LÔBO,
2011, p. 85).
Desta forma, evidencia-se que uma das práticas executadas em Pirenópolis é o teatro
festivo, isto é, a associação e encenação de peças teatrais à alguma celebração local,
normalmente festa do catolicismo popular. Nesse município, a Festa maior é a em louvor do
Divino Espírito Santo que acontece desde o século XIX. Uma das performances mais
tradicionais executadas junto com esse festejo é as Cavalhadas1, uma representação da
Batalha entre Mouros e Cristãos na Península Ibérica.
As primeiras notícias sobre as cavalhadas no Brasil são fornecidas pelo
padre Fernão Cardim (1925) que assistiu a jogos de canas, patos e argolinhas
em Pernambuco, em 1584. No casamento de “moça honrada com um
viannez, que são os principais da terra...” se fizeram correr “touros, jogaram
cannas, pato e argolinhas. Na forma de jogo de argolinhas, portanto,
entraram as cavalhadas em nosso país (PEREIRA, 1935, p. 15)
Para aspectos gerais, pode-se afirmar que as Cavalhadas pirenopolinas foi e é objeto
de pesquisas acadêmicas, assim como também é alvo constante das mídias, reforçando a
imagem dessa Festa2 popular como identidade local. Logo, ao que tange à historiografia e as
1
No presente artigo, as Cavalhadas são entendidas como uma festa, desse modo optou-se por referir-se a ela no
singular onde as concordâncias seguiram no singular.
2
Nota-se que ao escrever a palavra festa com “F” maiúsculo, referimos às Cavalhadas enquanto manifestação
cultural pirenopolina. As demais festividades, estas escritas com “f” minúsculo se refere às festividades alheias
às Cavalhadas.
diversas analises acerca as cavalhadas como um todo, citar-se-á Brandão (1974) que relata a
difusão das cavalhadas que ocorreu quase que todo o território brasileiro, alastrando-se de
forma mais representativa durante o século XVIII.
No Rio de Janeiro e no ano de 1641, são vistas corridas de manilhas (hoje
parte de torneios de Cavalhadas). Segundo o padre Manuel de C. Torres,
corridas de Argolinhas são vistas na Bahia pela mesma época. Em 1810 e
novamente no Rio de Janeiro, Debret descreve torneios eqüestres dentro de
festas preparadas para acontecimentos que envolviam a família real
(BRANDÃO, 1974, p. 13).
Assim, a partir de pesquisas realizadas, foi possível encontrar relatos de Cavalhadas
em diversos estados brasileiros; tais como Tocantins, Goiás, Rio de Janeiro, Paraná e Rio
Grande do Sul. À grosso modo, pode-se dizer que não se encontra cavalhadas apenas no
estado do Amazonas. Desta forma, a presente pesquisa visa expor de forma objetiva a
disseminação das cavalhadas no território brasileiro, especificamente em Goiás, na cidade de
Pirenópolis. Abordar-se-á, então, o habito teatral durante as festividades em louvor ao Divino
Espírito Santo, considerando esse espetáculo equestre a céu aberto, englobando elementos
como a paisagem festiva e sonora, perpassando também a tradição cavalheiresca e como ela
foi se fundindo e constituindo parte da identidade local.
A CIDADE E A FESTA
Apesar de já existirem diversas civilizações em terras do Brasil Central anteriores à
colonização, foram mais de duzentos anos até que a primeira bandeira pisasse nesse solo,
sendo que os paulistas teriam sidos os primeiros a percorrerem o território goiano, cujo trajeto
seguiu desde o Araguaia até o Tocantins. Pirenópolis – Goiás, assim como outras cidades
goianas, surgiu durante o período mineratório, quando a ganância do homem o trouxe em
busca de ouro e outros minérios. Os paulistas teriam sidos os primeiros a percorrerem o
território goiano, cujo trajeto seguiu desde o Araguaia até o Tocantins.
