dos editores
Juca e Caju
Ano 3 - 2009
É impossível prever quais serão as reações do leitor ao passar os olhos por nossa
dosdas
alunos
doque
Instituto
Rio Branco
revista. Podemos, no entanto, garantir que, ao analisarAorevista
conteúdo
páginas
se
seguem, resultado de um ano de constante e nem sempre trivial trabalho, o público estará
reagindo a um retrato, a uma fotografia de nosso tempo.
Nesta edição:
A definição dos temas, o tom dos textos, o ângulo das fotografias e o estilo das
Especial:
ilustrações refletem a tensão entre o que nos define e o que nos motiva, entre o que
MundonosLusófono
trouxe até a diplomacia e o que faremos dela ao longo de nossas vidas profissionais.
JUCA 03 é, por isso, um reflexo do que somos.
Entrevistas:
A escolha
de ilustrar
a capa com um caju – além de uma excelente oportunidade de
Embaixador
Arnaldo
Carrilho
nome de nossa revista com um anagrama bem-humorado-, é uma tentativa
Professorhomenagear
Cançadoo Trindade
de sintetizar, por meio da imagem de uma fruta genuinamente nacional, essa nossa
Perfil:
identidade. Profundamente brasileira e diversificada, é verdade, mas também atenta ao que
Embaixador Francisco Alvim
se passa no mundo.Viemos de diferentes partes do país, somos mulheres, homens, negros,
Depoimento:
brancos, pobres e ricos. Em breve, representaremos o Brasil diante do mundo.
Crônicas do Sauípe
Seríamos, quem sabe, como a técnica do grafite, usada para desenhar o nosso grande
caju: uma arte irreverente e representativa da cultura urbana, que sai das ruas das grandes
cidades brasileiras para ocupar espaço de destaque nos museus de todo o mundo e,
assim, talvez, aproximar a arte e a beleza do nosso cotidiano.
Para nós, Juca representa o ponto em que a diplomacia se mistura com a vida e
em que se encontra prazer na tarefa de descobrir o Brasil para representá-lo, não
só com a responsabilidade de sempre, mas também com prazer. Significou conjugar
a poesia da Língua Portuguesa ao projeto político possibilitado pela identidade
criada pelo compartilhamento de um idioma, como mostramos no especial “Mundo
Lusófono”. Representou a oportunidade de conhecer poetas disfarçados de diplomatas
e de descobrir que grandes servidores desta Casa nem sempre tiveram trajetórias
profissionais que correspondem ao que se esperaria deles.
Fazer esta revista foi uma tarefa desafiadora e coincidiu com o processo de conhecer o
mundo da diplomacia, de descobrir a unicidade de cada colega e de rever a maneira como
enxergamos o mundo. Enfim, leitores, esperamos que vocês também se identifiquem com
a imagem aqui refletida. Que venham os próximos Jucanos!
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dos editores
Juca e Caju
É impossível prever quais serão as reações do leitor ao passar os olhos por nossa
revista. Podemos, no entanto, garantir que, ao analisar o conteúdo das páginas que se
seguem, resultado de um ano de constante e nem sempre trivial trabalho, o público estará
reagindo a um retrato, a uma fotografia de nosso tempo.
A definição dos temas, o tom dos textos, o ângulo das fotografias e o estilo das
ilustrações refletem a tensão entre o que nos define e o que nos motiva, entre o que
nos trouxe até a diplomacia e o que faremos dela ao longo de nossas vidas profissionais.
JUCA 03 é, por isso, um reflexo do que somos.
A escolha de ilustrar a capa com um caju – além de uma excelente oportunidade de
homenagear o nome de nossa revista com um anagrama bem-humorado-, é uma tentativa
de sintetizar, por meio da imagem de uma fruta genuinamente nacional, essa nossa
identidade. Profundamente brasileira e diversificada, é verdade, mas também atenta ao que
se passa no mundo.Viemos de diferentes partes do país, somos mulheres, homens, negros,
brancos, pobres e ricos. Em breve, representaremos o Brasil diante do mundo.
Seríamos, quem sabe, como a técnica do grafite, usada para desenhar o nosso grande
caju: uma arte irreverente e representativa da cultura urbana, que sai das ruas das grandes
cidades brasileiras para ocupar espaço de destaque nos museus de todo o mundo e,
assim, talvez, aproximar a arte e a beleza do nosso cotidiano.
Para nós, Juca representa o ponto em que a diplomacia se mistura com a vida e
em que se encontra prazer na tarefa de descobrir o Brasil para representá-lo, não
só com a responsabilidade de sempre, mas também com prazer. Significou conjugar
a poesia da Língua Portuguesa ao projeto político possibilitado pela identidade
criada pelo compartilhamento de um idioma, como mostramos no especial “Mundo
Lusófono”. Representou a oportunidade de conhecer poetas disfarçados de diplomatas
e de descobrir que grandes servidores desta Casa nem sempre tiveram trajetórias
profissionais que correspondem ao que se esperaria deles.
Fazer esta revista foi uma tarefa desafiadora e coincidiu com o processo de conhecer o
mundo da diplomacia, de descobrir a unicidade de cada colega e de rever a maneira como
enxergamos o mundo. Enfim, leitores, esperamos que vocês também se identifiquem com
a imagem aqui refletida. Que venham os próximos Jucanos!
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expediente
Diretor Honorário
Embaixador Fernando Guimarães Reis
Editora-Chefe - Laís de Souza Garcia
Diretor Executivo - Marcelo Almeida C. Costa
Editoria de Resenhas - Ramiro Breitbach
Editoria de Textos Literários - Krishna Mendes
Monteiro
Editoria do Dossiê - Eduardo Brigidi de Mello
e Eduardo Freitas de Oliveira
Editoria de Perfis e Entrevistas - Rodrigo de C.
Dias Papa e Rafael Rodrigues Paulino
Editoria de Artigos e Ensaios - Izabel Cury de
Brito Cabral e Luiz Felipe Czarnobai
Edição de Arte - Amena Martins Yassine e
Marco Kinzo Bernardy
Edição de Texto - Igor Trabuco Bandeira
Relações Públicas - Filipe Abbott Galvão
Sobreira Lopes
Diretor Jurídico - Fernando de Azevedo
Silva Perdigão
Diretor Financeiro - Eduardo Minoru Chikusa
Revisão - Filipe Abbott G. Sobreira Lopes
Caju
Laís, Marcelo e Marco
Direção de Arte e Diagramação
Fabiana Marafiotti ([email protected])
_
Agradecimentos
Embaixador Celso Amorim
Embaixador Jerônimo Moscardo
Embaixador Arnaldo Carrilho
Embaixador Francisco Alvim
Ministro Sérgio Barreiros de Santana Azevedo
Secretário Aurélio Romanini de Abranches Viotti
Secretário Leonardo de Almeida Carneiro Enge
Secretário Rodrigo de Oliveira Castro
Secretário Filipe Nasser
Secretário Felipe Krause Dornelles
Secretário Raphael Oliveira do Nascimento
Secretário Octávio Moreira Guimarães Lopes
Ana Claúdia Milhomem Freitas
Equipes Juca 01 e Juca 02
Professor Antônio Augusto Cançado Trindade
Deputado José Fernando Aparecido de Oliveira
Miguel Girão de Sousa
Pedro Passos
Renato Cabral de Rezende
Museu da Língua Portuguesa
Editora Capivara
Amena Yassine, Igor Trabuco Bandeira, Marcelo Almeida C. Costa e Rodrigo de Carvalho Dias Papa
12 Revolucionar a Corte Internacional de Justiça. Pour quoi pas? Amena Yassine, Filipe A. G. Sobreira Lopes e Pedro Veloso
20Chico, o Poeta
Ramiro Breitbach
sumário
Especial:
Mundo Lusófono
28 Embaixador José Aparecido:
in memoria
Embaixador Francisco Alvim e
Embaixador Celso Amorim, Ministro
das Relações Exteriores
34 O Brasil e os esforços
pela sustentabilidade da paz
em Guiné-Bissau
Marina Moreira Costa e Melina Espeschit Maia
48 Gilberto Freyre e o lusotropicalismo: passado,
presente e futuro
Rafael Rodrigues Paulino
56 Novo acordo ortográfico:
língua e poder
Marcela Magalhães Braga
63 Diáspora Portuguesa: Odisseia de uma Nação Desterritorializada
Rafael Soares
Artigos e Ensaios
70Josué de Castro: 101 anos de nascimento. Quantos mais de esquecimento?
Marcelo Almeida C. Costa e Pedro Vinícius do
Valle Tayar
75 Ordem Internacional e Potências Médias: uma importante lacuna
da teoria das relações internacionais
Paulo Thiago Pires Soares
78 Sfumato: A dimensão ambígua da linguagem
Diego Kullmman
84 Deus e o Charlatão
Gustavo Henrique Maultasch de Oliveira
88Augusto Ruschi: O homem que falava com beija-flores
Ricardo dos Santos Poletto
Resenhas
94 A Viagem de Saramago
Caio Flávio de Noronha e Raimundo
Juca número 03
Perfis
06 Vida de Cinema
96 Adam Smith em Pequim
Eduardo Brigidi de Mello
Poesia e Prosa
102 Tatajuba
Eduardo Freitas de Oliveira
106 Dedos Bailarinos
Eduardo Brigidi de Mello
107 Delfos
Janaína Lourençato
108 O que não existe mais
Krishna Mendes Monteiro
13 O Viajante
1
Irineu Pacheco Paes Barreto
Depoimento
114Crônicas do Sauípe
Eduardo Brigidi de Melllo
_
PERFIL
Vida de Cinema
Amena Yassine
Igor Trabuco Bandeira
Marcelo Almeida Cunha Costa
Rodrigo de Carvalho Dias Papa
Amena Yassine e
Marco Kinzo Bernardy
FOTOS DE
_
A
vida do Embaixador Arnaldo Carrilho poderia ser explicada por
uma sequência numérica: 72, 47, 37, 12, 10, 5, 4. Primeiro embaixador do
Brasil em Pyongyang, na Coreia do Norte, aos 72 anos, Carrilho tem 47
anos de carreira no Itamaraty, tendo passado 37 anos no exterior, sendo
12 no Mundo Islâmico e 10 na Ásia. Abriu cinco postos: Jeddah, na Arábia
Saudita, Berlim Oriental, Bissau, Praia, e, agora, Pyongyang. Além disso,
serviu em quatro países comunistas: Polônia, Alemanha Oriental, Laos e
Coreia do Norte. Antes de chegar a Pyongyang, Carrilho foi designado
Embaixador Extraordinário junto à Cúpula América do Sul – Países Árabes,
uma iniciativa emblemática da lógica de cooperação sul – sul perseguida
pela diplomacia nacional. Antes, ainda, foi representante do Brasil junto à
Autoridade Nacional Palestina, em Ramalá, o que demonstra sua predileção
por missões consideradas difíceis.
Para Carrilho, o pragmatismo vem substituindo o romantismo no fazer
diplomático, realidade bastante diversa daquela que vivenciou em Roma,
quando compartilhou da dolce vitta com Bernardo Bertolucci e com Pier
Paolo Pasolini.
_
_perfil
Mas não só de política internacional vive o
Embaixador, conhecido cinéfilo e propagador
das causas do cinema nacional desde a década
de 1960. Amigo pessoal dos mais importantes
cineastas do Cinema Novo, como Glauber
Rocha e Nelson Pereira dos Santos, Carrilho
ajudou a tornar viável a exibição de filmes
brasileiros em festivais internacionais em
pleno regime militar. Mais recentemente, já
em 2001, presidiu a Riofilme.
Carrilho é uma síntese do que se imagina
de um diplomata: um homem culto, que
presenciou alguns dos principais momentos
da história recente. Ao mesmo tempo, quebra
expectativas ao ter servido em 14 países
diferentes, muitos dos quais considerados
desafios na carreira. Uma demonstração de
que trajetórias profissionais bem-sucedidas
não têm de ser, necessariamente, óbvias.
Como foi sua aproximação com o
Itamaraty?
Foi por causa do Houaiss, eu o conheci em
seu período de ostracismo. Por intermédio do
João Batista Pinheiro, que era de direita. Ele
me sugeriu que eu procurasse o Houaiss para
ter aula de português. Houaiss estava sofrendo
o processo durante o governo JK, junto com
João Cabral. Eu, na época, trabalhava no BNDE.
Os anos JK foram maravilhosos, mas também
foram terríveis. Descobri que o Consulado em
Argel só podia conferir vistos a cidadãos de
origem europeia. Contra o Houaiss e o grupo
havia processos administrativos, depois eles
foram liberados pelo STF.
Então o Houaiss foi uma grande
influência?
Sim. Ele estava cedido à Agência Nacional,
e, conversando com ele, fui me interessando...
Levei bomba no primeiro concurso, em 1957,
em Português oral, porque discuti com a banca,
sem razão. Fiquei com 58,8, precisava de 60.
Guimarães Rosa me deu uma nota baixa em
cultura geral. Depois se tornou meu amigo. Fiz
o concurso quatro vezes, passei em 1960. Eram
_
dois anos no Instituto Rio Branco, só éramos
nomeados depois. Guimarães Rosa não gostou
da minha redação, o tema era Ocidente x
Oriente, tirei 80 e o Ricupero tirou 100.
O senhor lembra-se de algum professor
memorável no IRBr?
O IRBr era a escolinha, fazíamos todas as
matérias. Havia um professor de inglês muito
engraçado, Kenneth Pain. Havia o professor
de francês que diziam ser foragido do regime
de Vichy, havia sido préfet de Nice à época,
Andrés Felon. Ele gostava de mim porque eu
falava francês bem, e ele me convidava pra
falar para a classe. Uma vez fiz a turma dar
gargalhadas incríveis, pois falei de erotismo no
cinema. Ele ficou perplexo.
Muitos se tornaram Embaixadores?
Sim, vários. Um, ainda na ativa, era mais
novo da turma, o mascote, o Henrique
Rodrigues Valle.
Como foi o período no IRBr?
Eu trabalhava fora do ministério, com o
Evaldo Cabral, no escritório da BRASTEC, de
consultoria econômica. Em 1961, fui chamado
pelo Lauro Escorel. Este é o momento em
que começa a aproximação maior entre o
Itamaraty e o cinema nacional. A UNESCO
bancou toneladas de equipamentos (...) junto
com o IPHAN (Instituto do Patrimônio
Histórico Nacional), sob liderança do
Dr. Rodrigo Mello e Franco.
Eu, Terceiro Secretario, era quem
pedia liberação na aduana para liberar os
equipamentos. Em 1º de abril de 1964, Deus e
o Diabo na Terra do Sol e Vidas Secas estavam
inscritos no festival de Cannes... Dois dias
depois fui procurado pelos militares! O golpe
de 64 foi muito traumático para mim, até hoje.
Eu trabalhava no Departamento Cultural,
na DODC. Eles (os militares) falavam assim:
“engraçado eles, são hierarquizados como
nós”. Aí ficou combinado que Deus e o Diabo
na Terra do Sol seria exibido na delegacia de
policia, que tinha uma salinha de projeções
por causa da censura, pois o então Coronel
Figueiredo precisava dar o aval.
à Alemanha, Grã-Bretanha, Japão, mas nunca
aos EUA. Por isso, criou certo ar aqui dentro,
quando eu estava aqui na divisão de patrimônio.
Sentia-se que a Política Externa
Independente era realmente algo
inovador?
Sim, mas os inovadores eram muito
poucos. O Ministério era muito conservador,
ligado à UDN. Senhoras protestaram contra
a posse de Hermes Lima. Waldir Pires
seria ministro, mas não deu certo. Afonso
Arinos era um grande progressista entre os
conservadores.
O senhor chegou a conviver com figuras
como João Guimarães Rosa,Vinícius de
Morais, João Cabral de Mello Neto?
Sim, claro, com todos eles! Ribeiro Couto,
Antônio Houaiss, que foi o primeiro que
conheci. Isso me deu muito alento. Claro que
os superiores me achavam um cara pouco
confiável, pois eu tava discutindo sobre política
externa, mas estava pensando em encontrarme com Bernardo Bertolucci, Glauber Rocha,
que vivia lá em casa. Isso desequilibrava um
pouco o superior hierárquico, que só pensava
e só se dedicava à diplomacia. Eu, por exemplo,
saía de uma reunião chata na Embaixada
em Roma e ia jantar com Pasolini e isso
gerava uma situação desequilibrante. Alguns
superiores gostavam, o Gibson (Barbosa), por
exemplo, gostava muito, ele me convidava para
jantar para que eu convidasse o Bertolucci, e
eles ficavam conversando...
O senhor passou muito tempo no
exterior?
Quase 38 anos. Peguei a fase mais dura
aqui, parte do governo Médici e o governo
Geisel. A segunda metade do governo
começou a entrar ar.Vocês não imaginam o
que era Brasília. Fui trabalhar no patrimônio,
chamado pelo Raul de Vincenzi. Fiquei muito
feliz porque não queria trabalhar em nenhuma
divisão opinativa. Dediquei-me a cuidar do
patrimônio, cuidava do palácio, que hoje está
mal cuidado, já disse isso ao Celso (Amorim,
Ministro de Estado) algumas vezes.
O senhor acredita que, de fato, o
Itamaraty conseguiu conservar alguma
autonomia durante o governo militar?
Tirando o período Castello Branco, que
era a política da ESG (Escola Superior de
Guerra), muito pró- EUA, não se esqueçam
do episódio do chanceler Juracy Magalhães. O
período Militar, mesmo Costa e Silva, Geisel
muito, menos Figueiredo, teve um grande viés
nacionalista.Toda política africana! No governo
Costa e Silva, o Secretário-Geral, que era um
aristocrata, Sergio Correia da Costa, defendeu
a não adesão do Brasil ao TNP (Tratado de
Não-Proliferação). Houve uma política externa
semi-independente. O governo Geisel era
antiamericano. Ele tinha horror! O Geisel é
um direitista que eu admiro. Ele não gostava
do Jimmy Carter. Ele nunca visitou os EUA; foi
Quem o senhor citaria como um
grande chefe, marcante em sua vida?
Lauro Escorel! Era um homem muito
rígido, com passado de direita, que havia
sido integralista, de camisa verde.Tornouse diplomata em 1943, quando teve uma
transformação em sua tomada de consciência,
que passou a ser democrática e progressista.
Era um homem de uma correção excepcional,
de uma inteligência fora do comum. Autor de
alguns livros bastante válidos, como o que fez
sobre o pensamento político de Maquiavel. Era
um excelente critico literário, muito amigo de
João Cabral. Inclusive tem livros bons sobre João
Cabral.Trabalhei com ele no Departamento
Cultural, que se chamava, acreditem vocês,
antes do golpe, Departamento Cultural e de
Informações, que se referia à imprensa.
Quais os postos mais marcantes?
Ao falar disso, precisamos ter a noção da
relatividade do momento. Os tempos em que
_
_perfil
Eu gosto dessa cachaça
que vocês adotaram
por concurso:
a diplomacia.
que eu não gostaria de ir hoje para Roma
nem para Paris, a Roma de Berlusconi ou
Paris de Sarkozy, não! Gostava da Paris do
General de Gaulle, sempre provocando os
americanos... Isso acabou.
vivi em Roma foram importantérrimos. Sorte
minha! Eu cheguei a Roma no momento
em que havia ainda um resto de dolce vita e
depois voltei para trabalhar na Santa Sé, na
época em que a Igreja estava implantando
o Conselho Ecumênico Segundo, portanto
era uma Igreja progressista, de Paulo VI. Na
nossa América Latina, corria livremente a
Teoria da Libertação, inclusive por causa
do próprio Papa. A palavra libertação foi o
Papa quem usou no congresso de Medellín,
em 1978, no encerramento do congresso
Latino Americano. Tive essa sorte, assim
como meu segundo posto foi Varsóvia, num
período de muita criatividade local, época
dos primeiros embates contra a rigidez do
governo soviético. Peguei uma Polônia em
transformação, a queda de Goumuka foi algo
muito importante. Então os postos marcam
também pelo que acontecia no tempo. Eu
juro a vocês, sem querer ser metido a besta,
_10
O senhor chegou a abrir quantos postos
durante sua carreira?
Vou abrir o quinto agora. O primeiro
foi Jeddah, na Arábia Saudita; o segundo
foi Berlim, RDA, os dois entre 1973 e 74.
Depois fui abrindo postos rapidamente,
Guiné-Bissau, Cabo Verde (1976), eu abria
postos com embaixadas em construção ou
por construir. Já instalei e reinstalei vários
postos. Em Lagos, já existia uma Embaixada,
mas eu fui lá para lançar a construção da
embaixada que já foi projetada como futuro
consulado em Lagos, pois havia o projeto da
capital em Abuja. Isso tudo foi entre 74 e 76,
eu viajava muito.
O senhor queria ir para São Francisco
por causa do cinema?
Por causa do cinema, dos amigos.
Nunca se esqueçam que Coppola mora
em Oakland .Depois fui pra Lima, Peru.
Tenho saudades de Lima, vivi uma época
de transformação do cinema peruano,
todos eles frequentavam minha casa.
Uma época de transformação do país,
que, em seus períodos democráticos, só
tinha tido presidentes conservadores. O
presidente do meu tempo era um homem
muito simpático, o Belaunde Terry. Eleito!
Arquiteto! Casado com uma mulher
chamada Carlota Aubri, prima da Cecília
Aubri, atriz do Cluzot, e ela se apaixona
por um Zambo, que era um negro. Esta é
uma particularidade do Peru, toda classe
política era branca, e era minoria. A maioria
eram índios, asiáticos e negros. Os negros
são muito fortes culturalmente, na musica,
por exemplo. Eram muito desprezados. A
mulher do presidente então foge com um
negro; neste momento atuavam o Sendero
Luminoso e os Tupamaros, que explodiam
bombas perto da minha casa. Outra coisa
foi em Melbourne, uma de minhas cidades
preferidas na Austrália. Sydney é uma cidade
bonita, maior cidade do país, concentra
um quinto da população da Austrália.
As pessoas lá só pensam em ginástica,
praia, diversão. Mas lá foi palco dessa
retrospectiva completa do Antonioni, que
durou um mês. Outro foi uma lindíssima
exposição minimalista do artista plástico
brasileiro Valtércio Caldas, em Sydney
também. Fez um sucesso incrível. A terceira
coisa foi uma mostra completa de tudo
aqui que foi usado por Stanley Kubrick, no
museu de Melbourne. Mas um belo dia, eu
telefonei ao Celso Amorim, pois soube que
a Palestina estava vaga, e eu soube com
certo atraso, quase oito meses depois. Pedi
para ir para a Palestina.
Em que ano foi aberto o escritório de
representação do Brasil em Ramalá?
Em 2004, eu fui em 2006. O escritório
ficou nas mãos de um colega nosso, que
é agora embaixador em Harare . Ele
ficou dez meses lá. Entre o Brito (atual
embaixador brasileiro no Iraque, Bernardo
de Azevedo Brito) e mim.
O que de mais importante a diplomacia
brasileira logrou com a aproximação do
Brasil em relação aos palestinos?
Graças a um trabalho de Affonso OuroPreto e um pouco meu, a coisa mais
importante que a gente fez foi mostrar aos
palestinos que nós entendíamos a causa
Palestina. Não no sentido propagandístico,
nem demagógico, mas no sentido de direitos
que assistem ao povo palestino.
Qual sua experiência com o mundo
islâmico?
Eu tenho 12 anos de mundo islâmico:
Arábia Saudita; Beirute durante a guerra civil
89-90; saí de Argel pra ir para lá.
E o Brasil é visto de fato como um ator
importante no Oriente Médio?
Está tentando ser. Os palestinos
culturalmente estão muito ligados aos
colonizadores europeus, principalmente à
Inglaterra. Há então uma dificuldade cultural
porque a política externa brasileira para a
palestina só foi tomando forma a partir do
Celso Amorim. O Celso está muito certo, ele
tá indo gradualmente.
Embaixador, quais são suas expectativas
pra Coreia do Norte?
As melhores possíveis, estou muito
entusiasmado!
Falando da Coreia do Norte, lembro
que o senhor comentou que o
senador Cristovam Buarque falou que
Pyongyang talvez não fosse bom pro
seu currículo, mas seria ótimo pra sua
biografia. O senhor concorda?
Sim, mas não sou vaidoso com biografia
não. Eu gosto dessa cachaça que vocês
adotaram por concurso: a diplomacia.
Amena Martins Yassine (turma 2008-2010
do IRBr) é bacharel em Relações Internacionais
pela Universidade de Brasília, mestre pela London
School of Economics and Political Science (LSE).
Igor Trabuco Bandeira (turma 2008-2010
do IRBr) é bacharel em Jornalismo pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Marcelo Almeida Cunha Costa (turma
2008-2010 do IRBr) é bacharel em Medicina pela
Universidade Federal da Paraíba.
Rodrigo de Carvalho Dias Papa (turma
2008-2010 do IRBr) é bacharel em Direito pela
Universidade de São Paulo e em Relações
Internacionais pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo.
_11
_perfil
Revolucionar a Corte
Internacional de Justiça.
Pour quoi pas?
R
Amena Yassine
Filipe Abbott Galvão Sobreira Lopes
Pedro Velloso
isos! É assim que começa e termina uma conversa com Antônio
Augusto Cançado Trindade, jurista, internacionalista e o mais recente
brasileiro a ocupar um assento na Corte Internacional de Justiça (CIJ).
Professor do Instituto Rio Branco (IRBr) por três décadas e consultor
jurídico do Ministério das Relações Exteriores (MRE), Cançado
Trindade assumiu, em fevereiro de 2009, seu lugar no mais importante
tribunal internacional em atividade, o qual se encontra num momento
decisivo para concretizar sua autonomia e atuação. “Um momento
histórico”, para usar uma expressão que lhe é cara. Trindade entra
determinado a imprimir sua marca, a despeito de controvérsias e
pressões que possa enfrentar e que são parte indissociável da Corte da
Haia. Nesta entrevista concedida à JUCA, a última antes de embarcar
para os Países Baixos, ele rememora, com carinho e irreverência, seus
anos no Itamaraty, sua extensa experiência no Direito Internacional,
sua eleição e suas expectativas para os anos que se seguem na CIJ.
_12
_13
_perfil
Como o senhor foi chamado a dar
aulas no IRBr?
Houve um convênio, celebrado entre o
nosso departamento da UnB e o Rio Branco,
que acabava de se trasladar do Rio de Janeiro
para Brasília. Eles necessitavam de novos
professores, uma vez que muitos professores
ficaram no Rio. Então, no âmbito desse
convênio, eu passei a lecionar, em março de
1978, tive essa grande satisfação, e o convênio
está em vigor até hoje, e,
portanto, exatamente 30
O Direito
anos de docência.
máximo que ele puder ler. Eu sou um livre
pensador. Como livre pensador, na primeira
metade da década de 80 eu comecei a
questionar algumas posições que ainda
prevaleciam em nosso país. Precisamente
através do vínculo com o IRBr, tive a
oportunidade de estabelecer um novo
paradigma não só no ensino como também na
prática, ao fundamentar as novas posições do
Brasil em matéria da proteção internacional
Internacional tem passado por
momentos de gravíssima de crise, mas é nos
momentos de crise que se dá saltos qualitativos.
_14
Como foi ensinar
Direito Internacional
por 30 anos?
Eu sempre busquei dar
uma visão própria do Direito Internacional.
Nos primeiros anos, a situação pela qual
passava o país ainda era sombria e não havia
uma total liberdade para abordar certos
temas. Eu não me contentava com a doutrina
prevalecente na época e já naquela época eu
questionava muito do que se ensinava nas
nossas faculdades. Então eu me recordo que a
expressão, por exemplo, “Direitos Humanos”
era anátema na época, então eu consegui
incluir no primeiro programa do curso de
Direito Internacional do IRBr em 1978 um
capítulo sob o título de “A Condição do
Indivíduo no Direito Internacional.” Então eu
passei, a partir daí, a ensinar um capítulo de
Direitos Humanos no Direito Internacional.
Isso foi no final dos anos 70.
A primeira grande oportunidade surgiu
no caso do “Último Limite” brasileiro, que
foi o limite litoral marítimo entre o Brasil e a
França, e a partir daí eu cada vez mais passei a
colaborar com o Ministério mediante pareceres
e, em 1985, com a redemocratização do país,
fui chamado para ser Consultor Jurídico do
Ministério, mas nunca deixei de dar aulas.
dos direitos humanos e emiti pareceres para
mudar radicalmente a posição do nosso País
e graças a Deus isso foi bem aceito pelo
Ministério das Relações Exteriores, a quem
fui absolutamente leal durante todos esses
30 anos. Esses pareceres que foram emitidos
de 1985 a 1989 serviram para inserir o Brasil
no plano internacional na área de direitos
humanos. A posição do Brasil e do Itamaraty
sempre esteve à frente dessas mudanças.
Então isso marcou meados dos anos 80.
Os anos 80 foram marcados por esta
ambivalência, um sonho perdido e a busca
pela construção de uma nova realidade. Na
segunda metade dos anos 80, houve algumas
iniciativas importantes como a conclusão da
obra de codificação do Direito Internacional
com a segunda grande Convenção de Viena
sobre Direitos dos Tratados. Internamente,
com a redemocratização, foi convocada
a Constituinte, aí eu tive um papel muito
importante, não só como professor do
Rio Branco, mas como Consultor Jurídico:
introdução do parágrafo 2o do artigo 5o.
(veja box na página ao lado)
O Senhor tem medo de virar um Marco
Teórico?
Não, eu repudio o Marco Teórico como
algo que inibe o jovem pesquisador a ler o
Uma memória que o senhor guarda do
IRBr com carinho?
Eu nunca vou me esquecer nem do início
nem do fim. Sempre vou me lembrar da turma
de vocês (Turma 2008-2010).Vou me lembrar
da primeira turma, que são meus amigos até
hoje, alguns são Embaixadores. Um momento
que me lembro bastante foi o momento em que
me ausentei por alguns meses, logo depois que
assumi na Corte Interamericana de Direitos
Humanos e fui para a Costa Rica. Quando
eu voltei, foi uma festa no Itamaraty e no Rio
Branco. Isso foi super gratificante. Fui recebido
com muito carinho. Isso ocorreu em 1996.
Como era dar aula de Direito
Internacional há 30 anos?
Há 30 anos havia muita influência no Brasil
dos cursos de ciência política. A escola realista
predominava e eu era sempre contrário. A
resistência nas universidades era muito maior
que hoje. A maioria era puro positivismo. Há
30 anos, os horizontes eram mais limitados.
No nosso último semestre discutimos temas
que seriam impossíveis há 30 anos, como os
tribunais de caráter universal e de direitos
humanos, o novo jus-gentium, a proibição do
uso da força, isso não se discutia abertamente.
O Direito Internacional tem passado
por momentos de gravíssima de crise, mas
é nos momentos de crise que se dá saltos
O parágrafo 2º do Artigo 5º da
Constituição Federal de 1988 diz que
“os direitos e garantias expressos
nesta Constituição não excluem outros
decorrentes do regime e dos princípios
por ela adotados, ou dos tratados
internacionais em que a República
Federativa do Brasil seja parte”. Sua
redação foi originalmente apresentada à
Assembleia Constituinte pelo Professor
Cançado Trindade, que afirma ter tido
a intenção de incorporar direitos
assegurados por tratados internacionais
ao rol de direitos e garantias fundamentais
listados pela Constituição. É, por isso,
qualitativos. Assistimos a momentos dramáticos
em 2003, com o problema da invasão do
Iraque, uma das mais graves violações do
Direito Internacional já vista. Agora, em 2009, já
se vê com olhos críticos o que ocorreu.
Uma memória mais inusitada, pitoresca,
ou anedótica?
Há cerca de cinco anos, fui convidado
para ser paraninfo de uma das turmas do
Rio Branco. O cerimonial me avisou que eu
tinha sete minutos para falar na formatura,
porque o presidente também ia falar por sete
minutos. Eu perguntei: sete minutos longos ou
breves? (Risos). O pessoal no Planalto ficou
preocupadíssmo, porque ninguém pode falar
mais que o Lula. Meus sete minutos duraram
40. (risos) Quando o Lula foi falar depois, ele
disse que não ia ler o discurso, pois esse ia para
as atas. E falou de improviso por 41 minutos.
(risos) Nós dois falamos sete minutos longos.
No final, todo mundo estava morrendo de rir.
Como surgiu a candidatura para a CIJ?
Começou com os meus doze anos
como juiz titular da Corte Interamericana,
que marcaram época, pois o Brasil era
crítico feroz do parágrafo 3º somado ao
Artigo 5º pela Emenda Constitucional 45
de 2004, que concedeu status de Emenda
Constitucional a tratados de direitos
humanos que seguissem tramitação
específica no Congresso Nacional. Para
ele, foi uma adição desnecessária que
ainda gerou incertezas jurídicas, já que
o novo parágrafo vai de encontro ao 2º,
que não exigia tramitação diferenciada de
tratados para que tivessem seus direitos
incorporados àqueles garantidos pela Carta
de 1988. O parágrafo 3º não deixa claro,
ademais, a hierarquia de tratados aprovados
anteriormente à aprovação da EC 45.
_15
_perfil
absolutamente avesso à ideia de participar de
Tribunais Internacionais. Na primeira gestão
do Celso Amorim, como na do (Luiz Felipe)
Lampreia, através de conversas minhas com
os dois, o Itamaraty tomou a liderança para
aceitar a competência contenciosa da Corte
Interamericana, que foi histórico. Eu fui o
primeiro brasileiro a presidir o plenário
de um tribunal internacional, que dirigi
por meia década. Nenhum brasileiro, nem
vivo, nem morto, teve tanta experiência em
magistratura internacional.
Quando a Corte Interamericana veio
ao Brasil, em 2006, e teve uma sessão no
STJ (Superior Tribunal de Justiça), a fala do
Celso Amorim já indicava que, terminando
meu período, eu seria o candidato natural
para a CIJ. Antes eu já havia declinado
pedidos. Eu sempre fui muito cauteloso em
queimar etapas. Só fui apresentado como
candidato após ter terminado o ciclo na
Corte. A candidatura teve uma acolhida
muito positiva no plano internacional. Aqui
no Brasil, o tráfico de influência foi superado
e a candidatura foi mantida. Um fato digno
de registro foi que todos os países que
condenei por violações de Direitos Humanos
votaram no meu nome para a CIJ, o que seria
impensável alguns anos atrás. No total foram
32 grupos nacionais que me apoiaram.
O senhor achou estranho esse debate
dentro do Brasil?
Esse debate foi uma das coisas mais
lamentáveis, uma das páginas mais negras de
postulação para a Corte Internacional porque
significou tráfico de influência de uma pessoa
que integra o Poder Judicíário, que não pode,
jamais, pedir emprego depois de lançada
uma candidatura pelo Poder Executivo. Todo
mundo se conhece no campo do Direito
Internacional e isso foi condenado por todos.
O senhor entrou nesse debate?
Eu pessoalmente nunca entrei nesse
debate, pois a minha candidatura já tinha sido
oficializada nas Nações Unidas e todo o mundo
jurista brasileiro já havia condenado o ocorrido.
_16
O desfecho foi histórico, maior
votação na Assembleia Geral. O
senhor estava lá? Como foi receber
essa dupla notícia?
Foi algo histórico. A Embaixadora
Maria Luiza RibeiroViotti me chamou para
me sentar com a delegação. Eu estava
discretamente, como bom mineiro, sentado
nas laterais. Me sentei com eles já como
juiz eleito. Poucos dias antes, o Embaixador
do Reino Unido falou com a Embaixadora.
“I think our candidates will be elected.Your
candidate has a very good chance to come close
to ours, after ours and the French candidate.
He’s just as good as ours.” (risos) Ele só não
esperava que ia ficar na frente dos dois
(risos). Então na primeira votação, saímos
eu em primeiro, em segundo o inglês e, em
terceiro, o francês.
Na hora em que eu estava saindo, tive
uma grande surpresa. O Presidente da
Assembleia Geral era um latino-americano, o
Padre Miguel d’Escoto, antigo líder sandinista.
Ele desceu e me deu um grande abraço,
quase me beijou. Ele é engraçadíssimo, uma
figura folclórica. Ele disse: “Estoy muy contento,
quiero darte un abrazo en nombre de toda
latinoamérica.”
O Brasil já teve juizes na CIJ, sem que
eles tivessem experiência de Direito
Internacional. É possível ser juiz sem
essa experiência?
Muito difícil! É muito importante que
a pessoa conheça o mundo do Direito
Internacional, e eu estou dentro desse mundo
há muitos anos. Eu creio que o mundo de
Direito Internacional tem sua linguagem própria.
Então como foi entrar numa Corte
Internacional pela primeira vez, na
Corte Interamericana?
Nos meus primeiros anos na Corte
Interamericana, não era o mesmo que na CIJ.
A experiência e a lógica juntas é que ajudam
a formar um bom critério, no momento
de decidir. Nos primeiros casos, a gente
sente uma necessidade especial de ajustar
os fatos às normas. Mas depois de ter essa
experiência, isso vem naturalmente.
Qual é a relevância de um juiz na CIJ
para o povo brasileiro?
