Política e Segurança Pública: uma vontade de sujeição. edson lopes* Frederic Gros1 enfatiza que é tarefa da filosofia, na atualidade, refletir sobre o novo conceito de segurança, biopolítico, diretamente relacionado com a vida e menos com o território, com a multiplicidade dos indivíduos, seus crescimentos, suas fragilidades, seus agressores e seus processos de desenvolvimentos. Esta noção de segurança está em sintonia com todos os sentimentos democráticos e introduz o indivíduo no espaço central, determinante dos efeitos de riscos, sofrimentos e vitimização. Foucault, na passagem das histórias das tecnologias de segurança para uma história das governamentalidades; aborda uma mutação capital na história, o poder sobre a vida, chamado biopoder. Tanto o curso Segurança, território e população (1977-1978), quanto Nascimento da Biopolítica (1978-1979), pelo menos, em seus traçados iniciais, pretendiam analisar, as formas de experiências e racionalidade a partir da qual se organizou no Ocidente o poder sobre a vida. O centro de gravidade dos cursos apresentam, no entanto, uma outra inflexão, um deslocamento para a questão do governo. Para Senellart2, se trataria de um inflexão radical que provocaria o deslocamento da analítica do poder para a ética do sujeito. Em Segurança, território, população (1977-1978)3, Foucault apresenta seu curso, estudos e análises, não como uma disciplina, fosse história, sociologia ou economia, mas como elemento de uma passagem de uma coisa para outra, relativa à filosofia. Foucault, nesta circunstância não vê outra definição à palavra filosofia, senão relativa à política da verdade. Portanto a política da verdade, a análise dos mecanismos de poder, têm o papel de mostrar quais são os efeitos de saber que se produzem em nossa sociedade por obra das lutas, dos enfrentamentos, os combates que vivem nela, assim como as táticas de poder que são os elementos dessa luta. A análise, como Foucault a propõe, perpassa a organização de indicadores táticos, instala campos de forças reais, linhas de forças, alguns desvios e obstáculos, pelos quais se orienta e atravessa uma análise que se pretende eficaz em termos táticos, embora condicionais. Só isso pode dar conta à inquietação do que pode ser feito ou do que é preciso fazer. Este é o círculo da luta e da verdade, da prática filosófica. Ao início do curso Segurança, território, população (1977-1978), Foucault projeta a pergunta: “o que podemos entender por segurança?” A forma contemporânea do que pode ser entendido como segurança, apóia-se nos dispositivos de segurança e se organiza, segundo Foucault, em torno das novas formas de penalidade e distribuição dos mecanismos, em torno das técnicas neoliberais norte-americanas e também européias. Não há era do legal, era do disciplinar e era da segurança. Não há mecanismos de segurança que tomem o lugar dos mecanismos disciplinares, que por sua vez tenham tomado o lugar dos mecanismos jurídico-legais. Há, no entanto, “uma série de racionalidades complexas cuja mudança afetará as mesmas técnicas que aperfeiçoam ou em todo caso complicam, mas que vão mudar a correlação entre os mecanismos jurídico 1 *Mestre pelo Programa de Estudos Pós-graduado em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Integrante do CCS. Cf. Frederic Gros. Etats de violence: essai sur le fin de la guerre. Seul, Gallimard, 2006. 2 Michel Senellart. “situación de los cursos” in Sécurité, territoire, population. Cours au Cóllege de France (1977-1978). Paris, Seuil & Gallimard, 2004. 3 Michel Foucault. Sécurité, terrioire, populatión. Cours au Collège de France. 1977-1978. Paris, Seuil & Gallimard, 2004. legais, os mecanismos disciplinares e os mecanismos de segurança”4. Foucault pretendia mostrar neste curso em que consiste algumas das tecnologias de segurança, à medida que mobilizavam a reativação e transformação das técnicas jurídico legais e das técnicas disciplinares que havia abordado em cursos anteriores. Este objetivo se desdobraria, posteriormente, à história e emergência, de um fenômeno capital que constitui uma das mutações mais importantes das sociedades humanas, a introdução e a organização das teorias de polícia e razão de Estado. Foucault problematiza a emergência da matriz da razão política moderna nas sociedades ocidentais através de duas séries, uma individualizante e outra totalizante: 1) tendência que remete à idéia cristã, à organização cristã do tema do pastorado, de um poder pastoral encarregado dos indivíduos, para conduzi-los em direção à salvação, forma de poder característica do Ocidente cristão, densa e de longa duração. “A idéia de um poder pastoral é a idéia de um poder exercido sobre uma multiplicidade e não sobre um território. É um poder que guia através de uma meta e serve de intermediário no caminho até ela. Portanto, é um poder finalista, um poder finalista para aqueles sobre quem se exerce, e não sobre uma unidade, em certo sentido, de tipo superior, trate-se da cidade, território, o Estado, o soberano [...]