As bandeiras que vinham para as novas terras eram expostas às doenças, à fome, às
feras e tribos indígenas selvagens, pois os bandeirantes eram encorajados pela cobiça e tinham
como objetivo específico o ouro (JAYME, 1971). Assim posto, em 1727 Manoel Rodrigues
Tomar registra o descobrimento das Minas de Nossa Senhora do Rosário, atual Pirenópolis
(PALACIN, 1994). Já em 1737 o então Arraial desenvolve-se aponto de ser considerada um
dos núcleos populacionais mais desenvolvidos da Capitania.
mais cêntrica [sic.], com melhor clima, no ponto de confluência dos grandes
caminhos – São Paulo, Minas, Rio de Janeiro, Bahia – Meia Ponte torna-se
logo rival de Santa’Anna. Quando em 1737 o conde Sarzedas vem a Goiás
para erigir a primeira vila, são muitos os que pensam que deve ser Meia
Ponte e não Sant’Anna a sede do novo município (1994, p. 26).
Durante o clímax da atividade aurífera em Goiás que se estendeu por
aproximadamente 50 anos (ALMEIDA, 2009) o povoado de Meia Ponte desenvolveu-se não
só sua economicamente, como também aprimorou sua estrutura arquitetônica contando com
diversas igrejas e casarões.
O Arraial de Meia Ponte, até meados do século XVIII, contava com cinco
igrejas. A Matriz, tendo como filiais: a Igreja de Nossa Senhora do Rosário
dos Pretos, erigida entre 1743 e 1757 pela irmandade de mesmo nome; a
Igreja de Nossa Senhora do Monte do Carmo, sem data precisa de
construção, mas foi a terceira a ser edificada; a Igreja de Nosso Senhor do
Bonfim, construída entre os anos de 1750 e 1754; e a Capela de Nossa
Senhora da Boa Morte da Lapa, erigida pela extinta Irmandade de Nossa
Senhora da Lapa dos Pretos Livres, fundada em 1760 (CURADO; LÔBO,
2011, p. 83)
Todavia, o período áureo não durou muito, pois com o exaurir da atividade de
mineração a economia de Meia Ponte vê-se em meio a decadência (OLIVEIRA, 2011),
precisando então firma-se em outros esteios de movimentação econômica. Dessa forma,
atividades já existentes como a agricultura, a pecuária e o comércio começaram a desenvolver
esse papel. O fato de a cidade ser cruzada por duas rotas comerciais muito importantes
daquela época, provavelmente influenciou para que o lugar crescesse economicamente. No
século XIX, sob esse novo contexto que moldava a cidade, o Engenho de São Joaquim na
direção do Comendador Joaquim Alves de Oliveira foi um importante produtor de açúcar e
algodão, cujo comércio dos mesmos possivelmente não permitiu com que a cidade estagnasse
economicamente (ASSIS, 2007).
Já no século XX, com a dinamização das novas cidades goianas como Anápolis,
Goiânia, Pirenópolis veio à “estagnação”. E perceptível foi a migração de pirenopolinos para
os novos centros urbanos, o qual acarretou na diminuição do número de habitantes na cidade.
Apenas com a construção de Brasília, e o desenvolvimento da atividade turística associado
com a extração do quartzito foi que Pirenópolis, então, firma-se novamente no comércio.
Ao que tange sobre a Festa do Divino, é salutar expor que na liturgia católica essa
celebração acontece durante Pentecostes, ou seja, 50 dias após a Páscoa. Desta forma, o culto
ao Divino Espírito Santo é uma comemoração com data móvel, sendo comemorada em maio,
ou começo de junho. Sua origem, segundo pesquisadores como Cascudo (1978), Brandão
(1978), Maia (2002) e Silva (2001) datada século XIII, e foi instituída em Portugal com o
auxílio do Rei D. Luiz e da Rainha Santa Izabel de Aragão em 1296, como afirma Lima
(1981), no entanto, a festa tinha dimensões outras, pois,
de começo um simples bodo, ou seja, singela distribuição de esmolas, só se
tornaria assembléia festiva e alvissareira no século XVII, sob o reinado de D.
