ANAIS DO III CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA
Comitê Interfaces da Dança e Estados do Corpo – Setembro/2014
DANÇAS DE MOTRIZES AFRICANAS E PROCESSOS DE
RECONFIGURAÇÕES DE METÁFORAS
Vânia Silva Oliveira (UFBA)*
Orientadora: ProfªDrª Lenira Rengel
RESUMO: A análise de experiências de mulheres negras Rainhas de Blocos Afros de
Salvador, visando à discussão dos procedimentos envolvidos na tradução da linguagem
metafórica geradora de comportamentos, produz este artigo que adota conceitos
atualizados de metáforas e é escrito numa perspectiva autobiográfica, articulando a
experiência da autora a de outras rainhas, articulações iniciais da pesquisa de mestrado,
são idéias empreendidas como pontos de ignição para a ampliação de uma discussão
que mesmo em seu estado embrionário faz perceber a potência de uma reflexão mais
aprofundada.
PALAVRAS-CHAVE: Dança. Processos metafóricos. Identidades.
AFRICAN DANCES OF DRIVING AND PROCESSES RECONFIGURATIONS
METAPHOR
ABSTRACT: The analysis of experiences of black women queens of Blocos Afros de
Salvador aimed at discussion of the procedures involved in the translation of metaphorical
language behaviors generating, produces this article adopts updated concepts of
metaphors and is written in an autobiographical perspective, articulating the experience of
the author of the other Queens, initial joint masters research, are ideas undertaken as
ignition points for the expansion of a discussion that even in its embryonic State makes
you realize the power a deeper reflection.
KEYWORDS: Dance. Metaphorical processes. Identities.
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INTRODUÇÃO
A história da população africana no Brasil foi marcada pela escravidão, intolerância
religiosa, preconceito e discriminação racial. Ao separá-los de suas famílias e de suas
culturas, os colonizadores portugueses acreditavam ser a melhor estratégia para
enfraquecer e erradicar as culturas dos povos africanos escravizados no Brasil. Mas se
enganaram, pois estrategicamente os povos africanos buscaram formas de manutenção
de suas culturas tendo como resulto a criação de novas expressões culturais. Para Martins
(1997), a história dos negros nas Américas: “Escreve-se numa narrativa de migrações e
travessias, nas quais a vivência do sagrado, de modo singular, constitui um índice de
resistência cultural e de sobrevivência étnica, política e social...” (MARTINS, 1997, p. 24).
Esta afirmativa traduz que o tratamento desumano à população negro africana não foi
aceito de forma passiva e os exemplos da não aceitação à submissão e maus tratos estão
retratados pelas organizações de ações contra o sistema escravocrata como as Revoltas
dos Malês1, liderada por negros sudaneses/muçulmanos; Revoltas dos Búzios2, liderada
por Cipriano Barata e, dentre outras, a criação de comunidades constituídas por negros
refugiados tendo como a mais conhecida o Quilombo dos Palmares.
Apesar de tanta desumanidade “A colonização da África, a transmigração de
escravos para as Américas, o sistema escravocrata e a divisão do continente africano em
guetos Europeus não conseguiram apagar no corpo/corpus africano e de origem africana
os signos culturais e textuais...” (MARTINS, 1997, p. 25). Os Negros Malês, os Ciprianos
Baratas, os Zumbís dos Palmares, as Luizas Mahins, as Dandaras e Akualtunes estão
hoje representadas pelos movimentos sociais que ainda combatem as novas formas de
racismo ou preconceito raciais:
Estas novas expressões do preconceito recebem diversos nomes e apresentam
peculiaridades próprias aos seus contextos de imersão. É neste sentido que
1
Ocorrido em 1835, o movimento organizou-se em torno de propostas radicais para libertação dos demais
escravos africanos que fossem muçulmanos, sendo que a tomada do governo constituía um dos principais
objetivos dos rebeldes4 . "Malê" é o termo que se utilizava para referir-se aos escravos muçulmanos.
2
Também conhecida como Revolta dos Alfaiates e Conjuração Baiana, a Revolta dos Búzios foi um dos
movimentos mais importantes do Brasil porque, além da independência, buscava a liberdade dos escravos
e a igualdade racial e social. Foi à primeira manifestação libertária em que o povo teve protagonismo,
refletindo, significativamente, nas conquistas após a sua eclosão, em 1798. Mais de 200 anos se passaram
e a Bahia celebra, durante todo o mês de agosto, esse marco da luta popular no país.
