ANAIS DO III CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA Comitê Interfaces da Dança e Estados do Corpo – Setembro/2014 DANÇAS DE MOTRIZES AFRICANAS E PROCESSOS DE RECONFIGURAÇÕES DE METÁFORAS Vânia Silva Oliveira (UFBA)* Orientadora: ProfªDrª Lenira Rengel RESUMO: A análise de experiências de mulheres negras Rainhas de Blocos Afros de Salvador, visando à discussão dos procedimentos envolvidos na tradução da linguagem metafórica geradora de comportamentos, produz este artigo que adota conceitos atualizados de metáforas e é escrito numa perspectiva autobiográfica, articulando a experiência da autora a de outras rainhas, articulações iniciais da pesquisa de mestrado, são idéias empreendidas como pontos de ignição para a ampliação de uma discussão que mesmo em seu estado embrionário faz perceber a potência de uma reflexão mais aprofundada. PALAVRAS-CHAVE: Dança. Processos metafóricos. Identidades. AFRICAN DANCES OF DRIVING AND PROCESSES RECONFIGURATIONS METAPHOR ABSTRACT: The analysis of experiences of black women queens of Blocos Afros de Salvador aimed at discussion of the procedures involved in the translation of metaphorical language behaviors generating, produces this article adopts updated concepts of metaphors and is written in an autobiographical perspective, articulating the experience of the author of the other Queens, initial joint masters research, are ideas undertaken as ignition points for the expansion of a discussion that even in its embryonic State makes you realize the power a deeper reflection. KEYWORDS: Dance. Metaphorical processes. Identities. 1 http://www.portalanda.org.br/anai ANAIS DO III CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA Comitê Interfaces da Dança e Estados do Corpo – Setembro/2014 INTRODUÇÃO A história da população africana no Brasil foi marcada pela escravidão, intolerância religiosa, preconceito e discriminação racial. Ao separá-los de suas famílias e de suas culturas, os colonizadores portugueses acreditavam ser a melhor estratégia para enfraquecer e erradicar as culturas dos povos africanos escravizados no Brasil. Mas se enganaram, pois estrategicamente os povos africanos buscaram formas de manutenção de suas culturas tendo como resulto a criação de novas expressões culturais. Para Martins (1997), a história dos negros nas Américas: “Escreve-se numa narrativa de migrações e travessias, nas quais a vivência do sagrado, de modo singular, constitui um índice de resistência cultural e de sobrevivência étnica, política e social...” (MARTINS, 1997, p. 24). Esta afirmativa traduz que o tratamento desumano à população negro africana não foi aceito de forma passiva e os exemplos da não aceitação à submissão e maus tratos estão retratados pelas organizações de ações contra o sistema escravocrata como as Revoltas dos Malês1, liderada por negros sudaneses/muçulmanos; Revoltas dos Búzios2, liderada por Cipriano Barata e, dentre outras, a criação de comunidades constituídas por negros refugiados tendo como a mais conhecida o Quilombo dos Palmares. Apesar de tanta desumanidade “A colonização da África, a transmigração de escravos para as Américas, o sistema escravocrata e a divisão do continente africano em guetos Europeus não conseguiram apagar no corpo/corpus africano e de origem africana os signos culturais e textuais...” (MARTINS, 1997, p. 25). Os Negros Malês, os Ciprianos Baratas, os Zumbís dos Palmares, as Luizas Mahins, as Dandaras e Akualtunes estão hoje representadas pelos movimentos sociais que ainda combatem as novas formas de racismo ou preconceito raciais: Estas novas expressões do preconceito recebem diversos nomes e apresentam peculiaridades próprias aos seus contextos de imersão. É neste sentido que 1 Ocorrido em 1835, o movimento organizou-se em torno de propostas radicais para libertação dos demais escravos africanos que fossem muçulmanos, sendo que a tomada do governo constituía um dos principais objetivos dos rebeldes4 . "Malê" é o termo que se utilizava para referir-se aos escravos muçulmanos. 