O Estatuto da Corte Internacional de Justiça
determina que os juízes devem representar
os principais sistemas de pensamento jurídico,
não seus países. Mas todo juiz é identificado
com seus países de origem, para efeito da
distribuição geográfica. Existem regras não
escritas que fazem que, na atualidade, dois juízes
sejam da América Latina. Então eu sempre vou
ser identificado como um juiz brasileiro, mas eu
sempre fui independente nas minhas decisões e
creio que seja importante que o juiz o seja, para
que as fundamente bem.
Qual a receita do seu sucesso?
É aceitar a precariedade da condição
humana. Dar-se conta de que a gente não é
tão importante quanto achava que era. Se
nos damos conta disso, a gente se dissocia da
própria vaidade e começa a seguir as ideias.
As pessoas que se preocupam demais com
o sucesso são as que mais rapidamente se
esvaem. O melhor que a gente pode fazer é
servir a certas ideias e causas com as quais a
gente se identifica. É muito mais provável que
se deixe uma mensagem que será lembrada.
O maior inimigo do ser humano é a
vaidade. No mundo da Haia, há muita vaidade,
mas eu quero me manter à parte de tudo isso,
para dar minha contribuição sem esse tipo de
preocupação. Quanto mais tarde nos dermos
conta de que não somos tão importantes
quanto pensávamos, pior. Espero ser capaz de
resistir a todo esse charme da Haia. O que
me interessa é resolver os casos.
A CIJ é um órgão da ONU, ligada a ela
principalmente pela Assembleia Geral
e pelo Conselho de Segurança. É um
órgão político?
Não. Muita gente diz que a Corte é
politizada, o que pode ser verdadeiro. Há uma
visão segundo a qual os órgãos das Nações
Unidas não podem se controlar mutuamente, o
que eu não compartilho. Se surgir oportunidade,
eu terei condições para expressar o que eu
penso. Hoje há o reconhecimento do primado
do Direito Internacional.
Os cinco grandes têm juízes na CIJ,
garantindo, desse modo, lugares
em dois foros privilegiados: a Corte
Internacional de Justiça e o Conselho
de Segurança. O Brasil logra agora um
lugar na CIJ. Há nisso alguma relação
com a pretensão brasileira por um
assento no Conselho de Segurança?
Dentro da psicologia das Nações Unidas,
sim. É por isso que a minha eleição era uma
prioridade para o Brasil e a próxima prioridade
é o Conselho de Segurança. É o próximo passo
do Itamaraty, por isso é que esse debate que se
armou dentro no plano interno foi deletério,
uma das páginas mais negras, de falta de visão
de certas pessoas. Poderia ter causado um
prejuízo enorme ao país.
A CIJ julga casos enviados pelo
Conselho de Segurança e dá opiniões
consultivas. Alguma decisão da corte
pode influenciar o rumo das Nações
Unidas?
Essa pergunta me foi feita em uma sabatina
com um grupo africano da SADC (Comunidade
de Desenvolvimento da África Austral) e uma
com o CARICOM (Comunidade do Caribe),
que citou o parecer do caso do muro de
Jerusalém, para justificar a preocupação. Eu disse
que a Corte tem de dizer qual é o direito, não
apenas resolver uma questão jurídica. Se uma
sentença não é acatada, o que a Corte deve
fazer é informar claramente que não foi acatada
na hora de apresentar seus relatórios anuais na
Assembleia Geral e no Conselho de Segurança.
Muitas vezes o cumprimento de uma sentença
não é imediato, mas ele vem.
O senhor vê a possibilidade de ser
impedido ou atravancado em sua
função por poderes ou razões políticas?
Não, mas é difícil especular sobre isso. Na
minha experiência na Corte Interamericana,
_17
_perfil
eu enfrentei com todo vigor tentativas nesse
sentido e apliquei sanções que, depois de
mim, não foram mais aplicadas. Apliquei no
caso Fujimori e em Trinidad e Tobago. Eu
prefiro pensar que isso não vai ocorrer,
porque se nós não pudermos agir de acordo
com a consciência dentro de um tribunal
internacional, o trabalho não vale a pena.
apresentados casos não mais pela cláusula
facultativa (de jurisdição obrigatória), mas com
base em cláusulas compromissórias, como,
por exemplo, os casos latino-americanos. Há
cinco no momento, e pode haver um sexto, em
breve, invocando o Pacto de Bogotá e cláusulas
compromissórias.
O que isso muda? Quando a base
de jurisdição da Corte é uma cláusula
Quais desafios o senhor prevê enfrentar
compromissória, é melhor no sentido
na Corte?
de não haver tanto debate quanto à sua
É difícil especular. Pela primeira vez, a
base. A Corte não consumirá tanto tempo
Corte tem na sua agenda casos que dizem
discutindo a jurisdição e poderá passar
respeito a toda a comunidade internacional.
mais prontamente ao mérito. Acaba de
entrar na Corte um
caso da Alemanha
contra a Itália. A base
da jurisdição foi um
Tenho sempre presente uma reflexão do
special agreement.
Machado de Assis, de que qualquer emoção
Não haverá debate
sobre questões
privada vale mais que cem alegrias públicas.
jurisdicionais. Quanto
mais casos houver
desse tipo, melhor,
pois se gasta menos
tempo com questões
de admissibilidade, o
que foi fatal em alguns
casos anteriores.
Hoje em dia estão diante da Corte casos
relativos ao uso da força, à proteção do meio
ambiente, à liberdade de navegação, ao Direito
Internacional Humanitário, ao Princípio da
Não-Discriminação, ao reconhecimento
de Estados, ou seja, há uma variedade de
temas, o que nunca havia ocorrido antes.
Por outro lado, pela primeira vez há casos
levados à Corte que pertencem às diferentes
regiões do sistema ONU: casos atinentes a
Estados africanos, asiáticos, latino-americanos,
europeus. É particularmente interessante ver
isso e poder ingressar nesse momento.
De casos contenciosos, há um
desenvolvimento recente muito interessante,
de que, pela primeira vez, começam a ser
_18
Diz-se que a Corte
é reacionária. O que
o senhor acha da atuação da CIJ hoje?
Eu acho que a Corte terá de reavaliar sua
maneira de ver os problemas que afetam a
comunidade internacional. Ela tem se apegado
muito às questões de forma e de procedimento.
No que depender de mim, ela terá em mente a
importância dos temas tratados.
Na Corte Interamericana, o senhor
sustentava posicões controversas para a
época, com vários votos dissidentes que,
depois, se tornaram padrão. O senhor
pretende fazer o mesmo na CIJ?
Eu pretendo chegar com bastante
discrição, como bom mineiro, mas trabalhar
com eficiência. Estou muito interessado em
examinar de perto, com os meu pares, o
regulamento da Corte. Começar por aí.
Que tipo de juiz está faltando na CIJ?
Um juiz atento aos valores, atento
à importância dos temas que afetam a
comunidade internacional, para a além da
visão clássica estato-cêntrica.
O senhor vê alguma reação interna ou
externa a essa atitude do senhor?
Eu estou preparado para isso, pois tenho
refúgio da vida interior (risos).
Existe alguma injustiça na Corte
Internacional de Justiça, quanto
ao reconhecimento de questões
fundamentais ou de personalidades que
deveriam estar lá?
A CIJ tem se evadido sistematicamente do
tratamento da questão das normas imperativas
do direito internacional. Ela tem se referido
vez por outra às obrigações erga omnes, mas
as obrigações erga omnes são uma emanação
das normas imperativas. Eu creio que aí existe
um terreno fértil a percorrer no sentido de se
pronunciar sobre essas normas, de construir um
direito internacional que se imponha aos Estados,
que não seja uma mera emanação da vontade de
um ou de outro, mas em benefício de todos.
O senhor tem várias atividades
paralelas: o Curso da Haia, o Rio
Branco, a Universidade de Brasília.
Como vão ficar essas atividades de
agora em diante?
Vou continuar com todas elas. O Institut
só se reúne a cada dois anos. O curatório
da academia da Haia me permitirá continuar
no mundo acadêmico, mesmo sendo juiz. Fiz
um levantamento dos juízes da Corte que
continuaram a atividade acadêmica enquanto
eram juízes. Se alguém vier me dizer que
não pode, vou mostrar a lista. Não há
incompatibilidades. Isso me dá o privilégio de
acompanhar a formação das novas gerações
de internacionalistas de diversos países,
especialmente latino-americanos.
Já houve outros brasileiros na CIJ. O
senhor se sente como herdeiro de
alguma atuação passada?
Eu acho que é uma coisa muito
pessoal. Sou diferente de todos os meus
predecessores. A minha maneira de pensar é
distinta, cada pessoa é uma pessoa.
Qual é a sua mensagem para quem está
ingressando na carreira?
É um serviço, é um serviço que se
presta aos demais. Não se deixem tomar
pelas aparências do poder. Tenho sempre
presente uma reflexão do Machado de
Assis, de que qualquer emoção privada
vale mais que cem alegrias públicas. É
importante ter uma vida pessoal bem
estruturada e a noção de servir a uma
causa, de servir às ideias, de fazer o bem.
Agora uma última pergunta: a CIJ está
preparada para o seu senso de humor?
Sou irreverente para poder viver no
mundo irracional. Essa irreverência é uma
maneira de manter a consciência viva da
irracionalidade do mundo. Ao mesmo tempo
em que sou irreverente, sou respeitoso
com as pessoas, mas sou irreverente com
a irracionalidade do mundo, para que as
pessoas não se deixem tragar pelo poder.
Essa irreverência é um instrumental para
assegurar uma sobrevivência sadia. Na
medida em que as pessoas compreendam
isso, eu creio que elas compartilharão dessa
minha preocupação. É uma irreverência em
favor da consciência. (risos).
Amena Martins Yassine (turma 2008-2010
do IRBr) é bacharel em Relações Internacionais
pela Universidade de Brasília, mestre pela London
School of Economics and Political Science (LSE).
Filipe Abbott Galvão Sobreira Lopes
(turma 2008-2010 do IRBr) é bacharel em
Relações Internacionais pela Universidade McGill
(Montreal).
Pedro Veloso (turma 2008-2010 do IRBr) é
bacharel em Direito pela Universidade Federal de
Minas Gerais.
_19
_perfil
Chico,
o poeta
Ramiro Breitbach
_20
fotos de
Laís de Souza Garcia
F
rancisco Alvim é reconhecido como um dos maiores poetas
brasileiros vivos. Desde a estreia com O Sol dos cegos (1968) até o mais
recente livro de poemas inéditos, Elefante (2000), Alvim vem desenvolvendo
um percurso poético rico e variado, agradando, a um só tempo, à crítica
de matriz acadêmica e artistas ligados à chamada poesia marginal, como
Cacaso, Waly Salomão, Chacal e Zuca Sardan com quem desenvolveu
fecunda colaboração.
Além da faceta poética, Francisco Alvim é diplomata de carreira
(aposentou-se em outubro de 2008), inserindo-se (embora sem que ele se
ache merecedor disso), numa galeria de grandes nomes a conciliar as duas
atividades, como Raul Bopp,Vinicius de Moraes e João Cabral de Mello
Neto .
Esbanjando alegria e generosidade, Francisco Alvim recebeu a Juca
em sua casa em Brasília para uma conversa franca e instigante sobre poesia,
diplomacia e suas experiências de vida.
_21
_perfil
Embora nascido em Minas, as primeiras
lembranças de Francisco Alvim são do Rio de
Janeiro. Seu pai fora prefeito de Araxá, onde
Alvim nasceu, mas já se transferira com a
família para o Rio antes de o filho completar
dois anos. Apesar de não ter sempre vivido
em Minas, Alvim diz que, com a família mineira
de ambos os lados, fica “aquela música, aquela
prosódia na fala”.
“Até os 11, 12 anos, eu gostava de
brincadeira, bola, e gostava de batucar no
violão de minha irmã, batucar mesmo, não
mexia com as cordas, o que me interessava
era o batuque na caixa”. O contato com a
poesia veio um pouco mais tarde, através
dessa mesma irmã, Maria Ângela, já falecida,
11 anos mais velha, que Alvim venera. Maria
Ângela publicara um livro de poemas.
“Superfície”, que, por essa época, já começara
a fazer a cabeça do irmão. “Ângela ganhara
uma agendinha muito bonita de uma
empresa alemã. Um dia, eu a furtei e ela
ficou procurando pela casa inteira.” Quando
descobriu que o jovem Francisco tinha pego
a agenda e nela garatujado os seus primeiros
versos, em vez de brigar, deu-lhe a agenda de
presente e passou a incentivá-lo. “Foi o meu
primeiro furto ligado à poesia. Houve outros
depois, de natureza diversa, quem sabe mais
censuráveis, que foram igualmente premiados,
pois não me lembro de nenhuma vítima, ou
alguém por ela, que os tenha denunciado.
Salvo uma vez: meu irmão caçula Fausto,
extremamente precoce, que já se iniciara em
Machado, descobriu que não eram de minha
lavra uns trechos do Quincas Borba que eu
assumira como versos meus. Fui exposto
à execração de meus leitores, nessa época,
felizmente, apenas meus pais e irmãos. Um
vexame. Passei vergonha”.
Maria Ângela deu-lhe um segundo
presente, o exemplar da primeira edição das
obras completas de Jorge de Lima, que a ela
fora oferecido e autografado pelo autor, o
qual Alvim leu e releu fascinado, sobretudo
o “Livro de sonetos”. Recitou de memória
(“eu que a tenho péssima...”) um deles: A torre
de marfim, a torre alada... O contato com a
poesia de Carlos Drummond, em meados
dos anos 50, já rapaz, foi uma revelação para
Francisco Alvim. “Só lamento que Drummond
tenha dado, com seu realismo, uma rasteira
_22
em Jorge de Lima, na poesia visionária deste.
Trocar de poeta é como trocar de universo”.
Por volta dessa época, Francisco começou
a se interessar, também, pelo estudo de
línguas estrangeiras, motivado pela atração
crescente pela literatura. Começou a pensar
numa profissão (“porque precisava de uma”)
e achou que o Itamaraty era uma carreira
que não devia maltratar aspirantes a literato
(“pois ali estavam, por exemplo, João Cabral e
Guimarães Rosa”). Além do mais, considerava
a diplomacia uma profissão “charmosa”, que
lhe permitiria viajar pelo mundo e ter uma
vida confortável.
Em 1963, Alvim, 24 anos, passou no
concurso para ingresso no Instituto Rio
Branco. Já mais maduro, foi capaz de enxergar
a profissão sob novos ângulos de interesse.
Sua geração passava por um processo
de politização crescente, resultante dos
confrontos políticos e ideológicos do período,
e o jovem aspirante empolgou-se com os
rumos da Política Externa Independente do
Governo Jânio Quadros. Porém, a política
externa, como tudo o mais no país, seria logo
profundamente alterada em sua trajetória
pelos rumos da história. Após o golpe de
1964, Alvim afirma que “o trabalho no
Itamaraty ganhou uma dimensão ideológica
muito forte, justamente quando comecei a
trabalhar”.
Em 1968, publicou Sol dos cegos, seu
primeiro livro de poesia, em edição do autor,
como seriam todas suas obras até o quarto
livro, Lago, montanha, no início dos anos 1980.
A gênese de Sol dos cegos foi complicada em
mais de um sentido: o proprietário português
da gráfica contratada para a impressão do
livro, acostumado a trabalhar para uma
freguesia de freiras, hesitava em fazer o
serviço porque o longo poema “Paralaxe”
continha os seguintes versos:
Puxa o gogo o pedagogo
cusporeja a grande perda
Não deviam consentir
é mesmo um país de merda
“O senhor está a chamar vosso país
de ‘merda’? Não posso imprimir isso”,
argumentava o tipógrafo, talvez preocupado
com o conteúdo político de um verso assim,
às vésperas dos anos de chumbo. Alvim disse
que compreendia as razões (“e, tanto quanto
o português, eu estivesse preocupado ...”) mas
que não concordaria em alterar ou retirar o
verso, portanto, que ele não se preocupasse,
pois recolhia o livro. O proprietário então
propôs consultar um intelectual de expressão,
afinado com a ideologia do período e a
quem recorria quando se defrontava com
situações semelhantes (que se amiudavam...);
dependendo do que o personagem achasse,
o livro seria impresso. Alvim assentiu. O
parecer foi algo como: “A poesia é meio
ruinzinha, mas hoje está todo mundo
escrevendo desse jeito mesmo”, e o livro
foi publicado, saindo diretamente da gráfica
para um armário na casa da sogra de Alvim,
que havia, entrementes, sido removido para
seu primeiro posto no exterior. Armário
espaçoso, pois nele couberam os quase
mil exemplares da edição, que custou mil
cruzeiros, um cruzeiro por exemplar.
Em outubro de 68, às vésperas do AI-5,
Francisco Alvim partiu para Paris, para servir
como Secretário na delegação brasileira
junto à UNESCO (Organização das Nações
Unidas para a Educação, a Ciência e a
Cultura). Em Paris, encontrou o diplomata
e pensador José Guilherme Merquior, que
trabalhava na Embaixada. Merquior gostou
muito de Sol dos cegos e acabou publicando
um artigo elogioso sobre o livro. A partir
daí, a reputação de Alvim como poeta
começou a se firmar, e ele recebeu um poema
manuscrito de Carlos Drummond elogiando
sua primeira publicação. “Um poema curto, de
circunstância – um gesto de agradecimento
pelo exemplar que eu lhe enviara; que ia,
contudo, bastante além para mim, pois na
realidade era uma apreciação crítica na qual
apontava o que talvez seja a pulsão central de
minha poesia, já para ele, tão evidente naquele
meu primeiro livro”.
Licença do Itamaraty e a patota
De volta ao Brasil em 1971, tirou licença
do Itamaraty (o clima político da época
_23
_perfil
talvez tenha contribuído para essa decisão) e
trabalhou alguns anos na Livraria José Olympio,
no Rio de Janeiro, então uma das maiores
editoras do país. O passado da editora, que
foi a grande casa do período áureo de nossa
literatura, a editora de Carlos Drummond de
Andrade, José Lins do Rego, Gilberto Freyre,
João Cabral e tantos outros, ainda reverbera
em seu presente. Pela editora, transitavam os
nossos grandes escritores, Carlos Drummond
de Andrade, João Cabral de Mello Neto, Murilo
Mendes, estes dois últimos em suas passagens
pelo Brasil; além de escritores já consagrados
de gerações posteriores, como Dalton Trevisan
e Hilda Hilst.
Paralelamente, Clara, mulher de Francisco,
lecionava literatura brasileira no Departamento
de Letras da PUC - Rio, o que permitiu a Alvim
tomar contato com toda uma nova geração
de poetas, como Cacaso, de quem se tornou
um grande amigo, Ana Cristina Cesar, Geraldo
Carneiro, João Carlos Pádua, entre outros.
Alvim relembra com carinho a amizade que
unia a todos e o clima criativo dessa época:
_24
“Era uma época muito dura (em função da
ditadura), mas quanto mais difícil era, mais
dava vontade de escrever, de viver... E de um
convívio muito intenso entre artistas em
geral e gente que se interessava pelas artes”.
Desse ambiente resultou a coleção Frenesi,
editada por iniciativa de Cacaso, de maneira
quase artesanal, de que Alvim fez parte com
seu livro Passatempo (1974), em companhia de
Cacaso, João Carlos Pádua, Geraldo Carneiro
e Roberto Schwarz. Na mesma época, aparecia
o grupo de poetas Nuvem Cigana, que buscava
resgatar o elemento cênico na representação
poética, e o grupo de teatro Asdrúbal trouxe
o trombone, que Alvim recorda como “um
estouro” quando do seu surgimento, com a
encenação que fizeram do Capote, de Gogol.
Talvez o único traço em comum dos
artistas que produziam no contexto que ficou
conhecido como “poesia marginal” seja a
busca livre da experimentação, numa espécie
de retomada dos ideais do modernismo dos
anos 20. Francisco Alvim também reconhece
a importância da matriz da poesia concreta
na produção da época, mas entende que “a
geração dos anos 70 não comungava com
os concretos. Eles tinham essa característica
de uma crença exarcebada na materialidade
da linguagem, além de um espírito muito
combativo. Isso acabava por excluir muitos
aspectos importantes da poesia, era algo
muito programático, e essa geração [anos
1970] surge, em alguma medida, em oposição
ao dogmatismo da poesia concreta.”
Como sua produção não saía pelas grandes
editoras, mas por iniciativa de grupos que se
formavam, os poetas desses círculos acabaram
por desenvolver, segundo Alvim “aquela
camaradagem, que a gente adorava. A gente
não queria saber de outra coisa que aquela
patota. Todo mundo fala mal de igrejinha
[panelinha, em algumas regiões do Brasil], mas
igrejinha é a melhor coisa do mundo. Tem que
ser gente próxima, gente que você gosta”.
Desse contexto de efervescência criativa,
surgiria também um marco da poesia
brasileira contemporânea: a coletânea 26
poetas hoje, editada por Heloisa Buarque
de Hollanda, da qual Alvim participou,
juntamente com Roberto Schwarz, Roberto
Piva, Capinam, Cacaso, Torquato Neto, Waly
Salomão, os também diplomatas Vera Pedrosa
e Zuca Sardan, entre outros. Francisco Alvim
credita a publicação à persistência da editora:
“Heloisa tem uma capacidade impressionante
de trabalho. E o mais importante: de perceber
sob o aparente marasmo, as camadas
pulsantes que seguem por debaixo. Antena
fabulosa, desbravadora, que não pára de vibrar
e captar. Alguém que se interessa pelo nervo
das coisas culturais, tempos atrás como agora,
deve acompanhá-la no que anda fazendo”.
O livro teve grande repercussão quando
do seu lançamento, com farta cobertura de
imprensa, nem sempre favorável. Mas nem
a crítica mais contundente, pelo próprio
teor de contundência, deixava de expor um
elemento altamente perturbador da antologia,
“o de chamar a atenção para uma produção
poética cujo sentido não se limitava ao plano
exclusivamente literário, mas ia além, ao
conseguir dar expressão artística a todo um
momento extremamente significativo da vida
nacional e assim interagir efetivamente com
1
ela. Havia muita coisa de qualidade duvidosa
nessa produção, o que ensejou naturalmente
muita paulada justificada. Mas para o
público leitor de poesia jovem e menos
jovem ofereceu, sem sombra de dúvida, a
oportunidade de tomar conhecimento de
um vasto território ainda desconhecido
de enorme interesse, que se formou num
período que a voz corrente assinalava como
de marasmo na literatura”.
Em seguida, em 1978, já de volta ao
Itamaraty e estabelecido em Brasília, Alvim
publicou, ainda de seu próprio bolso e na
coleção marginal, por isso mesmo chamada
“Mão no bolso”, Dia sim dia não, em parceria
com Eudoro Augusto; em 1981, saíram
mais dois livros, por outra coleção marginal
- a “Capricho”: Festa e Lago, montanha. O
momento da publicação por uma grande
editora chegou nesse mesmo ano de 1981,
provocado por um artigo da revista Veja:
a editora Brasiliense reuniu os livros de
Alvim, salvo Dia sim dia não, sob o título de
Passatempo e outros poemas.
Com mais de quarenta anos desde a
publicação do primeiro livro, a obra poética de
Francisco Alvim, que já lhe valeu dois Prêmios
Jabutis e o Paula Brito, coube num único volume
relativamente reduzido1. Sobre a concisão de
sua obra, o poeta diz que “não escrevo de uma
maneira intencional, programada. Sou dos que
acreditam em inspiração. Somente quando estou
trabalhando em um livro, tento manter uma
rotina de mão-de-obra, de dedicação. Por outro
lado, o Itamaraty me tomou muito tempo. Minha
obra é curta, meus poemas são curtos, porque
meu tempo era curto”. Sobre o novo momento
de sua trajetória, após a aposentadoria do
Itamaraty, Alvim evita fazer grandes previsões:
“Não sei, é um novo período de minha vida,
de conteúdo muito especial, que extrapola de
muito o plano do trabalho literário, vamos ver
como me comporto”.
Referências
Ao avaliar o movimento modernista
brasileiro, com o qual se acha profundamente
identificado, a ponto de se considerar um
“modernista tardio”, Alvim referiu-se aos
ALVIM, Francisco. Poemas (1968-2000). São Paulo/ Rio de Janeiro , CosacNaify/ 7 Letras, 2004
_25
_perfil
poetas que mais admira: “Drummond, em
primeiro lugar, pelo lugar que a experiência
pessoal tem em sua poesia, pelo corpo a
corpo que mantém com a realidade e com
a vida; Jorge de Lima, pelos jogos de sombra
nas paredes da caverna; Murilo, pelo que há
de aéreo, de leveza e de humor em toda
luz, pneuma do mundo: é pelo olho que o
homem respira; João Cabral, pelo batuque
dissonante do verso de uma polegada, que
palmilha cada centímetro desta terra, nele
incutindo toneladas de emoção que pretende
escamotear e que nos chega redobrada;
Manuel, pelas assonâncias de um espírito
clássico; Oswald, pela paulista jaula sem
grades, por onde apontam o uirapuru e o
cobra norato”.
Sobre seu próprio processo de composição,
Alvim afirma que o senso de construção do
poema só veio mais tarde em seu percurso
poético. “Era muito mais uma reação como
que epidérmica a uma emoção. Só mais tarde
é qua essa epiderme foi desenvolvendo e
fortalecendo os elementos intelectivos, de
_26
construção, os quais, contudo, nem por isso
estavam fora dela. Minha aspiração máxima,
até onde percebo, não se alterou: é sempre a
mesma, a de despertar nos outros a emoção
que sempre tive ao ler um poema”.
Sobre a “vida dupla” de poeta e diplomata,
Alvim confessa não se sentir em condições
de ser juiz em causa própria. Reconhece que
um diplomata tem de ter certas faculdades:
alguma frieza de percepção (“sem virar uma
geladeira...”), “certo distanciamento, acuidade,
precisão, capacidade de articulação, raciocínio
rápido e preciso”. Além disso, “o diplomata
deve dominar a linguagem, a postura, até
mesmo a postura física e o espaço.Você
precisa ter controle da situação, saber onde
está pisando e, sobretudo, quem, ou o quê,
manda no pedaço. Não é essa certamente a
coreografia de um poeta e a ideia de que dele
o vulgo faz. E o vulgo tem razão”.
Ramiro Breitbach (turma 2008-2010 do IRBr)
é licenciado em Letras (Português e Francês) pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
especial
mundo
lusófono
_27
_especial
in memoria
Embaixador
José Aparecido:
Embaixador Francisco Alvim
C
omo andavam as relações com Portugal, à época em que a
Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) se constituía? Na
verdade, o período era marcado por muitas e graves dificuldades entre
os dois países.
O presidente Itamar Franco certamente tomara em consideração esse
fato, ao deslocar José Aparecido de Oliveira (num primeiro momento, ele
fora nomeado Chanceler) para a chefia de nossa representação em Lisboa.
Tratava-se de indicação muito especial, uma vez que recaíra sobre eminente
político brasileiro, com notável folha de serviços prestada ao país e que,
ademais, desfrutava da amizade e da confiança do Presidente.
_28
_29
b
_especial
Dentre as dificuldades que tolhiam o
relacionamento entre Brasil e Portugal,
sobressaía a questão dos dentistas,
envolvendo a regularização da situação
trabalhista desses profissionais brasileiros
que emigraram para Portugal sob o amparo
do Acordo Cultural firmado entre os dois
países. A questão alcançou ampla repercussão
junto à opinião pública de Portugal e do
Brasil, que acompanhava, com alto teor
emocional, a evolução de um processo de
negociação caracterizado por impasses.
De um lado, os brasileiros interpretavam a
intransigência portuguesa como violadora da
letra do Acordo: sentiam-se atingidos pela
falta de reciprocidade com respeito à postura
acolhedora que o Brasil sempre manteve em
relação ao imigrante português. Do outro
lado, parecia aos portugueses que faltava aos
brasileiros sensibilidade para as questões
derivadas do tamanho reduzido do mercado
de trabalho no setor, em Portugal, que não
permitiria, sem prejuízo para o profissional
português, a prevalência das regras previstas
no histórico Acordo.
Para ilustrar a tensão existente, basta
lembrar que o então Presidente Mário Soares
– no texto que fez divulgar por ocasião de
homenagem prestada ao falecido Embaixador
José Aparecido de Oliveira – chegou a
reconhecer que “a crise dos dentistas
brasileiros ameaçou pôr em causa as relações
diplomáticas luso-brasileiras”.
Havia ainda, naquele período, os frequentes
incidentes com brasileiros que chegavam
a Portugal e eram impedidos de ingressar
no país, sob diferentes pretextos. Esses
incidentes exasperavam o Embaixador
Aparecido de Oliveira, que não relutava em se
expor pessoalmente na tentativa de oferecer
proteção aos brasileiros vítimas daquela
situação, não hesitando em comparecer ao
_30
Aeroporto de Lisboa com o propósito de
reforçar a atuação de nosso Cônsul. Nessas
ocasiões, dentro do clima reinante, a reação
das autoridades policiais portuguesas era a
que se podia prever, mas isso não alterava a
disposição de nosso Embaixador.
Nessa conjuntura especialmente
delicada das relações, o projeto da CPLP
terá surgido, na mente de José Aparecido
de Oliveira, como fórmula redentora: o
núcleo irradiador de uma agenda positiva
entre Brasil e Portugal. O projeto vingou e,
em retrospectiva, pode-se pensar que não
poderia ser de outro modo. No entanto, não
faltaram obstáculos e tropeços. Isso para
não falar de acirradas resistências, a começar
pelo fato de que o Governo conservador
do Primeiro Ministro Cavaco Silva tendia
a considerar a iniciativa brasileira como
uma interferência indébita numa área de
influência portuguesa.
Um episódio circunstancial mostra bem
as dificuldades com que se defrontava o
nosso Embaixador no exercício de suas
atividades, bem como o modo bastante
singular – e eficaz – de que se valia para
superá-las. No cumprimento de uma gestão
oficial, José Aparecido procurou falar por
telefone com um Ministro do Gabinete
português. Depois de sucessivas e infrutíferas
tentativas, o Embaixador acabou por dizer
ao intermediário que o atendia: caso não
recebesse do Ministro uma resposta em
dez minutos, iria apresentar seu pedido de
demissão do cargo de Embaixador do Brasil;
só que não o faria ao Presidente Itamar
Franco, mas ao Presidente Mário Soares.
O fato é que – depois disso – o reticente
Ministro português respondeu à chamada
telefônica dentro do prazo concedido.
Se assim era no dia a dia, Aparecido
contava – em compensação – com alguns
b
aliados poderosos em seus incansáveis
esforços para criar a Comunidade. Em
primeiro lugar, tinha o total apoio do
Presidente Itamar Franco e de seu Chanceler,
o Embaixador Celso Amorim, que em várias
oportunidades se deslocou a Lisboa para
tratar do tema. Paralelamente, o Presidente
Mário Soares era comprovado amigo do
Brasil e amigo pessoal de José Aparecido.
Para ilustrar as afinidades existentes entre os
dois, basta mencionar a inauguração conjunta
que fizeram, nos jardins da Embaixada, de
um busto de Tiradentes, de autoria de Bruno
Giorgi: o simbolismo do gesto ganhava maior
relevo naquele momento particular do
diálogo luso-brasileiro. Finalmente, a favor de
Aparecido jogava o dado objetivo – por assim
dizer estrutural – da vertente atlântica da
própria política externa de Portugal. Nesse
contexto, Mário Soares seria uma peçachave: como estadista que era, sempre se
mostrou sensível aos vínculos históricos de
Lisboa com os países convidados a participar
da Comunidade. O Embaixador soube
valer-se dessa realidade política, de enorme
ressonância no corpo social português.
h
De 1993 a 1995, acompanhei de
perto a criação da CPLP, em companhia
do Embaixador Fernando Reis, então
Subsecretário-Geral de Assuntos Políticos,
de quem fui chefe de gabinete. Em Lisboa,
pude testemunhar o ânimo vigoroso, sem
desfalecimentos, com que José Aparecido,
embora já a essa época bastante fragilizado
em sua saúde, se entregou à tarefa de
constituição da Comunidade. A iniciativa
despertou uma energia prodigiosa entre
os países envolvidos, a que Aparecido
respondeu com energia igual, fazendo com
que essa corrente resultasse em ações que
fortalecessem o propósito de constituição
da Comunidade.
Tornou-se um viajante contumaz entre as
sete capitais, com vistas inclusive a sensibilizar
as sociedades locais e a mobilizá-las para o
projeto da CPLP. Para Aparecido, era mais do
que uma campanha diplomática – era uma
cruzada cívica em nome da língua-mãe. Ele
se desdobrava na promoção de seminários
nas mais diferentes áreas, envolvendo
universidades e instituições científicas e
técnicas; também no setor privado, com
vistas à exploração de oportunidades para
um melhor entrosamento da economia e do
comércio desses países; ou, voltando à esfera
de atuação governamental, na realização
de missões de cooperação, inclusive com a
participação de terceiros países. O âmbito
da cultura mereceu especial atenção por
parte de Aparecido, que de forma entusiástica
promoveu encontros de intelectuais,
escritores e artistas, incentivando, além do
mais a realização de um sem número de
eventos nessa área.
Com tudo isso, o Embaixador em Lisboa
não descuidou do aspecto propriamente
diplomático da operação: articulou sucessivas
reuniões entre os diferentes segmentos dos
Governos dos sete países para negociar a
institucionalização da entidade. Sua atuação
chegou a alcançar o campo da política
externa multilateral, tendo contribuído para a
criação de uma instância informal de consulta
reunindo os países envolvidos nos foros
multilaterais internacionais.
O fato é que a sede da nossa missão
diplomática em Portugal logo se tornou um
centro de convergência para todos os que
estivessem vinculados à causa da CPLP, em
maior ou menor grau. A residência, mais que
a chancelaria, atraía as iniciativas. Todos nos
_31
_especial
Depoimento
O Embaixador José Aparecido foi um homem público de ideias e de ação.
Secretário particular de Jânio Quadros, parlamentar de vibrante atuação,
governador do Distrito Federal, Ministro da Cultura do Governo Sarney,
mentor intelectual da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP),
o legado de José Aparecido ultrapassou os domínios da política e da cultura
nacionais e estendeu-se a todos os povos lusófonos.
Em várias ocasiões pude testemunhar a dimensão do seu prestígio e sua
capacidade de traduzir iniciativas em ação política. Cito aqui duas delas: o
pioneiro encontro entre os Ministros da Cultura dos países da América
Latina e Caribe, que teve lugar em Brasília, em 1989, que vejo como um
remoto, mas promissor, embrião da Cúpula da América Latina e do Caribe
(CALC), realizada em dezembro de 2008, na Costa do Sauípe, por iniciativa
do Presidente Lula; e a primeira cúpula de Chefes de Estado e de Governo
dos países lusófonos, também em 1989, e que teve lugar em São Luís do
Maranhão, a convite do Presidente José Sarney, da qual resultou o Instituto
Internacional de Língua Portuguesa. Como Embaixador do Brasil em
Portugal, José Aparecido batalhou tenazmente para viabilizar a criação de
uma comunidade de países lusófonos, o que viria a acontecer, finalmente, em
1996. A união dos povos de língua portuguesa deve-se, em grande medida, à
visão política deste mineiro de Conceição do Mato Dentro.
Minha própria indicação a Ministro das Relações Exteriores do Governo
Itamar Franco teve, de certa forma, a assinatura do Embaixador José
Aparecido, que, por motivo de doença, não pôde assumir o cargo. Foi uma
imensa satisfação profissional ter trabalhado com o Zé Aparecido e ter
contribuído para a realização de algumas de suas iniciativas. É também razão
de verdadeiro orgulho ter tido um relacionamento tão próximo com este
brasileiro patriótico e idealista, que será sempre lembrado como o “Zé de
todos os amigos”.
Celso Amorim
Ministro das Relações Exteriores
_32
“às vezes os fatos se recusam a acontecer”
tornamos cativos da acolhida carinhosa que
nos fazia a Embaixatriz Leonor Aparecido
de Oliveira, que ali soube criar, em volta das
atividades do marido, um ambiente de bem
estar, descontraído e alegre. Ali se reuniam os
Embaixadores brasileiros nos países da futura
Comunidade, convocados para reuniões
periódicas em Lisboa. Foram muitas também
as ocasiões sociais organizada pelo casal,
com a presença de autoridades de governo,
personalidades, artistas e intelectuais dos
sete países. Nessas oportunidades, Aparecido
atuava como uma espécie de diretor de
cena de quadros vivos, como se já estivesse
compondo o álbum de fotos e de memórias
da nascente irmandade. O entusiasmo do
Embaixador era contagiante.
h
Em 17 de julho de 1996 reuniu-se em
Lisboa a Cimeira de Chefes de Estado de
que resultou a criação da Comunidade
dos Países de Língua Portuguesa, integrada
por Angola, Brasil, Cabo Verde, GuinéBissau, São Tomé e Príncipe e Portugal. José
Aparecido de Oliveira já tinha deixado de
ser nosso Embaixador em Portugal. Nem
por isso lhe faltou o reconhecimento pelo
legado extraordinário que deixara – a
CPLP plenamente constituída. Mas a obra
ainda não estava completa. Em 2002, com a
independência de Timor-Leste, o novo Estado
asiático tornou-se o oitavo membro da
Comunidade de língua portuguesa. Esse era
um desejo sempre acalentado por Aparecido,
que trabalhou para tanto - com a clarividência
que lhe era própria - antes mesmo da
independência daquele país.