2
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outros autores vão falar em retorno do racismo (Pereira, 1996). Como argumenta
Essed (1991), as novas formas de preconceito referem-se a comportamentos
discriminatórios da vida cotidiana das pessoas em contextos culturais específico.
(RIVERA, 2009, p.53).
Estes movimentos são reverberações de outras organizações como a Frente Negra
Brasileira3, fundada por Florestan Fernandes em 16 de setembro de 1931, que era a
expressão das inquietações e ansiedades do homem negro e mulher negra que, nesses
anos, manifestavam-se com vigor contra o preconceito racial em prol do exercício da
cidadania. “O Movimento Black Power, uma luta política dos negros norte-americanos
conhecido
como
Poder Negro”,
que
surgiu nos anos 60, como uma forma de
renascimento cultural da comunidade negra dos EUA, a libertação de países africanos de
língua portuguesa, construindo novas civilizações, no cenário internacional, o Soul Music
e o Movimento Negro Unificado – MNU que surgiu na década de 70. Além do surgimento
do MNU, a década de 70 foi palco de muitas manifestações políticas e dentre elas, na
Bahia, estão o surgimento de Blocos Afro-baianos que inspirados nestes movimentos são
como “quilombos contemporâneos” que vivem em formato de sociedade, surgiram com a
proposta de distorcer e recriar uma realidade onde seja possível a valorização da
população negra, sua tradição história e cultura. A criação destes espaços antropológicos
resultou numa via de acesso à informações e apropriação, possibilitando explicitamente,
ao negro, a participação ativa nos bens culturais produzidos pela humanidade, resumidos
na participação cidadã e na construção de sua realidade cultural.
Os africanos que cruzaram o Mar Oceano não viajaram e sofreram sós. Com
nossos ancestrais vieram as suas divindades, seus modos singulares diversos de
visão de mundo, sua alteridade linguística, artística, étnica, religiosa, cultural, suas
diferentes formas de organização social e de simbolização do real. (MARTINS,
1997, p. 25/26)
Os Blocos Afros de Salvador são instituições sócio-culturais em que os valores e
ideais da população negra são recriados e recontados cotidianamente. A estética, a
música e as danças representam a reinvenção da tradição negra, é através do acesso a
estas informações que o negro se reconhece e conhece o mundo que o cerca. Isso só é
possível porque, “o homem só conhece a realidade na medida em que ele cria a realidade
humana e se comporta antes de tudo como ser prático.” (KOSIK, 1989, p. 22). Nadir
Nóbrega (2013), observa que:
3
A Frente Negra publicou o jornal A Voz da Raça e sua sede ficava na Rua da liberdade, 196 (São Paulo,
Capital).
3
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É interessante notar que, na discussão sobre a estética negra, esses blocos afro,
desde as suas fundações, apresentam a música imbricada com a dança, com os
cabelos, com os figurinos e adereços, materializando as ancestralidades africanas
brasileiras. Tal como na África, a dança e a música são a alma dos blocos
afrocarnavalescos, elas são inter e transdisciplinares, são multidimensionais e têm
impactado em muitas áreas do conhecimento da humanidade. Acredito, assim,
que isso contextualiza um dos fundamentos da Etnocenologia, em que o corpo
expressa desejos, devaneios e utopias históricas. E, na afirmativa de Pradier, o
corpo é o “lugar da encarnação do imaginário”. São corpos captadores,
apreendedores, transformadores, criadores de uma determinada estética.
(NOBREGA, 1996 p.13)
Ao se relacionar com estas instituições que criam espaços e fomentam discussões
entorno das identidades, histórias, estéticas, culturas negro-africana, indivíduos são
levados a perceberem-se como parte de sua sociedade, a compreenderem seu processo
de construção identitária e sentirem-se co-responsáveis pelas transformações e
conquistas sociais.
Historiografia de um Corpo
Nos estudos e discursos referentes às manifestações artísticos/culturais da
população negra brasileira usou-se muito o termo matriz no sentido de pontuar os
elementos predominantes negros e geradores destas manifestações. Entretanto, o termo
matriz cultural não tem dado conta da complexidade das dinâmicas culturais, dos
processos inter-étnicos e transitórios, e da diversidade que há nas manifestações afrobrasileiras. Para uma análise entorno do corpo/dança no contexto dos Blocos Afro
referencio-me ao conceito “motrizes”, apresentado por Ligiéro (2011) onde o conceito de
Motriz Cultural será empregado para: “
...definir um conjunto de dinâmicas culturais utilizado na diáspora africana para
recuperar comportamentos ancestrais africanos. A este conjunto chamamos de
práticas performativas e se refere a combinação de elementos como a dança, o
canto, a música, o figurino, o espaço, entre outros, agrupados em celebrações
religiosas em distintas manifestações no mundo Afro-Brasileiro. (LIGIÉRO, 2011 p.