2 Também conhecida como Revolta dos Alfaiates e Conjuração Baiana, a Revolta dos Búzios foi um dos movimentos mais importantes do Brasil porque, além da independência, buscava a liberdade dos escravos e a igualdade racial e social. Foi à primeira manifestação libertária em que o povo teve protagonismo, refletindo, significativamente, nas conquistas após a sua eclosão, em 1798. Mais de 200 anos se passaram e a Bahia celebra, durante todo o mês de agosto, esse marco da luta popular no país. 2 http://www.portalanda.org.br/anai ANAIS DO III CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA Comitê Interfaces da Dança e Estados do Corpo – Setembro/2014 outros autores vão falar em retorno do racismo (Pereira, 1996). Como argumenta Essed (1991), as novas formas de preconceito referem-se a comportamentos discriminatórios da vida cotidiana das pessoas em contextos culturais específico. (RIVERA, 2009, p.53). Estes movimentos são reverberações de outras organizações como a Frente Negra Brasileira3, fundada por Florestan Fernandes em 16 de setembro de 1931, que era a expressão das inquietações e ansiedades do homem negro e mulher negra que, nesses anos, manifestavam-se com vigor contra o preconceito racial em prol do exercício da cidadania. “O Movimento Black Power, uma luta política dos negros norte-americanos conhecido como Poder Negro”, que surgiu nos anos 60, como uma forma de renascimento cultural da comunidade negra dos EUA, a libertação de países africanos de língua portuguesa, construindo novas civilizações, no cenário internacional, o Soul Music e o Movimento Negro Unificado – MNU que surgiu na década de 70. Além do surgimento do MNU, a década de 70 foi palco de muitas manifestações políticas e dentre elas, na Bahia, estão o surgimento de Blocos Afro-baianos que inspirados nestes movimentos são como “quilombos contemporâneos” que vivem em formato de sociedade, surgiram com a proposta de distorcer e recriar uma realidade onde seja possível a valorização da população negra, sua tradição história e cultura. A criação destes espaços antropológicos resultou numa via de acesso à informações e apropriação, possibilitando explicitamente, ao negro, a participação ativa nos bens culturais produzidos pela humanidade, resumidos na participação cidadã e na construção de sua realidade cultural. Os africanos que cruzaram o Mar Oceano não viajaram e sofreram sós. Com nossos ancestrais vieram as suas divindades, seus modos singulares diversos de visão de mundo, sua alteridade linguística, artística, étnica, religiosa, cultural, suas diferentes formas de organização social e de simbolização do real. (MARTINS, 1997, p. 25/26) Os Blocos Afros de Salvador são instituições sócio-culturais em que os valores e ideais da população negra são recriados e recontados cotidianamente. A estética, a música e as danças representam a reinvenção da tradição negra, é através do acesso a estas informações que o negro se reconhece e conhece o mundo que o cerca. Isso só é possível porque, “o homem só conhece a realidade na medida em que ele cria a realidade humana e se comporta antes de tudo como ser prático.” (KOSIK, 1989, p. 22). Nadir Nóbrega (2013), observa que: 3 A Frente Negra publicou o jornal A Voz da Raça e sua sede ficava na Rua da liberdade, 196 (São Paulo, Capital). 3 http://www.portalanda.org.br/anai ANAIS DO III CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA Comitê Interfaces da Dança e Estados do Corpo – Setembro/2014 É interessante notar que, na discussão sobre a estética negra, esses blocos afro, desde as suas fundações, apresentam a música imbricada com a dança, com os cabelos, com os figurinos e adereços, materializando as ancestralidades africanas brasileiras. Tal como na África, a dança e a música são a alma dos blocos afrocarnavalescos, elas são inter e transdisciplinares, são multidimensionais e têm impactado em muitas áreas do conhecimento da humanidade. Acredito, assim, que isso contextualiza um dos fundamentos da Etnocenologia, em que o corpo expressa desejos, devaneios e utopias históricas. E, na afirmativa de Pradier, o corpo é o “lugar da encarnação do imaginário”. São corpos captadores, apreendedores, transformadores, criadores de uma