Por seu sentido de missão, Aparecido
encantava a quem dele se aproximava. Que
o diga Durão Barroso, então Ministro dos
Negócios Estrangeiros de Portugal. Nas vezes
em que estive presente em reuniões entre os
dois, notei uma curiosa sensação de prazer
que pareciam retirar do árduo trabalho que
junto executavam. Não havia tensão entre
eles, o que tornava o ambiente de trabalho
sempre descontraído e bem humorado.
Não sei se erro em dizer que havia uma
curiosidade de um pelo outro, uma simpatia;
no fundo, dois personagens políticos com
biografias pouco convencionais, donos de
inteligências políticas fortes e originais e que,
ademais, pareciam compartilhar a mesma
consciência da natureza poderosa e singular
das relações que unem Brasil e Portugal.
Lembro-me de uma reunião
particularmente difícil: o Embaixador foi
à Chancelaria portuguesa para comunicar
formalmente o intempestivo cancelamento
da visita oficial – há muito programada
– do Presidente Itamar Franco. Não
era a primeira vez que isso acontecia e
representava um desgaste político no
meticuloso processo de construção da
Comunidade. Naquele dia, como era
natural, José Aparecido se sentia frustrado
e não escondia seu abatimento. Creio que
o Chanceler português viu nisso a sincera
dedicação do homem público. Solidário com
seu interlocutor, Durão Barroso reagiu com
perfeita elegância e tato diplomático.
Depois do encontro, de volta à Embaixada,
Aparecido adotou uma postura que dá bem
a medida de seu temperamento: não se
recolheu. Convocou todos os funcionários e
relatou a reunião na Chancelaria e a decisão
do Presidente Itamar de não realizar a visita
prevista. Ele concluiu suas palavras com um
toque de humor, entre amargo e irônico: “É, às
vezes os fatos se recusam a acontecer”. Talvez
a frase não fosse de sua autoria, mas vinha
bem a propósito.
_33
_especial
O BRASIL E OS ESFORÇOS
PELA SUSTENTABILIDADE
DA PAZ em
GuinéBissau
Marina Moreira Costa
Melina Espeschit Maia
Fotos de Miguel Girão de Sousa
_34
O
engajamento da comunidade internacional
em Guiné-Bissau, um dos países de menor
desenvolvimento relativo do mundo, não tem
impedido que sucessivas ondas de instabilidade
interna dificultem o desenvolvimento do país,
desestabilizem a região e impulsionem o tráfico
internacional de drogas. Desde 2007, a situação
em Guiné-Bissau está na agenda da recémcriada Comissão para a Consolidação da
Paz (CCP), cuja configuração específica
para Guiné-Bissau encontra-se sob a
coordenação do Brasil.
_35
_especial
Guiné-Bissau: um país fadado
à instabilidade?
O assassinato do Presidente João
Bernardo Nino Vieira, em março de 2009, é
só mais um capítulo da turbulenta história
de Guiné-Bissau, marcada por constante
instabilidade política desde 1974, quando
o país conquistou a independência de
Portugal. A ausência de um aparato estatal
estável afeta a capacidade do país de reagir
a uma conjuntura interna caracterizada
pela estagnação econômica, altos índices
de desemprego, pobreza extrema, falta
de intra-estrutura adequada e avanço do
tráfico de drogas. As disputas internas e
a instabilidade política são influenciadas
pelo contexto regional dos países da África
Ocidental, caracterizado por conflitos
entre forças rebeldes e governamentais, e
pela existência no país de setor mailitar
de perfil intervencionista em número
desproporcional à população civil.
A história recente do engajamento
da comunidade internacional em GuinéBissau tem início em 1998, com a guerra
civil desencadeada pela demissão do então
Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas,
General Assumane Mané. O afastamento
do General foi resultado de acusações
de contrabando de armas para rebeldes
senegaleses da região fronteiriça de
Casamança. Na ocasião, tropas do Senegal
e de Guiné atuaram no conflito ao lado
do Presidente Nino Vieira, como parte
de acordos bilaterais de cooperação em
matéria de segurança e defesa. Esse tipo
de ingerência era recorrente nos conflitos
da África Ocidental e denota a influência
dos países francófonos em Guiné-Bissau
naquele momento.
Um novo revés no processo de
estabilização foi provocado pelo Golpe
de Estado de 1999, liderado pelo General
Mané contra o Presidente Vieira, que buscou
_36
exílio em Portugal. Dessa vez,
o Conselho de Segurança
das Nações Unidas (CSNU)
estabeleceu, por força da
resolução 1233 (1999), o
Escritório das Nações Unidas
de Apoio à Consolidação
da Paz em Guiné-Bissau
(UNOGBIS), missão
política responsável pela
coordenação dos esforços
de reconstrução após os
conflitos civis.
A atuação da
Comunidade Econômica
dos Estados da África
Ocidental (CEDEAO)
e da Comunidade
dos Países de Língua
Portuguesa (CPLP) foi
crucial para a cessação
de hostilidades. A
CEDEAO enviou, a
pedido do Presidente
Vieira, a Força de
Interposição da
ECOMOG (Economic
Community of
West African States
Monitoring Group).
A CPLP atuou de
modo ativo para o término
dos conflitos ao promover a assinatura
do Acordo de Abuja, entre o Governo e a
O ex-Presidente Nino Viera chegou ao
poder pela primeira vez em 1980, por meio
de golpe militar, contra Luís Cabral, herói da
independência e fundador do principal partido
do país, o PAIGC - Partido Africano para a
Independência de Guiné-Bissau e Cabo Verde. O
golpe de Estado provocou a separação do PAIGC
de Guiné-Bissau e Cabo Verde.
Local de votação:
eleições presidenciais
em julho de 2009
Auto-Proclamada Junta Militar. A atuação da
CPLP na estabilização de Guiné-Bissau foi
reconhecida como o primeiro grande feito
da então recém-criada Organização.
Em 2000, o Partido da Renovação Social
(PRS) conquistou as eleições presidenciais,
mas o mandato do presidente Koumba
Yalá não chegou ao fim devido a novo
golpe militar em 2003. Mais uma vez, a
coordenação diplomática entre CPLP e
CEDEAO foi responsável pela assinatura
da Carta de Transição Política, que
estabeleceu a organização do Estado até a
realização de eleições.
Uma nova sublevação militar, em 2004,
deu início à trajetória de assassinatos de
_37
_especial
dirigentes de alto nível, com o atentado
contra o Chefe do Estado-Maior das
Forças Armadas, General Veríssimo Correia
Seabra, substituído pelo General Tagme
Na Waie (que também seria assassinado,
em março de 2009). No ano seguinte,
eleições presidenciais conferiram vitória
preceitos constitucionais, com a morte
ou afastamento do Presidente da República,
o Presidente da Assembleia Nacional
Popular assume o cargo de Presidente
interino, até a realização de eleições
presidenciais antecipadas.
Em julho de 2009, Malan Bacai, do PAIGC,
foi eleito no segundo turno
com 63,3% dos votos válidos,
O Brasil conjuga o diferencial linguístico
regularizando o quadro jurídicocom o aporte de um modelo de cooperação institucional. Contudo, a
debilidade institucional do país,
Sul-Sul que tem se mostrado efetivo em
em particular no tocante ao
papel das forças de segurança,
diversas partes do globo.
torna premente a necessidade
de envolvimento da comunidade
ao Presidente Nino Vieira, que já havia
internacional para a superação dos problemas
presidido o país de 1980 a 1998. Seu
estruturais de Guiné-Bissau.
governo foi caracterizado por sucessivas
Como a instabilidade política é reflexo,
tentativas de golpes, uma tentativa de
principalmente, do distanciamento
assassinato e eleições legislativas bemcrescente entre os anseios das forças
sucedidas, realizadas em novembro de
armadas e as aspirações da população
2008. Essas eleições contaram com o apoio
civil, a reforma do setor de segurança
de missões de observação eleitoral da
afigura-se como peça-chave no processo
CPLP, da União Africana (UA), da CEDEAO,
de consolidação da paz. Em abril de 2009,
da União Econômica e Monetária do Oeste
o governo de Cabo Verde, juntamente com
Africano (UEMOA) e da União Europeia
a CPLP, a CEDEAO e a UNOGBIS, sediou
(UE), o que demonstra a importância
mesa redonda sobre o tema. A preferência
conferida às eleições para a consecução
por realizar evento em outro país lusófono
de estabilidade no país. O Brasil também
(o Senegal também havia proposto sediar
enviou auxílio técnico e financeiro para a
conferência internacional sobre Guinérealização das eleições.
Bissau), é sinal da importância crescente da
Os assassinatos, no primeiro semestre
lusofonia como elemento de concertação
de 2009, do Presidente Nino Vieira, do
política, capaz de influir nos processos de
Chefe de Estado-Maior, Tagme Na Waie, do
consolidação da paz .
ex-Ministro da Defesa, Helder Proença e do
candidato às eleições presidenciais, Baciro
Dabó, lançam dúvidas sobre a eficácia dos
A Comissão para a Consolidação
projetos de estabilização em curso no país.
da Paz: solução pós-conflito?
Por não configurarem golpes de Estado, os
magnicídios não levam ao afastamento do
À época da criação da Organização
país da União Africana (como nos casos de
das Nações Unidas, certamente não era
Guiné e Madagascar, excluídos em 2008)
previsível que o CSNU fosse envolver-se
ou a mudanças significativas nas ações
cada vez mais em processos de manutenção
das Nações Unidas. De acordo com os
da paz em países de todas as regiões do
_38
mundo. Principalmente, não se esperava
que casos de conflitos civis e internos,
com causas profundas muito mais
complexas que disputas territoriais entre
Estados soberanos, dominariam a agenda
do órgão responsável pela manutenção
da paz e segurança internacionais. O
CSNU teria agora que ocupar-se da árdua
tarefa de manter a paz e garantir sua
sustentabilidade nos Estados emergentes
de conflitos.
As próprias operações de manutenção
da paz, que se tornaram o grande
empreendimento da Organização após os
anos de 1960, foram criadas a partir de
uma lacuna na Carta das Nações Unidas,
ou o Capítulo “VI e 1/2”, como dizia o
então Secretário-Geral da Organização,
Dag Hammarskjöld (1953-1961). Uma vez
O conceito de peacebuilding, traduzido
literalmente como “construção da paz”, seria
mais bem traduzido para o português como
“consolidação da paz”, porque assim consta em
francês e em espanhol, e porque “construção”
pressupõe formar alguma coisa onde nada havia
- ao passo que a ideia de peacebuilding é dar
continuidade a algo que teve início em etapa
anterior.Santos Neves, G. “O Brasil e a Criação
da Comissão para a Consolidação da Paz”. Em O
Brasil e a ONU, Brasília: FUNAG, 2008, p. 85.
instauradas, prolongavam-se por muitos
anos (como ainda ocorre no Chipre, Saara
Ocidental e Líbano, entre outros), com os
países contribuintes de tropas forçando sua
retirada, e a ONU encontrando grandes
dificuldades para deixar regiões em risco de
conflito iminente. O que fazer a partir daí?
Já no processo de “repensar” ou
“reformar” as Nações Unidas, o então
Secretário-Geral Boutros-Ghali (19921997) apresentou, em 1992, em seu
Composição do Comitê Organizacional da
CCP: total de 31 membros, dentre os quais 7
membros do CSNU, incluídos os P-5, 7 membros
oriundos dos grupos regionais do ECOSOC, 5
maiores contribuintes financeiros, 5 maiores
contribuintes de tropas e 7 membros eleitos pela
Assembleia Geral.
relatório “Uma Agenda para a Paz”, o
conceito de “consolidação da paz pósconflito”, conjugando os conceitos de
operações de manutenção da paz e de
consolidação da paz. Surgiu daí um conceito
emanado da necessidade de preencher a
lacuna existente no sistema ONU entre
a manutenção da paz e a auto-suficiência
de governos nacionais em manter a
estabilidade interna.
Em 2000, o entendimento de que era
necessário suprir prontamente essa lacuna
ganhou impulso com o Relatório Brahimi,
que resultou das reuniões do Grupo de
Alto Nível formado pelo então SecretárioGeral Kofi Annan (1997-2007) para
discutir questões na área de operações de
paz. O Relatório suscitou a proposta de
estabelecimento de “capacidade institucional
permanente nas Nações Unidas para a
consolidação pós-conflito”. Em 2004, um
novo relatório, o do “Painel de Alto Nível”,
também reunido por Kofi Annan, em 2003,
lançou a ideia de criação da Comissão para a
Consolidação da Paz (CCP).
O passo seguinte na criação da CCP
veio com a publicação do relatório “Por
uma Liberdade Mais Ampla: Desenvolvimento,
Segurança e Direitos Humanos para Todos”,
em 2005, em que Kofi Annan expressou
diretamente a recomendação de criação
de órgão para suprir a lacuna institucional
decorrente da falta de tratamento
consistente das Nações Unidas aos países
recém-egressos de conflitos armados.
_39
_especial
Comemoração do
36º aniversário da
independência de
Guiné-Bissau
_40
As negociações para a efetiva
criação da CCP foram impulsionadas
pela Reunião de Cúpula da AGNU de
2005, ano em que se comemoraram
os 60 anos da ONU. A Cúpula de
2005, que serviria para analisar os
resultados obtidos desde a Cúpula
do Milênio na implementação das
Metas de Desenvolvimento do
Milênio, acabou tratando de ampla
agenda, inclusive da reforma das
Nações Unidas. A criação da CCP e
do Conselho de Direitos Humanos
foram as decisões mais importantes
adotadas pelos Chefes de Estado
durante a Cúpula.
As negociações para definir os
parâmetros de implementação e
funcionamento da CCP foram,
no entanto, contenciosas. Os
desacordos se concentravam na
definição: i) das competências
da CCP para trabalhar com
prevenção de conflitos; ii)
da composição da CCP; e
principalmente, iii) do órgão da
ONU ao qual a CCP deveria
reportar-se - o CSNU, a AGNU,
o Conselho Econômico e Social
(ECOSOC) ou uma combinação
desses órgãos. Kofi Annan
defendia, como o Brasil, que a
Comissão deveria reportarse ao CSNU e ao ECOSOC,
enquanto os membros
permanentes do Conselho
de Segurança e a maioria dos
países ocidentais defendiam
arduamente a subordinação
unicamente ao CSNU
(segundo eles, de acordo com
o artigo 29 da Carta da ONU).
O embate se prolongou a ponto de não
se conseguir acordar, a tempo da Plenária
de Alto Nível, como seria o funcionamento
A maior parte do trabalho da Comissão
é conduzida pelas Configurações Específicas
para cada país da agenda, composta por países
da região engajados em consolidação da paz,
organizações regionais e sub-regionais relevantes,
principais contribuintes financeiros e de pessoal
para a missão de paz, instituições financeiras e
representantes do governo em consideração.
do novo órgão. No último momento, a
delegação britânica apresentou um harvest
text em que assuntos polêmicos foram
deixados em aberto. As negociações se
prolongaram nos três meses seguintes,
até que, em 20 de dezembro de 2005, a
Resolução A/RES/60/180 da AGNU e a
Resolução 1645 do CSNU estabeleceram
formalmente a Comissão, com o objetivo
premente de impedir que países retornem
ao estado de guerra após o término do
mandato de missões de manutenção da
paz da ONU. Foi acordado que a CCP se
reportaria tanto ao CSNU quanto à AGNU
e foi estabelecido um complexo sistema
de eleição de membros para o Comitê
Organizacional da CCP.
O Brasil sempre ressaltou a importância
do desenvolvimento nas negociações sobre
operações de paz e defendeu a inclusão de
atividades voltadas à inclusão social e ao fim
da pobreza nos mandatos das operações de
paz. Esteve, assim, firmemente engajado na
criação da CCP.
Como os países latino-americanos
inicialmente não se engajaram nas
negociações para a criação da CCP, o
Brasil viu-se muitas vezes compelido, como
lembra a Conselheira Gilda Motta Santos
Neves (SANTOS NEVES, p. 92), a se juntar
a países de outras tradições diplomáticas,
como Irã, Egito, Paquistão, Argélia e Cuba.
Nas negociações, o Brasil concentrou-se
em garantir que a CCP tivesse suficiente
autonomia e não fosse um órgão subsidiário
_41
_especial
do CSNU. Outra preocupação brasileira foi
garantir que os países em desenvolvimento,
principalmente da América Latina e Caribe,
fossem representados de forma equilibrada
no novo órgão.
O Brasil não logrou, no entanto, que o
Fundo para a Consolidação da Paz fosse
diretamente subordinado à Comissão. Seu
estabelecimento foi negociado por grupo
restrito de doadores e resultou em uma
modalidade anacrônica de atuação, em
que a CCP não goza de autoridade prática
sobre o Fundo. Não se resolveu, portanto,
um dos maiores problemas para o avanço
de uma agenda pró-desenvolvimento nas
Nações Unidas. A constituição do Fundo
de Consolidação da Paz é ilustrativa das
contradições do sistema ONU, em que os
P-5 e países europeus resistem em ampliar no
tempo as operações de paz.
O Brasil e a Configuração
Específica para Guiné-Bissau
A situação de Guiné-Bissau ingressou na
agenda do Conselho de Segurança no biênio
1998-1999, quando o Brasil ocupava assento
não-permanente. Em julho de 2007, GuinéBissau solicitou ao Conselho de Segurança a
inclusão do país na agenda da Comissão de
Consolidação da Paz. Em 19 de dezembro
de 2007, a CCP incluiu Guiné-Bissau em sua
agenda e elegeu o Brasil como coordenador
da Configuração Específica para a GuinéBissau (CCP-GB).
Ao assumir a posição de coordenador
da CCP-GB, o Brasil ressaltou os estreitos
vínculos culturais, sociais e políticos que
unem os dois países, reforçando a política
brasileira de fortalecimento do mundo
lusófono. Como afirmou a Embaixadora
Maria Luiza Viotti, coordernadora da
Configuração Específica para Guiné-Bissau
da CCP: “Fortes laços unem nossas duas
_42
nações. O compromisso brasileiro é de
trabalhar ativamente com os membros
da Comissão com vistas a promover o
desenvolvimento guineense, conforme as
prioridades a serem estabelecidas pelo
Governo daquele país.” O Representante
Permanente de Guiné-Bissau junto às
Nações Unidas corroborou essa afirmação
ao declarar que “o Brasil, em função de seus
laços históricos, culturais, linguísticos e de
amizade, tem a sensibilidade necessária para
compreender os problemas e aspirações do
povo bissau-guineense.”
O CSNU requisitou à CCP a análise da
situação em Guiné-Bissau em três esferas:
reforma na administração pública e no setor
de segurança, fortalecimento do Estado
de Direito e combate ao narcotráfico. Os
trabalhos da Configuração Específica tiveram
início em janeiro de 2008, com a realização
da primeira reunião e da visita de campo
a Bissau, chefiada pela Embaixadora Maria
Luiza Viotti, coordenadora da Configuração.
Fortaleceu-se o entendimento de que a
reforma do setor de segurança (security
sector reform - SSR) seria prioritário, devido
à intrínseca relação com a instabilidade
política que impedia a consolidação de um
Estado capaz de encaminhar efetivamente os
problemas do país.
Encontros formais da Configuração
vêm ocorrendo em bases quase mensais
e, em fevereiro de 2008, a Comissão
recomendou ao SGNU a elegibilidade de
Guiné-Bissau ao Fundo da CCP. Ao Grupo
Piloto, copresidido por representante do
SGNU no país e autoridade designada pelo
governo, foi atribuída responsabilidade
pela análise e aprovação final dos projetos
com orçamento do fundo. Os projetos
aprovados abrangem áreas relativas à
realização de eleições, emprego para
jovens, reabilitação de prisões e de
quartéis militares. A Estratégia Integrada
para Consolidação da Paz foi adotada em
outubro de 2008 para guiar os trabalhos
da Comissão e inclui como prioridades
o fortalecimento do Estado de Direito, a
geração de riqueza, a modernização do
sistema de administração pública e, mais
uma vez, a reforma do setor de segurança.
Para fazer frente ao tema, o governo de
Guiné-Bissau elaborou um plano nacional
para reforma do setor. A União Europeia
atua na reforma do setor de segurança
por meio de uma missão civil-militar, com
fundos da Política Europeia de Segurança
e Defesa (PESD). O tema voltou a ganhar
visibilidade com a realização de mesa
redonda, em 20 de abril de 2009, em
Praia, Cabo Verde. A mesa redonda foi
organizada pela CPLP em conjunto com
a CEDEAO e o UNOGBIS, fazendo
prova do envolvimento dos países
lusófonos na consecução de estabilidade
no país. A CCP, contudo, não foi incluída
no documento de base da reunião,
suscitando questionamento em relação
aos aportes concretos da configuração,
mais de um ano após seu estabelecimento.
Cumpre ressaltar que, embora a CCP
tenha sido representada na reunião pela
Coordenadora da Configuração, a sua
desconsideração pela documento de base
pode ser sintomático dos parcos ganhos
conquistados por Guiné- Bissau desde a
inclusão do país na agenda da CCP.
Apesar de a própria Guiné-Bissau
apontar a reforma do setor de segurança
como prioridade do país, a atenção
da CCP ao tema reflete, em parte, as
preocupações de nações desenvolvidas, que
temem que a CCP se transforme em uma
agência de desenvolvimento, priorizando
temas relacionados à estabilidade política
e reforma institucional. Além disso,
Guiné-Bissau é considerada estratégica
para a segurança na África Ocidenal
e a estabilidade no país diminuiria os
efeitos das redes de crime organizado,
principalmente em países desenvolvidos.
A fim de contornar esse impasse, o Brasil
busca promover a CCP como agente
facilitador para aumento da base de
doadores e mobilizador da comunidade
internacional a favor do país.
Assim como sua atuação no Haiti, a
estratégia brasileira na Comissão está
calcada em duas vias principais, combinando
estratégias de médio e longo prazo com
adoção de projetos de curto prazo que
possam ter impacto imediato para a
população. Ademais, o estabelecimento
de prioridades está a cargo das próprias
Cooperação Sul-Sul: segundo dados da Agência
Brasileira de Cooperação (ABC), o Brasil presta
cooperação técnica a Guiné-Bissau em diversos
projetos, incluindo projetos nas áreas agrícolas
(centro de promoção de exportações de caju),
militar e educacional (formação técnica).
autoridades bissau-guineenses. A adequação
dos projetos de cooperação essas
prioridades demonstra o compromisso
do Brasil com o conceito de apropriação
nacional por parte de Guiné-Bissau no seu
processo de consolidação da paz. O Brasil
também tem estimulado o envolvimento
do país com instituições financeiras
multilaterais, defendendo tratamento
diferenciado para Guiné-Bissau, devido às
suas características de país em processo de
consolidação da paz.
O Brasil constituiu-se como agente
mobilizador de recursos da comunidade
internacional, com o intuito de avançar
abordagem equilibrada para dar mais
sustentabilidade à paz, integrando as
dimensões sociais e econômicas no processo
de reconstrução, com efetiva integração das
vertentes de segurança e desenvolvimento.
Esse último ponto relaciona-se ao
_43
_especial
favorecimento recente do Brasil da modalidade
de cooperação Sul-Sul, em que a própria
experiência como nação em desenvolvimento
pode gerar contribuições específicas para a
reconstrução de Guiné-Bissau.
Os trabalhos da CCP em Guiné-Bissau
são restringidos pela insuficiência de recursos
orçamentários dedicados a programas de
desmobilização, reabilitação e reintegração
social de combatentes, e ilustra uma das
maiores falhas do pacote institucional da CCP.
Ao não conferir à CCP autoridade prática
sobre o Fundo, não se resolveu um dos
maiores problemas para o avanço de uma
agenda pró-desenvolvimento nas Nações
Unidas: a existência de recursos financeiros
prontamente disponíveis para a execução de
projetos de construção pós-conflito.
A aprovação da Resolução 1876 (2009)
pelo Conselho de Segurança traz novo
alento ao tratamento de Guiné-Bissau pelas
Nações Unidas. Decidiu-se pela criação de
um Escritório Integrado para Consolidação
da Paz (UNIOGBIS), a partir de janeiro de
2010, com o objetivo de assegurar maior
coordenação entre as diversas instituições no
terreno. O mandato do UNIOGBIS referese, ademais, ao seu papel de auxiliar a CCP
nos trabalhos relativos à consolidação da paz,
fortalecendo a atuação do novo órgão. Além
disso, a participação do Brasil como membro
não-permanente do CSNU no biênio 20102011 permitirá incrementar o tratamento
dado à Guiné-Bissau no Conselho.
Conclusão
“O princípio da não-intervenção nos
assuntos externos dos outros Estados
sempre orientou a política exterior
do Brasil. Mas este princípio deve
ser matizado pela ‘não-indiferença’;
isto é, a disposição de colaborar, por
meio de canais legítimos, com outros
_44
Desfile militar:
36º aniversário
da independência
nacional
_45
_especial
condições de vida dos militares, vislumbrada
em propostas como a criação de um fundo de
pensão para militares desmobilizados, deve ser
conjugada à reintegração à vida civil de excombatentes. A estagnação econômica, por seu
turno, impede geração de renda e faz com que
o Estado continue sendo uma das únicas fontes
A liderança brasileira em Guiné-Bissau
de subsistência no país.
associa-se a pelo menos duas diretrizes
O papel desempenhado pelos laços
importantes da política externa brasileira:
históricos e culturais comuns, consubstanciado
na ideia de lusofonia, é crucial
para a compreensão da atuação
Talvez este tenha sido o principal aporte
brasileira na questão de GuinéBissau. A confirmação do
concreto da Configuração da CCP: dar
Brasil como Coordenador da
Configuração Específica da CCP
visibilidade aos problemas bissaufoi saudada por diferenciar-se do
guineenses e mobilizar a comunidade
perfil tradicional de país doador
com pouca experiência prática nos
internacional nos esforços para
desafios enfrentados por países
em desenvolvimento. O Brasil
consolidação da paz.
conjuga, portanto, o diferencial
linguístico com o aporte de um
a aproximação com os países de língua
modelo de cooperação Sul-Sul que tem se
portuguesa e a ideia da não-indiferença.
mostrado efetivo em diversas partes do globo.
Faz parte da construção de um perfil
Ainda é muito cedo para avaliar a
diplomático baseado no princípio da
contribuição real da CCP e da liderança
solidariedade internacional ativa, que vem
brasileira para a consolidação da paz em
se firmando por meio de uma extensa
Guiné-Bissau. Não há dúvidas de que o país
agenda de cooperação Sul-Sul e da chamada
se afigura como tema central na agenda
de atenção em foros multilaterais como
brasileira e, talvez, este tenha sido o principal
o ECOSOC, a CPLP e o CSNU, para a
aporte concreto da Configuração da CCP: dar
necessidade de se conjugarem estratégias
visibilidade aos problemas bissau-guineenses
de promoção do desenvolvimento (combate
e mobilizar a comunidade internacional nos
à pobreza e à exclusão social) com as
esforços para consolidação da paz.
atividades tradicionais de manutenção da paz.
Nas discussões sobre a consolidação
Marina Moreira Costa (turma 2008-2010 do
da paz em Guiné-Bissau, o Brasil considera
IRBr) é bacharel em Relações Internacionais pela
de particular relevância a superação dos
Universidade de Brasília e mestre em Development
obstáculos estruturais e das condições
Studies pela Universidade Sophia (Japão).
econômicas precárias, fortemente ligadas
Melina Espeschit Maia (turma 2006-2008
à situação de segurança. Defende, assim,
do IRBr) é bacharel em Relações Internacionais
que somente uma política conjugada entre
pela Universidade de Brasília e mestre em Direito
desenvolvimento e segurança será efetiva para
Internacional Público pela Universidade de
superar as mazelas do país. A melhora nas
Nottingham (Inglaterra).
países que se encontram em situações
particularmente difíceis.”
Embaixador Celso Amorim, Ministro
das Relações Exteriores, em palestra
proferida na Conferência Anual dos
Embaixadores Franceses (Agosto, 2009)
_46
Depoimento
Viver na Guiné-Bissau
Sinto-me um verdadeiro privilegiado pela
oportunidade de viver na Guiné-Bissau. As
sensações são únicas e difíceis de descrever. Ter
uma experiência de vida no estrangeiro sempre
foi um dos meus desejos e logo tive a sorte
de que isso fosse possível num país africano
tão especial e com tantas ligações históricas
a Portugal. Quando me convidaram só podia
aceitar o desafio.
Encontro-me aqui a trabalhar para a União
Européia desde Abril de 2008 e são raros
os dias em que não sinto ter aprendido um
pouco mais com a gente deste país. Como
não deve ser difícil de perceber, adaptei-me
rapidamente, e é com enorme prazer que aqui
estou. O facto de já conhecer o país de viagens
anteriores, fruto do meu trabalho na cooperação
portuguesa, contribuiu também para uma
melhor e rápida integração.
O país é muito pobre, e atravessa dificuldades
enormes a todos os níveis, sobretudo no que
respeita às condições de saúde e educação. É
também conhecida a sua instabilidade política
e militar e, se bem que aos poucos a situação
parece estar a melhorar, o caminho a percorrer é
ainda muito longo.
No entanto, quem aqui trabalha para uma
organização internacional ou representação
diplomática consegue facilmente ter uma vida
agradável. No fundo tudo depende um pouco
de cada pessoa. Há quem goste muito de viver
aqui e que se adapte facilmente às dificuldades e
outros que estão sempre a contar os dias para a
próxima ida a casa ou para as férias. Não há luxo,
mas com mais ou menos esforço conseguimos
encontrar o essencial, bem como aquilo a que nos
fomos habituando nos nossos países de origem,
nomeadamente ao nível de alimentos.
A comunidade internacional não é grande
mas suficiente para se fazerem amizades e se
organizarem programas comuns. Estar ocupado
e ter uma vida activa é fundamental.Tem
muito a ver com nossa maneira de ser e com a
necessidade de manter a cabeça saudável. Para
além da ocupação normal resultante do trabalho,
aqueles que gostam de fazer desporto tem a sua
vida facilitada, pois a oferta é variada. Facilmente
se encontram grupos ou parceiros para jogar
futebol, tênis, voleibol, ir ao ginásio, correr ou
nadar e por isso acaba por não ser difícil evitar
os tempos mortos. Às vezes o mal está mesmo
em ter muito tempo sem nada para fazer e
começar a pensar demais.
A Guiné-Bissau, ao contrário de outros
países em África, é muito pacífica, a população
é amável e acolhedora, não implicam com os
estrangeiros e em geral somos sempre muito
bem tratados. No que toca às mulheres, Bissau e
o país em geral são excelentes se compararmos
com outras capitais africanas, pois aqui uma
mulher pode andar livremente nas ruas sem
ser incomodada e sempre sem preocupações
de segurança. Talvez uma das grandes lacunas,
para quem está habituado a outro estilo de vida,
seja a falta de oferta cultural, pois raramente
se organizam eventos relevantes. Neste campo
será de elogiar as Embaixadas de França e do
Brasil pelo seu constante esforço em dinamizar
a área. Outros deveriam seguir o exemplo. Em
Bissau não existem salas de cinema ou
de teatro e os concertos são esporádicos.
Também as lojas são muito raras e os centros
comerciais inexistentes, a solução pode ser uma
ida ao mercado local… Existem, no entanto,
inúmeras vantagens também e conhecer os
Bijagós, arquipélago junto à costa, é uma delas.
Descansar numa ilha deserta, aproveitar a sua
beleza natural, visitar as tartarugas ou comer
o que acabamos de pescar, são realidades
possíveis aqui.
Apesar de todos os problemas e lacunas
existentes no país, os guineenses são positivos
e têm esperança num futuro diferente. Sabem
sempre agradecer com gestos simpáticos e
sorrisos aquilo que recebem e, ao contrário do
que seria de pensar, não se queixam muito. Esta
tão grande simplicidade do povo conquista-nos
e demonstra bem o seu carácter. A Guiné-Bissau
não é o fim do mundo que muitos pintam.
Felizmente a realidade é bem diferente.
Miguel Girão de Sousa é português e
assessor político na Missão para Reforma do Setor
de Segurança da União Europeia em Guiné-Bissau.
_47
_especial
gilberto
freyre
e o Lusotropicalismo:
passado,
presente e
Futuro
Rafael Rodrigues Paulino
“Se me perguntarem quem sou, direi que não sei classificar-me. Não sei definir-me. Sei que
sou um eu muito consciente de si próprio. Mas esse eu não é um só. Esse eu é um conjunto de
eus. Uns que se harmonizam, outros que se contradizem. Por exemplo, eu sou, numas coisas,
muito conservador e, noutras, muito revolucionário. Eu sou um sensual e sou um místico. Eu sou
um indivíduo muito voltado para o passado, muito interessado no presente e muito preocupado
com o futuro. Não sei qual dessas preocupações é maior em mim. Mas todas elas como que
coexistem e até me levaram a conceber uma ideia de tempo, porventura nova: a do
tempo tríbio. A de que o tempo nunca é só passado nem só presente nem só futuro,
mas os três simultaneamente. Vivo nesses três tempos simultaneamente. Sou um brasileiro
de Pernambuco. Gosto muito da minha província. Sou sedentário e ao mesmo tempo nômade.
Gosto da rotina e gosto da aventura. Gosto dos meus chinelos e gosto de viajar. Meu nome é
Gilberto Freyre.”
em entrevista à TV Cultura de São Paulo.
_48
Vila de Ipojuca, Frans Post, 1640
Introdução
P
ara os que, em algum tempo, já se
interessaram pelo estudo do Brasil, sua gente
e sua cultura, o nome de Gilberto Freyre
dispensa qualquer tipo de apresentação
– tanto para o bem como para o mal. Dono
de uma extensa obra, que abrange desde
a sociologia à historiografia, Freyre logrou
abordar, por diversos ângulos, um mesmo
objeto de estudo: seu próprio país. Um tanto
narcisisticamente, Freyre parecia identificar-se
com seu tema, que de alguma forma, era sua
musa. Fez dele a tradução de um estilo de
vida, de um sistema valorativo, enfim, de um
ideal, muitas vezes afastando-se da realidade
em prol de um dever-ser normativo. Por esta
e outras razões, tornou-se polêmico.
Nas primeiras linhas de “Gilberto Freyre
e a singularidade cultural brasileira”, Jessé
Souza qualifica o mestre de Apipucos
como “talvez o mais complexo, difícil e
contraditório de nossos grandes pensadores”.
Essa afirmação pode ser ao mesmo tempo
puramente verdadeira ou terrivelmente
falsa, dependendo de como se entendam os
adjetivos nela contidos. Freyre é complexo,
mas não por excesso de erudição ou pelo
uso corrente de conceitos só entendidos
pelos iniciados. Ao contrário, seu estilo é
definitivamente coloquial, um tanto literário
e oral, e é, ao mesmo tempo, friamente
factual e científico, e subjetivamente afetivo.
É tanto que o próprio autor sempre se
apresentou como escritor e ensaísta, e nunca
como antropólogo, sociólogo ou historiador.
As narrativas de Freyre, sempre cheias de
digressões e caminhos sinuosos, quase nunca
escapam ao tema, ao contrário, o enriquecem
com percepções dos cinco sentidos, como
sabores, cheiros, cores, texturas. Muitas vezes
notamos o apelo ao emocional nas descrições
de casos e situações, o que nos diz que
Freyre era, de fato, um cientista social muito
diferente. Sem afastar-se do rigor das fontes,
ele conseguiu estabelecer um diálogo entre
situações passadas, presentes e futuras
em uma mesma narrativa, que
para seus admiradores durou
todos os oitenta e sete anos
de sua vida.
O presente ensaio tem
a intenção de sublinhar
alguns poucos excertos da
principal tese de Freyre –
o Lusotropicalismo – e sua
interlocução com as três
dimensões do tempo. Essa,
aliás, é uma inovação única ao
autor: a do tempo tridimensional,
que se desdobra e se articula em
fatos históricos e cenas cotidianas.
Mais especificamente, pretendemos
trazê-lo para os domínios da política
_49
_especial
exterior e da diplomacia, assunto que de
forma alguma foi ignorado em sua prolífica
carreira como ensaísta.
Passado
Contextualizar o autor, no caso em
tela, é absolutamente necessário para
compreendermos o conteúdo de sua obra –
ainda que sua vida pessoal, por ser tão cheia
de ricos detalhes e passagens interessantes,
mereçam um trabalho à parte. O essencial,
para nosso estudo, é saber que, nascido no
Recife em 15 de março de 1900 e morto
na mesma cidade em 18 de julho de 1987 ,
Gilberto de Mello Freyre era filho do juiz
de direito Alfredo Freyre, de uma família
da tradicional aristocracia pernambucana.
A influência da academia norte-americana
sempre foi muito significativa: fez o colegial
no Colégio Americano Batista do Recife, e a
graduação na Universidade Baylor, no Texas.
Fez mestrado e doutorado na prestigiada
Universidade Columbia, onde foi orientado
por ninguém menos que Franz Boas, um
dos pais da antropologia moderna. Sua tese
Brazilian social life in the middle of the 19th
century, defendida em 1922, é o embrião de
sua primeira e mais importante obra, Casa
Grande & Senzala (1933), em que o autor
descreve a formação da família brasileira
sob o regime de economia patriarcal de
1500 a 1900, e que segue sendo sua obra
mais publicada e traduzida no exterior,
senão uma das mais importantes obras
brasileiras de todos os tempos.