. É um poder, por último, que aponta de uma vez a todos e a cada um em sua equivalência paradoxal, e não a uma unidade superior formada pelo todo.”5 2) outra tendência que remete à idéia de razão de Estado, que emerge historicamente, como princípio de fortalecimento estatal. Estas duas séries acoplam-se, em torno do século XVIII no conceito de polícia, cujo objetivo é aumentar o poder de Estado, cuidando metodicamente da felicidade de seus súditos, os governados, da população “naturalmente” dependente de fatores suscetíveis para modificá-la de maneira artificial. Assim, começa a surgir, como derivado da tecnologia da “polícia” e em correlação com o nascimento da reflexão econômica, o problema político da população e o problema político do “pacto de segurança”. Esta população não é um agrupamento de sujeitos de direito, nem um conjunto de braços destinados ao trabalho. Ela é analisada entre os séculos XVII e XVIII como um conjunto de elementos que de um lado estão vinculados ao regime geral da espécie humana e de outro a intervenções calculadas, a campanhas. Portanto, Foucault lida com um saber político que ia situar no centro de suas preocupações a noção de população e os mecanismos capazes de assegurar sua regulação. A pergunta: “O que podemos entender por segurança?”, formula uma crítica do presente6 no contexto de um saber político que se desbloqueia em função da noção de população, na história que vai ser a história das técnicas, da correlação dos mecanismos propriamente ditos e pelo sistema de verdade propriamente dito. Foucault não enuncia uma sociedade de controle e nem mesmo uma sociedade de segurança, não enuncia a passagem de um Estado territorial para um Estado de população, porque não se trata do estado de uma situação, mas de um deslocamento de acento e da aparição de novos objetos, novos problemas e técnicas. “O que se passa, então, atualmente? A relação de um Estado e a população se faz essencialmente sob a forma do que se pode chamar de “pacto de segurança”. Outrora, o Estado poderia dizer: “Eu lhes concedo um território” ou: “E lhes garanto que vocês vão poder viver em paz dentro de suas fronteiras. Este é o pacto territorial e a garantia das fronteiras era a grande função do Estado. Hoje, não se trata deste problema. O que o Estado propõe como pacto 4 Id, p. 21. Id., p. 158. 6 Michel Senellart. Situation des cours in Michel Foucault. Sécurité, territoire, population. Corus au Collège de France.1977-1978. Paris, Seuil & Gallimard, 2004, p.435. 5 à população é: “Vocês serão garantidos”. Garantia contra tudo que pode ser incerto, acidental, danoso, arriscado. Vocês estão doentes? Terão a Segurança Social! Não têm trabalho? Terão um seguro desemprego. Há uma catástrofe? Criaremos um fundo de solidariedade! Há delinquentes? Asseguraremos seu endireitamento, uma boa vigilância policial! Esta cota de solicitude onipresente, é o aspecto sob o qual o Estado se apresenta. É esta modalidade de poder que se desenvolve.”7 Esta intersecção, este acoplamento que corresponde à matriz da razão política moderna, incorpora emergências substancias tais como as transformações dos mecanismos de poder do direito soberano de causar a morte ou de deixar viver às exigências de um poder que gera a vida e “se ordena em função dessa própria geração” 8, que se exerce positivamente sobre a vida, como garantia desse “pacto de segurança”. Ultrapassagem de um poder soberano de causar a morte ou deixar viver por um poder de causar a vida ou devolver à morte, que se desenvolveu em duas formas principais, apoiando-se no corpo como máquina e no corpo-espécie, relativo à generalização das artes de governar, à multiplicidade das populações — que só pôde tomar as dimensões que tem graças a uma série de instrumentos particulares de “polícia” no sentido do