determinada estética. (NOBREGA, 1996 p.13) Ao se relacionar com estas instituições que criam espaços e fomentam discussões entorno das identidades, histórias, estéticas, culturas negro-africana, indivíduos são levados a perceberem-se como parte de sua sociedade, a compreenderem seu processo de construção identitária e sentirem-se co-responsáveis pelas transformações e conquistas sociais. Historiografia de um Corpo Nos estudos e discursos referentes às manifestações artísticos/culturais da população negra brasileira usou-se muito o termo matriz no sentido de pontuar os elementos predominantes negros e geradores destas manifestações. Entretanto, o termo matriz cultural não tem dado conta da complexidade das dinâmicas culturais, dos processos inter-étnicos e transitórios, e da diversidade que há nas manifestações afrobrasileiras. Para uma análise entorno do corpo/dança no contexto dos Blocos Afro referencio-me ao conceito “motrizes”, apresentado por Ligiéro (2011) onde o conceito de Motriz Cultural será empregado para: “ ...definir um conjunto de dinâmicas culturais utilizado na diáspora africana para recuperar comportamentos ancestrais africanos. A este conjunto chamamos de práticas performativas e se refere a combinação de elementos como a dança, o canto, a música, o figurino, o espaço, entre outros, agrupados em celebrações religiosas em distintas manifestações no mundo Afro-Brasileiro. (LIGIÉRO, 2011 p. 130). Que bloco é esse? Eu quero saber, é o mundo negro Que viemos mostra prá você prá você Somos criolo doido, somos bem legal, temos cabelo duro, somos black power Branco, se você soubesse o valor que o preto tem, tu tomava um banho de piche, branco e ficava preto também. Não te ensino minha malandragem nem tão pouco minha filosofia Por quê? Quem dá luz ao cego é bengala branca e Santa Luzia. Ai, ai meu Deus! Que Bloco é Esse? 4 http://www.portalanda.org.br/anai ANAIS DO III CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA Comitê Interfaces da Dança e Estados do Corpo – Setembro/2014 Ilê Aiyê Compositor: Paulinho Camafeu Nascido em 01 de novembro de 1974, no bairro do Curuzu na Liberdade, em Salvador, o Bloco Afro-contemporâneo Ilê Aiyê, conhecido também como “O Mais Belo dos Belos”, surge como uma resposta ao sistema opressor e dominante que legava ao homem negro e a mulher negra à margem social e aos conceitos e expressões depreciativas que de certa forma induzem comportamentos humanos, racismo contemporâneo4. Tais expressões são recorrentes na língua em que o adjetivo negro conota-se negativamente e são possíveis de serem observadas no Dicionário Aurélio: humor negro, lista negra, magia negra, mercado negro, ovelha negra, denegrir etc. Ao que se pode acrescentar: página negra, peste negra e inúmeras outras. É também bastante sintomático que o referido dicionário, entre os diversos significados que atribui a negro, registre os de „sujo‟, „funesto‟, „maldito‟, „perverso‟ e „sinistro‟. Ou até mesmo expressões como: “ai vem neguinho”, nega do cabelo duro, nega preta do bozó”, dentre outras. Neste estudo falarei de sujeitos/objetos que resultam de um lugar que surge como resposta ao sistema social de racismo e opressão, mas, não é o objetivo, neste momento, levantar alguma bandeira e nem ser panfletária, porém não será possível a análise sem citar experiências que diretamente irão remeter a estas questões. A proposta é a investigação de corpos que foram oportunizados por estes ambientes, às construções de outros conceitos e auto conceitos no que tange suas histórias e culturas. Refiro-me aos Blocos Afro de Salvador que cotidianamente realizam ações de valorização e recontam a história da população afro-brasileira a partir de outra ótica. Nestes lugares, o negro ou a negra ganha outra conotação. As mulheres são comparadas a pedras preciosas: pérola negra = pedra preciosa, são endeusadas: Deusa do ébano. Nestes espaços ser negro é sinônimo de aceitação de suas matrizes e descendências culturais são sinônimas de consciência político/etno/racial. E assim diz a música Alienação, dos compositores Mário Pam e Sandro Teles: Se você esta a fim de ofender É só chamá-lo de moreno pode crê É desrespeito a raça é alienação 4 Chamo de racismo contemporâneo as ações que para além dos das correntes e troncos ainda hoje estabelecem relações de inferioridade entre indivíduos de culturas e raças diferentes. 