“Ninguém aqui sabia o que era
mestrado, coisa típica dos países anglosaxões. Não vingava nem na Europa
continental, embora lá o reconhecessem
como equivalente ao doutorado em
ciências do homem ou em letras. Mas
no Brasil de 1923, quando cheguei,
não havia ainda nenhuma noção
_50
do que fosse universidade. Sempre
me perguntavam: ‘Formou-se em
direito?’ Eu dizia não. ‘Formou-se em
engenharia?’ Não. ‘Formou-se em
medicina?’ Não. ‘Mas, então, que diabo
você fez com o dinheiro do seu pai
no estrangeiro?’ Eu não tinha a menor
vontade de explicar nada: ‘fiz umas
bobagens, estudei umas coisas...’ No
terreno da antropologia, só existia a
antropologia física. Tudo isso concorreu
para que eu vivesse uma fase de
‘monstro’ rejeitado e ignorado”.
Entrevista a Gilberto Velho (Museu
Nacional e UFRJ), César Benjamin
e Cilene Vieira Areias, publicada em
Ciência Hoje, maio de 1985.
Após uma longa temporada no exterior,
retornou ao Brasil após a defesa de sua
tese, em 1923, escolhendo não estabelecerse nas metrópoles do sudeste, senão em
sua terra natal, o Recife. A cena intelectual
brasileira fervilhava naqueles dias de Semana
de Arte Moderna, mas Freyre não era um
modernista. Ao contrário, considerava aquele
“pseudo-cosmopolitismo” nocivo à cultura
brasileira. Articulou então, com intelectuais de
várias partes do país, o primeiro Congresso
Brasileiro de Regionalismo, do qual resultou a
publicação do Manifesto Regionalista de 1926.
Remontam a essa época as primeiras
críticas ideológicas ao trabalho de Freyre,
críticas essas que não deixavam de ter
uma motivação partidária, uma vez que,
em 1927, tornou-se chefe de gabinete do
então governador de Pernambuco, Estácio
Coimbra, permanecendo até sua destituição
pela Revolução de 1930. Embarcou então,
com o governador, para um exílio de quatro
anos em Lisboa, retornando com a anistia
de 1934. Eleito Deputado Constituinte pela
UDN em 1946, foi autor do projeto que criou
o Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas
Sociais, hoje Fundação Joaquim Nabuco, um
dos poucos órgãos federais de pesquisa em
ciências sociais fora do centro-sul do país.
Sua colaboração com a imprensa também
foi notória, dirigindo os maiores e mais
tradicionais periódicos do Recife, o Diário de
Pernambuco e A Província, sendo também um
dos principais colaboradores da revista de
maior circulação nacional de seu tempo, o
semanário O Cruzeiro, de cujos artigos vêm
boa parte das referências desse trabalho.
Teve uma vida editorial excepcionalmente
prolífica, sendo autor de quase setenta
obras, descontadas as coletâneas – o que
alcança, em média, um livro novo por ano
de produção. Boa parte delas tornaram-se
sucessos de vendas, bem como referências
acadêmicas e científicas. A trilogia Casa
Grande & Senzala (1933), Sobrados e
Mucambos (1936) e Ordem e Progresso (1959)
é, segundo muitos comentadores, o que
há de mais essencial em sua obra, sendo
em grande medida complementares em
termos de períodos históricos abordados.
À parte os inúmeros prêmios literários
e dos título de Doutor Honoris Causa de
diversas universidades, recebeu também, da
Rainha Elizabeth II, o título de Cavaleiro do
Império Britânico, sendo portanto um Sir.
Foi reconhecido também como referência
mundial nas ciências sociais por acadêmicos
do calibre de Roland Barthes e Fernand
Braudel, dentre muitos outros scholars de
renome. Sobre a grafia de seu nome, o
respeito ao desejo do autor:
“Não falta, porém (...) a cortesia de
grafar o nome do modesto autor como
deve ser grafado. O que já é muito em
jornal do Rio com relação ao pobre
do provinciano que insiste no y do
seu nome com o mesmo direito que o
eminente Chanceler San Thiago Dantas
no San (e não São) do seu San Thiago.”1
1 FREYRE, Gilberto. “A
Presente
Mesmo falecido há 22 anos, faz-se
apropriado dissertar sobre o pensamento de
Gilberto Freyre nesta seção do ensaio. É uma
maneira singela de homenagear o tema deste
trabalho e, mais uma vez, chamar a atenção
para a questão do tempo.
Um de seus principais pressupostos era a
tese, revolucionária no início do século XX, de
que não há raças biologicamente inferiores, e
que não há relação necessária entre a pobreza
e a raça – na verdade, o autor contestava
a própria existência da categoria “raça” no
sentido de então, utilizando-a, na maioria de
seus artigos, apositivamente. Desnecessário é
frisar a importância desse tipo de reflexão em
um Brasil às voltas com o debate sobre cotas
raciais nas universidades, em uma das muitas
possíveis articulações de seu pensamento
com o tempo presente. Freyre, como seu
mestre Franz Boas, nega o determinismo racial
e geográfico, conferindo ênfase à cultura e
desprezando a leitura pseudo-evolucionista de
conceitos como raça. De seu mestre, ele diz:
“Foi o estudo de antropologia sob
a orientação do professor Boas que
primeiro me revelou o negro e o mulato
no seu justo valor – separados dos
traços de raça os efeitos do ambiente
ou da experiência cultural. Aprendi a
considerar fundamental a diferença entre
raça e cultura; a discriminar entre os
efeitos de relações puramente genéticas
e os de influências sociais, de herança
cultural e de meio. Neste critério de
diferenciação fundamental entre raça
e cultura assenta todo o plano deste
ensaio”. (Freyre, 2005, p.31)
É do contato com Boas que advém as
empatias com a escola idealista alemã,
propósito da ‘tese lusotropical’”. O Cruzeiro. Rio de Janeiro, 24 nov. 1962.
_51
_especial
herdeira de Kant e Hegel. Vale notar que,
bastante dialeticamente, o título de boa
parte dos livros de Freyre é a sucessão de
dois substantivos-conceitos, aparentemente
inconciliáveis, ligados pelo símbolo “&”,
que, segundo o autor, era um símbolo
de interpenetração e conectividade. O
primado da cultura sobre o determinismo
das primeiras leituras evolucionistas protodarwinianas, bem como outras premissas,
o aproximam de Weber, bem como o uso
de tipos ideais para descrever o homem,
o espaço e o tempo em suas obras.
Cientificamente, a opção é clara a favor de
um método qualitativo, adjetivo, o que se
afasta em muito da tradição norte-americana
de quantitativistas das escolas em que
estudou, como Columbia.
O método utilizado por Freyre,
mesmo em obras predominantemente
antropológicas, é quase sempre
historiográfico. Mas é importante frisar
sua natureza não-evolucionista e também
não-evolucionária: para ele, não há o
pressuposto de que o passar do tempo
trará avanços. Um hábito comum a seu
estilo é a transposição de si mesmo para
o passado, estabelecendo uma espécie de
canal direto de comunicação deste com o
presente. Esta, e outras, são influências da
École des Annales francesa, e de seu gosto
pela história cotidiana e das mentalidades
coletivas. São valorizadas como fontes
de relevância histórica livros de receitas,
fotografias, festas, expressões religiosas,
relatos de viajantes, cantigas de roda,
diários íntimos. Isso confere um caráter
multi-facetado, poliédrico, à obra de Freyre.
Como aponta o professor José Carlos
Reis, a obra de Freyre é neo-varnhageniana,
no sentido em que elogia as virtudes
da colonização portuguesa, mesmo
considerando o traumático processo
2
_52
histórico da conquista da América. No
entanto, as semelhanças e convergências
com Varnhagen param aí, uma vez que os
dois têm opiniões, premissas e metodologias
opostas para quase tudo. Em primeiro lugar,
Varnhagen não via valor na raça negra, e
preconizava que o brasileiro deveria ter sido
uma raça branca pura, pela imigração maciça
de europeus. A miscigenação, para Varnhagen,
era um desprestígio, e a escravidão teria
sido mais tolerável se fosse a do índio, que
segundo ele, a pseudo-filantropia do jesuíta
impediu. Freyre, por outro lado, valoriza
enormemente a presença do negro, a riqueza
de sua cultura, sua companhia alegre e terna,
e por sua sensualidade.
“E que vergonha há na condição
de negróide? Que vergonha há na
condição de negróide diante da
antropologia moderna que não
reconhece ‘superioridades’ ou
‘inferioridades’ de raça? Por que
pretender-se com ‘documentos’
destruir uma verdade que só é
vergonhosa hoje aos olhos dos
retardados em ciência?”2
Outra divergência ocorre em relação
ao sistema econômico e de trabalho na
colônia. Varnhagen, apesar de defender
a colonização portuguesa, lamenta
profundamente que ela tenha sido
latifundiária e escravista, justamente pela
motivação racista exposta acima. Já para
Freyre, é injusto acusar os portugueses de
terem manchado com a escravidão a sua
obra grandiosa de colonização tropical.
O meio e as circunstâncias, segundo ele,
exigiram o escravo. Principalmente, parecialhe inapropriada tal espécie de julgamento
histórico, em que o delito era tipificado a
posteriori.
FREYRE, Gilberto. “Português, branquidade e documento”. O Cruzeiro. Rio de Janeiro, 04 nov. 1950.
“tenhamos a honestidade de
reconhecer que só a colonização
latifundiária e escravocrata teria
sido capaz de resistir aos obstáculos
enormes que se levantaram à
colonização do Brasil pelo europeu - só
a casa grande e a senzala. O senhor
de engenho rico e o escravo capaz do
esforço agrícola”
“No Brasil, as relações entre os
brancos e as raças de cor foram
desde a primeira metade do século
XVI condicionadas, de um lado pelo
sistema de produção econômica
– a monocultura latifundiária; do
outro, pela escassez de mulheres
brancas, entre os conquistadores. O
açúcar não só abafou as indústrias
democráticas de pau-brasil e de
peles, como esterilizou a terra, em
uma grande extensão em volta aos
engenhos de cana, para os esforços
de policultura e de pecuária. E exigiu
uma enorme massa de escravos. A
criação de gado, com possibilidade de
vida democrática, deslocou-se para os
sertões. Na zona agrária desenvolveuse, com a monocultura absorvente,
uma sociedade semi-feudal – uma
minoria de brancos e brancarões
dominando, patriarcais e polígamos,
do alto das casas-grandes de pedra
e cal, não só os escravos criados
aos magotes nas senzalas como os
lavradores de partido, os agregados,
moradores de casas de taipa e de
palhas, vassalos das casas-grandes em
todo o rigor da expressão.”3
Freyre vai além. E é nisso que consiste
sua principal tese, a do Lusotropicalismo.
Para ele, no Brasil foi forjada uma sociedade
multirracial, por obra do gênio português,
fertilizada pela presença africana e
indígena, e que encontrou nos trópicos
sul-americanos o cenário topográfico ideal
para sua realização. A principal premissa da
tese é considerar que esse amálgama só
poderia ter sido feito, em seu tempo, pelo
povo português, por vários motivos, entre
os quais destacamos dois: o fato de que o
português, diferentemente de outros povos
europeus de semelhante expertise técnica,
1) gostava dos climas quentes, e 2) já era
ele próprio mestiço de romanos, visigodos,
celtas e mouros.
(...) “ the Portuguese never to have
displayed great enthusiasm for settling in
foggy regions or for adapting themselves
to climates colder than that of Portugal.
Their ideal or messianic climate seems
always to have been a hotter one than
that of Portugal - Portuguese emigration to
colder countries such as the United State
has been principally from the Azores. It
may be noted that popular folklore has
long since shown hostility to the cold winds
that blow from Spain and linked them to
Spanish brides supposedly less affectionate
than Portuguese or tropical women. “From
Spain neither a good wind nor a good wife”
says the proverb. Spain here seems to be
symbolic of an Europe colder, in its climate
or ‘winds’, than Portugal.”
“Among other traits worthy of being reestablished was the readiness of the wellborn Portuguese to go and pit his vigour
and strength against the tropics such as
the African bush or the Brazilian jungles;
contacts which were better calculated to
3
FREYRE, Gilberto. Casa grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 50.ed. revista. São
Paulo: Global, 2005. P. 32-35
4 FREYRE, Gilberto. Impact of the Portuguese on the American tropics. Neuchatel: La Baconniére, 1958.
_53
_especial
regenerate European energies than those
with the civilized East.”4
Dos excertos citados, pode-se inferir um
fato importante: para Freyre, o elogio do
passado é uma exaltação, uma idealização, o
que dá um caráter quase onírico à sua obra.
É importante notar também a importância
e o poder dessas ideias no início do século.
Freyre foi, provavelmente, o primeiro a
ter defendido, com bases científicas, o
valor da mestiçagem na formação do país,
o que teve um papel central em revelar
uma das características mais estudadas
por brasilianistas de todas as escolas: a
síndrome de vira-latas.
Futuro
Um equívoco comum na leitura da obra
de Freyre é o de considerá-la, inteiramente,
como a expressão da realidade passada. Isso
não quer dizer que a obra de Freyre seja,
de alguma maneira, fictícia. Do contrário, é
o lembrete de que a perspectiva de Freyre
é, muitas vezes, a do dever-ser, e não do ser.
É parte do esforço do autor de estabelecer
a conexão tridimensional do tempo, e fazer
conexões entre passado e futuro. O caráter
normativo da obra de Freyre é revelado,
em muito, nas opiniões externadas por ele
sobre o papel do Brasil no mundo e sobre a
natureza da política externa, em sua coluna
no semanário O Cruzeiro. Nesse ponto, suas
revelações chegam a ser mais que visionárias.
Para seus admiradores, são semi-proféticas.
Freyre acreditava que o Brasil era o
interlocutor ideal entre o norte desenvolvido
e o sul em desenvolvimento, entre o branco e
o preto, entre o rico e o pobre, simplesmente
5
porque, mestiço, o Brasil é um pouco de
ambos. Nesse aspecto, o lusotropicalismo
torna-se não uma explicação do passado, mas
uma fundação, uma base para uma atuação
externa futura.
“Em livro recente e ricamente
sugestivo, (...) um sociólogo francês,
que todos os estudiosos brasileiros
de assuntos sociológicos estimam e
admiram - o Professor Roger Bastide
- reconhece ter o Brasil se tornado
potência demasiado grande para
limitar seu destino à América do
Sul. É uma nação que tem, a seu ver,
papel internacional a desempenhar
no Mundo de hoje. E refere-se, a êsse
propósito, à ideia de uma federação
de países de língua portuguêsa,
infelizmente sem considerar, como
devia ter considerado, a base
sociológica para uma tal federação de
evidente importância política, oferecida
por aquêles seus colegas brasileiros
que vêm sugerindo a especificidade
de uma civilização dinâmicamente
luso-tropical: civilização em
desenvolvimento e não estabilizada. (...)
E o grande mediador entre a Europa
e o Trópico tem sido, não um vago
latino, mas o hispano. Principalmente
o português, a ser continuado num
futuro já presente, pelo brasileiro.”5
Essa noção é especialmente preciosa nos
dias de hoje, em que se busca, talvez pela
primeira vez em nossa história, um papel de
prioridade nas relações internacionais do
Brasil para os países da África Lusófona e da
América Hispânica e, de forma mais ampla,
para o mundo em desenvolvimento. No
FREYRE, Gilberto. “O Brasil, mediador entre a Europa e o trópico”. O Cruzeiro. Rio de Janeiro, 22 jul. 1961
FREYRE, Gilberto. “A propósito da ‘tese lusotropical’”. O Cruzeiro. Rio de Janeiro, 24 nov. 1962.
7 FREYRE, Gilberto. “O Brasil, lider da civilização tropical”. O Cruzeiro. Rio de Janeiro, 1 jul. 1961.
6
_54
Negra vendendo caju, Jean Baptiste Debret, 1827
entanto, o próprio Freyre já reconhecia as
dificuldades de implementação de uma visão
desse tipo:
“Pois de modo algum pretende a
‘tese freyreana’ subordinar a condição
lusotropical de uma cultura ou
de uma população ao seu simples
status político. Ou aos altos e baixos
da política exterior do Brasil que,
ultimamente, parece vir sofrendo,
com relação a certos problemas, o
impacto de interêsses eleitoralistas ou
de impulsos demagógicos de políticos
nacionais demasiadamente ‘domésticos’
no seu modo de lidar com aspectos
internacionais”.6
Por fim, é preciso fechar o último vértice
do triângulo. Os últimos oito anos de nossa
política exterior foram caracterizados por um
novo olhar sobre as relações internacionais.
Um olhar por muitos definido como mais
protagônico e altivo, de um país que sabe
quem é e o que deseja do mundo. Ao nos
debruçarmos sobre a obra de Gilberto
Freyre, podemos facilmente perceber que tais
caracterizações e mudanças, como muitas
outras em nossa história, são bem maiores
do que as pessoas que as implementam , e
decorrem não dos caprichos de indivíduos,
senão de um cálculo de um desígnio de
Estado, com fundações datadas de algumas
décadas. O mestre de Apipucos, mesmo
escrevendo há mais de quarenta anos, parece
nos sussurrar, no dia de hoje:
“Ao Brasil de hoje, abrem-se
oportunidades de povo condutor
de povos tropicais, acompanhadas
de responsabilidades que se não
forem assumidas pelos brasileiros
terão de ser assumidas - e assumidas
exclusivamente - pelos indianos
ou pelos árabes unificados, pela
Venezuela ou pelo México, ficando os
brasileiros reduzidos a uma situação
politicamente inerme entre êsses
povos quando, sob outros aspectos,
sua civilização simbiòticamente
luso-tropical ou hispano-tropical
talvez seja a mais criadora e a mais
dinâmica das modernas civilizações
que se desenvolvem nos trópicos (...)
Não será sem êsse ânimo um tanto
romântico que o Brasil assumirá o
seu comportamento político o papel
de líder de uma articulação de forças
que comece a reunir as populações
de formação lusitana, em particular, e
as de formação hispânicas, em geral,
situadas em espaços tropicais, sob uma
unificadora “consciência de espécie”,
que se traduza em atitudes e até em
atos de solidariedade característicos
de uma vasta comunidade com vários e
fortes interêsses em comum; é capaz, à
base dessa solidariedade, de afirma-se
como tipo de civilização moderna do
qual outras civilizações modernas têm
evidentemente o que aproveitar, em
proveito de relações mais saudáveis
entre europeus e não-europeus, e
entre o homem civilizado - à europeia
e o trópico - a terra, o solo, o clima,
nativo dos trópicos.”7
Rafael Rodrigues Paulino (turma
2008-2010 do IRBr) é bacharel em Relações
Internacionais e mestre em Teoria da
Comunicação pela Universidade de Brasília.
_55
Juan Guerra e Denise Andrade
_especial
Novo Acordo
Ortográfico:
Língua e Poder
Marcela Magalhães Braga
As fronteiras da minha linguagem
são as fronteiras do meu universo.
Wittgenstein
_56
1. Linha do tempo
O Novo Acordo Ortográfico da Língua
Portuguesa foi assinado em 1990, por
Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau,
Moçambique, Portugal e São Tomé e Príncipe.
Tais Estados comprometeram-se a elaborar
um vocabulário comum, almejando conferir
completude e uniformidade ortográfica
ao idioma português. O Acordo dará mais
dinamismo ao idioma e contribuirá para evitar
eventual dispersão linguística entre os países
lusófonos.
A adoção de um vocabulário ortográfico
comum afetará diretamente todos os países
cuja língua oficial é o Português. Há, nos dias
de hoje, duas ortografias oficiais da língua
portuguesa: a adotada no Brasil e aquela
utilizada em Portugal e nos demais integrantes
da Comunidade de Países de Língua Portuguesa
(CPLP). A unificação gráfica evitará que as
grafias brasileira e portuguesa se distanciem
ainda mais, evitando o desenvolvimento de dois
dialetos estanques. Esse processo é essencial
para superar os obstáculos que envolvem as
relações políticas, econômicas, comerciais e
culturais entre esses países.
Na história da língua, a grafia nem sempre
foi objeto de controle. Durante o período
do Português arcaico, por exemplo, cada
um escrevia como lhe aprouvesse, e foi
só no século XVI que se passou a buscar
uma grafia comum, movimento que levou,
posteriormente, à regulamentação legislativa
do tema. O histórico de acordos ortográficos
no Brasil e em Portugal demonstra que tal
prática é corriqueira e obedece ao próprio
dinamismo da linguagem, devendo os países
adequar-se ciclicamente às ondas de inovação
dialética entre língua falada e língua escrita.
O primeiro acordo ortográfico celebrado
entre a Academia Brasileira de Letras e a
Academia de Ciências de Lisboa ocorreu
em 1931. A Constituição brasileira de 1934
revogou esse acordo, marcando o início de
um longo período de distanciamento entre
os dois sistemas. O projeto da Nomenclatura
Gramatical Brasileira – NGB, iniciado em 1958,
contribuiu para ampliar o hiato já existente
entre as ortografias. A publicação de obras
que adotaram a NGB, tais como gramáticas e
dicionários, fixaram a utilização de uma norma
ortográfica própria da língua vernácula.
É importante ressaltar que a manutenção
da divergência, no que concerne à língua
escrita, não interessava nem à Academia de
Ciências de Lisboa nem à Academia Brasileira
de Letras, o que levou à elaboração de novo
acordo. Após vários entendimentos, foram
redigidas as chamadas Bases Analíticas da
Ortografia Simplificada de 1945, renegociadas
em 1975 e consolidadas em 1986.
Finalmente, em 1990, surgiu uma nova
versão do documento, o Acordo de Ortografia
Simplificada entre Brasil e Portugal para a
Lusofonia, que passou a ser reconhecido
como Acordo Ortográfico de 1995, por ter
sido aprovado oficialmente em 1995 pelo
Governo dos dois principais países envolvidos.
Os principais pontos foram, por um lado, o
fato de usar-se, pela primeira vez, a expressão
“ortografia simplificada”, e, por outro lado, a
tentativa de se estabelecer um acordo válido
para todo o mundo lusófono.
_57
_especial
2. Praça da língua:
nuances ortográficas
Uma língua é identificada por suas
características fonéticas, sintáticas,
morfológicas e lexicais. O código gráfico é
tão-somente uma convenção, que pode ser
adotada sem que haja qualquer ameaça à
identidade linguística de um determinado
país. De acordo com Garcia1, um sistema
ortográfico pode ser elaborado de três
maneiras:
a) sob uma perspectiva fonética,
atribuindo-se um símbolo para cada
som;
b) sob uma perspectiva etimológica,
em que se procurará seguir fielmente
a grafia de um determinado período
da história da língua (no caso da língua
portuguesa, o latim);
c) sob uma perspectiva mista, em
que se procurará combinar as virtudes
da ortografia fonética, com seu caráter
de exatidão, e da ortografia etimológica,
com seu caráter de permanência.
A língua é um construir diário, um
organismo vivo e, por isso mesmo, está sujeita
à evolução. Quanto mais perspectivas tiver
a língua em sua formação, mais perspectivas
terá em sua expressão. Isso significa maior
poder de persuasão, e se de palavras faz-se a
diplomacia, tanto maior será a influência do
idioma quanto mais seus falantes dominarem o
reino das palavras, como pediu Drummond:
ente no reino
Penetra surdam
das palavras.
emas que espe
Lá estão os po
s.
ram ser escrito
os, mas não há
Estão paralisad
desespero,
ura na superfíhá calma e fresc
cie intata.
dos, em estado
Ei-los sós e mu
de dicionário.
la
rto e contemp
Chega mais pe
as palavras.
Cada uma
cretas sob a
tem mil faces se
face neutra
e te pergunta,
pela resposta,
sem interesse
s:
el que lhe dere
ív
rr
te
u
o
re
b
po
ave?
Trouxeste a ch
1
_58
www.filologia.org.br/revista/artigo/3(9)5-14.html
José Saramago lembrou que as línguas se
cercam umas às outras, e a língua que não
se defende morre. Defender-se, no caso, é
preparar o fundamento gráfico para que o
discurso científico, a expressão cultural e a
manifestação artística mantenham-se firmes
para ancorar as relações econômicas e
políticas no mundo lusófono.
O Português é uma língua com grande
base de falantes. Tal base estende-se por
várias culturas e continentes, exigindo um
código comum para manter os canais de
comunicação diante da contínua simbiose
entre língua falada e língua escrita. É
instrumento de comunicação fundamental no
contexto atual, em que as informações são
fundamentais para a distribuição de poder
no mundo.
Para seus falantes, a manutenção da
identidade cultural passa pela defesa e reforço
da língua portuguesa, para que siga utilizando
referenciais linguísticos próprios na evolução
do conhecimento. Na era da informação, é
essencial que o idioma busque espaço para
manter-se como primeira língua ou, mesmo,
segunda, em regiões de maior projeção dos
países da CPLP, como a América do Sul e o
Sul da África.
É emblemático o fato contado pelo
Embaixador do Brasil no Chile, Mário
Vilalva, em palestra do Chanceler chileno
Mariano Fernández, no Instituto Rio Branco:
os dez alunos formados no último ano da
academia diplomática chilena Andres Bello
optaram pelo português como segunda língua
estrangeira. Isso demonstra que o Português
pode exercer função importante na relação
do Brasil com o entorno sul-americano, e que
ainda há espaço a ser aproveitado.
Sérgio Vieira de Mello afirmava, quando
questionado sobre a insistência com que
importunava seus colegas a conhecerem
o idioma de cada país, que “primeiro você
precisa aprender a língua. A língua é a chave
para a cultura de um povo, e a cultura é a
chave para o coração de um povo. Se você
forçá-lo a falar a sua língua, nunca conquistará
sua simpatia”. O homem se constitui
sujeito pela linguagem. É por meio dela
que ele ingressa na organização social para
compartilhar uma cultura comum.
Assim, o Português deve ser fortalecido
pois possui base de falantes proporcional ao
Espanhol e ao Francês, mas sua influência é
desproporcional no sistema internacional.
Em tempos de multilateralismo cultural, cada
idioma deverá manter sua projeção se quiser
evitar futura extinção ou irrelevância. Afinal,
em tempos de importância do soft power, não
se deve esquecer a beleza e plasticidade da
língua portuguesa, nossa forma de expressar
sonhos e projetos para o novo século.
_59
_especial
3. Soft power ou poder
brando: nuances linguísticas
A língua está diretamente envolvida com o
papel do Estado no plano internacional, tanto
em sua criação como em seus usos sociais e
sua manutenção. O linguista Saussure afirmava
que não era o espaço que definia a língua,
mas a língua que definia seu espaço. O idioma
sempre foi considerado um dos principais
atributos na definição do Estado-nação, como
assinalado por Juliana Dias:
elo de
rso de adoção do mod
cu
no
os
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guística
Dentre os problem
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2002. Língua e poder: tra
2
_60
A economia das trocas linguísticas. 1982. EDUSP. São Paulo
Segundo Bourdieu2, é no processo de
constituição do Estado que se criam as
condições da constituição de um mercado
linguístico unificado e dominado pela língua
oficial. Para que esse modo de expressão se
imponha como legítimo perante os demais,
é preciso que o mercado linguístico seja
unificado e que os diferentes dialetos estejam
subordinados à língua oficial.
No processo que conduz à elaboração,
legitimação e imposição de uma língua oficial,
o sistema escolar tem papel determinante no
ensino do código que rege a língua escrita,
identificada à língua correta, por oposição
à língua falada. É preciso ressaltar que “essa
língua legítima não tem o poder de garantir
sua própria perpetuação no tempo nem
o de definir sua extensão no espaço. Os
escritores, gramáticos e pedagogos exercem
um poder simbólico sobre a cultura,
impondo uma língua distinta e distintiva”
(Bordieu, op. cit., pg. 45).
É com base nesse contexto teóricopolítico que deve ser interpretado o Novo
Acordo Ortográfico, que tem diversos
objetivos. Politicamente, servirá para dar
suporte linguístico à projeção dos países
lusófonos no mundo, especialmente no novo
crescente processo de cooperação Sul-Sul,
facilitando afinar posições em questões
simples, mas instrumentais, como a redação
de acordos internacionais ou documentos
das Nações Unidas. Afinal, o Português é a
terceira língua ocidental mais falada e, ao
contrário do Inglês e do Espanhol, ainda
apresenta grandes diferenças em sua grafia.
Econômica ou comercialmente,
possibilitará a criação de um mercado
editorial que proporcionará ganhos
de escala em muito superiores ao que
existe no comércio atual. Social ou
ideologicamente, trará aumento da autoestima nacional ao manter, ou recuperar, a
força do idioma, que funciona como eficaz
instrumento de projeção de poder cultural
no mundo, como bem o demonstram o
Inglês e o Francês.
Cada pessoa, cada região, cada
país possui sua identidade cultural.
Não é possível, nem desejável, criar
uniformidades estéreis, pois é por meio
da linguagem que o ser humano realiza
plenamente seus ideais e desenvolve suas
aptidões. Aplicando-se tal raciocínio às
macroestruturas, tem-se que os países
somente podem manter sua identidade
e levar adiante seus projetos de
desenvolvimento se puderem comunicarse com facilidade. É nesse espaço de
racionalidade que se coloca o Novo Acordo.
4. Beco das palavras
O Novo Acordo passará por uma fase
de transição até 2012, e traz alterações
principalmente quanto à acentuação e hifenização.
Serão eliminadas sete regras de acentuação,
dando-se prioridade às regras de amplo alcance,
cuja generalidade facilitará seu uso e ensino. O
mesmo objetivo de generalidade norteou as
mudanças quanto à hifenização.
Sem considerar as alterações quanto ao
hífen e ao trema, estima-se que apenas 2%
do vocabulário será alterado pelo Novo
Acordo, equivalendo a 2.000 palavras num
total de aproximadamente 110.000, que são
_61
_especial
diariamente relidas e renovadas por mais de
200 milhões de falantes do Português em
todo o mundo.
Uma das dificuldades de implementação
do Acordo anterior foi a dependência de
legislação posterior, a ser editada por cada
Estado signatário, que causou atrasos e
progressivo desinteresse em sua aplicação.
Essa lição deve servir ao Novo Acordo
Ortográfico, sendo fundamental esclarecer
seus objetivos, a fim de que haja permanente
conscientização da importância de sua
implementação.
A unificação gráfica facilitará o ensino
de português para estrangeiros, a difusão
cultural, a divulgação de informações,
as relações privadas e interestatais, e as
relações comerciais. A língua transformase diuturnamente, exigindo rapidez nos
movimentos constantes de uniformização a
serem feitos pelos signatários do novo acordo.
É preciso lembrar que a comunidade
linguística é uma unidade natural da história
humana. Segundo Ostler, há, hoje, no
mundo, entre seis e sete mil comunidades
identificadas pela língua que falam. Nem todas
têm o mesmo peso. Mais da metade das
línguas, por exemplo, é utilizada por menos
de 5 mil falantes. Outras têm mais projeção,
como o Chinês Mandarim, que é falado por,
aproximadamente, 900 milhões de pessoas.
Mia Couto, nesse contexto, trata do lugar
da língua portuguesa no mundo:
Eu acho que a língua portuguesa é
hoje, talvez, uma das línguas europeias
com maior vivacidade, com maior
dinamismo. Não por causa de nenhuma
essência especial do português, mas
por causa de uma razão histórica
que aconteceu no Brasil, em que
Portugal deu origem a um filho maior
que o próprio pai. A língua passou a
ser gerida por outros mecanismos
de cultura. Depois aconteceram os
países africanos que introduziram
_62
na Língua Portuguesa alguns fatores
de mudança, coloração, que tornam
o Português hoje realmente uma
língua que aceita muito, que é capaz
de introduzir tonalidades, variações,
que enriquecem muito a Língua
Portuguesa, não só do ponto de vista
linguístico, mas o quanto ela pode
traduzir culturas. O que foi notável foi
depois, num processo histórico, que
está para além da língua, como é que
estas culturas se mestiçaram e, a certa
altura, o Português perdeu o dono,
quer dizer, ficou sem dono. Felizmente.
(Depoimento no documentário
“Língua: vidas em português”, de Victor
Lopes, 2001).
As línguas dividem a humanidade em
grupos. É por meio de uma língua comum que
um grupo de pessoas age em concertação,
possuindo, portanto, uma história e uma
estratégia geopolítica comum. Falar uma
língua é compartilhar percepções, anseios e
inspirações. Quando uma língua toma o lugar
da outra, a visão de mundo de uma pessoa ou
um povo mudam radicalmente.
Migrações, crescimento populacional
e mudanças nas técnicas de educação e
comunicação podem alterar o equilíbrio
das identidades linguísticas ao redor do
mundo. A existência de uma miríade de
idiomas, contudo, protege e alimenta culturas
diferentes, oferecendo caminhos diversos para
o conhecimento humano. Os países lusófonos,
por meio do Novo Acordo Ortográfico,
continuarão a defender sua cultura como
forma de manterem-se ativos – e altivos
– no sistema internacional. Parafraseando
Wittgenstein, as fronteiras da nossa língua
serão as fronteiras do nosso universo.
Marcela Magalhães Braga (turma 20082010 do IRBr) é bacharel em Letras, portuguêsinglês, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e
mestre em Linguística pela mesma instituição.
DIÁSPORA
PORTUGUESA:
ODISSeIA DE
UMA NAÇÃO
DESTERRITORIALIZADA
Rafael Soares
_63
_especial
Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Fernando Pessoa
D
enomina-se diáspora o fenômeno
de dispersão de um povo, anteriormente
concentrado em um território, para
diferentes destinos, por motivos diversos.
Historicamente, vários povos submetidos a
perseguições abandonaram suas terras em
movimentos de diáspora. Judeus vagaram pelo
Oriente Médio devido a um castigo divino,
armênios abandonaram seu país sob a ameaça
genocida otomana e milhões de negros
deixaram a África para ser escravizados em
outros continentes. O mundo moderno
conheceu, entretanto, inéditos movimentos
migratórios em massa, animados fortemente
por razões econômicas e sociais, e facilitados
pelos avançados meios de comunicação e de
transporte. Destaca-se a diáspora portuguesa,
um dos maiores e mais antigos movimentos
de repulsão de nacionais de um país, em
termos proporcionais.
Portugal é tradicionalmente reconhecida
como uma terra de emigração. Prova disto é a
presença de comunidades lusitanas em todos
os continentes. O processo de assentamento
de portugueses no além-mar e no próprio
Continente Europeu tem-se dado desde
os tempos do Império e perdura até as
décadas mais recentes, devendo-se a razões
socioculturais, demográficas e, principalmente,
econômicas. O espírito desbravador
português e a exiguidade territorial de
Portugal continental fomentaram a difusão da
lusitanidade por todo o mundo e constituíram
pilar essencial da consolidação do atual
universo lusófono.
O presente artigo pretende apresentar
um panorama da diáspora de portugueses
_64
pelo mundo desde o século XV até os dias
atuais, com destaque para a evolução das
políticas do Estado português vis-à-vis suas
comunidades expatriadas, bem como para
o condicionamento daquelas à transição do
antigo país colonial e pluricontinental para o
novo Portugal europeu e moderno.
HISPÂNIA, LUSITÂNIA, GALÉCIA,
GHARB AL-ANDALUS, PORTUCALE,
PORTUGAL
A história de Portugal ancestral,
região conhecida como Lusitânia à época
dos romanos, inscreve-se na realidade
compartilhada da Península Ibérica, até 1143,
quando o Condado Portucalense adquire
sua independência.
A despeito de o imaginário popular
alicerçar o espírito da nação em torno
do povo Lusitano, este foi apenas um dos
componentes formadores da população
portuguesa moderna. Na verdade, esta é
resultado da mescla entre galaicos, lusitanos,
celtas e cinetes, que, mais tarde, receberiam
influxos de povos viajantes e afeitos ao
comércio, como fenícios e cartagineses. O
melting pot português completar-se-ia com
as contribuições demográficas advindas do
domínio romano, seguido pelas invasões
germânicas, e, posteriormente, pela ocupação
árabe-berbere da península. A esse mosaico
de povos somam-se ainda as levas de escravos
africanos importados para a região até
meados do século XVII.
A composição diversificada de sua
população não impediu a nação portuguesa
de se consolidar prematuramente no
território que conformaria um dos
primeiros países do mundo. A posição
geográfica peculiar – projetando-se para
o oceano –, associada à exiguidade
territorial e ao caráter migratório
inerente à sua população, animou
o folclórico espírito desgarrado e
aventureiro dos portugueses, levandoos a abandonar os limites ibéricos para
transpor oceanos e Pirineus.
“DA MINHA LÍNGUA
VÊ-SE O MAR”
Inicialmente organizado em
função da empresa colonial do
Reino, o fluxo emigratório de
portugueses articulou-se com vistas
à exploração econômica das ilhas atlânticas
e, posteriormente, dos continentes africano,
asiático e americano. Enquanto estes
territórios não se tornaram independentes da
metrópole, não se pôde falar em emigração
ou imigração de portugueses, mas em
colonização.
A primeira grande leva de portugueses
cruzou o Atlântico no século XVIII, por
ocasião da descoberta de ouro e diamante
no interior da América do Sul. Segundo
Boris Fausto1 ao longo das seis primeiras
décadas daquele século, aproximadamente
seiscentos mil portugueses, provenientes do
Continente e das ilhas atlânticas, aportaram
nas Colônias Americanas, movimento que
seria secundado pelo estabelecimento de
colonos também nos domínios africanos e
asiáticos da Coroa.