termo adotado entre os séculos XVII e XVIII —, ao âmbito da massa, do coletivo; dois pólos a partir dos quais se desenvolveu a organização do poder sobre a vida. “A população aparece, portanto, menos como potência do soberano do que como fim e instrumento do governo, sujeito de necessidade, de aspirações, mas também objeto entre as mãos do governo. A população aparece como consciente, frente ao governo, do que ela quer e inconsciente quanto ao que o governo a faz fazer. O interesse como consciência de cada um dos indivíduos constituindo a população e o interesse como interesse de população, qualquer que sejam os interesses e as aspirações individuais daqueles que a compõem, é lá que reside, nesse equívoco, a fonte, o instrumento fundamental do governo das populações.”9 Nos cursos de Foucault, a governamentalidade, de forma geral, designa um momento particular na história da arte de governar — processo pelo qual o Estado é governamentalizado — e uma análise da política do poder — em busca da exterioridade em relação ao Estado. É definida também como o nome da articulação entre dois tipos de meios, de tecnologias de poder e de técnicas de si, ou entre os dispositivos e os seus alvos. Vivemos a era da governamentalidade. A governamentalização foi o fenômeno que permitiu a sobrevivência do Estado, “os problemas da governamentalidade e as técnicas de governo se converteram na única aposta política e o único espaço real da luta política”10. Para Foucault, de uma forma representativa e não cristalizadora, se pode reconstituir as grandes formas de economias do poder do Ocidente da seguinte maneira: “O Estado de justiça, nascido em uma territorialidade de tipo feudal e que corresponderia a grandes recursos, a uma sociedade da lei — leis consuetudinárias e leis escritas —, com todo um jogo de compromissos e litígios; segundo, o Estado administrativo, nascido em uma territorialidade de tipo fronteiriço e já não feudal, nos séculos XV e XVI, um Estado administrativo que corresponde a uma sociedade de regulamentos e disciplina; e por último, um Estado de governo que já não se define em essência por sua territorialidade, pela superfície ocupada, e sim por sua massa: a massa da população, com seu volume, sua densidade e, 7 Michel Foucault, Op. Cit., p. 385. Michel Foucault. História da sexualidade I. A vontade de saber. Rio de Janeiro, Graal, 2001, p. 128. 9 Michel Foucault. Sècuritè, territoire, population. Cours au Collège de France (1977-1978). Paris, Gallimard/Seuil, 2004, p. 109. 10 Id., p. 137. 8 sobretudo, pelo território sobre o qual se extende, mas que de certo modo é só um de seus componentes. E esse Estado de governo, que recai essencialmente sobre a população e se refere a instrumentação do saber econômico e a utiliza, corresponderia a uma sociedade controlada pelos dispositivos de segurança”11. A governamentalidade é uma das chaves essenciais da compreensão política do presente. Neste âmbito de análise é preciso considerar que os trabalhos de Foucault levam a pensar o sujeito em relação com a verdade exterior e com a verdade como escolha irredutível da existência, ou seja, o sujeito em relação à sujeição e à subjetivação. Por isso problematizar a segurança, sob o contexto da biopolítica e da economia da garantia política da vida das populações, reflete um trabalho da filosofia do presente longe de ser limitado à necessidade equivocada das fragilidades, condições do desenvolvimento ou do progresso, das formas de governo correlativas e dos antídotos democráticos e neoliberais, centros de totalização que fazem convergir todas as coisas e os pensamentos para o vislumbre de um dispositivo ou de uma criminologia e penalogia eficazes na defesa da vida. Podemos caracterizar a segurança como a instrumentação de um saber econômico a respeito das campanhas, das tecnologias, dos dispositivos que organizam formas de penalidade, a exposição à lei, formas de criminalização, as metarmofoses do entendimento e da realização da ordem e de sua verdade acontecimental — lugar próprio do exercício da política. Como as novas técnicas neoliberais norte-americanas, principalmente, organizam e atualizam o entendimento da segurança? Tratemos então, de dois exemplos abordados por Foucault: (1) homo penalis: pela descrição do tratamento horrível atribuído ao regicida Robert Damiens, executado em 1757 (Vigiar e Punir -1975) e (2) homo criminalis: pelo desdobramento