5 http://www.portalanda.org.br/anai ANAIS DO III CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA Comitê Interfaces da Dança e Estados do Corpo – Setembro/2014 Aqui no Ilê Aiyê a preferência é ser chamado de negão Se você esta a fim de ofender É só chamá-la de morena pode crê Você pode até achar que impressiona Aqui no Ilê Aiyê a preferência é ser chamada de negona. A consciência é o objetivo principal Eu quero muito mais Alem de esporte e carnaval, natural. Chega de eleger aqueles que têm Se o poder é muito bom Eu quero poder também O sistema tenta desconstruir lhe afastar de suas origens Pra que você não possa interagir, construir. Já passou da hora de acordar Assumir sua negritude é vital para prosperar Ser negro não questão de pigmentação É resistência para ultrapassar a opressão, sem pressão. Lutar sempre igualdade e humildade Vou subir de Ilê Aiyê E mudar toda cidade. Conhecido como “O mais belo dos belos” O Bloco Afro Ilê Aiyê, inspira a criação de outros Blocos Afro que também seguem e compartilham da mesma ideologia, e que fortalecidos pelos tambores foram fundamentais para as construções dos discursos etnopolíticos, um conjunto de ações que envolvam questões étnicas, reforçadas pelas expressões “Black Power” e “Black is beautiful”. São eles: o Bloco Afro Malê Debalê, com sede na Lagoa do Abaeté no bairro de Itapuã; o Bloco Afro Olodum, com sede no Pelourinho no Centro Histórico de Salvador; o Bloco Afro Muzenza com sede no Pelourinho no Centro Histórico de Salvador; Araketu com sede no bairro de Periperi no Subúrbio Ferroviário de Salvador; seguidos por muitos outros. No contexto dos Blocos Afro a estética, a dança e a música são expressões de autoafirmação, autoestima e reconstrução identitária, desenvolvidas em reação à ideologia hegemônica eurocêntrica que desconsidera a noção de alteridade, estabelecendo um padrão único de beleza física, estética e cultural. Estas instituições realizam papeis fundamentais para o processo de revisão de significados impressos por metáforas, que ao longo da história, induziram ações de negação, exclusão e subalternidade da população negra referente a outros grupos que se consideram dominantes em uma mesma sociedade. “A metáfora não está meramente nas palavras que usamos (...) porque a concebemos assim – e agimos de acordo com o modo como concebemos as coisas” 6 http://www.portalanda.org.br/anai ANAIS DO III CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA Comitê Interfaces da Dança e Estados do Corpo – Setembro/2014 (LAKOFF; JOHNSON, 2002, p. 48). Para além das palavras Lakoff e Jonhson (2002) consideram que nosso sistema conceitual é metafórico por natureza e a nossa maneira de proceder, de pensar, de perceber e de agir é estruturada por metáforas, que se refere á experiência e compreende uma coisa em termos de outra. Seus estudos nos mostram que a forma como significamos nossas experiências determina nossos pensamentos e ações, relacionados com o mundo a cada instante este vínculo que imbrica organismoambiente é o que constitui nossos significados. Por ser relacional, cabe-nos entender os significados como processos de significação, nos quais não há fins absolutos. Tanto nossas significações quanto nossas relações com o mundo são provisórias, isto é, são reconstruídas constantemente. Neste processo de reconstrução que apresento o tema central deste estudo que são os concursos de Rainhas de Blocos Afros, realizados por estas instituições em que considero um mecanismo de projeção de mulheres negras como símbolos de beleza em contraposição a concursos que seguem uma ótica eurocêntrica, tendo a Dança de “motriz” africana como uma potencializadora desta outra configuração. Historiografia de uma dança Uma das maiores e reconhecidas cerimônia de exaltação da beleza da mulher negra é a Festa da Beleza Negra que foi criada e dirigida pelo bloco afro Ilê Aiyê, em 