130).
Que bloco é esse? Eu quero saber, é o mundo negro
Que viemos mostra prá você prá você
Somos criolo doido, somos bem legal, temos cabelo duro, somos black power
Branco, se você soubesse o valor que o preto tem, tu tomava um banho de piche,
branco e ficava preto também. Não te ensino minha malandragem nem tão pouco
minha filosofia Por quê? Quem dá luz ao cego é bengala branca e Santa Luzia.
Ai, ai meu Deus!
Que Bloco é Esse?
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Ilê Aiyê
Compositor: Paulinho Camafeu
Nascido em 01 de novembro de 1974, no bairro do Curuzu na Liberdade, em
Salvador, o Bloco Afro-contemporâneo Ilê Aiyê, conhecido também como “O Mais Belo
dos Belos”, surge como uma resposta ao sistema opressor e dominante que legava ao
homem negro e a mulher negra à margem social e aos conceitos e expressões
depreciativas que de certa forma induzem comportamentos humanos, racismo
contemporâneo4. Tais expressões são recorrentes na língua em que o adjetivo negro
conota-se negativamente e são possíveis de serem observadas no Dicionário Aurélio:
humor negro, lista negra, magia negra, mercado negro, ovelha negra, denegrir etc. Ao que
se pode acrescentar: página negra, peste negra e inúmeras outras. É também bastante
sintomático que o referido dicionário, entre os diversos significados que atribui a negro,
registre os de „sujo‟, „funesto‟, „maldito‟, „perverso‟ e „sinistro‟. Ou até mesmo expressões
como: “ai vem neguinho”, nega do cabelo duro, nega preta do bozó”, dentre outras.
Neste estudo falarei de sujeitos/objetos que resultam de um lugar que surge como
resposta ao sistema social de racismo e opressão, mas, não é o objetivo, neste momento,
levantar alguma bandeira e nem ser panfletária, porém não será possível a análise sem
citar experiências que diretamente irão remeter a estas questões. A proposta é a
investigação de corpos que foram oportunizados por estes ambientes, às construções de
outros conceitos e auto conceitos no que tange suas histórias e culturas. Refiro-me aos
Blocos Afro de Salvador que cotidianamente realizam ações de valorização e recontam a
história da população afro-brasileira a partir de outra ótica. Nestes lugares, o negro ou a
negra ganha outra conotação. As mulheres são comparadas a pedras preciosas: pérola
negra = pedra preciosa, são endeusadas: Deusa do ébano. Nestes espaços ser negro é
sinônimo de aceitação de suas matrizes e descendências culturais são sinônimas de
consciência político/etno/racial. E assim diz a música Alienação, dos compositores Mário
Pam e Sandro Teles:
Se você esta a fim de ofender
É só chamá-lo de moreno pode crê
É desrespeito a raça é alienação
4
Chamo de racismo contemporâneo as ações que para além dos das correntes e troncos ainda hoje
estabelecem relações de inferioridade entre indivíduos de culturas e raças diferentes.
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Aqui no Ilê Aiyê a preferência é ser chamado de negão
Se você esta a fim de ofender
É só chamá-la de morena pode crê
Você pode até achar que impressiona
Aqui no Ilê Aiyê a preferência é ser chamada de negona.
A consciência é o objetivo principal
Eu quero muito mais
Alem de esporte e carnaval, natural.
Chega de eleger aqueles que têm
Se o poder é muito bom
Eu quero poder também
O sistema tenta desconstruir
lhe afastar de suas origens
Pra que você não possa interagir, construir.
Já passou da hora de acordar
Assumir sua negritude é vital para prosperar
Ser negro não questão de pigmentação
É resistência para ultrapassar a opressão, sem
pressão.
Lutar sempre igualdade e humildade
Vou subir de Ilê Aiyê
E mudar toda cidade.