do problema do crime no interior de um problema econômico através da análise do artigo de Gary Becker (Nascimento da Biopolítica- 1978-1979). O primeiro exemplo trata de como castigos duros eram empregados como correlativos de uma resposta, de uma demonstração pública de um poder soberano, visando à restauração e reafirmação da força da lei e do mito da soberania do Estado. O segundo exemplo é citado por Foucault como referência para analisar o problema do crime a partir do ponto de vista daquele que comete o crime, do sujeito de uma ação; demonstrativo do problema neoliberal do crime como toda ação que faz um indivíduo correr o risco de ser condenado a uma pena. A partir de 1960, os neoliberais recuperam o problema do crime do ponto de vista daquele que toma a decisão de agir no livre jogo dos interesses individuais, das escolhas individuais, do ponto de vista do cálculo possível do risco. Portanto, contrapartida das liberdades, de novos mercados não regulamentados, derivado de novos estilos de vida, de uma cultura do consumo desenfreado e efeito de uma preferência geral por um estilo de controle social não autoritário — ponto de apoio para a teoria da escolha racional, da atividade rotineira, da oportunidade e da prevenção criminal situacional. A partir do século XX, entendeu-se que a oferta de crime não é indefinidamente e nem uniformemente elástica, não responde da mesma forma e ao mesmo nível a todos os dispositivos, porque há custos relativos a investimentos e inconvenientes sociais e políticos. A definição neoliberal acerca do objetivo de uma política penal preconiza a limitação da oferta do crime através de uma demanda negativa do ponto de vista da técnica do poder cujo custo não deve ultrapassar o custo e os inconvenientes de cada criminalidade. Porém, o recrudescimento, sob um mesmo viés neoliberal, nas décadas de 1980-90, aponta para a apropriação e capital tático da tolerância zero — tendo 11 Id. também Medelín e Bogota como vitrines deste hábito governamental, policial e cultural e constituindo modelos para os planos brasileiros de segurança —, seu controle completo e incisivo sobre as ilegalidades populares e as tentativas decididamente punitivas em resposta à criminalidade. “O discurso do autoritarismo norte-americano é o mesmo que se instala no resto da América, porém sua funcionalidade é tão diferente quanto a realidade do poder repressivo. Enquanto nos Estados Unidos fazem dele uma empresa social para o sistema penal e contribuindo para a resolução da assistência social para o sistema penal e contribuindo para a resolução do problema do desemprego, na América Latina o sistema penal, longe de proporcionar emprego, serve para controlar os excluídos do emprego, torna-se brutalmente violento e as polícias autonomizadas e em dissolução sitiam os poderes políticos.”12 Podemos tratar, portanto, de um desdobramento que sobrepõe dispositivos neoliberais que recuperam o problema do crime sob o ponto de vista do risco e sob o ponto de vista da demonstração da força punitiva — marcada pela angústia coletiva, frente a gravidade exacerbada de uma ação individual e identificação de um inimigo— contra o indivíduo condenável. O que poderia ser lido também como, táticas deliberadas de dispositivos de prevenção de um lado e dispositivos de repressão de outro; portanto, deslocamentos de acentos, de objetos, sob uma mesma governamentalidade neoliberal e democrática, sobreposição da perspectiva do homo penalis e homo criminalis. David Garland13, supõe nestes desdobramentos um dualismo e ambivalência contraditória na política contemporânea que aponta para a inclinação do Estado para as estratégias punitivas — mais fáceis de serem enunciadas —, reforçadoras do poder central, da soberania do Estado, dirigindo as condutas de forma mais ou menos coercitivas, em detrimento de soluções preventivas. Diferente da abordagem de Garland, podemos analisar este deslocamento de objetos, de tecnologias, não como ambivalências que tendem para a tendência de elevar um elemento e um objeto em relação a outro, mas como sobreposição de dispositivos complementares igualmente reforçadores do poder central e da soberania do Estado. No Brasil, o pano de fundo para esta instrumentação foi caracterizado como uma “novidade em segurança pública”, pautada por um inventário de métodos de gestão, cujo principal conteúdo são os planos de segurança de 2000, 2003 e 