1976. Trata-se de um concurso para a escolha de uma mulher negra, que representará o bloco durante o carnaval, como “Deusa do Ébano”5, antecedendo os preparativos para o carnaval. Para Nóbrega (2013, p. 126): A imagem da jovem mulher negra como “deusa” ou “rainha” surgiu como crítica aos concursos de beleza do carnaval, nos quais as mulheres brancas são as que representavam o modelo de “beleza ideal”. Trata-se de uma concepção de beleza que reafirma os cabelos trançados, a pele escura, o nariz chato, os lábios grossos e a bacia grande. Nesse concurso, vê-se que os atributos de beleza e de feminilidade são fundamentais, além disso, a desinibição, a dignidade, a força, a sensualidade, a ancestralidade e a consciência negra são valores imprescindíveis para as candidatas a esse título. “A membrana entre corpo e palavra tem sido tecida por uma maneira de proceder do corpo que é metafórica, e não nos damos conta disto” (RENGEL, 2007, p. 75). 5 Deusa do Ébano é o título dado a vencedora do concurso realizado para a escolha da mulher negra que irá representar o Bloco Afro Ilê Aiyê durante o ano em curso. É a Rainha do Ilê. 7 http://www.portalanda.org.br/anai ANAIS DO III CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA Comitê Interfaces da Dança e Estados do Corpo – Setembro/2014 O concurso “Beleza Negra” é uma contraposição aos adjetivos observados no Dicionário Aurélio que já se naturalizaram em nosso cotidiano e, consequentemente, atribuem ao negro, conceitos negativos imprimindo prejuízos no processo de desenvolvimento e valorações de culturas consideradas social e politicamente marginais. “(...) somos corponectivos (=embodied = mentecorpo trazidos juntos) e, ao dizer que: NOS SABEMOS, NOS ENTENDEMOS sensório-motoramente, já estamos fazendo uma abstração com o emprego de tais verbosconceitos que significam julgamentos racionais, inferentes, intelectuais. Ocorre, então, um cruzamento em simultaneidade de processos sensórios-motores e abstratos: o procedimento metafórico.” (RENGEL, 2007, p. 78). O corpo não é um meio por onde a informação simplesmente passa, pois toda informação que chega entra em negociação com as que já estão. O corpo é o resultado desses cruzamentos, e não um lugar onde as informações são apenas abrigadas. É com esta noção de mídia de si mesmo que o corpomídia lida, e não com a idéia de mídia pensada como veículo de transmissão. (GREINER; KATZ, 2005, p.07) Este mesmo corpo: (...) não é um recipiente, mas sim aquilo que se apronta nesse processo coevolutivo de trocas com o ambiente. E como o fluxo não estanca, o corpo vive no estado do sempre presente, o que impede a noção do corpo recipiente. O corpo não é um lugar onde as informações que vêm do mundo são processadas para serem depois devolvidas ao mundo. (GREINER; KATZ, 2005, p. 07) O corpo troca informações com seu ambiente, promovendo um processo de contaminação que se reconfigura constantemente. Este corpo realiza um procedimento compreendido por Rengel (2007) como procedimento metafórico: O procedimento metafórico faz um transporte, uma intermediação entre os domínios sensórios-motores = perceber, sentir, transportar, mover, tocar, pegar, etc. e os domínios das experiências subjetivas = julgamentos morais, juízos de valor, relações de afetos, atc. (RENGEL, 2007, p.78). E a teseaula de Rengel (2007) onde diz que: (...) o procedimento metafórico que faz com que entender seja algo que se corponecta com pegar, porque vivemos (em tempo real) a experiência de pegar coisas e pessoas que foram formando e continuam a formar nossa opinião (ou julgamento) delas. (RENGEL, 2007, p.78). Esta afirmativa nos faz compreender que conforme seja o emprego da metáfora ao ser humano está ditará a forma como este individuo irá se relacionar com o mundo. A 8 http://www.portalanda.org.br/anai ANAIS DO III CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA Comitê Interfaces da Dança e Estados do Corpo – Setembro/2014 dança realizada, pelas rainhas de blocos afro, traz a complexidade, singularidade e identidades negra africana que retratam seu processo de identificação histórico cultural, elementos