João IV, o primeiro rei português a ter tratamento de Vossa Majestade,
segundo Cascudo. É na euforia da Restauração que o Divino toma ares de
festa majestática, com corte organizada, seu principal personagem ganhando
o título de Imperador, título que Carlos V popularizaria na península ibérica,
como Imperador do Sacro Império Romano e Rei da Espanha.(LIMA,
2001:8)
No estado de Goiás, um dos registros mais antigos de Festa do Divino data de 1819, na
antiga Meia Ponte, atual Pirenópolis. Segundo Jayme (1971),
Aquela festa cristã que foi introduzida, na segunda metade do século XVIII,
a serem precedentes informações que nos foram prestadas por pessoas cuja
existência datada dos primórdios do século XIX [...] a despeito de
perseverantes e cuidadosas indagações, notícias exatas, anteriores ao ano de
1819, dessa festa popular, para, para qual ocorrem prosélitos de todos os
pontos do município e das povoações vizinhas. (JAYME, 1971, p. 610).
No entanto, assim como Silva (2001) advoga, a Festa do Divino de Pirenópolis passou
por várias alterações, desde o agregar de novos folguedos até a intervenção da Igreja
romanizada. Desta forma, elementos com as Cavalhadas não surgiu, necessariamente, junto
com o culto ao Divino, mas foi introduzida às festividades com o passar dos anos. Schipanski
(2009) ao retratar as cavalhadas em Guarapuava – PR, faz um levantamento histórico das
origens desse folguedo equestre. Segundo o autor,
a inspiração lendária das cavalhadas portuguesas e também para as que
foram transplantadas pelos colonizadores das terras do Novo Mundo, se dá
pela literatura onde registram-se as sucessivas vitórias nas batalhas travadas
desde o fim do século VIII pelo Rei dos Francos, Carlos Magno 3, que,
conduzindo seu exército ao lado dos 12 cavaleiros, os Doze Pares de França,
conseguiu conter o avanço dos sarracenos sobre o leste europeu e
estabeleceu a Marca da Espanha (2009, p. 83).
3
Carlos Magno (747 - 814), filho de Pepino O Breve, tornou-se Rei dos Francos (771 -814) após a
morte de seu pai em 768. Durante seu reinado empenhou-se em dilatar as fronteiras de seu reino,
adquirindo novas para doação em benefício à aristocracia, objetivando o fortalecimento dos laços de
dependência pessoal. Graças as suas vitorias contra as populações infiéis, aproximou o Estado com a
Igreja, sendo coroado, no dia 25 de dezembro de 800, pelo Papa Leão III, o Imperador do Novo
Império Romano do Ocidente, como reconhecimento pelo ato de fé (SCHIPANSKI, 2009, p. 83).
O autor ainda discorre que as cavalhadas portuguesas foram desde o início da
colonização um importante meio de dominação e catequização, pois era através delas que os
europeus não apenas rememoravam seu passado de gloria como também legitimavam de
forma sucinta suas novas conquistas territoriais. Ainda sobre as cavalhadas no geral,
Mendonça (1983) salienta que em Goiás é algo extremamente comum ser encontrada tal
manifestação, o que de fato se prova pelo número de municípios goianos dos quais ainda se
realiza essa encenação. Cidades como Corumbá de Goiás, Jaraguá, Pirenópolis e Palmeiras de
Goiás são nacionalmente conhecidas por tal festividade. Emanuel Pohl, viajante europeu que
esteve em Goiás em meados do século XIX relatou tal manifestação em Santa Cruz de Goiás.
t [...] Na parte de cima da praça, estavam os cavaleiros, vestidos com
o uniforme português, em formatura e saudaramnos com as suas
espadas. A praça, muito espaçosa, estava repleta de espectadores.
Tomamos assento numa elevada tribuna de ramos. Os ramos de
palmeiras protegiam-nos ao mesmo tempo contra o sol. Mais abaixo
estavam os soldados. Por meio de uma risca traçada a cal a praça
estava dividida em forma de cruz. O jogo foi iniciado com o
aparecimento de estranhos mascarados, que, com as caretas e
chicotes, provocavam gargalhadas, especialmente um deles que
representava um mestre-de-dança francês (POHL, 1951, p. 240241).