2007. Sendo a grande novidade incluída nestes planos: a democracia participativa e cidadã como possibilidade da consciência da população sobre suas necessidades — no âmbito federal, estadual e municipal — e a aliança entre a sociedade e a polícia. “Aproximar governo e sociedade, integrar as polícias e fazer com que ela faça parte da comunidade, promover a capacitação constante dos profissionais de segurança pública, estimular a inclusão social e digital entre outras iniciativas precisam ser levadas adiante. Para que esses e outros objetivos sejam atingidos é preciso trabalho conjunto das iniciativas de prevenção e repressão à violência (...). Estimular a confiança entre cidadão-cidadão e políciacidadão.”14 Essas novidades em democracia demonstram que toda tecnologia de convivência, de tolerância e engenharia de produção, tratamento e gestão de informações criminais acoplada a tecnologias de vigilância, estão à disposição do cidadão que cria demanda, denuncia, avalia — instrumentos fundamentais do governo 12 E. Raúl Zaffaroni. O inimigo no direito penal. Rio de Janeiroa: ICC/Revan, 2007. David Garland. A cultura do controle. Rio de Janeiro, Revan, 2008. 14 Página principal de www.segurançacidada.org.br 13 das populações — e privatiza mecanismos de segurança. Esta participação torna-se um meio de maximizar a eficácia do poder ao menor custo e para reiterar que a crítica social, a visibilidade social, a opinião pública, aciona uma economia da liberdade, da participação inacabada, que vive de se consumir e se re-acionar. Assim como os meios privados — e inclui-se aqui toda a promoção da prevenção através da inclusão das estratégias do terceiro setor focadas a todas as fases de desenvolvimento das pessoas, dos programas privados e licitações público-privadas — ocupam uma posição privilegiada na economia do controle da criminalidade, na determinação das zonas de maior ou menor risco, que pode servir de exemplo de o quanto o crime e a criminalidade podem ser proveitosos. Essa governamentalização é o fenômeno que permite a sobrevivência do Estado. Portanto, é preciso levar em consideração, em primeiro plano, as técnicas de governo como campo real da política e do ““corpo político”, como conjunto dos elementos materiais e das técnicas que servem de armas, de reforço, de vias de comunicação e de pontos de apoio para as relações de poder e de saber que investem os corpos humanos e os submetem fazendo deles objetos de saber,”15 sobretudo, objetos de governo. Portanto a visibilidade crítica da opinião pública e a formação da sociedade civil são igualmente objetos de governo. Imprime-se, hoje, nos dispositivos de segurança a aposta política e espaço real de luta, transformando erros, acertos e eficácia em matéria de confiança, campanha, participação, denúncia e projeção de novas demandas preventivas ou punitivas de acordo com a angústia programada pelo sensacionalismo em grande massa do perigo individualizado ou tecnicizado pela probabilidade dos crescimentos da criminalidade. Campo gravitacional tanto do investimento em relação à criminalização como à vitimização, acusação dupla que atualiza a noção da vulnerabilidade de alguns setores da população ou etapas do desenvolvimento das pessoas. A política de nosso tempo é a política da vulnerabilidade — tecnicamente legível por índices de desenvolvimento e tecnicamente, ao lado da criminalidade, reconhecida como fato normal da vida moderna. Nela se imprimi a qualidade e a intensidade das forças criminalizantes das últimas décadas, assim como a organização das forças da vida social e das políticas e campanhas de população, sobretudo pobres. Despertando a convicção de que “é possível mudar, desde que se empregue a metodologia apropriada, desde que haja articulação suficiente entre as instâncias governamentais mobilizadas e desde que se leve realmente a sério a indispensável participação da sociedade civil.”16 Pode-se afirmar que as periferias de São Paulo a Mumbai redesenham a cidade moderna e suas multiplicidades de pobres, e ocupam hoje, ao lado das prisões, um papel central nas sociedades modernas à medida que constituem um laboratório da polícia e das forças aramadas, da economia da segurança, do campo gravitacional da vitimização e criminalização e espaço para suas combinações na democracia. Segundo David Garland, até a década de 1950 acreditava-se que a diminuição dos números da criminalidade dependeria de uma questão de tempo, que o Estado se encarregaria de administrar e dar conta do problema. “Pensava-se que o Estado ganharia a guerra contra o crime do mesmo modo como havia ganhado a “guerra contra Hitler””17 Mas nos anos 1980 e 1990 o discurso distanciou-se desta confiança e a expressão “guerra contra o crime” foi então abolida, pelo menos na Grã Bretanha e na Comunidade Européia, e foi brevemente reavivada a partir da propagação da tolerância 15 Michel Foucault. Vigiar e Punir. Rio de Janeiro, Vozes, 2002, p. 27. Projeto Segurança Pública para o Brasil. Ministério da Segurança Pública, 2003, p. 19. 