estes na maioria das vezes acessados a partir do contato com estes espaço, neste território onde acontece o processo mútuo contaminatório entre o corpo e o ambiente, sendo a dança uma das linguagens potencializadora na apresentação deste processo inacabado por gerar permanentes transformações. Esta dança configura o processo de transformação destes corpos atravessados pelas informações deste ambiente, corpos de aprendizados e de permanente transformação. No âmbito dos Blocos Afro, a dança é a comunicadora de um processo co-evolutivo segundo Nóbrega (2013): O corpo, simultaneamente, inscreve-se e interpreta significados, projetando-se como transmissor do não verbal, a memória ancestral, como define Juana Santos (1986 p. 59), “(...) o diálogo entre passado e presente, realidade contextualizada, permite a emergência de um ethos que perpassa as fronteiras das variáveis das comunidades terreiros, das instituições afro-lúdicas e culturais”. Esta dança se reconfigura constantemente transmitindo novos sentidos, é a expressão de um corpo que potencializa a revisão e outra significação de metáforas após experiências vividas. Posso até chamá-lo de “corpo encruzilhada” onde para Leda Maria Martins, a encruzilhada é utilizada para descrever a cultura afro brasileira como um resultado de cruzamentos culturais trans e interculturais. “utilizado como operador conceitual, oferece a possibilidade de interpretação do trânsito sistêmico e epistêmico que emergem dos processos inter e transculturais.”(MARTINS, 1997, p. 28). As rainhas de blocos afro dançam símbolos e signos que representam suas identidades, são historiografias, uma história crítica, e o senso de pertencimento étnico racial. São nas danças das rainhas dos blocos afro, que segundo Martins (2008) “a corporalidade6 é representada pelo corpo em movimento – o jeito de dançar que ostenta” as fantasias, os adereços de mãos e de cabeças, embalados pelos ritmos específicos. Continuando no argumento de Suzana Martins, estes corpos dançam fluindo com “vigor, com tonicidade, porém desprovidos de qualquer extratensão muscular ou rigidez nas 6 Suzana Martins (2008) o “termo corporalidade refere-se ao tratamento dado ao corpo como um conjunto de elementos simbólicos estruturados para um determinado fim” (2008, p. 79). 9 http://www.portalanda.org.br/anai ANAIS DO III CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA Comitê Interfaces da Dança e Estados do Corpo – Setembro/2014 evoluções das sequências dos movimentos” (MARTINS, S., 2008, p. 114). Em uma entrevista a mim cedida, a Drª Nadir Nóbrega durante sua pesquisa de doutorado a também Drª Amélia Conrado, também colaboradora e coreógrafa do grupo de Dança do Bloco Afro Ilê Aiyê, descreveu e salientou a importância da Dança na instituição: (...) A coreografia ressalta a dança, enquanto um dos importantes canais estéticos de expressão e linguagem daquilo que construímos e consideramos por uma estética negra, em contraposição ao que, hegemonicamente a sociedade oficial brasileira impôs enquanto “modelo estético”. Transpondo isso, a coreografia permite aos corpos negros falarem pela sua força dinamizadora, retirando de tradições, de histórias, de mitos, de lendas, de pensamentos e da memória dos antepassados, enquanto ancestralidade, motivos e inspiração que dialogam com o cotidiano e com a dinâmica social, o que permite novos conceitos e elaborações da arte. (Via e-mail, em 08/09/2011). Assim como, as tradições de culturas africanas, estas danças não se apresentam de formas isoladas, existe uma tríade dança, música e canto que estão em constante relação, esta mesma tríade defini-se por Ligiéro (2011) da seguinte forma: (...) Cantar-dançarbatucar não é apenas uma forma, mas uma estratégia de cultuar uma memória exercendoa com um corpo em sua plenitude. Uma espécie de oração orgânica. (p.143). Nestes concursos acontecem inversões de conceitos. É notável como corpos, antes invisibilizados, se projetam resignificados e empoderados. São corpos/expressões de um imaginário, de símbolos e signos despertados pela experiência vivida. Não são corpos engessados, são corpos