É importante expor que aqui em Goiás, por algum motivo intrínseco, as Cavalhadas
permaneceram como parte da identidade local, e que em alguns outros estados o mesmo não
aconteceu. No Rio Grande do Sul, municípios como Santo Antônio da Patrulha, Caçapava do
Sul, São Francisco de Paula, Glorinha e demais cidades, as Cavalhadas não mais são
realizadas, talvez por elas não representarem de forma eficaz a identidade dos moradores
locais. Em Porto Alegre, por exemplo, essa teatralização foi encenada pela última vez em
1935 (MACEDO, 2000).
Em Pirenópolis – Goiás, as Cavalhadas foram instituídas juntamente com a Festa do
Divino, e aparecem pela primeira vez em 1826, na Festa do Imperador do Divino Padre
Manuel Amâncio da Luz. No referido ano, a cidade ainda era um pequeno Arraial com
Julgado próprio e chamava-se Meia Ponte e ainda não era tradição se encenar tal peça, pois se
tratava de algo muito caro, e toda manifestação durante a Festa do Divino era financiada pelo
Imperador.
CAVALHADAS: SONS E CENAS PIRENOPOLINAS
Apesar de ser algo integrado à identidade cultural pirenopolina, as Cavalhadas
enquanto tradição é algo recente. De fato, ela primeiro apareceu m 1826, entretanto, sua
representação anual só veio a acontecer a partir da década de 1970. É benéfico expor também
que a criação do lugar das Cavalhadas contribuiu de forma imprescindível para a constituição
da mesma como tradição, pois como salienta Carney, o
lugar não é apenas onde algo está situado; o próprio lugar incorpora
significado, que depende da história pessoal que uma pessoa traz para ele. É
através dessas interações pessoas-lugar que desenvolvemos uma profunda
associação psicológica com um lugar específico, seja ele lar, rua, cidade,
zona rural, estado, região ou nação (CARNEY, 2007, p.128)
Longo foi o processo de formatação para com as Cavalhadas pirenopolinas até que a
mesma chegasse ao formato registrado no Dossiê da Festa do Divino Espírito Santo de
Pirenópolis (2010). Esse documento teve processo iniciado em 2007, obedecendo às
normativas do Inventário Nacional de Referências Culturais – INRC (2000). Após o término
desse dossiê, a Festa foi registrada como Patrimônio Imaterial Brasileiro em 2010.
É importante ressaltar que cada cavalhada assumi suas especificidades de acordo com
o lugar que a mesma acontece. Schipanski (2009) afirma, que assim também era em Portugal,
quando no século XII ao XV, essas celebrações eram executadas por incentivos das
autoridades locais, assumindo dentro do reino diferenças distintas de cada região. “Em várias
cidades goianas, como Palmeiras, a cavalhada se inicia pelo rapto da princesa Floripa, que é
devolvida pelos mouros no final da representação” (MENDONÇA, 1981, p. 251). Entretanto,
em Pirenópolis ela apenas inicia com a morte do espião mouro, este representado por um
mascarado vestido com uma masca de onça. Neste município, as Cavalhadas dura três dias
consecutivos.
À representação da luta, propriamente dita, com a morte do espia, mouro,
embaixadas de ambas as partes, encontro de reis e simulação de luta, derrota
dos mouros, conversão ao cristianismo e consequentemente batismo,
seguem-se torneios, semelhantes às justas medievais, com corridas de TiraCabeça, de Argolinhas, troca de flores entre os ex-inimigos e entrega de
flores a pessoas na platéia. Finalmente a despedida, com aceno de lenços
brancos” (PEREIRA e JARDIM, 1978, p. 82).
Dessa forma, várias foram as alterações ocorridas no enredo das Cavalhadas, desde as
vestimentas, do seu espaço até mesmo dos elementos sonoros que compõe essa manifestação.