As vagas emigratórias lusitanas ganharam
impulso a partir do século XIX, quando
se assistiu a processos de modernização
econômica, concentração fundiária
e expulsão de campesinos em toda
a Europa. A perda do Brasil e o
profundo endividamento de Portugal
somaram-se àqueles fatores para
desencadear a saída de centenas
de milhares de portugueses, que
foram atraídos pela economia
industrializada norte-americana,
pelas promessas de terras no Brasil
e por facilidades oferecidas para
quem se estabelecesse nas posses
ultramarinas do Reino.
Segundo a Secretaria de Estado
das Comunidades Portuguesas2,
durante todo o século XIX e
na primeira metade do século
XX, um milhão e meio de portugueses
abandonaram o país, quase sempre por
motivos econômicos. Compreendese melhor o vulto alcançado por esta
diáspora quando se vislumbra o contingente
demográfico português total à época.
Segundo Joel Serrão3, Portugal contabilizava
5.446.760 habitantes em 1900, incluídos
Continente e domínios de ultramar. Para o
autor, o fenômeno emigratório português
condicionou-se à realidade de país atrasado,
direta ou indiretamente dependente dos
polos de desenvolvimento socioeconômico,
tecnológico e cultural.
PORTUGAL MALTHUSIANO
Para alguns estudiosos, a emigração em
massa dos portugueses obedece a uma lógica
malthusiana, segundo a qual o crescimento
exponencial da população seria a causa dos
males da sociedade. O controle populacional
por meio da emigração de nacionais haveria
1 FAUSTO, Boris. História
do Brasil. São Paulo: EDUSP, 2006.
PRESIDÊNCIA DA UNIÃO EUROPEIA. “Comunidades Portuguesas”. Disponível em <http://www.eu2007.pt/UE/vPT/Bem_
Vindo_Portugal/Mundo/Comunidades+Portuguesas.htm>. Acesso em 9 mai 2009.
3 SERRÃO, Joel (1985). “Notas sobre emigração e mudança social no Portugal contemporâneo” in Análise social, vol. XXI (8788-89), 995-1004.
2
_65
_especial
E, se mais mundo
houvera, lá chegara.
Camões
sido o modo encontrado pela sociedade
portuguesa de manter a estrutura social
prevalecente. A mesma tática serviu como
estratégia de arrecadação de divisas, advindas
das remessas dos emigrados.
As dimensões desse movimento
migratório já eram compreendidas à época
de sua ocorrência. Nas palavras do estudioso
Basílio Teles,
(...) esta sangria operada nas mais
activas e robustas das populações
portuguesas, não obstante representar
um prejuízo nacional incalculável,
tem sido, contudo o único e estúpido
processo de proporcionar aos
trabalhadores que não emigram uma
situação tolerável.4
EMIGRAÇÃO CONTROLADA E
CLANDESTINA
No início do século XX, o fenômeno
emigratório alcançou níveis alarmantes,
principalmente no tocante às saídas
clandestinas do país. Para Miriam Halpern
Pereira5, o rigor com que se aplicou a
legislação emigratória portuguesa variou
consideravelmente ao longo do tempo. As
políticas migratórias, entretanto, assumiram
um viés dissuasivo junto aos emigrantes em
potencial na viragem do século.
De fato, a opção dos migrantes lusitanos
pela clandestinidade, principalmente aqueles
que seguiam para o Brasil, os Estados Unidos
e a Venezuela, deveu-se fundamentalmente
à série de óbices que se lhe impunham para
deixar o país. Em Portugal inexistia política
de subvenção à emigração, dificuldade que se
somava à exigência de emissão de passaporte
especial para emigrantes e à cobrança de
fiança para os indivíduos em idade militar que
4 TELES, 1904
se ausentassem do país. Muitos portugueses
aproveitavam as janelas de migrações sazonais
para a Espanha e solicitavam às autoridades
consulares brasileiras no país passaportes
brasileiros, os quais não lhes outorgavam a
nacionalidade, mas serviam de documento
válido para a viagem ao Rio de Janeiro.
EUROPA À VISTA
A crise de 1929, aliada à saturação da
economia brasileira e aos reveses do pósSegunda Guerra Mundial, redirecionou os fluxos
migratórios lusitanos para além dos Pirineus,
rumo à então Comunidade Econômica Europeia
(CEE), especificamente para a França.
À medida que se esvaia o regime
salazarista, a economia portuguesa entrava
em bancarrota devido aos enormes custos
das guerras coloniais e da manutenção de um
combalido e retrógrado império ultramarino.
A escalada emigratória prosseguiu a todo
vapor e as décadas de 1960 e 1970 assistiram
à debandada de mais um milhão e meio de
patrícios, segundo Rogério Roque Amaro. O
mesmo estudioso constata que, só no ano
de 1970, 180.000 portugueses partiram para
apud SERRÃO, 1985, p. 996.
(1990). “Algumas observações complementares sobre a política de emigração portuguesa” in Análise social,
vol. XXV (108-109), 735-739.
5 PEREIRA, Miriam
_66
a Europa rica e desenvolvida. O número
exato nunca será conhecido, uma vez que
a maioria dos viajantes deslocava-se de
forma clandestina, cruzando a Espanha como
verdadeiros retirantes, para assentar-se
nas periferias pobres dos grandes centros
urbanos franceses, em suas “bidonvilles”, ou,
em bom português, bairros de lata.
PORTUGAL DOS CRAVOS:
MODERNO E EUROPEU
A tendência à emigração em massa
arrefeceu no final dos anos 1970, após os
desdobramentos da Revolução dos Cravos,
de 1974. O período coincide com o colapso
do império luso e com a chegada a Portugal
de 500.000 a 700.000 egressos das recémindependentes províncias ultramarinas.
Ao final dos anos 1970, não só havia
estancado a saída de portugueses do país,
como se passou a registrar o retorno
progressivo dos emigrados. Segundo Serrão
(1985), no quinquênio 1976-1980, meio milhão
de portugueses retornaram e, entre 1981 e
1985, mais 700.000. Para o autor, até 1990,
metade dos portugueses residentes em outros
países europeus já haveriam retornado ao país.
Ao final dos anos 1980, especulou-se
estar praticamente finda a hemorragia
de emigrantes portugueses para a CEE,
fato que se coaduna com a adesão de
Portugal ao bloco e com o recebimento das
preciosas subvenções do Fundo Europeu de
Desenvolvimento Regional. Os investimentos
e subsídios da CEE, aliados ao crescimento
econômico mundial vivenciado na última
década do século XX, transformariam, em
médio prazo, o antigo Portugal exportador de
braços em um país de imigração.
Atualmente Portugal é um país
desenvolvido e bem inserido no espaço
europeu, realidade que o transformou num
ímã migratório na última década. Hoje,
mais de 5% da população do país compõese de imigrantes, com destaque para as
comunidades lusófonas – especialmente a
brasileira –, e para aquelas provenientes do
Leste Europeu.
Não obstante esta nova tendência, as
correntes emigratórias portuguesas não
cessaram de todo. Transformaram-se, mas
continuam a influenciar nas dinâmicas sociais
e econômicas do país. Para o estudioso João
Peixoto7, Portugal é, na atualidade, um país
tanto de imigração como de emigração.
As atuais correntes emigratórias que
deixam Portugal continuam a fazê-lo
por razões econômicas e compõem-se
fundamentalmente por jovens do sexo
masculino, majoritariamente solteiros. Os
novos migrantes, entretanto, executam
trabalhos temporários, em diferentes
paragens europeias e por curtos períodos, de
modo a maximizar o retorno auferido com
o trabalho no exterior. Segundo Peixoto, os
migrantes são previamente arregimentados
por empresas e dedicam-se basicamente
à construção civil, agricultura e indústria
metalomecânica e naval.
IGNOTOS PORTUGUESES
Após cinco séculos de políticas colonialistas
e de parco desenvolvimento interno, Portugal
enviara milhões dos seus filhos para os mais
diversos rincões do mundo.
Recentemente, a imprensa portuguesa
divulgou que, não fosse a emigração, o
país atualmente teria uma população
aproximada de quarenta milhões de
habitantes, quatro vezes maior que o atual
6 AMARO, Rogério
(1985). “Reestruturações demográficas, econômicas e socioculturais em curso na sociedade portuguesa: o
caso dos emigrantes regressados” in Análise social, vol. XXI (87-88-89), 605-677.
7 PEIXOTO, João. “País de emigração ou país de imigração? Mudança e continuidade no regime migratório em Portugal”.
Disponível em <http://www.museu-emigrantes.org/JO%C3%83O%20PEIXOTO.pdf>. Acesso em 18 abr 2009.
_67
_especial
contingente demográfico. Os restantes 30
milhões de lusitanos não desapareceram,
são facilmente encontrados em rostos
franceses, luxemburgueses, suíços,
angolanos, norte-americanos, venezuelanos,
canadenses, australianos, sul-africanos e,
fundamentalmente, em 80% de todas as
faces brasileiras.
Segundo cálculos do Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística8, entre 1500
e 1990, aproximadamente dois milhões
e meio de portugueses aportaram e
estabeleceram-se no Brasil. Para estudioso
da área, o coeficiente multiplicador de
colonos e de imigrantes portugueses no
país é nove, o que resultaria em mais de
vinte milhões de brasileiros descendentes
diretos de portugueses ao longo dos
séculos, afora os demais luso-brasileiros
que se seguiram à quarta ou quinta geração
a contar dos primeiros colonos-imigrantes
portugueses. Em quinhentos anos, Portugal
aparentemente transferiu mais da metade
de sua gente para o Brasil, e mais um
quarto desta para o resto do mundo.
ONDE HOUVER UM PORTUGUÊS
AÍ ESTÁ PORTUGAL
(...) só poderemos sobreviver, só (...)
poderemos acreditar em Portugal, e no
seu futuro, se nos concebermos como
nação que abrange os residentes e os
não residentes. Todos tratados em pé de
igualdade.
Francisco de Sá Carneiro, 1980
Para um país cujas fronteiras englobam
atualmente dez milhões de nacionais,
8 INSTITUTO
enquanto oficialmente se contabilizam mais
cinco milhões de cidadãos no exterior, faz-se
indispensável transcender o trinômio povoterritório-governo para que se alcance a real
dimensão da nação portuguesa. Após a queda
do salazarismo e a derrocada do império
colonial, o senso comum das lideranças
políticas nacionais passou a compreender a
necessidade de os emigrantes serem incluídos
no projeto de nação portuguesa, que não se
concentraria na Península Ibérica e nas ilhas
atlânticas, mas que se estenderia por todo o
globo.
Segundo Eduardo Caetano da Silva9,
para as novas forças políticas portuguesas
pós-Revolução dos Cravos, o país teria de
perceber-se sob um novo enfoque, o de nação
desterritorializada. A ideia é repensar a nação
portuguesa para que nela seja incluía a diáspora
lusa mundo afora. A noção de território deve
ser relativizada, presumindo-se que onde
houver um português aí estará Portugal.
A nova postura do governo lusitano junto
a seus emigrados deveu-se à percepção da
importância que seu enorme contingente
demográfico espalhado pelo mundo pode
representar para suas relações internacionais.
Considerou-se também o dever de se reparar
minimamente o moral daqueles que se viram
compelidos a abandonar a pátria-mãe por
razões materiais, o que se fez ao incluí-los
no novo projeto nacional. Finalmente, a
valorização do português no estrangeiro
incentivou a continuidade do envio de divisas
para a combalida economia lusitana das
décadas de 1970 e 1980.
PORTUGAL NO SANGUE
A evolução da legislação portuguesa
concernente à nacionalidade é retrato fiel
BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Presença portuguesa: de colonizadores a imigrantes. Disponível em
<http://www.ibge.gov.br/brasil500/index2.html>. Acesso em 10 mai 2009.
9 SILVA, Eduardo. Visões da diáspora portuguesa: dinâmicas identitárias e dilemas políticos entre portugueses e luso-descendentes de
São Paulo. Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 2003. Dissertação de mestrado.
_68
das mudanças pelos quais passaram os
paradigmas regentes das relações entre
Portugal e seus cidadãos no exterior, incluída
aí a descendência destes. Transitou-se
paulatinamente de uma legislação alicerçada
no princípio de jus solis para o coroamento do
jus sanguinis.
A opção inicial pela atribuição da
nacionalidade pelo critério territorial
justificava-se pela necessidade de incorporação
das populações dos domínios ultramarinos
à nação portuguesa, que se dizia multirracial
e pluricontinental. Após a independência dos
domínios de ultramar, tentou-se conter os
fluxos de retorno à metrópole, por meio
de restrições ao acesso à nacionalidade
portuguesa. Consolidada a democracia,
Portugal reconheceu-se europeu e aderiu
à CEE, fazendo coro com as políticas
comunitárias de fechamento de fronteiras e de
restrições à imigração. Estes fatores se somam
ao desejo de a nação estreitar laços com
suas comunidades emigradas e deságuam na
consolidação do atrelamento da nacionalidade
portuguesa ao sangue e não ao solo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Brade a Europa à terra inteira:
Portugal não pereceu
A Portuguesa
(hino nacional)
Após cinco séculos desbravando o
mundo, Portugal constata, melancólico,
seu retorno à exiguidade territorial
de sua porção europeia. Os brios de
grandiosidade lusitana certamente não
foram suplantados pela adesão do país ao
projeto europeu de união supranacional.
Assim, Portugal projeta seu conceito de
nação sobre seus nacionais espalhados
pelo mundo, como forma de alívio
para seu sufocamento ibérico, e vai
além ao lançar mão da lusofonia
para relançar o projeto de portugalidade
intercontinental. O intento ganha corpo
com a consolidação das despretensiosas
Comunidades dos Países de Língua
Portuguesa (CPLP), com o estreitamento dos
vínculos – sobretudo econômicos –, com o
Brasil, bem como com as mediações políticas
junto às ex-colônias em crise.
A afirmação de Portugal no mundo
seguramente passará pelo fortalecimento
de seus laços históricos, culturais e
econômicos com suas comunidades
expatriadas. Os instrumentos necessários a
uma política desta envergadura certamente
incluirão a promoção da língua e dos
valores históricos, o reforço da participação
cívica e política dos portugueses da
Diáspora nos rumos do Portugal moderno
e o aperfeiçoamento dos vínculos de cunho
político e administrativo entre a pátria-mãe
e seus contingentes emigrados.
De fato, a presença de Portugal nos cinco
continentes e o legado deixado por esta
odisseia são memoráveis e indeléveis. Há
muito a diáspora portuguesa deixou de
ressentir o país pelos braços perdidos
e passou a ser compreendida como
estratégia de inserção global do
Portugal ibérico e europeu no atual
mundo multipolar em processo de
reequilíbrio de vetores de força.
Ao longo de quinhentos anos,
Portugal lamentou a diáspora
de seus filhos mundo afora sem
saber que, em vez de render seus
melhores frutos ao estrangeiro,
plantava eternas sementes
de lusitanidade, que, mesmo
recônditas, perpetuarão a nação
portuguesa.
Rafael Soares (turma 2008-2010
do IRBr) é bacharel em Direito pela
Universidade Federal do Rio Grande
do Norte.
_69
ARTIGOS E ENSAIOS
101 anos de nascimento
Quantos mais de
esquecimento?
Marcelo Almeida Cunha Costa
Pedro Vinícius do Valle Tayar
_70
E
femérides são sempre
oportunidades para relembrarmos fatos
e personalidades. No entanto, a tarefa de
resgatar a memória de grandes brasileiros
não deve se restringir a ocasiões em que
efemérides se fazem presentes. Josué de
Castro é um exemplo de vulto nacional que
não recebe a atenção merecida, como se
percebe depois de passadas as comemorações
de seu centenário de nascimento em 2008.
Devem ser recordados, também, os 101, 102,
103 anos, numa demonstração de que seu
pensamento permanece vivo e atual.
Josué de Castro foi um dos maiores
pensadores brasileiros do século XX. Nascido
no Recife, em 5 de setembro de 1908, foi
médico, geógrafo, cientista social, parlamentar,
Embaixador do Brasil junto às Nações Unidas,
em Genebra, e presidente do Conselho
Executivo da Organização para Alimentação e
Agricultura (FAO).
Seu principal objeto de estudo foi
o problema da fome, tanto em escala
nacional, quanto mundial. Segundo o autor,
a problemática tratava-se de tema proibido,
delicado e perigoso, de forma a constituir “um
dos tabus da nossa civilização”.
Durante a sua infância, no Recife, Josué
travou contato com a pobreza: brincava nos
mangues da cidade, onde sujava os pés na
mesma lama que servia de fonte alimentar
a numerosa população de miseráveis. Os
versos de seu conterrâneo, João Cabral
de Mello Neto, em Morte e Vida Severina,
ilustram, com realismo, o cenário que
sensibilizou o jovem Josué:
e, nem em
“Não foi na Sorbonn
rsidade sábia
qualquer outra unive
ento com o
que travei conhecim
A fome se
fenômeno da fome.
ente aos meus
revelou espontaneam
do Capibaribe,
olhos nos mangues
eis do Recife
nos bairros miseráv
anto Amaro, Ilha
– Afogados, Pina, S
inha Sorbonne.”
do Leite. Essa foi m
“Minha pobreza tal é que coisa alguma
posso ofertar: somente o leite que tenho
para meu filho amamentar, aqui todos são
irmãos, de leite, de lama, de ar. Minha pobreza
tal é que não trago presente grande: trago
para a mãe, caranguejos pescados por esses
mangues, mamando leite de lama conservará
nosso sangue”.
A infância traz-lhe, como reminiscência,
a, muitas vezes invisível, geografia da
desigualdade: a aproximação física dos
homens não necessariamente se reflete em
igualdade de condições.
“Não foi na Sorbonne, nem em qualquer
outra universidade sábia que travei
conhecimento com o fenômeno da fome. A
fome se revelou espontaneamente aos meus
olhos nos mangues do Capibaribe, nos bairros
miseráveis do Recife – Afogados, Pina, Santo
Amaro, Ilha do Leite. Essa foi minha Sorbonne.”
Ao mesmo tempo em que vivencia os
díspares meios sociais, Josué procede à
densa e precoce formação humanística que
_71
_artigos e ensaios
antecipava o engajamento político e sua
luta por justiça social. Ainda jovem, optou
pelo curso médico, realizado na tradicional
Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, de
onde retornaria aos vinte e um anos, para
exercer a profissão em sua cidade natal.
Iniciava, então, sua contribuição para que os
homens dos mangues recifenses se tornassem
menos caranguejos e mais homens.
Em paralelo à sua formação científica e
universitária, Josué de Castro valorizava o
papel das artes e dos artistas como elemento
de transformação da sociedade. Em especial,
sempre nutriu grande admiração pelos
romancistas nordestinos, que expunham
as mazelas sociais da região e abordavam
frontalmente o tema da fome.
O paraibano José Américo de Almeida foi
pioneiro neste gênero com A Bagaceira:
“Fariscavam o cheiro enjoativo do melado
que lhes exacerbava os estômagos jejunos.
E, em vez de comerem, eram comidos pela
própria fome numa autofagia erosiva”.
O Quinze, obra-prima da cearense
Rachel de Queiroz, demonstra a
preocupação dos autores em retratar as
amarguras do homem comum:
“Lá se tinha ficado o Josias, na
sua cova à beira da estrada, com uma cruz
de dois paus amarrados, feita pelo pai. Ficou
em paz. Não tinha mais que chorar de fome,
estrada afora. Não tinha mais alguns anos de
miséria à frente da vida, para cair depois no
mesmo buraco, à sombra da mesma cruz”.
Na qualidade de acadêmico, Josué de
Castro provocou rupturas. O médico
colocou em evidência a fome como
realidade, como instinto primitivo de
todos os seres. Em seguida, demonstrou
claramente seu contexto social. Josué
conceitua o fenômeno da seguinte maneira:
fome é a expressão biológica dos males
_72
r o problema
“Resolvemos encara
ctiva, de um plano
sob uma nova perspe
se possa obter
mais distante, donde
a de conjunto,
uma visão panorâmic
pequenos detalhes
visão em que alguns
ão, mas na qual se
certamente se apagar
ra compreensiva as
destacarão de manei
as e as conexões
ci
ên
u
fl
in
as
s,
õe
aç
lig
res que interferem
dos múltiplos fato
do fenômeno. Para
nas manifestações
lançar mão do
tal fim, pretendemos
no estudo do
método geográfico,
fenômeno da fome”.
sociológicos. Seu pensamento enquadrou
tanto o problema quanto a solução nos
meios sociais. O autor chegou a chamar a
fome de flagelado fabricado pelos homens
contra outros homens.
O cientista desenvolveu, ademais, tipologia
da fome. A fome epidêmica (ou quantitativa)
seria a ocasião em que há privação aguda
de calorias, provocando o definhamento
acelerado do indivíduo. Há, também, a fome
endêmica (ou qualitativa), ocasião em que
ocorre suprimento de calorias, porém não
há ingestão adequada de micronutrientes
(vitaminas, gorduras, proteínas) essenciais ao
pleno desenvolvimento do ser humano.
A publicação de Geografia da Fome,
em 1946, projetou-o à esfera mundial.
Desse ponto em diante, foi crescente o
reconhecimento internacional, do que são
exemplos as indicações ao Nobel de Medicina,
em 1954 e ao da Paz, em 1963 e 1970,
justamente por oferecer uma leitura inédita
desta temática e desmascarar o recurso do
eufemismo, recorrente, quando se tratava
de escrever sobre a fome. Nota-se esse
procedimento no prefácio à primeira edição:
“Resolvemos encarar o problema
sob uma nova perspectiva, de um plano
mais distante, donde se possa obter
uma visão panorâmica de conjunto,
visão em que alguns pequenos detalhes
certamente se apagarão, mas na qual se
destacarão de maneira compreensiva
as ligações, as influências e as conexões
dos múltiplos fatores que interferem
nas manifestações do fenômeno. Para
tal fim, pretendemos lançar mão do
método geográfico, no estudo do
fenômeno da fome”.
Tratava-se de uma resposta científica
ao determinismo biológico, muito popular
no Brasil do final do século XIX ao início
do século XX. Sua fundamentação teórica
provinha de autores internacionais, como
Arthur de Gobineau (Essai sur l’inégalité
des races humaines) e de autores nacionais,
como Sílvio Romero (Etnografia brasileira).
Essa teoria sustentava que a mestiçagem e
o clima, fatores naturais, eram a causa do
malogro social brasileiro. No Brasil, tratava-se
de explicação natural e racial para o círculo
vicioso da pobreza, como demonstra o estigma
do Jeca Tatu: um camponês fadado ao fracasso,
acometido por vermes intestinais; faminto,
mas culpado, em face de suas pretensas
preguiça e vagabundagem. Por isso Josué de
Castro foi inovador: rompia-se ali com a falsa
explicação naturalista predominante à época,
ao considerar a fome como resultado de
forças sociais e não de intempéries naturais,
necessitando, portanto de ações políticas que
promovessem mais equidade na produção,
distribuição e consumo de alimentos.
Josué de Castro ousou levantar temas
sensíveis e fundamentais da política brasileira,
que até então permaneciam intocáveis. Ele
denunciou que, muitas vezes, a elite, na chefia
do Estado, não atua de modo a atender ao
interesse público. Durante a Presidência
Constitucional de Vargas, Josué apontou
a necessidade de a fome ser incorporada
na qualidade de política de Estado; visto o
surgimento de uma classe ascendente de
trabalhadores que sofriam de fome tanto
em forma epidêmica, quanto endêmica.
Demandava, igualmente, maior justiça no
acesso à terra, adotando a reforma agrária
como uma de suas bandeiras.
A biografia de Josué de Castro é
permeada de militância e atuação política.
Marcou sua atuação parlamentar, em um
dos períodos de maior turbulência de nossa
historiografia política, pela defesa de ideais
democráticos e populares. Elegeu-se duas
vezes Deputado Federal pelo Estado de
Pernambuco (1955 e 1959), ao concorrer na
mesma chapa de Francisco Julião, então líder
das Ligas Camponesas.
Progressivamente, Josué passou a atuar no
plano internacional. Em suas palavras.
“E quando cresci e saí pelo mundo
afora, vendo outras paisagens, me
apercebi com nova surpresa que o que
eu pensava ser um fenômeno local,
um drama do meu bairro, era drama
universal. Aquela lama humana do Recife,
que eu conheci na infância, continua
sujando até hoje toda a paisagem do
nosso planeta como negros borrões de
miséria: as negras manchas demográficas
da geografia da fome.”
Em 1951, o autor lançou Geopolítica
da Fome, ao mesmo tempo em que
desempenhou altos cargos na Organização
para Alimentação e Agricultura.
Josué considerava que sua atuação na
política internacional não deveria estar acima
das preocupações locais: era apenas um
instrumento para obtenção das mudanças
socioeconômicas desejadas. Assim, em setembro
de 1955, com o patrocínio da FAO, realizouse o Primeiro Congresso de Camponeses de
_73
_artigos e ensaios
saí pelo mundo
“E quando cresci e
paisagens, me
afora, vendo outras
rpresa que o que
apercebi com nova su
fenômeno local,
m
u
r
se
a
av
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eu
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um drama do meu ba
ma humana do
universal. Aquela la
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Recife, que eu conh
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continua sujando at
aneta como negros
pl
o
ss
no
do
em
ag
pais
as negras manchas
borrões de miséria:
rafia da fome.”
demográficas da geog
Pernambuco – durante o período em
que se acirravam os ânimos internos no
tocante à reforma agrária.
No que concerne o sistema
internacional, Josué advertia os riscos de
uma política de alinhamento irrestrito
aos Estados Unidos, sugeria a progressiva
reaproximação diplomática com a
União Soviética, condenou interferências
externas em Cuba. Do mesmo modo,
antecipava gerações ao propor que
desenvolvimento econômico e preservação
ambiental não eram excludentes e que havia
necessidade de uma política de desarmamento
global, em especial de armas nucleares.
Após a emergência do regime de exceção,
em 1964, Josué de Castro foi destituído do
cargo de Embaixador junto às Nações Unidas,
em Genebra. A partir de então, impedido de
retornar ao Brasil, radicou-se definitivamente
em Paris. Nos últimos anos de sua vida, Josué
de Castro sentia o peso do afastamento de
suas origens, do Brasil e de sua querida cidade
do Recife, em suas palavras “o fundo essencial
do quadro de minha infância e juventude”.
Josué de Castro foi pioneiro no combate à
fome, tanto em escala nacional, quanto global.A
grandeza de Josué, todavia, não se revela somente
naquilo que ele realizou, mas também no que
ele apontou que há por se fazer. No mundo, a
fome aumentou nos últimos dez anos.A crise
dos alimentos, no ano de 2008 e a corrente crise
financeira global elevaram para 900 milhões o
número de pessoas em insegurança alimentar,
segundo os dados mais recentes da Organização
para Alimentação e Agricultura.
A discussão sobre o problema da fome
não foi carente de resultados. Em tempos
recentes, veem-se as ideias de Josué de Castro
crescentemente em prática. No Brasil, a
Política Nacional de Segurança Alimentar, o
Programa Fome Zero, e a atuação do Ministério
_74
das Relações Exteriores – por meio da
Coordenação-Geral de Ações Internacionais de
Combate à Fome – seguem, em grande parte,
a estrutura do pensamento de Castro. No
plano mundial, os pactos, acordos e ações que
visam combater a fome e erradicar a pobreza,
cujo exemplo principal são os Objetivos de
Desenvolvimento do Milênio, foram sucessivas
vezes sonhados por Josué de Castro.
Por fim, deve-se recordar que Josué não
deve ser objeto de definições simplificadoras,
pois defini-lo seria limitá-lo. Ele pautou
sua existência na transposição dos limites
- na crença de que a fome e a miséria são
desnecessárias e de que todos os homens
nasceram para a felicidade e o pleno
desenvolvimento de suas capacidades. Para as
futuras gerações, fica a mensagem do saudoso
Chico Science:
“Tem que saber pra onde corre o rio,
tem que saber seguir o leito, tem que
estar informado, tem que saber quem é
Josué de Castro... rapaz!”.
Marcelo Almeida Cunha Costa (turma
2008-2010 do IRBr) é bacharel em Medicina pela
Universidade Federal da Paraíba.
Pedro Vinícius do Valle Tayar (turma
2008-2010 do IRBr) é bacharel em Ciências
Farmacêuticas pela Universidade de Brasília e
especialista em Saúde Pública pela Universidade
Castelo Branco (Rio de Janeiro).
ORDEM
INTERNACIONAL
E POTÊNCIAS
MÉDIAS:
UMA IMPORTANTE LACUNA
DA TEORIA DAS RELAÇÕES
INTERNACIONAIS
Paulo Thiago Pires Soares
U
ma das maiores lacunas apresentadas pelas duas tradições de
pensamento das relações internacionais, a realista e a idealista, bem como
das mais recentes teorias explicativas da realidade internacional, consiste na
omissão do papel das potências médias. A disciplina Relações Internacionais
foi estruturada em torno das preocupações de seus criadores, as nações
anglo-saxãs. Em decorrência, assumiu um caráter elitista, restrita tão
somente ao papel das grandes potências no sistema internacional.
_75
_artigos e ensaios
A hierarquia entre os Estados foi teoricamente
delineada, então, de maneira simplista e
dicotômica: as grandes potências e o restante.
Essa perspectiva refletia relativamente
bem a realidade internacional do período
entre guerras, quando surge a disciplina.
Nesse momento da história, grosso modo,
o sistema internacional era composto por
colônias e metrópoles. Evidentemente, cada
uma dessas categorias era perpassada por
inúmeras diferenciações, o que não impedia
a compreensão das relações internacionais
em termos de potências e não-potências.
Entretanto, as quase oito décadas que
separam o marco de criação dos primeiros
cursos de Relações Internacionais da atual
conjuntura foram palco de profundas
transformações e reviravoltas nas
relações internacionais. Os processos de
descolonização e de industrialização de
uma parcela dos países pobres inseremse nessas amplas transformações como o
ponto de inflexão que alavanca a emergência
de Estados não tão poderosos quanto as
tradicionais potências e nem tão fracos
quanto as antigas colônias.
A multiplicação do número de Estados
ao longo da segunda metade do século XX
contribuiu para tornar muito mais complexa
a hierarquia das relações internacionais. As
potências da primeira metade do século, não
obstante algumas alterações, preservaram
seus status. A inovação resultou do processo
de crescimento econômico e da importância
política e estratégica de parte do antigo
conjunto de países sem voz. Portanto, emergiu
uma terceira categoria de países, nem tão ricos
nem tão pobres, nem tão poderosos nem tão
fracos, que não foi incorporada às análises
teóricas advindas dos países dominantes.
Objetivamente, o que define uma potência
são os recursos de poder de que ela dispõe,
tornando-a capaz de influir no comportamento
dos demais Estados. Esses recursos de poder
podem ser classificados em duas categorias: o
hard power e o soft power1. A primeira categoria
engloba os recursos de poder tradicionais, ou
1
_76
A respeito dessa diferenciação, ver NYE 2002.
seja, extensão territorial, população, recursos
naturais, capacidade industrial, capacidade
militar etc. A segunda categoria abarca os
elementos de poder intangíveis, tais como a
cultura, os valores, a ideologia, a tecnologia etc.
Os Estados possuem esses recursos
nos mais variados tipos de combinação. Os
Estados Unidos, por exemplo, representam
a única experiência de domínio da
maior parte desses recursos; por isso,
apresentam-se como a maior potência
desde o fim da Segunda Guerra Mundial.
Representa, portanto, o que podemos
definir como grande potência. No polo
oposto, encontramos o Estado de Serra
Leoa, a nação mais pobre do planeta. Entre
esses dois extremos, encontramos mais
de duas centenas de países com diferentes
arranjos de recursos de poder. Todavia,
não seria demasiado simplificado afirmar
que todas essas nações se dividem em três
níveis hierárquicos: aquelas que estão mais
próximas da realidade dos Estados Unidos
(Alemanha, França, Inglaterra, Japão etc.); as
que se aproximam do patamar de Serra Leoa
(Haiti, Somália, Sudão, Etiópia etc.); e as que se
encontram em um nível intermediário (Brasil,
China, Índia, África do Sul, Rússia etc.).
Embora essa tipologia seja de difícil
refutação, a teoria das relações internacionais
produzida pelas grandes potências ainda não
se adaptou a essa nova realidade. Isso está
explícito, por exemplo, na obra de um dos
maiores expoentes da tradição de pensamento
realista. Raymond Aron afirma que:
Qualquer que seja a configuração
existente, as unidades políticas formam
uma hierarquia, mais ou menos oficial,
determinada essencialmente pelas forças
que cada uma é capaz de mobilizar. Numa
extremidade estão as grandes potências,
na outra os pequenos países; umas
reivindicam o direito de intervir em todos
os assuntos, mesmo naqueles que não lhes
dizem respeito diretamente; outros têm
como única ambição intervir, fora da sua
limitada esfera de ação, nos assuntos que
lhes concernem de modo direto (e às vezes
se resignam mesmo a respeitar as decisões
que foram tomadas sem sua participação).
A ambição dos grandes Estados é modelar
a conjuntura; a dos pequenos, adaptaremse a uma conjuntura que essencialmente
não depende deles (ARON, 2002, p. 124).
Aron apresenta, em linhas gerais, um
sistema internacional formado por dois
tipos de Estados, os que moldam tal sistema
e os que se adaptam a ele. Não há dúvidas
quanto a isso caso nos atenhamos somente
aos extremos da hierarquia. Os Estados
Unidos moldam o sistema, e Serra Leoa
se adapta. Contudo, há uma miríade de
países que não possuem recursos de poder
suficientes para moldar o sistema, mas que,
por outro lado, não são tão fracos a ponto
de simplesmente se adaptarem ao status quo.
De fato, esses Estados constituem a principal
força de desestabilização do sistema, pois
a eles interessa a alteração da hierarquia.
As grandes potências são responsáveis pela
preservação, pela imobilidade; as potências
intermediárias, pela tentativa de mudança, pela
dinâmica; e os Estados fracos não possuem
responsabilidades sistêmicas.
As potências médias desempenham
um papel fundamentalmente regional. O
exercício do papel de protagonistas mundiais
cabe às grandes potências. Não obstante
essa limitação, a projeção de poder em
escala regional interfere sobremaneira na
capacidade de atuação das grandes potências
nas diversas regiões que compõem o
sistema. A atuação brasileira na América do
Sul e a atuação chinesa no Extremo Oriente,
por exemplo, constituem empecilhos
significativos para a implementação das
ambições da grande potência atual. Além
disso, o protagonismo regional também
tende a criar condições que permitam a
ampliação da área de atuação das potências
médias, como já se verifica, embora em
escala relativamente limitada, no caso chinês.
Samuel Pinheiro Guimarães aproximase muito da compreensão de potências
médias defendida aqui. Utilizando o termo
“grandes Estados periféricos”, Guimarães
caracteriza as potências intermediárias
como países não-desenvolvidos, detentores
de dimensões territoriais e populacionais
substancialmente expressivas, com grandes
potencialidades econômicas e estruturas
industriais e mercados internos significativos.
Na perspectiva desse autor, assim como
deste artigo, o desenvolvimento das
potencialidades apresentadas por esses
países geraria desdobramentos notáveis
em suas capacidade econômica e em seu
poderio militar. Consequentemente, a
capacidade de exercer influência regional e
mundialmente ampliar-se-ia profundamente
(GUIMARÃES 1999, p. 18-23).
Paulo Thiago Pires Soares (turma 2008-2010
do IRBr) é bacharel em História pela Universidade
Federal Fluminense e mestre em Relações
Internacionais pela mesma instituição.
Bibliografia:
ARON, Raymond. Paz e Guerra entre as Nações. Brasília: UNB, IPRI; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2002.
CABRAL, Severino. Brasil Megaestado: Nova Ordem Mundial Multipolar. Rio de Janeiro: Contraponto, 2004.
GUIMARÃES, Samuel Pinheiro. Quinhentos Anos de Periferia: Uma Contribuição ao Estudo da Política Internacional. Porto Alegre /
Rio de Janeiro: Editora da UFRGS / Contraponto: 1999.
NYE, Joseph S. O Paradoxo do Poder Americano. São Paulo: Unesp, 2002.
VILANOVA, Pere. El Estado y el sistema internacional: una aproximación al estudio de la política exterior. Barcelona: EUB, 1995.
_77
_artigos e ensaios
“Então me diz qual é a graça/
De já saber o fim da estrada/
Quando se parte rumo ao nada?”
A seta e o alvo
– Paulinho Moska e Nilo Romero
“Mire veja: o mais importante e
bonito, do mundo, é isto: que as
pessoas não estão sempre iguais,
ainda não foram terminadas - mas
que elas vão sempre mudando.”
Grande Sertão:Veredas
– Guimarães Rosa
Sfumato:
a dimensão
ambígua da
linguagem
Diego Kullmman
_78
A terceira margem do rio
Poucos admitiriam passividade diante
da “Mona Lisa”. A dama florentina parece
verdadeiramente observar-nos, aparentando
não mera vivacidade, mas um espírito próprio.