que ao dançar apresentam outros conceitos que como “motriz” expressam suas complexidades, diversidades e singularidades. “O conceito de Motrizes Culturais empregado é para definir um conjunto de dinâmicas culturais utilizado na diáspora africana para recuperar comportamentos ancestrais africanos. A este conjunto chamamos de práticas performativas e se refere a combinação de elementos como a dança, o canto, a música, o figurino, o espaço, entre outros, agrupados em celebrações religiosas em distintas manifestações no mundo Afro-Brasileiro.” (LIGIÉRO, 2011, p.130) As rainhas de blocos transformam a sociedade em um grande palco, onde representam papéis e contam sua própria história, são memórias presentes que constroem novas realidades e refletem sobre as mesmas. São pessoas com diversas formações sócio-educacionais, ligadas por uma atividade comum, a dança, que carregada do sentido histórico confere uma identidade sócio-cultural. “A identidade, então, costura (ou, para usar uma metáfora médica, “sutura”) o sujeito à estrutura. Estabiliza tanto os 10 http://www.portalanda.org.br/anai ANAIS DO III CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA Comitê Interfaces da Dança e Estados do Corpo – Setembro/2014 sujeitos quanto os mundo culturais que eles habitam, tornando ambos reciprocamente mais unificados e predizíveis.” (HALL, 2002, p.12). A representação social e a história de vida destas mulheres são construções de símbolos dados pela dinâmica da sociedade e esta construção se dá também através da interação estabelecida com outros sujeitos históricos. Os Blocos Afro tornam visíveis indivíduos esquecidos pela sociedade, apresentando-os como seres únicos e singulares com potencialidades culturais. As danças de motrizes africanas são apresentadas como uma linguagem não verbal que traçam uma espécie de caminho para a compreensão dos elementos e símbolos que constituem as identidades de um indivíduo, pois é através dos gestos e dos ritmos que é possibilitada a sensação de estar junto com os antepassados. Como professora na verdade eu não sabia passar para os meus alunos, o porquê ser negra e qual o motivo de usar o meu cabelo Black Power, qual o motivo de ser rainha, o sentimento que tenho de ver dali de cima as alas dançando. Depois do Malê Debalê eu conheci na verdade o quanto é importante a cultura afro na vida da gente, principalmente quem mora aqui na Bahia. (DAMASCENO, 2008).7 O senso de pertencimento étnico é outro fator fundamental despertado no sujeito que tem acesso às informações de sua história e de sua cultura. Conhecer a sua história é reconhecer a si mesmo como cidadão, suas origens, é buscar representações para continuar a luta contra o preconceito, é não se anular diante de uma sociedade que historicamente descrimina a população negra pelas suas características estéticas que também representam a afirmação de sua auto-estima. Os bens culturais legados pela humanidade não são proporcionados através da educação brasileira em condições iguais, havendo uma contra educação, as histórias contadas através dos materiais didáticos não despertam o senso critico dos estudantes, alienam e não dão abertura para contestações e nem sempre são as verdadeiras histórias. A educação ideal seria aquela capaz de fazer com que o indivíduo conceba sua própria existência, enquanto membro de um determinado grupo social. Portanto, a despeito de sua origem étnica, ao receberem igualmente nos ensinamentos da dança, as 7 Entrevista concedida por Alexandra da Paixão Damasceno, Rainha do Bloco Malê Debalê, em 8 de outubro de 2008. 