Conhecido como “O mais belo dos belos” O Bloco Afro Ilê Aiyê, inspira a criação de
outros Blocos Afro que também seguem e compartilham da mesma ideologia, e que
fortalecidos pelos tambores foram fundamentais para as construções dos discursos
etnopolíticos, um conjunto de ações que envolvam questões étnicas, reforçadas pelas
expressões “Black Power” e “Black is beautiful”. São eles: o Bloco Afro Malê Debalê, com
sede na Lagoa do Abaeté no bairro de Itapuã; o Bloco Afro Olodum, com sede no
Pelourinho no Centro Histórico de Salvador; o Bloco Afro Muzenza com sede no
Pelourinho no Centro Histórico de Salvador; Araketu com sede no bairro de Periperi no
Subúrbio Ferroviário de Salvador; seguidos por muitos outros. No contexto dos Blocos
Afro a estética, a dança e a música são expressões de autoafirmação, autoestima e
reconstrução identitária, desenvolvidas em reação à ideologia hegemônica eurocêntrica que
desconsidera a noção de alteridade, estabelecendo um padrão único de beleza física,
estética e cultural. Estas instituições realizam papeis fundamentais para o processo de
revisão de significados impressos por metáforas, que ao longo da história, induziram
ações de negação, exclusão e subalternidade da população negra referente a outros
grupos que se consideram dominantes em uma mesma sociedade.
“A metáfora não está meramente nas palavras que usamos (...) porque a
concebemos assim – e agimos de acordo com o modo como concebemos as coisas”
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(LAKOFF; JOHNSON, 2002, p. 48). Para além das palavras Lakoff e Jonhson (2002)
consideram que nosso sistema conceitual é metafórico por natureza e a nossa maneira de
proceder, de pensar, de perceber e de agir é estruturada por metáforas, que se refere á
experiência e compreende uma coisa em termos de outra. Seus estudos nos mostram
que a forma como significamos nossas experiências determina nossos pensamentos e
ações, relacionados com o mundo a cada instante este vínculo que imbrica organismoambiente é o que constitui nossos significados. Por ser relacional, cabe-nos entender os
significados como processos de significação, nos quais não há fins absolutos. Tanto
nossas significações quanto nossas relações com o mundo são provisórias, isto é, são
reconstruídas constantemente. Neste processo de reconstrução que apresento o tema
central deste estudo que são os concursos de Rainhas de Blocos Afros, realizados por
estas instituições em que considero um mecanismo de projeção de mulheres negras
como símbolos de beleza em contraposição a concursos que seguem uma ótica
eurocêntrica, tendo a Dança de “motriz” africana como uma potencializadora desta outra
configuração.
Historiografia de uma dança
Uma das maiores e reconhecidas cerimônia de exaltação da beleza da mulher
negra é a Festa da Beleza Negra que foi criada e dirigida pelo bloco afro Ilê Aiyê, em
1976. Trata-se de um concurso para a escolha de uma mulher negra, que representará o
bloco durante o carnaval, como “Deusa do Ébano”5, antecedendo os preparativos para o
carnaval. Para Nóbrega (2013, p. 126):
A imagem da jovem mulher negra como “deusa” ou “rainha” surgiu como crítica aos
concursos de beleza do carnaval, nos quais as mulheres brancas são as que
representavam o modelo de “beleza ideal”. Trata-se de uma concepção de beleza
que reafirma os cabelos trançados, a pele escura, o nariz chato, os lábios grossos e
a bacia grande. Nesse concurso, vê-se que os atributos de beleza e de feminilidade
são fundamentais, além disso, a desinibição, a dignidade, a força, a sensualidade, a
ancestralidade e a consciência negra são valores imprescindíveis para as
candidatas a esse título.
“A membrana entre corpo e palavra tem sido tecida por uma maneira de proceder
do corpo que é metafórica, e não nos damos conta disto” (RENGEL, 2007, p. 75).
5
Deusa do Ébano é o título dado a vencedora do concurso realizado para a escolha da mulher negra que
irá representar o Bloco Afro Ilê Aiyê durante o ano em curso. É a Rainha do Ilê.
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O concurso “Beleza Negra” é uma contraposição aos adjetivos observados no
Dicionário Aurélio que já se naturalizaram em nosso cotidiano e, consequentemente,
atribuem ao
negro,
conceitos negativos imprimindo
prejuízos no
processo
de
desenvolvimento e valorações de culturas consideradas social e politicamente marginais.
“(...) somos corponectivos (=embodied = mentecorpo trazidos juntos) e, ao dizer que:
NOS SABEMOS, NOS ENTENDEMOS sensório-motoramente, já estamos fazendo uma
abstração com o emprego de tais verbosconceitos que significam julgamentos racionais,
inferentes, intelectuais. Ocorre, então, um cruzamento em simultaneidade de processos
sensórios-motores e abstratos: o procedimento metafórico.” (RENGEL, 2007, p. 78).