Demais, a impressão que se tem da obra
sugere contínuas reinterpretações: um ar
misterioso, indefinido, turvo, preenche as
curvas faciais da “Gioconda”, instigando a
imaginação do observador.
As grandes obras dos mestres italianos
do Quattrocento que seguiram a proposta de
Mosaccio1 comportam elemento comum: por
mais habilidosos que tenham sido os artistas
no uso do delineamento e da perspectiva,
as figuras se mostram algo duras, rijas, com
pouca expressividade.
É Leonardo Da Vinci quem vence
esse desafio, por meio do sfumato, um
“delineamento esbatido e cores adoçadas
que permitem a uma forma fundir-se com
outras”2. Essa técnica empresta à imaginação
indescritível deleite; sempre algo a alimentar,
a fustigar, como se a proposta artística não
aceitasse fruições unívocas.
O sfumato consagra a genialidade de
Leonardo na pintura, mas o efeito do
sombreamento da Mona Lisa não se limita
à maneira pictórica de expressão artística.
De forma análoga, é intuitivo reconhecer
que o sfumato configura uma das principais
características do texto literário.
La vida secreta de las palavras
Constitui tarefa pendente na crítica
literária, em que pese o empenho de
estudiosos formalistas e estruturalistas,
revelar o índice de literariedade de um
texto. Essa limitação, porém, não exclui
a possibilidade de pormenorizar alguns
aspectos típicos do discurso literário,
sobretudo se o contrapomos à linguagem
utilitária do cotidiano.
Domício Proença Filho verifica seis
caracteres distintivos3, dos quais três
reclamam análise particular: a complexidade, a
multissignificação e a liberdade criativa.
A linguagem literária configura-se
complexa, em virtude de sua evidente
opacidade. Inexiste, pois, transparência,
precisão informativa, fluidez lógica, um
relacionamento imediato com o referente,
motivo que constrange a significação
pedestre dos signos. Assim é que o vínculo
entre escritor e leitor se estabelece em
diferente campo semântico, no plano da
sugestão, da ambiguidade; recurso caro à
fruição estética, dado que o texto literário
não apenas avança pela mera reprodução,
mas também “abre-se a um tipo específico
de decodificação ligado à capacidade e ao
universo cultural do receptor”4. A mensagem
literária possui, nesse sentido, uma “intenção
estética”, diferentemente da linguagem
cotidiana, cujo objetivo situa-se nos limites
da comunicabilidade, porque pretende ser
útil, clara, precisa. O texto literário “não
estabelece uma relação ordinária, mas uma
comunicação que se situa em outro nível: o
nível artístico”5.
Ah, todo o cais é uma saudade de
pedra! (...)6
_79
_artigos e ensaios
É consenso admitir também que o texto
literário é plurissignificativo, visto que os
signos linguísticos admitem significados
plúrimos. Não se busca a plena clareza da
comunicação, tampouco a obediência às
balizes gramaticais; antes, o escritor, no intuito
de alcançar a perfeita expressividade artística,
remodela os significantes e os significados
estanques da língua.
Quem és tu, perguntou o homem,
Não te lembras de mim, Não tenho
ideia, Sou a mulher da limpeza, Qual
limpeza, A do palácio do rei, A que abria
a porta das petições, Não havia outra,
E por que não estás tu no palácio do
rei a limpar e a abrir portas, Porque as
portas que eu realmente queria já foram
abertas e porque de hoje em diante só
limparei barcos, Então estás decidida a ir
comigo para a ilha desconhecida, Saí do
palácio pela porta das decisões (...)7
Conjugadas, a complexidade e a
multissignificação conduz-nos à própria
liberdade artística. Permite-se, portanto,
subverter o léxico, porque o arcabouço
existente de signos não raro se mostra
insuficiente para representar no papel a
inspiração mental do escritor. A esse respeito,
embora em outra seara artística, o pintor
holandês Jan van Eyck é caso basilar: no
1
século XV, ele revolucionou as ferramentas
usuais da técnica pictórica, ao inventar a
pintura à óleo. Por que o bafejo artístico
deveria atender a prescrições normativas?
Desfecho doloroso apre bisbórria
aqui desalumiado rezingando pelos
cantos oxe vida toda luz viva huifa
tempo fosforejando preluzindo
resplandecendo huum ser iluminado
literalmente pirilâmpico aie desfecho
deprimente velho feito eu terminar
com todos eles órgãos luminescentes
desativados apre.8
Não se pretende aqui afirmar, todavia, que
a vocação sugestiva reclame, necessariamente,
novo instrumental expressivo. De fato, é
Pintor florentino (1401-28) que, além de criar estratagema técnico da pintura em perspectiva, buscou também simplicidade e
grandeza nas suas figuras: constituíam maciças e sólidas formas angulares, mas com incrível sinceridade e comoção.
2 GOMBRICH, E. H, História da Arte, Editora LTC; Rio de Janeiro, 16ª edição, pg. 302.
agenda da Assembleia Geral sob o item intitulado “Question of Equitable Representation on and Increase in the Membership of the
Security Council”.
3 São eles: complexidade, multissignificação, liberdade de criação, variabilidade, ênfase no significante, predomínio da conotação.
PROENÇA FILHO, Domício. A linguagem literária, 7ª edição, Editora: Ática, São Paulo, Série Princípios, pgs. 37 a 44.
4 PROENÇA FILHO, Domício, idem, pg. 8.
5 VANOYE, Francis. Usos da linguagem: problemas e técnicas na produção oral e escrita. Editora Martins Fontes, 2003, São Paulo, 12ª
edição, pg. 179.
6 Álvaro de Campos, um dos heterônimos de Fernando Pessoa, em Ode Marítima.
_80
igualmente possível que a inspiração do autor,
bem como a ambiguidade natural de sua
arte, apóie-se na “experiência coletiva” e se
utilize de “meios comunicativos acessíveis”9.
É o que Antonio Candido denominou
“arte de agregação”, em oposição à “arte
de segregação”. De todo modo, o destino
estético permanece em ambas.
Cumpre salientar que o discurso literário
pertence à esfera da Estilística, espaço
dedicado à originalidade, ao engenho, à
criação. Em suma, a liberdade permite
desmerecer as fronteiras da comunicabilidade,
óbices do texto utilitário, pois o objetivo
estético deve atender unicamente às
intuições, às transpirações do autor. O
escritor transforma-se, portanto, em um
“designer” da linguagem.10
Uma das coisas que mais
profundamente distinguem a Gramática
da Estilística é o conceito de erro: ao
contrário do que sucede na Gramática,
em Estilística não há propriamente
erros, porque para os maiores desvios
é achada uma determinante psicológica,
natural.11
Uma atitude de independência em
face de regras gramaticais cabe de
direito aos literatos, antes que aos que
usam a língua com objetivo prático. Do
literato espera-se uma visão pessoal em
questões de forma estilística, já que a
língua é a sua preocupação primária e a
matéria-prima de sua arte.12
Os três aspectos revelam a dimensão
ambígua da linguagem literária, o sfumato
de Leonardo Da Vinci. Evidenciam também
um problema: qual o limite, a fronteira do
direito dos intérpretes? Será o texto literário
um “piquenique onde o autor entra com as
palavras e os leitores com o sentido”13? É ainda
permitido “desbastar o texto até chegar a uma
forma que sirva a seu propósito”14? Enfim: até
onde pode levar-nos o sfumato de Leonardo?
Uno, nessuno, centomila
Ao publicar, em 1962, o livro “Obra
aberta”, Umberto Eco busca aclarar o
papel ativo do intérprete na leitura de
textos com intenção estética. Delineando
nova dialética entre autor e leitor, Eco
assevera que a linguagem literária não é
algo acabado ou definido, que autoriza um
percurso univocamente organizado, mas uma
miríade de sugestões conferidas ao deleite
do intérprete. Nesse caso, as obras não se
mostram concluídas; em verdade, podem ser
reinterpretadas a todo instante.
A poética da obra “aberta” tende,
como diz Pouseur, a promover
no intérprete “atos de liberdade
consciente”, pô-lo como centro ativo
de uma rede de relações inesgotáveis,
entre as quais ele instaura sua própria
forma, sem ser determinado por uma
necessidade que lhe prescreva os modos
de organização da obra fruída (...)15
Há de ressaltar, no entanto, que a palavra
“abertura” não implica infinitas possibilidades
7
José Saramago, em O conto da ilha desconhecida.
Evando Affonso Ferreira, em Barbalhoste, mini-conto
do livro Zaratempô!.
9 MELLO e SOUZA, Antonio Candido. Literatura e
Sociedade, 8ª edição, São Paulo:T. A Queiroz, 2000; Publifolha,
2000 – Grandes nomes do pensamento brasileiro -, pg. 21.
10 PIGNATARI, Décio. Informação, linguagem,
comunicação, São Paulo: Ateliê Editorial, 2003, 25ª edição.
pg. 19.
11 LAPA, Manuel Rodrigues. Estilística da língua
portuguesa, 4ª edição, São Paulo: Martins Fontes, 1998,
pg. 197.
12 CÂMARA JR., J. Matoso, pg. 13…
13 TUDOROV, T. “Viaggio nella critica americana”,
Lettera, 4 (1987), pg. 12.
14 RORTY, Richard. Consequences of Pragmatism,
Minneapolis, University of Minnesota Press, 1982, pg. 151.
8
_81
_artigos e ensaios
de fruição e de interpretação da forma.
Isso porque, não se pode evitar a direção
sugerida pelo autor. Assim, “há somente um
feixe de resultados rigidamente prefixados
e condicionados, de maneira que a reação
interpretativa do leitor não escape jamais ao
controle do autor”16. Aliás, cumpre frisar que,
no desenrolar da Era Moderna, a função do
autor no seio do texto literário reforça-se de
forma gradual e significativa, tendência que não
se arrefeceu nos séculos seguintes. Segundo
Foucault, “o autor é aquele que dá à inquietante
linguagem da ficção suas unidades, seus nós de
coerência, sua inserção no real”17. Isto é: o autor
estabelece uma atmosfera de interpretações, a
fim de evitar que o leitor se perca em um vácuo
fruitivo.
Além dos limites implícitos estabelecidos
pelo autor, deve-se mencionar que um texto
literário vislumbra também um destinatário
final, um leitor-modelo. Esse intérprete
qualificado não apenas reúne as ferramentas
necessárias para respeitar o substrato sóciocultural, histórico e linguístico do período
em que se situa a obra, como também pode
inferir as minúcias sugestivas do autor, tendo
em vista que costuma conhecer o repertório
estilístico do próprio texto. Embora a
linguagem se projete, funcione, atue no tempo,
ela pertence ao espaço.
(...) a função da linguagem não é o
seu ser: se sua função é tempo, seu ser
é espaço. Espaço porque cada elemento
da linguagem só tem sentido em uma
rede sincrônica. Espaço porque o valor
semântico de cada palavra ou de cada
expressão é definido por referência a um
quadro, a um paradigma.18
15
Assim sendo, o leitor-modelo acaba por
estabelecer relação confidente com o autor,
o que favorece a descoberta da “intenção
do texto”:
Como a intenção do texto é
basicamente a de produzir um leitormodelo capaz de fazer conjecturas
sobre ele, a iniciativa do leitor-modelo
consiste em imaginar um autor-modelo
que não é o empírico e que, no fim,
coincide com a intenção do texto.19
Do ponto de vista sociológico, promove-se
um arranjo inextrincável entre o autor, a obra
e o público:
Na medida em que a arte é (...) um
sistema simbólico de comunicação
inter-humana, ela pressupõe o jogo
permanente de relações entre os três,
que formam uma tríade indissolúvel.20
Ressalte-se que a “intenção do texto”
não objetiva revelar um rumo, uma verdade
narrativa, mas um leque de possibilidades
viáveis, que jamais deve ser confundido com
arbitrariedade.
Há limites, portanto, para os misteriosos
contornos da Mona Lisa. Como se percebe,
a liberdade plena é tão-só criativa, não
interpretativa.
ECO, Umberto. Obra aberta. Editora Perspectiva, “debates”, São Paulo, 2003, 9ª edição, pg. 41.
ECO, Umberto, idem, pg. 43.
17 FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso – Aula inaugural no Collège de France, em dezembro de 1970 -, Edições Loyola,
São Paulo, 8ª edição, julho de 2002, pg. 28.
18 MACHADO, Roberto. Foucault, a filosofia e a literatura, 3ª edição, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005, pg. 168.
19 ECO, Umberto. Interpretação e superinterpretação. São Paulo: Martins Fontes, 1993, 3ª tiragem, “Coleção tópicos”, pg. 75.
20 MELLO e Souza, Antonio Candido, idem, pg. 33.
16
_82
A arte, em sua aparição dominadora,
sob as máscaras por meio das quais se
manifesta, é como a lâmpada de Aladim,
repleta de prodígios se friccionada pela
magia do artista contra as sombras do
real palpável e visível mas, infelizmente,
transitório.22
Catarse: individuum est ineffabile
A esse tempo, é permissível concluir que a
arte não apresenta qualquer utilidade. Oscar
Wilde, no prefácio de Retrato de Dorian
Gray (1923), ressaltara que toda arte é inútil.
Essa irrelevância prática, esse desapego
a necessidades imediatas esconde, no
entanto, um objetivo metafísico de essencial
importância para a humanidade. 21
Parodiando José Saramago, que atestou
serem os olhos a nossa janela da alma, podese inferir que o sentido de uma obra reside
nessa capacidade de tornar-se um reflexo
da intimidade humana – terreno incógnito,
impronunciável, insondável, labiríntico,
privativo. E por universalizar o singular, a
manifestação artística conquista status perene,
atemporal, eterno, capaz de atravessar imune
a torrente dos tempos.
Uma obra aberta e imperfeita parece
revolver, assim, o âmago da nossa espécie.
“Conhece-te a ti mesmo”, diria Sócrates,
evidenciando-nos de um lado a inexorável
fatalidade da existência e, de outro, a
inferioridade humana ante a vida em si.
Ao revelar o íntimo do ser humano, a arte
soleva-se, portanto, como transfiguradora
da realidade. Como afirmou Eça de Queiroz,
trata-se de “cobrir a nudez crua da verdade
com o manto diáfano da fantasia”. Assim
é que a “luta contra a morte parece se
constituir na vocação essencial da arte”.
Os traços de Leonardo, a poesia de
Guimarães Rosa, a música de Chico Buarque,
os filmes de David Lynch estabelecem
um intercâmbio sinérgico com o Homem:
defronte ao espelho, ele se reconhece, e se
contenta com isso. Sua imperfeição é agora
júbilo; sua mortalidade, regozijo. E nesse
fúlgido momento, nesse instante raso, a nossa
espécie eleva-se sobranceira e majestosa a
mais alta esfera do espírito.
Diego Kullmann (turma 2008-2010 do IRBr) é
bacharel em Direito pela Universidade Estácio de Sá
e mestre em Governo e Gestão Pública na América
Latina pela Universidade Pompeu Fabra (Barcelona).
21
Segundo o filósofo alemão Friedrich Nietzsche, “a arte é a tarefa suprema e a atividade propriamente metafísica desta vida”.
NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou Helenismo e pessimismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, pg. 26.
22 MONTEIRO, Ângelo. Escolha e sobrevivência: ensaios de educação estética. São Paulo: É Realizações, 2004, pgs. 193 a195.
_83
_artigos e ensaios
Deus
Gustavo Henrique Maultasch de Oliveira
E O Charlatão
Nas fronteiras do país semântico, os exércitos
do Charlatão preparavam-se para a invasão.
_84
Enquanto isso, o nosso herói...
...acordou inquieto, com náuseas; os
pensamentos granulados. Ainda deitado,
olhava para os riscos de luz que venciam as
dezenas de paletas horizontais que formavam
a cortina, e via, nas frestas, imagens que seu
quarto buscava esconder. Algumas palavras,
um ou outro logotipo, figuras geométricas.
Não chegou a ler as letras que vira, pois
as frestas parecerem formas identificáveis
já lhe era tradução suficiente do real;
qualquer outra ação seria exagerar na já
sobreinterpretação daquele mundo que o
despertou. Tornava a fechar os olhos, e era
o mundo interior, seus raciocínios, que se
consubstanciava em figuras: sequências de
imagens multiformes, em múltiplas cores
cambiantes, revezavam-se, configurando
novas formas, em infinitos fade in’s; um
agitato eletrônico acompanhava o tempo do
caleidoscópio mental.
Abriu os olhos, a realidade se impôs,
precisou ir ao banheiro. Levantou-se e, a
meados do caminho, ouvia batuque forte,
polifônico tambor de crioula – até o respiro
do encanamento mantinha ambições de
representação. No banheiro, os raios de sol
que perfuravam o cobogó traziam à vida as
poeiras que se provocavam; brincavam de
se pegarem e o convidavam à coreografia
do milagre – o da cabala de se ver, em tudo,
significado e razão. Provocado, aprendeu,
com o fino pó da luz, a provocar a realidade;
haveria de ver imagens não apenas nas
brincadeiras com as grandes nuvens no céu
em finais de semana; de pôr ordem em todo
o caos.Ver além é alucinar, ver aquém não é
para heróis; decidiu-se pela loucura. Às vezes,
só o proceder com extrema irreflexão revela
o verdadeiro prudente que se é.
Teve fé no que lhe disseram, acreditou
no que viu, aceitou o que lhe era provado:
viveu; e, ainda assim, restava-lhe pouco para
dizer sobre a realidade que lhe amaldiçoou
a igualdade da relação entre ele e o mundo.
Com as pupilas da alma dilatadas, não
demoraria muito para que as inconfidências
do real também se lhe tornassem visíveis.
Forçado a viver com a realidade, haveria de
buscar, dentro de si, solução que o apaziguasse
em sua submissão. Passou a sonhar todas as
noites com o real e com o que poderia fazer
dele; em posições trocadas, em linguagem
cifrada, comunicava-se com a realidade, ia-na
compreendendo. Perseguia imagens que lhe
informassem do mundo, testava projetos
políticos, vivia vidas inteiras de amores,
mutuamente excludentes, simultaneamente. O
que seu corpo retinha, sua alma dava forma,
caprichava, permitindo-lhe voltar a sofrer a
realidade em sensibilidade renovada. Tinha
esperança também, é evidente, mas isso não
o afastava dos sonhos; ao contrário, trazia-se
a esperança para dentro deles, pois sabia que,
humanamente, todo ser é dever-ser.
Era, portanto, através de sonhos que
se relacionavam; a experiência corpórea e
direta entesava-lhe, nada mais. E pôde, cada
vez mais, pôr os sonhos para trabalhar para
si; pôde interpretar a realidade no limite de
sua utilidade, sem deixar-se levar por uma
nova realidade, fantasiada, mas igualmente
dominadora. Não seria, definitivamente,
mulher de malandro; decidiu que sonhar
com uma banana significaria, às vezes, apenas
sonhar com uma banana.
Era-lhe providencial que o dia se dividisse
em dia e noite; era-lhe útil que ele mesmo
se dividisse em corpo e alma; era-lhe vital,
portanto, que mantivesse sua capacidade
de sonhar e que erigisse, dentro de si, o
palco em que se dariam os atos da realidade
que lhe permitiriam ser humano e moldar
o real em nome de seus projetos para a
humanidade. Suas sessões libidinais com a
realidade tornavam-se, à noite, inspirações
para seus sonhos e, com o passar dos anos,
intensificava-se seu apetite, sua busca por
sensações de qualidade, por prazeres ainda
não experimentados.
Não encenava cópias repetidas do real,
mas complexas representações dirigidas, onde
introduzia a carga humana de sua arte. Não
se distanciou do real de nenhuma maneira,
nem se vendo estanque, nem se vendo como
_85
_artigos e ensaios
incapaz de apreendê-lo e, portanto, obrigado
a contentar-se com esperanças. Enobrecia o
que sentia, abrilhantava o resultado e obtinha,
por fim, a representação do que a realidade é
e do que deveria ser.
O lisérgico, que antes inebriava sua mente,
passou a perfumar a realidade esconjurada.
A realidade exorcizada
e o livre-arbítrio
Mérito, mérito dele; mas só podia, mesmo,
ter sido assim. A realidade contém seus
elementos futuros, e ele era apenas uma das
peças biológicas da progressão real. Chegouse àquilo, mas o tempo não existe; se somente
há o devir, e o devir é o pré-devir do devir
seguinte, somente há a soma total dos devires,
o encadeamento infinito de todos os tempos.
O tempo não passa, ele já passou inteiro; toda
a história do mundo já se realizou – embora a
falta de script dispense a constatação. Seja essa
a realidade, pouco importa, em seus sonhos
ele representa o que crê ser melhor para a
humanidade; é ser humano, e ansioso com
sua insignificância diante do tempo, injeta-se
dever-ser para dormir.
Teve, uma ou outra vez, sonhos mais
poderosos, mais verdadeiros. Quando se
ocorria, seu sonho não mais se limitava aos
contornos do que havia sentido; tornou-se
impressionista, personagens borravam-se com
o tempo, os cenários fundiam-se aos ânimos,
os dizeres coloriam os olores das ideias.
Todo o espaço-tempo de todos os tempos
somou-se, sinestesiou-se a realidade, Deus
surgiu. Obrigou a Deus a criar o céu e a terra;
em seguida ele mesmo os criou, enquanto
Deus observava. Deus, como qualquer objeto
do real, estava à sua disposição, e sentiu-se
autorizado para retalhá-lo em signos e pôr
ordem ao caos. Deus existindo, há liberdade
para tudo.
_86
A máquina de sonhos
Toda a vida de nosso herói, e a
preparação para o combate – que já se
aproximava –, ele devia à máquina de sonhos,
que o usava a seu serviço. Seu corpo todo
eram terminais a alimentar a prospecção
da máquina por material imaginatório; dia e
noite, o equipamento sugava-lhe por novas
sensações, novas impressões, os quais eram
ruminados, devolvidos à realidade, para
novos processamentos consecutivos. A
máquina não descansava nunca; por mais que
porventura se tentasse fechar, a inquietude
entrava-lhe pelas narinas.
Ao final de cada sonho, enxergava a
realidade com uma nova realidade em mente.
Não conseguia mais vê-la como antes;
quanto melhor o dia da máquina, maior a
propositividade de sua presença no mundo.
Viver era orquestrar o material de sonho
com o sonho, compondo-lhes o ritmo,
afinando seus instrumentos.
Gradualmente tornou-se capaz de delinear
seus sonhos, ainda que sem poder dirimir
sua necessidade; sonhar era involuntário, mas
com gerência possível, assim como sua ação
no mundo, necessariamente ética, mas aberta
a suas cores. Eventualmente, porém, quando
precisava libertar-se em busca de sonhos mais
puros – assim como se deu quando sonhou
com Deus – precisava borrar a realidade;
queria escutar música sem ver notas, o prazer
do som pelo prazer do som; era o contato
com a realidade pura, aliviada de seus fetiches.
E, após a fruição desses sonhos puros, podia
voltar, revigorado, a trabalhar as partituras
regentes da vida.
A invasão da gripe
Era precisamente na manipulação
dessas partituras que se configurava o
poder do Charlatão; os músicos que as
interpretassem tornariam silenciosos seus
instrumentos enquanto as seguissem. A
música do Charlatão era pura semiótica de
guerra – somente exércitos surdos-mudos
as entendiam. A luz não demandava mais o
iluminar; o semeador prescindia do semear; a
tradição, de seu arrazoado. Fazer a convicção
mais forte do que a verdade; era esse o vírus
do charlatanismo. A invasão do Charlatão
iniciou-se, assim, em guerra psicobiológica,
perfurando a membrana das terras do país
semântico, aproveitando-se das fraquezas
constitutivas dos paisanos de nosso herói.
Em pouco tempo, a virose grassou. A forma
da representação brilhava independentemente
do representado. Os significantes viraram
estrelas, caras de atenção, beneficiosas da
economia do tempo. O que serviria para
chancelar a realidade, passou a confundirse com ela; o nome vira o real, o título
vira a qualidade; o que deveria atalhar a
complexidade da realidade passou a defini-la
aos olhos de quem pouco a compreende. É o
efeito da gripe charlatã.
Delirando de febre no mundo simbólico,
circulando por representações sem voltar à
realidade para checagens, as vítimas cometem,
inevitavelmente, soluções ruins, enunciados
toscos. Descompassam-se o enunciado e a
realidade; a lei e as bases sociais que a tornam
necessária. Inevitavelmente, o vírus atingiria a
representação; significantes sem significados,
representantes sem representados. Por fim,
ninguém saberia mais o que é importante; a
política fadar-se-ia ao fracasso. No limite, a
gripe borraria o país, tornando o mundo uma
alegoria impressionista do que poderia ser uma
convivência útil; Deus tornar-se-ia impossível.
Nosso herói também dispunha dessas
mesmas ferramentas de manipulação, mas
o Charlatão não mantinha respeito aos
absolutos em referência; se a realidade
se impusesse restringindo-lhe o campo
semântico, ele simplesmente esquivava-se;
impostor, impostava a entonação e iludia os
outros; desonesto, ignorava a realidade.
Expedido às fronteiras, nosso herói dirigiu-
se ao confronto com o Charlatão. Não se
deixaria ludibriar; ordenou que o amarrassem
ao mastro de Deus, para que não o atraíssem
as seduções das facilidades. Protegido das
palavras falsas, nosso herói precisava defender
a política de seu país, repelir a incursão
charlatã e suas falcatruas para re-significar
a realidade paisana em nome de projetos
pouco úteis à convivência. Acendeu o abajur
de sua tenda, e a epifania; não pela luz, mas
pelo próprio abajur – o abajur somente seria
um abajur no dia em que acender sozinho; o
real somente seria a si próprio no dia em que
se significar sozinho. Jurou-o para si. Até lá,
dependente de seu trabalho de retalhamento,
será o que nosso herói quiser que seja, no
limite da utilidade para seu país.
Havendo encontrado a Deus, e imune
ao Charlatão – graças ao abajur epífano –,
nosso herói deveria preparar-se para curar os
afetados. Muitas máquinas em conjunto seriam
necessárias, com a humildade dos que crêem
no trabalho em grupo, e vêem a vitória de um
como o caminho para a vitória de todos – já
que um está contido em todos. A convicção
do Charlatão havia, porém, contaminado os
paisanos, que obedeciam às regras erradas;
infectados com a virose charlatã, restavam
incapazes de dar valor a seus símbolos – as
formas se corromperam, os objetivos de
amesquinharam, a incompreensão dotou-se de
jactância, o nada tornou-se capaz de vaidade.
O herói estava sozinho.
Fixou-se a trégua. O Charlatão comemora
a vitória com os paisanos, enquanto nosso
herói lamenta a derrota e põe a máquina no
trabalho de recriar a Deus.
Gustavo Henrique Maulstach de Oliveira
(turma 2008-2010 do IRBr) é bacharel em Direito
pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro
_87
_artigos e ensaios
Augusto
Ruschi:
O Homem que falava
com Beija-Flores
Ricardo dos Santos Poletto
_88
Ando dentro desta floresta
melhor do que você na rua,
sou um habitante dela
O
facho vermelho da lanterna
cintila em meio ao emaranhado de galhos
e ramos que se adensam na mata fechada.
Margeando o rio Timbuí, uma figura de
estatura privilegiada caminha com notável
desenvoltura. Com efeito, os passos ágeis
e silenciosos entre as pedras do terreno
irregular revelam grande intimidade com o
ambiente. O som de queda d’água se torna
mais forte à medida em que se avança. Ouvese, enfim, a força das águas da cascata Santa
Lúcia. O luar vence a resistência das frondes
mais altas e penetra suave, pousando sobre
trechos da trilha; e o personagem, absorto na
escuridão serena da Mata Atlântica, recostase em um de seus jacarandás favoritos, de
onde observa animais e plantas que somente
olhos treinados podem reconhecer. Desliga
a lanterna. Augusto Ruschi se mistura, por
completo, à natureza.
Foi assim durante mais de cinquenta anos
em que vocação, trabalho e filosofia de vida
se provam indissociáveis. A história de Ruschi
é a história de um
homem que respeitava
a floresta, entendia os
morcegos, namorava
orquídeas e falava com
beija-flores. Os vinte e
três anos que nos separam
da morte de Augusto Ruschi são
também anos de transformações importantes
político-institucionais, de mentalidade, de
resposta sistêmica do meio-ambiente à ação
humana. Assim, o momento de resgatar a
memória de Augusto Ruschi é também o
momento de discutir o Brasil e suas raízes,
sua vocação territorial, seus desafios, suas
responsabilidades, enfim, seu projeto de nação
e de desenvolvimento. Afinal, nunca é tarde para
rememorar exemplos do melhor da brasilidade.
Infância: iniciação científica
Enquanto não se formar a criançada
na direção certa, o futuro da natureza do
Brasil continuará ameaçado
A inclinação da família Ruschi para a
ciência deu seus frutos no Brasil quando os
imigrantes Giuseppe Ruschi e Maria Roatti
desembarcaram no Espírito Santo para
prestar auxílio técnico aos colonos italianos.
O pequeno Gutti nasceria, então, na cidade
de Santa Teresa em 12 de dezembro de
1915. Desde cedo, o pequeno teresense se
embrenhava nas matas e esquecia do mundo
dos homens e do progresso urbano-industrial
que, veloz, fagocitou o verde. Absorto em
seu mundo natural de coleções, registros e
experiências, Ruschi já vivia seu mundo lúdico
de infância naquilo que seria a razão de sua
vocação profissional e humana.
O Museu Nacional e Jardim Botânico
já recebia desde então contribuições
do precoce cientista, como quando, por
intermédio do Professor Mello Leitão,
participou de maneira decisiva das pesquisas
do entomologista Felippo Silvestre no
combate internacional à praga dos laranjais.
As atividades de campo, portanto, já eram
empenhadas desde insetos sobre a carteira da
sala de aula às suas ilustrações dos espécimes
florais do jardim cultivado pelo pai na
Chácara Anita.
_89
_artigos e ensaios
A paixão de uma vida: os colibris
A alegria do barulho desses beija-flores
ninguém vai silenciar enquanto eu existir.
Ruschi inclina levemente o pescoço,
enquanto o colibri, congelado no ar, aguarda
o momento de se aproximar. Em um átimo, a
máquina fotográfica paralisa as lépidas asas no
momento em que o bico comprido toca os
lábios do professor. Uma cena de intimidade
única entre o homem e a natureza recebeu
o fortuito título de “beijo que o tempo não
esquecerá”, em edição da Revista Manchete
no final dos anos 70.
O reconhecimento internacional da
contribuição científica de Ruschi teria eco
maior anos antes. “The man who talks to
hummingbirds” foi o título da matéria da
National Geographic Magazine, que correu
o mundo em janeiro de 1963. O jornalista
Louis Marden se confessou impressionado
com as cenas testemunhadas em Santa Lúcia;
ficara convencido de que o cientista capixaba
era capaz de se comunicar com os beijaflores que visitavam constantemente a casa
centenária incrustada na mata virgem. Narra
também a transformação do “verdureiro”
- como Ruschi era chamado pelos teresenses
por passar dias na floresta em busca de
bromélias e orquídeas - em “Dr. Augusto
Ruschi, cientista, o homem dos beija-flores”.
O menor vertebrado do reino animal,
beija-flor, colibri ou guainumbi na língua
dos caraíbas, deriva seu nome indígena dos
tons metálicos de sua plumagem: pássaros
cintilantes. A Ruschi não faltou inspiração
para nomeá-los a cada novo registro de um
árduo trabalho de identificação de espécies
e subespécies; para cada novo beija-flor, uma
marca singular de topetes, caudas, bicos, cores,
tons, chilreios e acrobacias.
Os beija-flores representavam uma grande
lacuna nos estudos ornitológicos e ambientais
da época e Augusto Ruschi abraçou a missão
de preencher esse vazio, a ponto de se tornar,
em poucos anos, precursor e inigualável
especialista. De seu interesse pelas orquídeas,
Ruschi acaba por se apaixonar por seus
_90
velozes e delicados polinizadores. Justificava:
“essa importância pessoal e biológica que eles
realmente têm para mim se estende também
para a biologia como ciência”.
Ruschi data o início de seu interesse
pelos beija-flores em 15 de dezembro
de 1934, quando descobre a polinização
da orquídea Stankopea graveolens pelo
balança-rabo-da-mata (Glaucis hirsuta
hirsuta). Com justiça, os beija-flores se
tornaram a epítome da luta de Augusto
Ruschi. Os estudos pioneiros sobre os
pequenos colibris deram origem a obras
completas sobre Beija-flores do Espírito
Santo e do Brasil em vários volumes; foi o
primeiro a ter sucesso em reproduzi-los em
cativeiros e a domesticá-los, o que lhe valeu
justo reconhecimento internacional.
O mestre: o amigo e exemplo
de disciplina
’Eu não posso estudar entre quatro
paredes. Eu quero voltar para minhas
florestas’ (…) Percebendo minha
determinação, os diretores do museu
(Nacional) concordaram em fazer uma
estação de campo em minha casa em
Santa Teresa. Meu mentor morreria em
1948, e, em 1949, eu fundaria o museu
cujo nome lhe é homenagem.
Fundamental a figura do professor Cândido
Firmino de Mello Leitão, que tomou o
jovem Ruschi por seu discípulo nas ciências.
Admirado pela observação sistemática do
ciclo de vida da praga dos laranjais, Mello
Leitão percebeu no jovem Ruschi o perfil de
um promissor naturalista. Logo, o adolescente
Ruschi passaria a trabalhar no Museu Nacional
e Jardim Botânico, onde pôde contribuir
para a catalogação da flora e fauna da Mata
Atlântica. Embora a Universidade Federal do
Brasil e a prática docente, no Rio de Janeiro,
tenham se provado uma grande escola do
rigor científico sob a supervisão do mestre
Mello Leitão, Ruschi almejava retornar logo
para sua terra natal, para execução de suas
pesquisas de campo. Ao contrário dos livros,
a natureza nunca se esgotava diante de sua
curiosidade penetrante. E, de fato, ao sinal do
primeiro pretexto, retornou para Santa Teresa,
de onde julgava mais apropriado disseminar
sua mensagem. Ruschi passou a produzir
artigos e trabalhos, além de auxiliar organismos
governamentais na formulação de políticas
públicas tangentes à temática ambiental.
As lutas: o Dom Quixote das matas
E indignação era o que mais lhe
detonava o temperamento irascível. O tom
de voz crescia de volume assustadoramente,
o rosto ficava rubro, e mesmo que estivesse
narrando um fato já ocorrido, qualquer
interlocutor sem intimidade com o mestre,
temeria que tal exaltação transbordasse
em atos ali mesmo. Nada. Só a miopia e a
iniquidade humana eram capazes de lhe
detonar tal furor.
Diógenes Rebouças Filho, Jornal A
Tarde, Salvador, junho de 1996
À febre do jacarandá, então a madeira de
lei mais cobiçada pelos serralheiros, seguiuse a febre do palmito. A corrida do palmito
teve como alvo o santuário natural que
consumira a Ruschi quarenta anos de trabalho
e conservação.
Espingarda em punho, com o chapéu
de feltro preto a escurecer seu semblante
de cenho franzido, aguardava quem quer
que fosse na soleira do casarão. Os oficiais
e topógrafos enviados pelo governo do
estado receavam em se aproximar, ao se
defrontarem com a irredutibilidade do
naturalista sentinela. As duras palavras de
Ruschi, ao prometer reagir a bala a um
ataque à sua floresta, foram respaldadas
pelo frenético bater de asas de dezenas de
colibris que congestionavam a varanda.
A alguns metros dali, assessores e
secretários andavam com livros e códigos
debaixo do braço a fim de justificar
a legalidade da autorização dada pelo
governador do estado à extração do
palmito para uma indústria de enlatados.
Ruschi, ele mesmo advogado de formação,
levantou-se contra a lei dos homens para
fazer valer o código da floresta. Não podia
aceitar definições de órgãos ambientais
contaminados por interesses econômicos.
Vinha à memória a derrubada de florestas
no norte do estado, o reflorestamento
indiscriminado de eucaliptos, o
comprometimento da reserva de Comboios,
a desertificação, o desaparecimento dos
tamanduás e bem-te-vis...
Inevitável mesmo resgatar o episódio
do decreto do governador Élcio Álvares,
quando a mensagem de Ruschi teve maior
eco, atraiu a imprensa e sensibilizou a opinião
pública para sua causa tantas vezes antes
silenciosa. No fim, após a repercussão da
caravana ecológica que se alinhou à causa do
naturalista, o governador foi sensato diante de
um gigante adversário: desistiu da execução
do decreto. No episódio de 1977, os jornais
estampavam o rosto do naturalista com a
pergunta evidente: “Você trocaria este homem
por uma lata de palmito?”. Triunfo semelhante
ele obteve na Floresta da Acesita, Sooretama,
na Fazenda Klabin e outros santuários
naturais de terrenos particulares, cujos
proprietários eram muitas vezes demovidos
do intuito de desmatar pela intervenção de
Ruschi, disposto a arcar com a compensação
pecuniária, enquanto o Estado permanecia
cego às suas responsabilidades. Salvar o
jequitibá-rosa de seis séculos foi mais uma
entre tantas. Não raro, estampavam os jornais
de Vitória: “Augusto Ruschi está metido em
outra confusão ecológica no Espírito Santo”.