17 David Garland. “As contradições da “Sociedade Punitiva”: o caso Britânico” in Revista de Sociologia e Política, n. 13. Nov, 199, pp. 59-80. 16 zero norteamericana. No entanto, ainda recentemente a retórica da “guerra contra o crime” ou “guerra contra o narcotráfico” está presente nos planos brasileiros de segurança pública demonstrando um deslocamento desta ênfase para as periferias do planeta. Com o agravamento de que na América do Sul o recente passado histórico das décadas de 1960 e 1970 das ditaduras militares caracterizou a declaração de guerra às favelas e campamientos que eram localizados como centros de potencial resistência, subversão ou como simples obstáculos ao aburguesamento urbano, à expansão industrial e desenvolvimento das cidades. A peculiaridade da acusação e seletividade nas periferias hoje desdobra representações e movimentos dimensionados e caracterizados nas ditaduras e que atingem proporções alarmantes nas democracias atuais. Esta guerra enunciada justifica tanto o uso abusivo e violento de “medidas de exceção” e suas faxinas quanto mantém a pena de morte e a discussão sobre o patamar etário da responsabilidade penal à tona no discurso político periodicamente, através das possibilidades de votações acerca de projetos de lei e do endosso das indignações populares. O enunciado da prevenção articula-se com o enunciado punitivo compondo estratégias, sabe-se que crianças e jovens são os segmentos sob os quais se experimenta preferencialmente estas articulações — e inclui-se o academicismo funcionalista neste âmbito de atuação e produção. Ao contrário da definição de Garland, em que, na atualidade, se permanece e constitui uma política e uma economia que tornam impossível “formas de solidariedade e meios de governar que se adequassem às características da sociedade moderna e pluralista, garantindo que as pessoas livres fossem ao mesmo tempo moralmente contidas e socialmente vinculadas.”18 Frente aos critérios bem explícitos da seletividade, da participação, das articulações dos objetos das estratégias de prevenção e repressão, o que se percebe são economias da liberdade e da visibilidade crítica, gestão de grupos vulneráveis, pelo jogo da tolerância, daquilo que é possível suportar na economia relativa das probabilidades, índices e capital cultural e social politicamente aceitos. Para Mike Davis19, as periferias e amplas favelas do terceiro mundo constituem o campo de batalha que distinguirá o século XXI. Podemos considerar uma relação assimétrica de deslocamento da guerra contra o crime para as populações das periferias do planeta — onde esta noção está longe de ser abolida —, implantando um desafio para planejadores e especialistas sobre as vulnerabilidades assim como sobre os combates possíveis — sob o pano de fundo de uma recente história marcada pelo narcotráfico, guerras civis, ditaduras e terrorismo — em nome de uma regulação sobre o mercado do crime e por conseqüência sobre a oferta do crime, pontilhada de nomes de cidades, favelas e periferias transformadas em laboratório das polícias e intervenções militares mais violentas e assassinas. Esta governamentalidade apresenta-se como uma das perspectivas essenciais que extrai e expõe para a compreensão política do presente o problema das mobilidades, dos encadeamentos, das plasticidades, agudeza, de um racista e atuante assassínio nos enunciados da atual penalogia e criminologia sob a democracia mais avançada — num contexto da garantia da vida e no estado de um “pacto de segurança” —, que expõe e integra os indivíduos a um certo número de atos de verdade, em que afirmam o que crêem e o fato dessa crença (sob a forma da necessidade e da escolha), aceitando suas consequências. 18 19 Id., p. 77. Mike Daves. Planeta favela. São Paulo: Boitempo, 2006.