Ao que tange à paisagem sonora, a grande responsável por ela, atualmente, é a Banda
Phoenix, banda centenária da cidade. Ao toque de galopes e quadrilhas a banda acompanha as
carreiras realizadas pelos cavaleiros mouros e cristãos. É crucial expor que a música é um dos
itens que compões essa paisagem, desenvolvendo o papel de reprodutora da cultura local.
“Cada paisagem é produto e produtora da cultura, e é possuidora de formas e cores, odores,
sons e movimentos, que podem ser experienciados por cada pessoa que nela se insira (...) A
paisagem é um complexo de formas e relações culturais” (TORRES, 2010, p.72-73).
A banda entra no campo das Cavalhadas ao som de dobrados. Em seguida, executa o
“Rio de Lágrimas” música que avisa os mascarados que é chegada a hora de entrar no campo.
Com suas roupas extravagantes e máscaras com cara de boi, onça, gente e outra que a
criatividade permitir, fazem algazarras. Ora montado a cavalo, ora a pé. Na sequencia é
executado o “Hino do Divino”, composta em 1899 por Antônio da Costa Nascimento,
popularmente conhecido com Tonico do Padre.
“Vinde, Óh! Espírito Divino,
Consolador,
descei lá do Céu
A dar-nos riquezas
do Vosso amor.”
É essencial esclarecer que em Meia Ponte, a tradição musical se inicia em 1830, com a
Banda da Guarda Nacional de Joaquim Alves, montada quatro anos depois da realização da
primeira Cavalhada no município. De 1830 até tempos atuais, a cidade possuiu três outras
bandas: A Banda de Música Euterpe, surgida em 1861, a Banda Babilônia ou Banda do Padre
Simião, de 1890 e a Banda de Música Phoenix de 1893, que é responsável pela sonorização
das Cavalhadas atualmente. Tonico do Padre compôs grande parte dos galopes e quadrilhas
executados pela Banda Phoenix atualmente. A Banda trabalha em conjunto com as
Cavalhadas, uma vez que algumas carreiras da encenação possuem músicas predefinidas.
No primeiro dia de Cavalhadas é encenada a batalha entre os mouros e cristãos com
cerca de 8 carreiras cada uma com um nome específico. O dia termina com a embaixada de
trégua. No segundo dia, reinicia a batalha com aproximadamente 11 carreiras onde há
encenação da captura do último cavaleiro cristão. Em seguida, há a recuperação do cavaleiro e
a dominação dos mouros pelos cristãos. Após o cumprimento dessa carreira, executa-se o
batismo. O Segundo dia termina com a carreira de amizade entre os cavaleiros, comemorando
a conversão dos mouros. Nessa carreira, intercala-se os cavaleiros: Rei Cristão, Rei Mouro,
Embaixador Cristão, Embaixador Mouro, cavaleiro cristão e cavaleiro mouro sucessivamente.
O terceiro dia inicia-se com a carreira de troca de flores, que passa de mão em mão
pelos dos cavaleiros e em seguida são oferecidas para o público. Logo em seguida, inicia-se
os amistosos que testam a destreza de cada cavaleiro. É nos jogos que há as carreiras de
arrancar máscara e a esperada tira argolinha, na qual o cavaleiro tenta por três vezes retirar
com sua lança uma argolinha pendurada em um arco montado no meio do campo.
Ao final dos jogos, há a carreira de despedida, na qual os cavaleiros descarregam suas
armas de balas de festim, novamente intercalados, um cristão e um mouro. O espetáculo
termina ao som do galope “Cavalhada acabou” onde os participes que se encontram nos
camarotes, agitam lenços, panos e chapéus, se despedindo dos cavaleiros e cantando
internamente os versos “Cavalhada acabou... Só no ano que vem”. A sonoridade da Festa
junto com as Cavalhadas compõe a identidade local, algo que pode ser percebido na fala de
Melo, ex-maestro da Banda Phoenix, colhida em entrevista no dia 25 de agosto de 20014.
Quando se fala do Hino do Divino, o maestro afirma que “ali nós tocávamos sim porque a
Bandeira do Divino entrava em campo na frente da Banda. Mas o Hino do Divino tinha uma
devoção ainda maior que o hino nacional.” (Entrevista colhida em 25/08/2014).