As lutas contra os poderosos das grandes
corporações e da política local lhe valeram
a alcunha de “Dom Quixote das Matas”. Se
não é de todo despropositada a comparação
com o personagem de Cervantes, ela guarda
também uma abordagem ambígua da imprensa
sobre um protagonista de noticiários. Fontes
da imprensa local, sob a guarda de interesses
particulares, empreenderam política de
difamação contra as ações inusitadas
_91
_artigos e ensaios
do desafeto. As publicações nacionais e
internacionais, contudo, enalteciam a bandeira
do cientista, cujo reconhecimento científico e
moral ultrapassava fronteiras.
O Legado: defensor de maravilhas
O segredo de uma vida não está em
descobrir maravilhas, mas em encontrá-las.
Encontrar maravilhas era mesmo uma
de suas motivações. No final dos anos 50,
em visitas aos Museus Britânico e de Nova
Iorque, Ruschi se deparou com registros
do desaparecido beija-flor-de-gravatavermelha. O espécime parecia para sempre
perdido entre vidros de coleção de peles de
ornitólogos europeus e norte-americanos.
O Augastes lumachellus seria encontrado em
1961 em uma expedição de busca. Seguindo
pistas da presença do pássaro na região do
Morro do Chapéu, na Bahia, Ruschi confessa
ter vivido um momento único ao reconhecer
o beija-flor presumivelmente extinto próximo
à Cachoeira do Ferro Doido.
Outro momento de fascinante descoberta
na vida de Ruschi se deu na Serra do Navio,
quando o naturalista se deparou com um
beija-flor até então desconhecido, o beijaflor-brilho-de-fogo (Topaza pella), aquele que
consideraria o mais bonito que seus olhos
veriam em anos catalogando centenas de
espécies e subespécies. Diz-se que foi ainda
hipnotizado pela beleza do pássaro-topázio
que o cientista se deixou envenenar pelos
pequenos sapos preto-amarelos, cujos efeitos
do toque se fariam sentir alguns anos depois.
O legado de Ruschi, entretanto, não se
resume a práticas isoladas. O naturalista
formulou políticas de preservação com
base em estudos sobre a criação de bancos
genéticos, que embasariam a proliferação
de reservas ecológicas em todo o mundo.
O Congresso Florestal das Nações Unidas
em Roma, 1951, notabilizou e disseminou o
trabalho de Ruschi sobre o tema. Da mesma
_92
maneira, desenvolveu a tese da agricultura
auto-sustentável em florestas tropicais, sendo
pioneiro em pesquisas de agroecologia. Além
disso, elucidou a ocorrência das “doenças
ecológicas”, causadas pelos desequilíbrios
ambientais decorrentes da ação humana.
Mas as diversas lições de Ruschi só foram
se tornando mais claras com o tempo.
Chamado de “o profeta da desertificação”,
Ruschi prenunciara os efeitos da destruição
da Amazônia após as atrocidades cometidas
na Mata Atlântica. Dizia: “acabaram com o
estado do Espírito Santo. O Espírito Santo é
pequeno demais, contudo serve de exemplo
para ainda se evitar o maior de todos os
crimes do mundo, que é a destruição da
Amazônia”. A mudança climática, hoje no
topo das preocupações globais, já era tópico
na agenda do ecologista. O afinco de Ruschi
em todas suas expedições, estudos e lutas dá
provas de que não basta descobrir maravilhas,
nem tampouco encontrá-las; deve-se também,
a seu exemplo, defendê-las.
O Desfecho: saudades
dos beija-flores
Que os beija-flores me levem ao reino
de Deus...
O negro reluzente dos pequenos anfíbios
escondidos entre as folhagens amazônicas
chamou a atenção de Ruschi, que logo pensou
em presentear o herpetólogo alemão Peter
Wevergold. Naquela expedição ao Amapá,
em 1975, tivera a fortuna de encontrar um
beija-flor único, mas cometera a imprudência
de se deixar tocar pela peçonha dos sapos
dendrobatas. Dez anos depois, o País
acompanhava o drama do naturalista. A
mobilização de médicos e cientistas em busca
de um antídoto foi intensa, porém inútil.
Quatorze quilos mais magro, sofrendo das
dores, das hemorragias e da insônia, Augusto
Ruschi se encontrava agora, dez anos depois,
no Parque da Cidade do Rio de Janeiro para a
pajelança do pajé Sapaim e cacique Raoni, que
foram ao encontro do naturalista a pedido
do Presidente Sarney. Os sinais de melhora
foram um alento após o ritual que extraíra
do pescoço de Ruschi uma massa densa e
verde. Incansável, dizia que se a doença lhe
permitisse, concluiria algumas obras em curso:
“Macacos do Espírito Santo”, “Orquídeas
do Espírito Santo” e “Beija-flores do Brasil”.
Resistia também naquele que chamava de sua
floresta: o filho mais novo, Pietro.
“Morro de saudades, fico daqui recordando
a vida dentro dela. Por isso o meu desejo
de ser enterrado na Reserva Biológica de
Santa Lúcia.” Às 13h10 de uma quarta-feira,
dia 4 de junho de 1986, no Hospital São José
em Vitória, padecia Augusto Ruschi, aos 72
anos, após setenta dias de internação. Seu
enterro se daria no dia 5, dia Mundial do Meio
Ambiente. À margem direita da cachoeira
encontra-se o túmulo do naturalista Augusto
Ruschi, que recebe todas as manhãs a visita
dos beija-flores, em homenagem. O patrono
da ecologia no Brasil inspirou e continua a
inspirar muitos, prova de que, definitivamente,
sua luta e suas ideias continuarão a ser
polinizadas por todos nós, beija-flores.
Ricardo dos Santos Poletto (turma 2008-2010
do IRBr) é bacharel em Relações Internacionais
pela Universidade de Brasília e mestre em Política
Internacional e Comparada pela mesma instituição.
_93
RESENHA
A Viagem
de Saramago
Caio Flávio de Noronha e Raimundo
V
oltemos a meados do século XVI, quando, nos aposentos
do rei de Portugal, tomou-se a decisão de oferecer ao arquiduque
austríaco um elefante indiano. Presente de casamento de D. João III
e da rainha Catarina de Áustria ao primo Maximiliano, o elefante
Salomão é preparado para ir a pé, ou melhor, à pata de Lisboa a
Viena, invejado pela rainha por “ir gozar a vida na cidade mais bela
do mundo”, enquanto ela ficava em Lisboa, “entalada entre hoje e o
futuro, sem esperança em nenhum dos dois”.
_94
Como explica o autor em breve nota na
primeira página do livro, a ideia de escrever o
conto surgiu em um restaurante em Salzburg,
chamado O Elefante. Saramago reparou
por acaso em uma escultura de elefante,
onde havia um friso de outras pequenas
esculturas que, entre a Torre de Belém, que
era a primeira, e outra de um monumento
que representaria Viena, marcavam o
itinerário da viagem de um elefante. Com
efeito, o elefante fora um presente oferecido
pelo rei português à corte austríaca e a
viagem da comitiva entre Lisboa e Viena de
fato ocorrera por volta de 1550. O autor,
inspirado por uma história simples e inusitada,
estabelece, com muita imaginação, relações
interessantíssimas que revelam, acima de tudo,
a grandeza e a miséria da existência humana.
Entre Salomão, os reis e o leitor existe
Subhro, o conarca (tratador do elefante),
personagem central na trama. As críticas mais
afiadas ao sistema são feitas por meio da
voz do indiano, intelectualizado e crítico, eu
- lírico de Saramago no conto. Montado sobre
Salomão, ele observa as armações religiosas e
políticas que se estabelecem no decorrer da
viagem, sem compreender o ego e a estupidez
das autoridades.
Igreja e burocracia estatal são os temas
preferidos de Saramago para realizar, com
humor, crítica contundente e profusa. Em
um trecho do livro, por exemplo, Salomão
é forçado a ajoelhar-se diante de uma igreja,
de modo a protagonizar falso milagre que
impressionasse a população local. Nas palavras
do sacerdote idealizador do espetáculo,
“necessitamos mesmo esse milagre, esse
ou qualquer outro, porque lutero, apesar de
morto, anda a causar grande prejuízo à nossa
santa religião, tudo quanto possa ajudar-nos a
reduzir os efeitos da predicação protestante
será bem-vindo”.
A crítica à Pátria, por sua vez, pode ser
percebida por meio de inúmeros trechos do
livro: “nunca a viste, perguntou o comandante
lançando-se num rapto lírico, vês aquelas
nuvens que não sabem aonde vão, elas são a
pátria, vês o sol que umas vezes está, outras
não, ele é a pátria, vês aquele renque de
árvores donde, com as calças na mão, avistei
a aldeia nesta madrugada, elas são a pátria”.
O próprio elefante pode ser a pátria, que não
sabe para onde vai e se sustenta pela figura
impositiva, mas na verdade é lento e indefeso
como a burocracia do reino.
Aspecto importante de A Viagem do
Elefante é o trabalho sempre genial de
narração feito pelo autor. Em seu tradicional,
ou pouco tradicional estilo, prescinde de
nomes próprios com iniciais maiúsculas e
deixa de lado pontos finais e travessões,
optando pela vírgula, que oferece grande
fluidez ao texto. Prima na obra a interação
leitor-autor, evidenciada pela utilização
frequente da primeira pessoa do plural,
engendrando conto que tem em seu narrador
um elo constante entre o leitor do presente
e a história do passado. Nesse sentido, a
linguagem do livro é oportuna, mistura de
português contemporâneo e arcaísmos da
época de João III que torna a leitura mais
prazerosa e interessante.
Em alguns momentos do livro, o autor,
assumindo posição de narrador-filósofo,
analisa aspectos da vida humana, como
quando afirma que “o passado é um imenso
pedregal que muitos gostariam de percorrer
como se de uma auto-estrada se tratasse,
enquanto outros, pacientemente, vão de
pedra em pedra, e as levantam, porque
precisam de saber o que há por baixo delas”,
ou quando diz que “a vida ri-se das previsões
e põe palavras onde imaginamos silêncios, e
súbitos regressos quando pensamos que não
voltaríamos a encontrar-nos”. Nesse ponto,
é possível fazer referência à própria história
de vida do autor que, logo às 40 páginas de
sua empreitada literária, deparou-se com
sérios problemas de saúde que o fizeram
interromper o processo de escrita da obra.
A Viagem do Elefante, por lugares
inóspitos, caminhos difíceis e céus
estrelados é a longa marcha dos homens,
a Viagem de qualquer um de nós, que,
como afirma a epígrafe do livro, “sempre
chegamos ao sítio aonde nos esperam”. Vale
a pena viajar pelas palavras fluidas de José
Saramago nesse conto que é, sobretudo,
metáfora da vida humana.
Caio Flávio de Noronha e Raimundo
(turma 2008-2010 do IRBr) é bacharel em
Administração de Empresas pela Fundação Getúlio
Vargas (São Paulo).
_95
_pelo mundo
_resenha
ADAM
SMITH
EM
PEQUIM
Eduardo Brigidi de Mello
PARTE:
PRIMEIRA
ith e a
Adam Sm
a asiática
c
o
p
é
a
v
no
Giovanni Arrighi tem o mérito de arriscar
e ousar em suas análises, contribuindo para
o debate científico. Já no prefácio de Adam
Smith em Pequim (lançado pela Boitempo
Editorial, em 2008, em seguida ao lançamento
nos Estados Unidos, em 2007), afirma que
a tese do livro é que “quando a história da
segunda metade do século XXI for escrita
desse ponto de vista mais distante, é possível
que nenhum tema seja mais importante do
que o renascimento econômico da Ásia
Oriental. A revolta contra o Ocidente criou as
condições políticas para a passagem do poder
social e econômico para os povos do mundo
não-ocidental. O renascimento econômico da
Ásia Oriental é o primeiro sinal claro de que
essa transferência de poder já começou”.
Para Arrighi, o fracasso do Projeto para
o Novo Século Americano e o sucesso do
desenvolvimento econômico chinês, tomados
em conjunto, tornaram mais provável do
que nunca, nos quase dois séculos e meio
desde a publicação de A Riqueza das Nações,
_96
a concretização da ideia de Adam Smith
de uma sociedade mundial de mercado
baseada em uma maior igualdade entre
as civilizações. A teoria dos mercados de
Smith é particularmente relevante para a
compreensão das economias de mercado
não-capitalistas, como era a China antes
de sua incorporação secundária no
sistema globalizante de Estados europeus
e como poderá voltar a ser no século
XXI, sob condições históricas nacionais e
internacionais totalmente distintas.
O autor recupera o conceito de
“revolução industriosa”, que seria a
corresponde oriental da Revolução
Industrial. Lá, a revolução ocorreu como
desenvolvimento baseado no mercado,
sem tendência de uso intensivo de capital
e energia, desenvolvendo entre os séculos
XVI e XVIII um modo de produção que
fazia uso intensivo de mão-de-obra como
reação à restrição de recursos naturais.
A grande diferença entre esse modelo de
desenvolvimento e o do Ocidente era a
priorização da mobilização de recursos
humanos, ao invés de não-humanos.
Arrighi utiliza a perspectiva smithiana
para acompanhar a turbulência global e a
ascensão econômica da China. A origem
da turbulência é atribuída à acumulação
excessiva de capital em um contexto global
marcado pela revolta contra o Ocidente. O
resultado foi a primeira crise profunda da
hegemonia dos Estados Unidos, entre o fim
da década de 1960 e início da década de 1970.
Os Estados Unidos reagiram a essa crise
competindo agressivamente pelo capital no
mercado financeiro global e intensificando a
corrida armamentista com a União Soviética,
na década de 80, reação que teve sua
manifestação mais forte no Projeto para um
Novo Século Americano, implementado pela
administração de George Bush Pai.
Analisando o fracasso desse projeto, o
autor afirma que a Guerra do Iraque foi forte
indicativo de que a força ocidental atingiu
seu limite. Assim como a derrota no Vietnã
levou os Estados Unidos a trazer a China de
volta à política mundial para conter os danos
políticos do fracasso militar, o resultado da
debâcle iraquiana pode significar o surgimento
da China como a verdadeira vencedora da
guerra dos Estados Unidos contra o terror.
Nesse cenário, o autor ressalta que é falha a
tentativa de prever o comportamento futuro
da China com base na experiência do sistema
de Estados ocidental.
PARTE:
A
D
N
U
G
E
S
ento da
Rastream
ia global
c
n
lê
u
b
r
tu
Arrighi recorda que Smith via a China
como modelo de desenvolvimento
econômico a ser promovido pelos governos,
por seguir um caminho “natural” baseado
no comércio interno. Não via superioridade
no modelo europeu, pois não acreditava
em crescimento ilimitado do capitalismo,
como Marx acreditava. Smith era enfático ao
afirmar que a acumulação interminável de
capital (poder capitalista), em um contexto de
liberdade do mercado, deveria ser atenuada
com ação do governo.
O antigo modelo chinês estaria
mais próximo desse ideal, pois buscava
desenvolvimento não-capitalista com base
no mercado, priorizando o comércio interno
e a agricultura como lastro para a indústria
manufatureira. Posteriormente, eventuais
excedentes seriam comercializados no
mercado externo, ao contrário do modelo
europeu, que priorizou a conquista de
mercados externos.
O que caracterizou o modelo europeu
como capitalista, diferenciando-o do chinês,
foi a sinergia entre capitalismo, industrialismo
e militarismo, impulsionada pela competição
entre Estados. Essa simbiose, que gerou círculo
virtuoso de enriquecimento e de aumento
de poder dos povos de origem europeia,
teve por contrapartida um círculo vicioso
correspondente de empobrecimento e perda
de poder para a maioria dos outros povos.
Após séculos de fricção entre tais
círculos, o sistema começou a entrar em
crise profunda a partir da aceleração da
desigualdade, que até o início da década
de 1960 foi um jogo de soma positiva, uma
simbiose entre centro e periferia. Na década
de 1970, a queda das taxas de lucro e o
“quando a história da
segunda metade do século
XXI for escrita desse ponto
de vista mais distante, é
possível que nenhum tema
seja mais importante do qu
o renascimento econômic
da Ásia oriental.
_97
_pelo mundo
_resenha
aumento da competição econômica geraram
excesso de capacidade produtiva mundial
e, por consequência, mais pressão sobre o
lucro. Repetiu-se, assim, a tendência dos ciclos
hegemônicos anteriores: boom econômico
– intensificação da concorrência – redução
da lucratividade – estagnação comparativa
– aumento da lucratividade com base na
expansão financeira da principal economia.
Como resultado desse processo, a
mudança fundamental nas relações NorteSul tem em seus bastidores a tentativa dos
Estados Unidos de conter o desafio do
nacionalismo e do comunismo no antigo
Terceiro Mundo. Assim como a Inglaterra em
seu período de crise de hegemonia, uma das
táticas norte-americanas foi a financeirização,
que acelerou o desenvolvimento desigual e
desestabilizou sua própria hegemonia.
A PARTE:
TERCEIR
onia
A hegem
da
desvenda
O fracasso da aventura no Iraque reforçou
a tendência de recentralização da economia
global na Ásia oriental e, dentro desta, na
China, trazendo questionamentos importantes
sobre a diferença entre os modelos primitivos
de desenvolvimento europeu (capitalista) e
asiático (não-capitalista).
O processo de desenvolvimento
capitalista, ou modelo europeu, seguiu
política de Estado e de império, bem
como processos de acumulação de capital
no espaço e no tempo. Esses processos
foram impelidos por uma lógica territorial,
limitadora da lógica capitalista de acumulação
interminável de capital. A saída para o
impasse da limitação territorial, em todas
as fases de reorganização e/ou transição
econômica, foi a financeirização.
Outro traço do modelo de
desenvolvimento capitalista, típico de sua
extroversão, é que ele tem origem no
surgimento dos Estados territoriais como
principais agentes da expansão capitalista.
Esse processo, como visto, baseou-se na
fusão entre capitalismo, militarismo e
imperialismo. Tal estratégia foi reforçada
por elementos como a comercialização da
guerra, a expansão externa sistemática, o uso
intensivo de máquinas e a empresa privada
de grande escala.
Como a tendência natural é que a
potência hegemônica irradie capital para os
demais pólos, o que não ocorre atualmente,
Arrighi questiona:
“Por que os Estados
Unidos, em vez de
emprestar, toma
emprestados enormes
volumes de capital, como
já foi constatado, ao
ritmo de mais de 2 bilhões
de dólares por dia? E por
que é que parte cada vez
maior desse capital vem
de centros emergentes,
principalmente da China?”
Por que os Estados Unidos, em
vez de emprestar, toma emprestados
enormes volumes de capital, como já
foi constatado, ao ritmo de mais de
2 bilhões de dólares por dia? E por
que é que parte cada vez maior desse
capital vem de centros emergentes,
_98
principalmente da China? Essa anomalia
assinala um bloqueio dos mecanismos
que no passado facilitaram a absorção
de capital excedente em ajustes
espaciais de tamanho e alcance cada vez
maiores. (...) Outra razão poderia ser
que a acumulação por desapropriação
chegou ao seu limite, seja porque
o principal centro emergente está
acumulando capital por outros meios,
seja porque os meios coercitivos não
podem mais criar um ajuste espacial
de tamanho e alcance suficientes para
absorver de modo lucrativo a massa de
capital excedente nunca antes vista que
se está acumulando no mundo todo.
Nesse contexto, ressalta que as fases
de expansão financeira foram momentos
de “outono” da potência dominante.
As expansões materiais ocorrem até
o momento-limite em que os agentes
capitalistas decidem manter líquida uma
proporção cada vez maior do seu fluxo de
caixa. Ingressa-se, então, na fase financeira.
E em todas as expansões financeiras de
importância sistêmica, a acumulação de capital
excedente em forma líquida teve como
principal efeito a reorganização geopolítica
do sistema, sendo essa a grande interrogação
intelectual no século que se inicia.
QUARTA
PARTE
As linhagens da nova era asiática
Teóricos como Kissinger e Brzezinski
questionam o pressuposto de que é
inevitável o confronto estratégico com
a China, pois ambos tem interesse
em cooperar na busca de um sistema
internacional estável, que vai ao encontro
da doutrina chinesa de Heping Jueqi. Tal
doutrina afirma que a China evitará o
caminho da agressão e da expansão seguido
pelas potências anteriores no momento de
sua ascensão, pois visa crescer e avançar
sem perturbar a ordem, de um modo
que também beneficie os vizinhos e a
estabilidade sistêmica.
O autor ressalta que a dinâmica da região,
não só da China, é diversa da do Ocidente,
por não ter um histórico de impérios
comerciais e territoriais ultramarinos. Com
base no dizer de Hobbes de que a riqueza
acumulada com liberalidade é poder, porque
traz amigos e criados, a sustentabilidade da
prática na China dos séculos XVI a XVIII
dependia de não exaurir recursos naturais
e, diferenciando-se da acumulação por
desapropriação do modelo ocidental, de
não abalar a estabilidade sócio-política dos
Estados vassalos.
Arrighi, citando Stiglitz, atribui o sucesso
da abertura econômica chinesa a diversos
fatores, como abertura gradual, atenção
à estabilidade social, desregulamentação
e privatização seletivas, expansão e
modernização da educação superior, e forte
papel indutor do Estado na condução da
economia. Com esse processo complexo,
e provavelmente por incorporar traços
híbridos, surgem contradições tipicamente
capitalistas, como desigualdade social e
crescente descontentamento popular.
O epílogo resume as razões pelas quais
a tentativa norte-americana de reverter a
_99
_pelo mundo
_resenha
Essas
características
do
Consenso
de
Pequim
podem
levar
o
mundo
em
direções
radicalmente
diferentes.
Podem
levar
à
formação
de
um
novo
Bandung,
ou
seja,
uma
nova
versão
da
aliança
do
Terceiro
Mundo
nas
décadas
de
1950
e
1960,
visando,
como
o
antigo,
contrabalançar
a
subordinação econômica
transferência de poder para o Sul global
não vem sendo bem-sucedida. Ela criou
condições nunca antes tão favoráveis para
o surgimento do tipo de comunidade
de civilizações que Smith vislumbrou. A
dominação ocidental pode se repetir de
maneiras mais sutis que no passado e, acima
de tudo, ainda há a possibilidade de um longo
período de violência crescente e caos mundial
interminável. A ordem ou a desordem mundial
dependerão da capacidade dos Estados mais
populosos do Sul de abrir para si e para o
mundo um caminho de desenvolvimento
mais igualitário em termos sociais e mais
sustentável em termos ecológicos do que o
caminho que enriqueceu o Ocidente.
O que haveria mudado desde os anos de
1960, quando os países outrora chamados
“periféricos” organizaram-se pela primeira
vez, para o momento atual, em que
novamente buscam tornar mais democrático
o sistema internacional? Parte da resposta
localiza-se na atual transição por que passa
o sistema internacional, principalmente pela
ascensão chinesa. Para Arrighi, tal ascensão
pode ser considerada produto de uma
filosofia sócio-econômica com base em maior
igualdade e respeito mútuo entre os povos.
O ganho de poder relativo da China, ante a
atenção dos Estados Unidos ao terrorismo,
levou a uma inversão de papéis, dando
_100
origem ao chamado Consenso de Pequim:
um caminho para os outros países do mundo
não só se desenvolverem, mas também
se encaixarem na ordem internacional de
modo a permitir que sejam verdadeiramente
independentes, protejam seu modo de vida e
suas opções políticas.
A cooperação Sul-Sul encontra no
Consenso de Pequim dois aspectos
extremamente favoráveis: localização
e multilateralismo. A primeira reflete o
reconhecimento de ajustar as políticas de
desenvolvimento às necessidades locais,
contrariamente ao superado Consenso
de Washington. A segunda, especialmente
prezada pela diplomacia brasileira, baseiase no reconhecimento da importância da
cooperação e de uma ordem fundamentada
na interdependência econômica, mas ciosa da
diversidade cultural de cada país:
Essas características do Consenso
de Pequim podem levar o mundo
em direções radicalmente diferentes.
Podem levar à formação de um novo
Bandung, ou seja, uma nova versão da
aliança do Terceiro Mundo nas décadas
de 1950 e 1960, visando, como o
antigo, contrabalançar a subordinação
econômica e política, mas adequado a
uma época de integração econômica
global sem precedentes. Ou podem
levar à cooptação dos Estados do Sul
em alianças Norte-Sul que visem conter
a subversão, liderada pela China, da
hierarquia global de riqueza.
Arrighi identifica a possibilidade de
um “novo Bandung”, dessa vez com base
econômica razoável, pois poderia ser feito
o que o anterior não conseguiu: mobilizar
o mercado global como instrumento de
equalização das relações de poder entre
Norte e Sul. A viabilidade reside no fato
de que as bases do “antigo Bandung” eram
estritamente político-ideológicas, facilmente
vulneráveis à contra-revolução monetarista.
Agora, são basicamente econômicas e, como
tais, mais sólidas.
A predição do autor parece confirmarse, pois na nova crise financeira os países
do Sul poderão ter papel fundamental, já
que a resistência do Norte à “subversão” da
hierarquia global de riqueza e poder só pode
ter sucesso com a colaboração organizada
dos países em desenvolvimento. A condição
para tanto seria que os grupos dominantes
do Hemisfério Sul buscassem emancipar
não só seus países, como o mundo todo, da
devastação social e ecológica provocada pelo
desenvolvimento capitalista ocidental clássico:
Uma inovação de tamanha
importância histórica mundial exige
certa consciência da impossibilidade de
levar os benefícios da modernização à
maioria da população mundial, a não ser
que, para parafrasearmos Sugihara, o
caminho ocidental de desenvolvimento
convirja para o caminho da Ásia
oriental, e não o contrário. Essa
descoberta não é nova. Há quase
oitenta anos, em dezembro de 1928,
Mohandas Gandhi escreveu: “Que Deus
impeça à Índia adotar a industrialização
à maneira do Ocidente. Hoje, o
imperialismo econômico de um reino
insular minúsculo mantém o mundo
acorrentado. Se toda uma nação de 300
milhões de pessoas adotasse exploração
econômica semelhante, devastaria o
mundo como uma nuvem de gafanhotos.
Em resumo, Adam Smith em Pequim, última
obra de Giovanni Arrighi antes de sua morte,
aponta a tendência de que o século XXI trará
um modelo híbrido de desenvolvimento,
mesclando a tradição não-capitalista da Ásia
oriental e a tradição capitalista do Ocidente.
A configuração geopolítica daí derivada
pode ter como resultado a consolidação
do multilateralismo político, econômico e
cultural. Nesse cenário, o Brasil deverá assumir
sua posição de interlocutor ativo, altivo e
global, por dispor de um excedente de poder
fundamental em tempos de multipolaridade: a
capacidade de dialogar com os mais diversos
atores do sistema internacional.
Eduardo Brigidi de Mello (turma 2008-2010
do IRBr) é bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais e
mestre em Ciência Política, pela Universidade
Federal do Rio Grande Sul.
_101
POESIA E PROSA
Tatajuba
Eduardo Freitas de Oliveira
O
vento continua a soprar a areia
fina por sobre os telhados da nova Tatajuba.
Homens, mulheres, crianças, velhos – todas as
mãos afundadas nos montículos brancos que
se formavam em cada canto da vila, tentando
nos resgatar da boca infinita das dunas.
Aqui da janela vejo a praça através
da areia que sopra... A igrejinha, toda
branca, continua parada ali no centro de
tudo, impassível. As portas já estão quase
vedadas, o teto range sob o peso areia que
se acumula incessante. A igreja: a igreja é
o signo do destino que se aproxima. De
início, a comunidade acudia em mutirão
para retirar a areia que cercava o portão
de entrada, se espalhava pelos bancos e
castigava os joelhos dos que rezavam; o uivo
do vento do lado de fora era abafado pelo
canto que erguiam as gargantas ásperas.
Mas as dunas continuaram a avançar sobre
o vilarejo, mais e mais rápido, e logo todos
_102
Pedro Kuo Passos
tiveram que abandonar os cuidados da igreja
na tentativa de salvarem suas próprias casas.
Olhar pela janela agora é ver a vida correr
em dois tempos distintos: nas casas em
volta, prevalece o tempo circular de quem
luta contra a natureza. Assim que se acorda,
trata-se de desconstituir o que a tempestade
da madrugada criou. Montanhas de areia
são empurradas para fora, e tudo volta a
ser como foi certa vez. No dia seguinte, o
processo se repete – vento sopra, o homem
ressopra. Giram os ponteiros do relógio para
voltarem ao mesmo lugar; as engrenagens
são as mãos calejadas, os peitos cravados de
grãos, o rosto arranhado de areia.
A igreja, contudo, é diferente. Em meio
às casas que retornam todo dia ao mesmo
momento passado, a igreja avança, sem
relutar, rumo ao seu destino inexorável.
Nela a areia se acumula selvagem, obstrui
a passagem, pega no manto dos santos,
nas asas dos anjos, na cruz. A areia invade
a nave da igreja como invadiria uma
ampulheta, e escorre pelo altar como
escorre o próprio tempo.
Essa igreja é uma cópia fiel daquela que,
décadas antes, foi devorada pelas dunas
com o restante da velha Tatajuba. Agora
me lembro; a igreja aonde ia à missa todos
os domingos da minha primeira infância. A
igreja velha.
Olhando aqui da janela na direção do sol
nascente, ainda é possível ver uma elevação,
um pequeno promontório que se destaca
em meio à duna. É a torre da igreja velha,
que até hoje marca, para não esquecermos,
a localização – e o destino – da velha
Tatajuba. A vila que jaz embaixo das dunas
de areia fina.
Sim, me lembro; lembro de acordar
cedo e ajudar a família a retirar a areia
que, acumulada sobre o telhado, ameaçava
_103
_poesia e prosa
a estrutura da casa, que se curvava sob o
peso imprevisto. Lembro de tentar agarrar
um monte de areia para expulsá-lo e vê-lo
escorrer, rapidamente, entre as fendas da
minha mão, pelos espaços entre os meus
dedos. Contra aquela areia nada podiam
as mãos e a vontade dos homens. Ela
burlava todos os esforços e, como mágica,
permanecia exatamente onde estava. O pai
desesperava – buscava abraçar uma carga
maior de areia contra o peito e jogá-la par
fora da casa que era dele; mas a areia não
cabia naqueles braços pequenos de homem,
e se diluía ante os nossos olhos como uma
nuvem – ou um sonho.
Depois, passávamos ao interior da casa.
E o trabalho era ainda mais duro; a areia se
espalhava por todo o chão, invadia o cano
da torneira e as gavetas de roupa, polvilhava
os lençóis. Havia dias em que, para acordar,
tínhamos que fazer força para empurrar
a pequena duna que se formara sobre os
nossos troncos durante a noite.
Com o passar do tempo, era impossível
ficar sequer um segundo sem contato
com a areia. O vento a soprava sobre nós
mesmo quando debaixo da água, a ducha
do chuveiro contra a rajada que entrava
pelas frestas da janela. A mãe botava a mesa
e os grãozinhos se imiscuíam na comida,
tomavam parte no arroz. E comíamos
calados, a areia estalando dentro da boca
com o triturar das dentadas. Nada além
disso: nós comíamos areia.
Engraçado pensar nisso agora... Desde
que saímos da velha Tatajuba que não me
_104
lembrava dessas velharias, do suor dos
tempos mais difíceis. O pai chegou por aqui,
levantou a nova casa sozinho, tijolo por
tijolo – e depois morreu. Os irmãos então
passaram a sair no barco pelas madrugadas,
trazer o peixe, e a vida entrou nos eixos.
A mente apagou a memória das coisas que
passaram. Acho que se, naqueles tempos,
eu desse de pensar na velha Tatajuba sendo
tragada pelo estômago das dunas, eu mesmo
não podia acreditar.
Mas era verdade, pura verdade. Podia
se tratar de mero delírio de velha, anciã
senil perdida nesse canto do Ceará que
tem tempo demais para delirar, imaginar
as coisas mais fantásticas. Mas eu tenho
uma memória da infância que, de tão viva,
se mistura com o presente de um jeito
engraçado e um pouco torto: e a lembrança
de, no final da tarde, ficar em pé no meio
da praça – paradinha, os olhos fechados,
a respiração tranquila – sentindo a areia
esvoaçante se roçar nas minhas pernas,
se prender nos meus cabelos, entrar pela
minha boca, pelo meu ouvido, pelas minhas
narinas. Um pequeno monte de areia se
formava rapidamente sobre os meus pés e
eu me pegava imaginando que ia me fundir
na duna, me esfarelar em mil grãozinhos de
areia, voar com o sopro do vento.
E esses olhos pesados, agora... Esse vento
carregado brincando nos cabelos... Quando
era pequena, ouvia os antigos comentarem
que as dunas caminhavam. Olhava para o
horizonte e era exatamente isso – as dunas
vinham na nossa direção, devagar mas sem
Muitos já se limitam a juntar o que podem salvar
e preparar a partida; cansados de lutar contra as
dunas, preparam-se para fugir dela. Para mim, no
entanto, não faz mais sentido fugir. Fugir de quê, se
há algo inescapável que me espera?
pausas, sem concessões. É exatamente isso:
basta fechar os olhos e esperar que elas
cheguem, que venham ao meu encontro.
Os antigos... A antiga agora sou eu, esse
monte de pele jogado sobre um ranger
de ossos velhos, essa vida decrépita nesse
corpo decrépito. A igreja condenada me
lembra, da forma mais inclemente, do
destino que me espera. Me lembra de que,
apesar dos meus melhores esforços, da
minha disposição em acordar e tentar, a cada
dia, começar do zero – encher o estômago
que se tinha esvaziado, limpar os dentes
mais uma vez sujos, recostar na rede o
corpo cansado de trabalho – meu destino se
aproxima a cada dia. É impossível enganar o
tempo, tergiversar, esconder-se.
E, apesar disso tudo... Saio de casa, os
passos lentos. O cenário é apocalíptico: casas
semi-soterradas, crianças chorando, homens
desesperados. Muitos já se limitam a juntar
o que podem salvar e preparar a partida;
cansados de lutar contra as dunas, preparamse para fugir dela. Para mim, no entanto, não
faz mais sentido fugir. Fugir de quê, se há algo
inescapável que me espera? Não se pode
enganar o tempo com a distância...
Cá estou, onde meus passos
inconscientemente me levaram: o centro
da praça. A igreja é a mesma, o vento é o
mesmo, as dunas continuam sua caminhada
incessante. Se fecho os olhos e respiro
fundo, eu também ainda sou a mesma.
Ainda sou capaz de curtir os grãos de areia
rolando pelas maçãs do rosto, de ouvir o
canto da natureza, de sonhar.
Se abrisse os olhos agora, creio que veria
um horizonte cortado por filas de homens
cruzando a amplidão das dunas em busca de
uma nova vida, de um novo começo em uma
novíssima vila de Tatajuba. Mas não: sigo de
olhos fechados. Já não me interessa aonde vão,
aonde vamos. Nesse momento, já vivo numa
vila toda própria – uma vila que, oblíqua, não
cabe em nenhum recorte de tempo e espaço.
Uma vila onírica, única, que é todas as vilas do
mundo fundidas em uma. A minha Tatajuba.
Nem nova, nem velha; simplesmente minha.
Os ventos da destruição ainda sopram,
mas sinto-os passando ao largo.
Eduardo Freitas de Oliveira (turma
IRBr 2008-2010) é bacharel em Direito pela
Universidade Estadual do Rio de Janeiro.
_105
_poesia e prosa
Dedos
Bailarinos
Eduardo Brigidi de Mello
Lição política internacional: França.
Embevecido pela intemperança,
meu espírito ia longe, sem peias:
vagava no mundo das ideias - que ideias!
Mas, onde vamos?
Em que classe estamos?
Juraria que de Ciência se tratava, mas... desatinos!?
Agora, sou espectador: teus dedos, bailarinos.
Leveza/transe: tudo isso porque esculpiste uma trança!
que em meu olhar evocou uma terna dança:
cadenciado balé de dedos habilidosos
para olhos felizes, gratos, sequiosos...
Eduardo Brigidi de Mello (turma 2008-2010 do IRBr) é bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais e Mestre em
Ciência Política, pela Universidade Federal do Rio Grande Sul.
_106
delfos
Janaina Lourençato
I
Faz-te como uma revelação
na fímbria luz desta aura baça
e se te encontro em águas
não
ora a linha emerge
e se trança em marés calmas.
Fiz-te um ramalhete
na abnegação
e de que basta...
silencia-me a terra um dia
e te envolvo no seu sopro
então.
II
Perdido o dom de te predizer
eu te contradigo
e perpasso estas horas de desalinho
que a cada valsa me entorpece.
Ao timoneiro eu perscruto quem segue
e a surpresa, um rodopio.
Quem transporta a exatidão desperto?
À manhã surpreende os sonhos
a matéria certa
mas o ar que inspira retém tantos e diversos
das memórias vãs, epifania crédula.
Levianamente séria.
III
Quando destes teus versos
o meu
desta vastidão
a minha vista
do mais puro ser
esta imagem restrita.
E se
uma estrela fixa traz a certeza, a dor, a ilusão
quem sou esta luz indistinta
e num momento
estou.
Janaina Lourençato (turma 2008-2010 do IRBr) é bacharel em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília.