11 http://www.portalanda.org.br/anai ANAIS DO III CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA Comitê Interfaces da Dança e Estados do Corpo – Setembro/2014 mesmas oportunidades de compreensão das diversas expressões do povo brasileiro, irão partilhar autenticamente dos significados de uma cultura. E sobre o procedimento metafórico do corpo que é uma maneira de proceder do corpo que gera muitas metáforas, não temos ciência absoluta dos conceitos que regem nosso relacionamento com o mundo e com as pessoas. Isso porque, embora consigamos nos dar conta de algumas informações dentre as inúmeras que temos contato, a cada instante, muitas nos contaminam sem ao menos nos atentarmos para isso. Quando entramos em contato com algo, tanto nós quanto este algo são afetados mutuamente. É justamente nesta conexão entre nós e o que nos cerca que nossas significações são constituídas. Minha crioula. Vou cantar para você. Estás tão linda, no meu bloco Ilê Aiyê Com suas tranças. Muita originalidade Pela avenida Cheia de felicidade Minha deusa do ébano É deusa do ébano Todos os valores De uma raça estão presente Na estrutura deste bloco diferente Por isto eu canto pelas ruas da cidade. Pra você minha crioula Minha cor, minhas verdades Minha deusa do ébano. (Repete) Deusa do Ébano Geraldo Lima, 1976. A identidade feminina é reconstruída a partir do acesso a informações que foram subtraídas ao longo da história, neste sentido, os Blocos Afro participam da história contemporânea da revolução negra, suas armas são o canto, as vestes, os tambores, as poesias e danças. O dança neste processo transmite uma identidade reconstruída que se reafirma cotidianamente. O acesso aos referenciais africanos faz com que suas intérpretes reflitam sobre a estrutura social que as cerca, conscientizando-se de que são também construtoras de uma sociedade que, assim como elas, está em constante mutação. Os Blocos Afro tornam visíveis mulheres esquecidas pela sociedade, apresentando-as como seres únicos e singulares com potencialidades culturais. Sei do lugar que estou falando, pois sou parte dele e considero que apesar de nos finais destes concursos termos apenas uma eleita, todas saem vencedoras, pois durante todo processo somos motivadas a voltar o nosso olhar para nossas histórias e rememoramos 12 http://www.portalanda.org.br/anai ANAIS DO III CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA Comitê Interfaces da Dança e Estados do Corpo – Setembro/2014 informações que fazem parte do processo de nossa construção identitária. E esta identidade em questão, não é fixa nem engessada esta em constante mutação e trocas, assim como as danças que apresentamos que apesar de terem padrões se modificam e evoluem a cada corpo que a executa. Bibliografia CONRADO, Amélia Vitória de Souza. Dança negra no contexto social brasileiro e na educação. Monografia (Mestrado em Educação)-Universidade Federal da Bahia, Salvador, 1993 b. DEMARTINI, Zeila de Brito Fabri. História de vida na abordagem de problemas educacionais. 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LAKOFF, George; JOHNSON, Mark. Metáforas da vida cotidiana. Campinas: Mercado das Letras. São Paulo: EDUC, 2002. 13 http://www.portalanda.org.br/anai ANAIS DO III CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA Comitê Interfaces da Dança e Estados do Corpo – Setembro/2014 LIGIÉRO, José. O conceito de “motrizes culturais” aplicado às praticas performativas de origens africanas na diáspora americana, UNIRIO/RJ, 2011. LOBATO, Lúcia Fernandes. Malê Debalê: um espetáculo de resistência negra na cultura baiana contemporânea. 2001. 33 f. Tese (Doutorado em Artes Cênicas) – Escola de Teatro. Universidade Federal da Bahia – UFBA, Salvador, 2001. MARTINS, Leda Maria. Afrografias da memória. São Paulo: Perspectiva, Belo Horizonte: Mazza Edições, 1997. OLIVEIRA, Nadir Nóbrega. Sou negona, sim senhora! Um olhar sobre as práticas espetaculares dos blocos afros Ilê Aiyê, Olodum, Malê Debalê e Bankoma no carnaval soteropolitano / Nadir Nóbrega Oliveira. - 2013. PINHO, Patrícia de Santana. Reinvenções da África na Bahia. São Paulo: Annablume, 2004. RENGEL, Lenira. Corponectividade: Comunicação por Procedimento Metafórico nas Mídias e na Educação, PUC/SP, 2007. *Licenciada, Especialista em Dança (UFBA) e Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Dança (UFBA), Docente dos Cursos de Licenciatura em Dança e em Teatro da UESB. É Coordenadora do Subprojeto de Dança da UESB/Jequié. Foi Rainha do Bloco Afro Malê Debalê durante os anos 2000 e 2006. Coordenadora do Coletivo Dançando Nossas Matrizes. Endereço eletrônico: [email protected] 14 http://www.portalanda.org.br/anai