O discurso do maestro serve de base para apontar o elemento que torna perceptível a
formação da identidade local pela manifestação cultural, sedo este o sentimento de
pertencimento. Hall (2003) advoga que essa identidade cultural só é possível a partir desse elo
formado entre o indivíduo e tal celebração. Poder-se-ia, talvez levantar a hipótese de que esse
sentimento está ligado com a construção, legitimação e continuação das tradições. Pois a
partir do momento em que há o envolvimento, há a necessidade de perpetuação dos costumes,
das tradições, das festas, fazendo da manifestação um objeto de identificação.
Entretanto, para que haja a legitimação da manifestação cultural como identidade, não
basta que apenas uma pessoa sinta-se representada por ela. É preciso que esse afeto para com
a cultura seja coletivo, formando assim o que Halbwachs (2004) denomina de “memória
coletiva”. Essa coletividade também torna-se também importante ferramenta na perpetuação
da identidade cultural. Pois segundo o autor, a partir do momento em que a comunidade não
mais se vê representada por tal manifestação, ela deixa de compor o imaginário cultural local
e deixa de existir. Em Pirenópolis, os elementos festivos que compõe as Cavalhadas, seja a
encenação em si, a sonoridade, os mascarados e seus tantos outros folguedos integram de
forma consistente o imaginário cultural local, logo a continuidade da tradição é garantida.
É benéfico expor que a tradição não consiste apenas no simples fato da perpetuação da
cultura ao longo dos tempos. Para Giddens (1997), trata-se de uma tarefa contínua de
integração e “interpretação que é realizado para identificar os laços que ligam o presente ao
passado” (p. 82). Para isso, acerca das Cavalhadas já foi citado acima a inserção da mesma no
Dossiê de registro como Patrimônio Imaterial Cultural brasileiro juntamente com a Festa do
Divino de Pirenópolis.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Quando toma-se as Cavalhadas como festejo popular, entende-se que ela é um
organismo vivo, assim como a cultura. Ambos estão sujeitos ao dinamismo de uma
determinada comunidade, e que ela em seu auge de efervescência possui uma aura própria,
que só pode ser percebida no momento em que acontece, pois é algo espontâneo. O Brasil
possui politicas de conservação da cultura material e imaterial, e de fato elas são importantes
ferramentas de proteção dos bens culturais de uma nação. Entretanto, nada adiantaria
preservar uma cultura a partir do momento em que a mesma deixa de representar seu povo.
Pois a reprodução dela seria considerada um pastiche, ou seja, uma manifestação sem “aura”
ou autenticidade (SANTOS, 2000).
Na festa, delimita-se novos espaços, reafirma lugares e legitima-se a identidade. Nela
é possível “esclarecer os mecanismos de interação nas mais diferentes escalas, do universal e
global às tensões locais entre os diferentes indivíduos e grupos envolvidos no evento” (2006,
p. 78). Nas Cavalhadas de Pirenópolis é possível comungar a tradição e a mutação da mesma,
onde se conjuga a prática religiosa, o profano, a devoção e a diversão. Essa Festa, não apenas
é vista como um mero momento necessário para que a sociedade extravase suas diferenças e
igualdades (DURKHEIM, 1989), como é integrante nata do imaginário coletivo de
Pirenópolis. Para os moradores locais, ela os representa, e prova disso talvez seja o fato de
que a própria Festa tem dimensões completamente maiores do que a festa da Padroeira da
Cidade.
E embora ela tenha se tornado tradição local, as Cavalhadas ainda está em constante
processo de ressignificação, incorporando novos elementos, destituindo-se de outros,
expandindo e retraindo seu recorte espacial e/ou temporal. Pois, para que ela permaneça
existindo há a necessidade de pensa-la enquanto identidade mutável (BERND, 2004, p. 100).
Pois, tanto o identidade cultural, quanto a manifestação em si se mostraram igualmente
flexíveis, no qual “a tradição não para de evoluir [...]. A imobilidade é impossível”
(HATZFELD, 1993, p. 57).
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