_107
_poesia e prosa
O
que
não
existe
mais
Krishna Mendes Monteiro
ILUSTRAÇÃO DE Pedro Vinícius do Valle Tayar
_108
N
a primeira vez em que te vi depois
de tua morte, tu estavas na sala, de pé em
frente à minha estante e aos meus livros. O
imaculado paletó bege de sempre, a cadência
firme dos sapatos a esmagar a superfície do
tapete, tu alteravas a ordem dos volumes,
retiravas compêndios, violavas páginas,
maculavas segredos e silêncios. Arrancavas das
prateleiras autores há muito ali abrigados,
personagens e sonhos por tanto tempo
esquecidos. Sem dar-me conta da distância, dos
mundos a nos separar, sem ponderar que
talvez o conhaque ou os cigarros ou os
vapores da noite aos quais me submetia
fossem os responsáveis por teu regresso, desci
os degraus que davam para a sala do sobrado
da Rua da Várzea, onde tu, eu e ela (lembras
dela?) por tanto tempo moramos. Corri
possesso pelos degraus, lancei-me à tua frente
e interpelei-te com uma bravura que em mim
nunca pulsou durante todo o tempo em que
estiveste entre os vivos. Sim, interpelei-te,
olhos nos olhos, o meu bafo áspero a arranhar
teu semblante, e disse-lhe com ares de bêbado
soberano: “Que direito tens tu de mexer em
meus livros?”. E então tu me olhaste de cima a
baixo, me deste as costas e prosseguiste em
teu lento e indiferente trabalho de violação.
Pensei em escalar a socos o teu dorso, mas,
antes de fazê-lo, lembrei-me daquele dia, do dia
de tua morte, lembrei-me da caixa de pinho
forrada de cetim em que dormias. Depositada
sobre o tapete que teus pés novamente pisam,
lá estava ela, suas seis argolas de bronze a
pender no espaço, solitárias, subjugadas.
Lembrei-me das coroas, das flores, dos círios.
Lembrei-me do aliviado adeus que te dei.
Adeus. Não, o que me agradava em ti não era a
forma como tu chegavas de surpresa na
véspera dos dias santos de fim de ano, o
carneiro nos ombros, a faca do sacrifício nas
mãos. Não me agradava a família inteira
reunida no círculo em torno de tua presença, o
cortejo em que nós, crianças, nos espremíamos
até o terreiro, onde tu, pressionando todo o
peso de teus joelhos sobre a garganta do
animal, cortava centímetro a centímetro por
entre a lã branca, vertendo o jorro de sangue
na vasilha que todos nós dividiríamos, boca a
boca, ombro a ombro, mão a mão. Todos nós,
tua prole, beberíamos juntos noite adentro,
bendito seja Ele. Não, não era isso o que mais
me agradava em ti. Gostava da maneira como
nossos olhares se fixavam quando tu, distraído
e indefeso a barbear-te, mirava-me pelo
espelho nas manhãs, da mesma forma que me
_109
_poesia e prosa
olhas agora, na primeira vez em que te vejo
depois de tua morte. Tu me olhas pelo espelho
da sala, entre um e outro volume que retiras,
que folheias, e mirando-me, emoldurado pelo
marfim a envolver o vidro, tu investigas com o
verde dos olhos este aposento, como a
perguntar, a questionar: “Onde estão todos?”
Não estão, eu vos respondo. Não mais existem,
eu vos proclamo. Deles, restam apenas pinturas
na parede. Sim, agrada-me em ti a forma
perdida com que teu semblante percorre os
quadros, o vestido de renda da irmã
reproduzido a óleo, as gravatas do tio e do avô
finamente pinceladas, a cesta de flores que ela
(lembras dela?) costumava carregar às tardes,
tão bem retratada em reflexos de verde, rosa e
carmim. E eu olho para ti por entre este
espelho, e eu a mim mesmo digo que estes
teus olhos não mais existem, que este teu
paletó bege não mais existe, que este teu
cabelo branco e nas pontas engordurado não
existe, não existe, e que a mim basta virar-lhe
as costas e retornar à cama para, de manhã,
dar com meus livros queridos na estante,
perfeitamente ordenados, como sempre os
deixei. Adeus. Acordo. Um feixe de luz irrompe
pela cortina, atravessa meu cobertor e pousa
em minha cabeceira. Levanto-me, colho em
minhas mãos essa luz e, pé ante pé, descendo
os degraus, convenço-me de que tu e tua
presença não passaram de um sonho ruim,
alimentado pelo peso frio que me corrói por
dentro. Ao fim da escada, parado defronte ao
espelho, certifico-me de que tu, de que teu
olhar, não mais habita os limites daquela
_110
moldura. E então caminho até a estante, rumo
a eles, aos meus livros, e então farejo teu
rastro ainda fresco, sinto tua respiração ainda
viva. Fora de lugar, de ordem, modificados,
aviltados, meus livros nesta estante são
testemunho de que ainda não poderei terminar
este relato, dizendo: “Encerrado, ponto final, tu
não existes mais”. Não, os livros carregam
consigo um veredicto: tu e eu estamos
encerrados aqui, nesta história, e o curso
destas linhas deve prosseguir. Continuemos,
então. O que eu queria, o que eu mais queria
em ti era que aquelas tardes em que eu te
perseguia pelos corredores durassem por toda
a eternidade. Tu partias escada acima, passo
rápido, olhando para trás e sorrindo, escalavas
desenvolto os degraus com pernas
infinitamente mais longas que as minhas.Virava
à direita. Desaparecia. E quando eu finalmente
lá chegava, no cume da escadaria, um túnel
interminável estendia-se defronte a mim,
iluminado por lustres circunspectos. Em qual
das múltiplas portas do corredor estarias tu?
Os lustres oscilavam como pêndulos. Onde
estarias tu? E então o fascínio de nossa
brincadeira infantil tinha início. Uma a uma, eu
abria as passagens, e mundos se descortinavam.
Uma mulher enchendo um jarro. Um homem
na cama com duas amantes, uma jovem, outra
velha. Um andarilho e seu cachorro. Uma biga.
A morte. Uma roda gigante. Eu, refletido no
espelho. E esta porta tão conhecida, há anos
trancada, que tento inutilmente agora abrir. Ela,
sempre ela, com sua fechadura resistente a
qualquer investida. Faço, assim, o que sempre
fiz. Bato. Bato. Bato. E a passagem se abre,
revelando todo o esplendor de teu gabinete,
de montanhosas estantes de mogno
preenchidas de alto a baixo com
encadernações. Ao ver-te sentado soberano na
poltrona, fumando um cigarro e com um
volume nas mãos, penso que até mesmo a
morte não foi capaz de te privar de tua beleza.
Sim, continuas belo. Dou dois passos e entro,
em silêncio. Sento-me a teus pés como sempre
fiz. Sabendo-me ali, tu me miras de relance, por
cima das páginas que lê. Nossos olhares fixamse um ao outro, cheios de subentendidos. E ao
contemplar o caimento de seu terno bege, o
brilho espelhado de seus sapatos de verniz, a
leveza e o equilíbrio da bengala que manténs à
tua direita, junto de ti, penso que talvez seja eu
o morto e seja tu o vivo, que eu não mais
exista e tu sim, e que, nesse caso, o sobrado da
Rua da Várzea ainda é tua legítima propriedade,
e que, sendo assim, daqui devo retirar-me, e
que, como morto que sou, devo cobrir-me de
terra, adormecer, para finalmente estar longe
de ti. Deixo o gabinete. Bato a porta. Adeus.
Acordo no terreiro, a lama cobre todo meu
corpo. É fim da tarde, uma chuva fina,
melancólica, está a cair. Levanto-me. Pé ante pé,
subindo os degraus, busco em meu bolso a
chave que trago comigo desde que partiste.
Passo a passo, degrau a degrau, arranco de meu
corpo roupas envoltas em barro, livro-me de
meu paletó, gravata, de minha camisa, calça, de
minhas meias, roupas de baixo, e atinjo, mais
uma vez, o cume da escadaria.Viro à direita.
Livrando-me de tudo de impuro que resta em
mim, marco com trapos minha trajetória no
túnel em que tanto te busquei. Acima, lustres
oscilam, circunspectos. Ladeando-me, uma
infinidade de passagens aguarda. Mas o homem
nu sabe que há tempos todos estes quartos
estão vazios. Chave nas mãos, ele abre a porta
de teu gabinete. Puxa a arca escondida atrás de
estantes em cacos, senta em tua poltrona e,
abrindo o baú, certifica-se de que, roto e puído,
teu terno lá está, de que, partida ao meio, tua
bengala lá está, de que, foscos e sem brilho, teus
sapatos lá estão, de que, morto eternamente às
sete horas, teu relógio de bolso está lá, lá está.
Bato a porta, fecho o gabinete.Tomo um longo
banho, lavo-me da sujeira. E, antes de apagar a
luz e dormir, lanço um último olhar ao homem
nu no espelho, a ele digo num sorriso que
sossegue, pois nada, nada existe mais. Boa noite.
Adeus. Sonho. São sete horas, manhã de inverno.
Reviro-me nu debaixo das cobertas, tento de
todas as maneiras encontrar desculpas para
fugir ao ônibus, ao comboio de crianças que
dentro em pouco por aqui passará. Manhã de
inverno, ruas e calçadas vestem-se de gelo, nem
mesmo este cheiro de café que inunda meu
quarto é suficiente para me despertar. E uma
porta se abre, és tu, e uma mão pousa em meus
cabelos, és tu, e uma boca em meu ouvido
sussurra coisas a sorrir, és tu, e uma voz ameaça
puxar minhas cobertas, és tu, e diz que sábado
não tardará a chegar, és tu, e por fim abre a
cortina, a janela, a luz irrompe, faz-se a luz, és tu.
Acordo trinta e seis anos depois, nesta cama, a
proteger minha vista da cegueira momentânea, e
quando consigo divisar as fronteiras do
_111
_poesia e prosa
aposento, dou contigo na janela, cobertor nas
mãos, a lançar-me um último e irônico sorriso
antes de sair, de bater a porta, de dizer adeus.
Decido-me. Desço correndo as escadas, lançome ao mundo, abandono o sobrado, as pernas
voam sobre paralelepípedos da Rua da Várzea, e,
chegando à cidade dos mortos, ao terminar de
percorrer seus labirintos, caem de joelhos sob
um último cipreste, atingem o solo como se
batessem num obstáculo duro, invisível. E os
olhos leem dizeres esculpidos na pedra - eras tu
–, e os dedos perfuram e apalpam a terra
molhada – eras tu –, e as narinas aspiram teu
cheiro, teu calor, sete palmos abaixo de mim –
eras tu, eras tu. Isso é o que penso e repito à
sombra dos ipês de nossa rua, enquanto vejo, ao
longe, a fachada do sobrado surgir. Abro o
portão. Piso a grama molhada. Passo pelos
canteiros, pelo chafariz. Noto uma cesta de
flores na soleira da porta, seus tons de verde,
rosa e carmim. Entro. Na sala, acomodados ao
redor da mesa, tu, o tio, o avô e a irmã pousam
em uníssono seus olhos sobre os meus. Sim, tu
ficas bem como estás na cabeceira, neste
assento de alto espaldar. Acomodo-me no outro
extremo, sinto a textura macia da toalha de
renda, o brilho agudo dos talheres, os retratos
vazios nas paredes. Noto um lugar vago à tua
direita, penso nela e em sua cesta de flores,
lembro-me dela, descanse em paz. E então
comemos. Juntos. Os cinco, com a mais plena
certeza de que tudo, tudo começava a acabar.
Boca a boca, ombro a ombro, mão a mão, as
mesmas vasilhas dividimos. Silenciosos,
compenetrados, olhos baixos. Comemos. Lá
_112
fora, volta a chover. Finda a ceia, levanto-me,
tomo da taça de vinho, e, de pé, a ti oferto um
brinde, olhos nos olhos, minhas palavras ásperas
a arranhar teu semblante: “Pai, tu és aquele que
eras.Tudo acabou, pai, tu morreste, pai, tu não
existes, pai, tu não existes mais.” Tímidos,
constrangidos, o tio, a irmã e o avô retiram-se
da mesa, desaparecem nas cores de seus
quadros. E então tu te levantas da cabeceira
lentamente, caminhas até mim, e com um vazio
a vincar teu rosto, traz os lábios aos meus
ouvidos e diz palavras que nunca decifrarei,
abafadas pela chuva a cair.Tu te viras,
desapareces pelo corredor, apagas com vagar
cada um dos lustres, prepara-se para dormir.
Dou-te as costas. Caminho em direção à escada,
ao meu quarto. Passo em frente ao espelho, nele
sinto meu reflexo preso, encerrado na moldura
de marfim. E ao contemplar meu terno bege, o
verde de meus olhos, ao mirar o branco e a
gordura de meus cabelos, o perfeito caimento
da bengala a me apoiar, percebo que nunca,
nunca poderei dizer: “Encerrado, ponto final, tu
não existes mais”. Não, o espelho traz consigo
um veredicto: tu, pai, estás encerrado em mim.
Olho para o corredor. O último lustre se apaga.
E ao deitar em minha cama, na última, derradeira
vez em que te vi depois de tua morte, dou-me
conta, pai, concluo, pai, que tu sempre haverás
de existir. Boa noite. E Adeus.
Krishna Mendes Monteiro (turma 20082010 do IRBr) é bacharel em economia e mestre
em Ciências Políticas pela Universidade Estadual
de Campinas.
O viajante
Irineu Pacheco Paes Barreto
À memória de João César Paes Barreto
A palavra de um cego, o som do seu violão,
Um cantor astronauta,
Um dia tocará um coração pequeno
Fazendo vibrar aquele sentimento obscuro
Com uma nota só e abundante de conhecimento.
Mas as minhas palavras
Enchem teus ouvidos de ferro velho retorcido
Quebrando os espelhos do teu quarto de vidro.
Entre os teus olhos e os meus
Há cinco segundos-luz
De detergente denso e negro
Com o qual lavo as minhas mãos
E tento me convencer
De que foi no teu coração velho, fraco e remendado
Que todas as tuas vozes se perderam
do grito à sugestão mais íntima –
Todas as tuas vozes se afogaram
Nos teus pulmões encharcados.
E me resta de ti a tua metade.
Um relógio rude que não mostra as horas passadas no teu pulso,
Uma fotografia muito antiga de quando eras muito moço,
Esfinges que se levantam como leoas famintas à caça de teus despojos,
Agora que todos os teus desejos migraram para o nada.
E me pergunto, sem sabedoria, como fazer o bem
Com esses elementos:
A tua nudez, teus pés descalços, um deles sem dedos, as tuas mãos frias,
Teu corpo inerme e inerte no interior da terra...
Haverá chegado o momento
De lançar o fim ao fogo
E forjar outro nascimento?
Irineu Pacheco Paes Barreto (turma 20082010 do IRBr) é bacharel em Engenharia Elétrica pela
Universidade Federal do Pará, mestre em História da
Ciência pela Universidade de São Paulo e autor de
Páginas Poluídas (poemas, Ed. Scortecci, 2004).
_113
DEPOIMENTO
Eduardo Brigidi de Mello
Crônicas do Sauípe
Ricardo Stuckert
Aos colegas da Turma 2008-2010 do Instituto Rio Branco,
companheiros de uma experiência incomum
La vida no es la que uno vivió,
sino la que uno recuerda
y como la recuerda para contarla.
(Gabriel García Márquez, Vivir para contarla)
_114
“A Procura da Poesia”
Uma das dificuldades de buscar a linha
perfeita é a inevitável insatisfação que ocorre
quando a ideia é traduzida em parágrafo. Melhor
dito: as ideias podem ser transmitidas pela
escrita, pois é possível estruturar tese, antítese,
síntese. Com sentimentos e percepções tudo
é mais difícil, não há conclusão, somente um
labirinto de sons, cheiros, risos, lágrimas e
cabelos ao vento. Como relatar o indescritível?
Relatado, como convencer os céticos?
Tudo começou na manhã do dia 8 de
dezembro de 2008, uma segunda-feira nublada.
Foi um voo diferente, pois o embarque
ocorreria na Estação de Autoridades da Base
Aérea de Brasília. A sala de espera, sóbria em
seus confortáveis sofás, mescla-se na memória
com jovens semblantes de expectativa,
semblantes de diplomatas ainda em formação.
Finalmente conheceríamos o famoso “Sucatão”,
apelido dos velhos Boeing 707, da Força Aérea
Brasileira (FAB).
O avião não era dos mais modernos
e a sensação era de ansiedade dúbia
– misto de medo e brincadeira –, apesar da
tranquilidade dos colegas da Aeronáutica
que nos recebiam na entrada da aeronave.
O nervosismo durou pouco: partimos para
Salvador com um fartíssimo café da manhã,
num voo que só não foi mais tranquilo por
conta da aterrissagem-mergulho na chegada,
menos de duas horas depois.
Desembarcados, fomos divididos:
Hospedagem e Cerimonial foram para
a Costa do Sauípe, enquanto Apoio às
Delegações, Credenciamento, Transportes
e “Dipligs” conheceriam o aeroporto.
Recebemos as primeiras instruções do
Ministro Eduardo Carvalho, na Sala Vip, onde
posteriormente seriam recebidas autoridades.
Fomos para o Sauípe por volta de quatro
horas da tarde: o calor, acariciado pela brisa,
evocava um clima de serenidade. Em um
lugar assim, onde se somariam, para muitos, a
primeira experiência profissional e a sonhada
participação em uma Cúpula de alto nível,
como poderíamos conter o entusiasmo?
Nesse primeiro dia tivemos a primeira
reunião no Centro de Convenções, que ainda
estava sendo preparado para a montagem
das inúmeras salas de conferências. Fomos
recebidos afavelmente pelo Embaixador Ruy
Pereira com “tenho grande alegria de ter
vocês aqui, vocês são ‘carne de canhão’, sem
vocês ele não dispara, sem vocês nada disso
seria possível”. Disse que não seria apenas “a”
Cúpula, mas “as” Cúpulas, cada uma com um
propósito especial: Mercosul, União das Nações
Sul-Americanas (Unasul), Grupo do Rio e a
inédita Cúpula da América Latina e do Caribe
de Integração e Desenvolvimento (Calc).
Essa última seria especial: pela primeira vez,
em aproximadamente dois séculos de história,
os países da América Latina reunir-se-iam
por iniciativa própria, para iniciar a definição
de uma visão latino-americana frente aos
novos desafios do sistema internacional.
Como disse o Embaixador Ruy Pereira,
“vocês poderão dizer, quando forem embora
e daqui a cinquenta anos, ‘eu estive lá’. Sejam
bem-vindos, olhem a paisagem com calma,
enquanto passam por ela a toda velocidade”...
Logo após, falou o Ministro Eduardo
Carvalho, com mais detalhes da nossa
participação. “Qualquer movimento de Chefe
de Estado deve ser indicado para o diplomata
da etapa seguinte”, “armas envolvem questão
de segurança nacional, se algo der errado...”,
“o pessoal da hospedagem vai ter trabalho,
são quase mil e cem quartos reservados para
as delegações”, “Não pensem em horário de
trabalho, em conferências internacionais as
conversas seguem noite adentro, às vezes é
na madrugada que se decidem as coisas mais
importantes”.
Os grupos reuniram-se com seus respectivos
coordenadores, encerrando o longo dia de
trabalho por volta de onze horas da noite. Essa
era a rotina, mas em alguns dias o trabalho era
menos desgastante, e, quando possível, nos
_115
_poesia e prosa
reuníamos na piscina, sob a luz das estrelas e o
arrebatamento do luar, para relaxar um pouco
ao som dos violões de alguns colegas.
A semana foi de muita pressa para que
tudo saísse perfeito nos dois dias em que se
acumulariam as reuniões, 16 e 17 de dezembro,
e pareceu interminável, pois o trabalho iniciava
cedo na sala “Grupo de Trabalho CALC” (o
“GT Calc”). O “GT” era bem agradável, já que
o ar condicionado aliviava o calor úmido e
pesado do Sauípe. O ambiente não poderia ser
melhor, pois o trabalho era mesclado com as
brincadeiras e a vista: se o “GT Calc” estivesse
muito cheio, bastava sair para contemplar o
mar, ou trabalhar nas mesas do lado de fora.
O GT Calc, por vezes, entrava em ebulição.
Montagem de manuais, de programas, o pessoal
do credenciamento com caixas e caixas de
credenciais, “Embaixada da Colômbia, atende!”,
o barulho constante da impressora, que se
somava à irritação por ver a miragem da piscina
logo ali, “Quem quer programa!?”, “Fecha a
pooorta”, reuniões de emergência, “Diplig, diplig,
alguém?!”, “E a cachaça para o brinde, já foi
providenciada?”, a disputa pelos computadores,
“Afinal, o Presidente Uribe vem ou não
vem?”, “Alguém de transporte? Carro para
presidência da República’... ‘eu gelo quando ouço
‘Presidência da República’”, sugestões de colegas
da coordenação de “não caiam na ansiedade
dos jovens, acalmem-se, as respostas virão na
hora certa”, “o presidente fulano não gosta de
ar-condicionado, o beltrano só toma café de tal
lugar”, e assim o dia inteiro.
Dos cinco hotéis que formam a Costa
do Sauípe, quatro deles foram fechados
para as Cúpulas. Ficam todos perto do mar,
divididos pela Vila Nova da Praia, centro
com lojas e restaurantes. Hospedados no
Hotel Conventions, o mesmo das delegações
de Brasil e Cuba, costumávamos jantar no
restaurante do Hotel Suítes, onde ficava o
“GT Calc”. O restaurante tinha como atração,
nas mesas ao ar livre, uma combinação
especial: calor-brisa, música ao vivo, cardápio
_116
seleto e amizades sendo construídas à base
de muita risada. Risadas, aliás, que enchiam
o GT sempre que surgia alguma brincadeira
para descontrair e manter o companheirismo
em momentos de tensão, pois sempre é bom
saber, na SERE, quem é o seu colega.
Na noite do dia 12, a base do trabalho estava
pronta. Depois de um jantar na Vila, voltamos
para o hotel e ficamos conversando na varanda,
com vista para uma grande área verde, para
a piscina, para o mar. Quando apareceram os
colegas do credenciamento, que até então
estavam em Salvador, foram ovacionados ao
chegar de ternos em meio às camisas, já que
o traje no Sauípe era mais informal. Como um
batalhão que retorna do “front”, ouvimos muitos
causos, confirmando o que havia pensado quando
chegaram:“a noite vai ser longa...”
Os preparativos finais para as Cúpulas
começariam na manhã seguinte.
“Vengo del Sur”
No dia 15 de dezembro, além de a
mesa do meu quarto ter sido requisitada
para o café da manhã do Presidente da
República, iniciou-se a chegada dos Chefes
de Estado e de Governo. Antes disso, já havia
testemunhado a chegada do Ministro de
Estado das Relações Exteriores, Embaixador
Celso Amorim, e do Secretário-Geral das
Relações Exteriores, Embaixador Samuel
Pinheiro Guimarães, ao Hotel Conventions.
Nesse mesmo local, vários colegas
aguardavam o novo Presidente de Cuba, Raúl
Castro, principal atração do evento, em sua
primeira viagem internacional.
Sua chegada foi tranquila, aceitando a
fita do Senhor do Bonfim oferecida pelas
baianas, antes de rápida entrevista à agência
espanhola EFE: “Señor Presidente, para sair
do isolamento Cuba fará concessões?”,
“Concessões a quem?”, respondeu Raúl,
para surpresa da jornalista, ao que ele seguiu
sorridente, dizendo que Cuba estava disposta
a conversar, desde que em igualdade de
condições1. O Presidente Lula, mais tarde,
disse que “Cuba não tem que fazer nenhum
gesto. Quem tem que fazer um gesto são os
EUA, que fizeram o gesto de bloquear”2.
Nessa mesma noite, fui ao Hotel Golf&Spa,
de arquitetura mais tradicional e um lobby
sempre agradável, assistir à chegada do
Presidente da Bolívia. Evo Morales chegou sem
alarde, saudando a todos, vestindo calça jeans e
a tradicional jaqueta com bordados indígenas,
acompanhado de seus filhos adolescentes.
Mantinha fisionomia serena em momento
delicado na Bolívia, que enfrentava conflitos por
autonomia em algumas regiões. Nesse mesmo
hotel estavam, entre outros, os Presidentes de
Argentina, Paraguai,Venezuela, Equador.
O dia seguinte, 16 de dezembro de 2008,
seria o mais importante. Acordando um pouco
mais cedo que de costume, às seis da manhã,
começamos a preparação da Cúpula do
Mercosul, a primeira das Cúpulas de Salvador,
cada um na respectiva função: preparar os
cortejos dos Chefes de Estado e de Governo
até o Centro de Convenções, para serem
recebidos pelo Presidente da República, Luiz
Inácio Lula da Silva; coordenar a imprensa;
preparar as salas de reuniões com todos os
detalhes do cerimonial; atender à multidão que
congestionava o posto de credenciamento.
Os celulares não paravam de tocar, e cada
um de nós recebia ligações de quase todos os
colegas, uma após a outra. Pode-se dizer que
todos falaram com todos em poucas horas:
nada mais simbólico para expressar os laços
de companheirismo que formamos desde o
primeiro dia.
Fora da Sala Plenária havia, além de telões,
comes e bebes: água, suco de acerola e laranja,
café, acarajé, vatapá e salgados. O mais saboroso,
porém, eram as impressões: o Presidente
do Paraguai, Fernando Lugo, vestindo uma
serenidade de bispo, acidentalmente pisou o
pé de um colega, “perdón, perdón, como estás,
chico”. Ao lado, no almoço na Tenda Presidencial,
os Presidentes Lula, Evo e Cristina conversavam
e riam, enquanto os Presidentes Lugo e
Correa trocavam ideias ao lado. A Presidente
Bachelet procurava a sala dos presidentes, eu
e mais três colegas ouvíamos o Presidente
Chávez conversar com um grande grupo, o
Presidente Evo perguntava pelo toalete, “por
allá, Señor Presidente”, o Presidente Lula
elogiava o cardápio para um assessor, “estava
boa a comida”...
A XXXVI Reunião dos Chefes de Estado
do Mercosul não conseguiu atingir seu
objetivo principal (o fim da dupla cobrança
da Tarifa Externa Comum – TEC), mas
avançou em diversos pontos, a começar pelos
inúmeros encontros entre representantes
de governos estaduais e da sociedade
civil, realizados paralelamente aos eventos
presidenciais. Ponto importante foi o item
13 do Comunicado Conjunto dos EstadosPartes do Mercosul e Estados Associados,
em que se registrou a satisfação pela
realização, em 10 de agosto, do Referendo
Revogatório na Bolívia, com participação da
Missão Observadora Eleitoral Ad Hoc do
Mercosul. No item 12 do mesmo comunicado
foi reiterada a Declaração de 25.06.1996,
reafirmando-se o respaldo aos “legítimos
direitos” da Argentina na disputa de soberania
relativa à questão das Ilhas Malvinas.
O Mercosul também celebrou a
implementação do Sistema de Pagamentos
em Moedas Locais entre os Bancos Centrais
1 15/12/08
- 23h28 - Atualizado em 15/12/08 - 23h30 “Raúl Castro é o primeiro governante a chegar à Costa do Sauípe”
(http://g1.globo.com/Noticias/Mundo/0,,MUL924047-5602,00-RAUL+CASTRO+E+O+PRIMEIRO+GOVERNANTE+A+CHEGA
R+A+COSTA+DO+SAUIPE.html
2 Entrevista coletiva concedida pelo Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, após almoço oferecido ao Presidente da
República de Cuba, Raúl Castro, http://www.info.planalto.gov.br/download/Entrevistas/[email protected]
_117
da Argentina e do Brasil, permitindo que o
comércio bilateral seja efetuado em moedas
nacionais. Além disso, foi reforçado o
compromisso com o multilateralismo e com a
reforma integral das Nações Unidas.
Já a Reunião de Cúpula Extraordinária da
União de Nações Sul-Americanas (Unasul) foi a
criação do Conselho de Defesa Sul-Americano,
com o objetivo de construir uma identidade
sul-americana em matéria de defesa que
contribua para o fortalecimento da unidade
região. Aprovado apenas 7 meses após sua
proposição pelo Brasil, tem como propósito
aperfeiçoar a confiança mútua e aumentar a
cooperação em matéria de defesa.
Logo depois, a manifestação do Presidente
da Venezuela provocou risos ao divulgar o canal
de televisão Telesur. Disse que a Presidente
Bachelet assistia a tal canal todos os dias, ao que
ela respondeu brincando “só para poder te ver,
Presidente”... No fim da reunião, o Presidente
Lula, lembrando que o tempo era curto, brincou
ao dizer “companheiros e companheiras, temos
um problemita”, confirmando o clima de
descontração.
Ainda no dia 16, ocorreu a reunião
extraordinária do Grupo do Rio, conduzida
pelo Presidente do México, Rafael Calderón,
que aprovou a entrada de Cuba no bloco
de discussões políticas regionais, criticandose o embargo dos Estados Unidos à ilha,
qualificado pelos participantes como
incompatível com o novo momento mundial,
de reforço do multilateralismo e do diálogo
político aberto, relembrando-se das 17
resoluções consecutivas da Assembleia Geral
das Nações Unidas contra o bloqueio.
No dia seguinte, era a vez da reunião mais
esperada: a I Cúpula da América Latina e do
Caribe de Integração e Desenvolvimento
(Calc), resumida pelo Ministério das Relações
Exteriores do Brasil na nota 695, de 14
de dezembro de 2008. Para o Itamaraty,
representou uma oportunidade inédita de
avançar uma agenda comum, construída a
_118
partir de uma perspectiva própria latinoamericana e caribenha, a ser marcada pelos
valores da cooperação e solidariedade, em
uma visão renovada para o século XXI.
Os Presidentes Lula e Chávez ditavam o
ritmo de descontração das Cúpulas. Após
uma saída para uma reunião bilateral com a
Presidente da Argentina, Cristina Kirchner,
o Presidente da República dirigiu-se ao
mandatário venezuelano dizendo “acho que
está na hora de chamar o companheiro
Chávez, pois ele já está tirando os sapatos...”,
“Compañero Lula, o problema é se meu
chanceler, que calça 48, atirar os dele”...
Um dos temas mais discutidos, e que
mais ganharam espaço na imprensa, foi
o bloqueio dos Estados Unidos a Cuba.
A Bolívia chegou a pedir um boicote dos
latino-americanos enquanto tal bloqueio
persistisse, mas o Presidente Lula afirmou
esperar melhoras na política externa norteamericana em relação à América Latina
e ao Caribe, na entrevista coletiva dos
mandatários, feita no Hotel Golf&Spa.
Por fim, na Declaração de Salvador, que
resume a Calc, assumiu-se o compromisso
com o desenvolvimento regional integrado,
não-excludente e equitativo. Celebrou-se
o resgate da memória dos processos de
independência, bem como as demais ações
para gerar consciência sobre o passado
compartilhado como povos das Américas,
projetando um futuro que os encontre
integrados em sua diversidade.
“Farewell”
Apesar de algumas divergências específicas,
perfeitamente naturais, o que prevaleceu foi o
clima propício ao diálogo, a fim de construir
uma visão integrada e autônoma para os
problemas da região, principalmente quanto à
integração regional e energética. Em tempos
de consolidação do multilateralismo, permitiu
iniciar uma abordagem que uniformiza a
...“Embaixada da Colômbia, atende!”, o barulho constante da impressora,
que se somava à irritação por ver a miragem da piscina logo ali, “Quem
quer programa!?”, “Fecha a pooorta”, reuniões de emergência, “Diplig,
diplig, alguém?!”, “E a cachaça para o brinde, já foi providenciada?”, a
disputa pelos computadores, “Afinal, o Presidente Uribe vem ou não vem?”,
“Alguém de transporte? Carro para presidência da República’... ‘eu gelo
quando ouço ‘Presidência da República’”...
Eduardo Brigidi de Melo
_119
relação da região com o sistema internacional,
de forma altiva e previsível, características
fundamentais para o desenvolvimento.
O novo momento permite recordar o
estado das relações da região há 50 anos,
quando Pablo Neruda satirizou a América
Latina no poema “Reunión de la OEA”, em
que os países da América Latina oferecem
suas tradições e produtos para agradar ao
representante norte-americano, que dita
acordos sem tomar conhecimento da região.
Neruda ironiza tal época nas últimas linhas
do poema: “Señores, la OEA tiene defectos /
pero es deliciosamente unánime”.
O que diria, agora, das Cúpulas de
Salvador? Certamente o poeta ficaria
inspirado pela inédita iniciativa brasileira de
reforçar os laços da região, pois, como disse
o Ministro Celso Amorim, é importante
“que nós sejamos capazes de tratar dos
nossos problemas – nós, que somos países
em desenvolvimento dessa parte do mundo”
(“América Latina: Cúpula sem tutela”, Correio
Braziliense, 16.12.2008).
Na memória, as recordações multiplicamse e condensam-se, sem cronologia certa, e
por isso as notícias começaram a se misturar
com os momentos em que o tempo parecia
parar. Política, amizade, céu estrelado, violão
na piscina, correria por urgências, trabalho,
família, mundo novo: “Chávez nega hegemonia”,
“Lugo apóia equatorianos”, “O mergulho de
Bachelet”, “Endividados demonstram união”,
“Líderes sonham alto”, “ Criação de fundos
para a integração”, “casamento, tu também!?”,
“Transferência de tecnologia sobre produção de
biocombustíveis - Integração energética”, “que
bom que não passei no concurso de 2007”,
“Programas de redução da mortalidade infantil”.
As Cúpulas chegaram ao fim, como todo
sonho, e no Sauípe reapareceu o menino que
fui, lamentando mais uma vez a passagem do
tempo. A melhor maneira de festejar seria ir
para a piscina do hotel All Inclusive, aquecida,
com risos fáceis e estrelas ao alcance da
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mão. Nesse momento, fomos interrompidos
por um chamado do Embaixador Ruy
Pereira: todos no saguão do Golf&Spa,
oito horas, sem atraso. O penúltimo ato
seria o agradecimento do Embaixador Ruy
Pereira, do Ministro Eduardo Carvalho e dos
Coordenadores de cada setor.
Nessa hora ouvi uma colega confessar
que “quando o Embaixador começou a falar,
me deu vontade de chorar”. A vida, que
aos poucos vai nos dando uma face séria e
respeitável em lugar do sorriso infantil, desta
vez terá que redobrar o esforço. A noite foi
longa, ventosa, musicada, e a nostalgia, nada
mais que uma saudade resignada, já tomava
minhas impressões quando fomos todos
jantar no restaurante do Hotel Golf&Spa, em
meio a fotos de despedida da brisa de praia
do Sauípe, que ainda sinto, suave, na memória.
Despertávamos para a realidade sabendo
de mais um compromisso no dia seguinte:
o Ministro Celso Amorim convocou-nos
a comparecer a seu gabinete, no Palácio
Itamaraty. A reunião foi gratificante e
encerrou nossa participação de forma única.
Após cumprimentar-nos, disse que havia
percebido a alegria dos colegas mais jovens
que trabalharam no evento ao andar pelo
Centro de Convenções. Falou que as Cúpulas
marcarão o Governo Lula, pois foram uma
grande oportunidade de os países da América
Latina e Caribe reunirem-se sozinhos, a fim
de discutirem seus próprios problemas.
Posteriormente, questionado em
entrevista sobre qual foi seu momento
mais difícil e qual o de maior gratificação
nos últimos sete anos como Chanceler, o
Ministro Celso Amorim afirmou:
- Olha, é difícil escolher um só.
Por exemplo, quando assinamos
aqui o tratado da Unasul, tínhamos a
consciência que estávamos fazendo uma
coisa histórica. (...) Agora, houve outros
momentos. A Cúpula do Sauípe no final
do ano, reunindo pela primeira vez em
200 anos de vida independente todos
os países da América Latina e do Caribe.
Uma coisa extraordinária!” (Caros
Amigos, ed. 143, março de 2009).
Política, amizade e acaso marcaram as
Cúpulas, e o espírito do Sauípe perpassará
as carreiras dos jovens diplomatas que lá
estiveram. Recordo de personagem do
romance “Um Livro em Fuga”, de Edgard
Telles Ribeiro, em palestra para alunos do
Instituto Rio Branco:
Permito-me recomendar que, em
suas carreiras, não busquem receitas
fáceis ou previsíveis, não sigam pistas
já trilhadas, nem briguem contra o
destino. E que, nesse processo lento e
sinuoso, permaneçam fiéis a seus ideais
de juventude. Para que, um dia – e a
ousadia do comentário me leva a falar
sorrindo –, os retratos em três por
quatro de suas atuais identidades sejam
capazes de confrontar as figuras solenes
que ostentamos todos mais ao final de
nossas vidas, sem que o espanto e a
tristeza prevaleçam.
Os desafios profissionais irão tornar a vida
mais difícil e a poesia da Calc será desafiada
pela prosa do Ministério, prosa muitas vezes
pesada e estressante. Que não percamos
o sinuoso encantamento dos versos que
atiramos ao vento do Sauípe, um lugar que
só nós conhecemos, só nós sabemos o quão
especial foi, uma praia em que todos os
minutos foram breves, mas vastos.
Eduardo Brigidi de Mello (turma 2008-2010
do IRBr) é bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais e
Mestre em Ciência Política, pela Universidade
Federal do Rio Grande Sul.
Ricardo Stuckert
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Juca 3 - Ministério das Relações Exteriores