O corpo não é um meio por onde a informação simplesmente passa, pois toda
informação que chega entra em negociação com as que já estão. O corpo é o
resultado desses cruzamentos, e não um lugar onde as informações são apenas
abrigadas. É com esta noção de mídia de si mesmo que o corpomídia lida, e não
com a idéia de mídia pensada como veículo de transmissão. (GREINER; KATZ,
2005, p.07)
Este mesmo corpo:
(...) não é um recipiente, mas sim aquilo que se apronta nesse processo coevolutivo de trocas com o ambiente. E como o fluxo não estanca, o corpo vive no
estado do sempre presente, o que impede a noção do corpo recipiente. O corpo
não é um lugar onde as informações que vêm do mundo são processadas para
serem depois devolvidas ao mundo. (GREINER; KATZ, 2005, p. 07)
O corpo troca informações com seu ambiente, promovendo um processo de
contaminação que se reconfigura constantemente. Este corpo realiza um procedimento
compreendido por Rengel (2007) como procedimento metafórico:
O procedimento metafórico faz um transporte, uma intermediação entre os
domínios sensórios-motores = perceber, sentir, transportar, mover, tocar, pegar,
etc. e os domínios das experiências subjetivas = julgamentos morais, juízos de
valor, relações de afetos, atc. (RENGEL, 2007, p.78).
E a teseaula de Rengel (2007) onde diz que:
(...) o procedimento metafórico que faz com que entender seja algo que se
corponecta com pegar, porque vivemos (em tempo real) a experiência de pegar
coisas e pessoas que foram formando e continuam a formar nossa opinião (ou
julgamento) delas. (RENGEL, 2007, p.78).
Esta afirmativa nos faz compreender que conforme seja o emprego da metáfora ao
ser humano está ditará a forma como este individuo irá se relacionar com o mundo. A
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dança realizada, pelas rainhas de blocos afro, traz a complexidade, singularidade e
identidades negra africana que retratam seu processo de identificação histórico cultural,
elementos estes na maioria das vezes acessados a partir do contato com estes espaço,
neste território onde acontece o processo mútuo contaminatório entre o corpo e o
ambiente, sendo a dança uma das linguagens potencializadora na apresentação deste
processo inacabado por gerar permanentes transformações. Esta dança configura o
processo de transformação destes corpos atravessados pelas informações deste
ambiente, corpos de aprendizados e de permanente transformação.
No âmbito dos Blocos Afro, a dança é a comunicadora de um processo co-evolutivo
segundo Nóbrega (2013): O corpo, simultaneamente, inscreve-se e interpreta significados,
projetando-se como transmissor do não verbal, a memória ancestral, como define Juana
Santos (1986 p. 59), “(...) o diálogo entre passado e presente, realidade contextualizada,
permite a emergência de um ethos que perpassa as fronteiras das variáveis das
comunidades terreiros, das instituições afro-lúdicas e culturais”.
Esta dança se reconfigura constantemente transmitindo novos sentidos, é a
expressão de um corpo que potencializa a revisão e outra significação de metáforas após
experiências vividas. Posso até chamá-lo de “corpo encruzilhada” onde para Leda Maria
Martins, a encruzilhada é utilizada para descrever a cultura afro brasileira como um
resultado de cruzamentos culturais trans e interculturais. “utilizado como operador
conceitual, oferece a possibilidade de interpretação do trânsito sistêmico e epistêmico que
emergem dos processos inter e transculturais.”(MARTINS, 1997, p. 28).
As rainhas de blocos afro dançam símbolos e signos que representam suas
identidades, são historiografias, uma história crítica, e o senso de pertencimento étnico
racial. São nas danças das rainhas dos blocos afro, que segundo Martins (2008) “a
corporalidade6 é representada pelo corpo em movimento – o jeito de dançar que ostenta” as
fantasias, os adereços de mãos e de cabeças, embalados pelos ritmos específicos.
Continuando no argumento de Suzana Martins, estes corpos dançam fluindo com “vigor,
com tonicidade, porém desprovidos de qualquer extratensão muscular ou rigidez nas
6
Suzana Martins (2008) o “termo corporalidade refere-se ao tratamento dado ao corpo como um conjunto de
elementos simbólicos estruturados para um determinado fim” (2008, p. 79).
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evoluções das sequências dos movimentos” (MARTINS, S., 2008, p. 114). Em uma
entrevista a mim cedida, a Drª Nadir Nóbrega durante sua pesquisa de doutorado a
também Drª Amélia Conrado, também colaboradora e coreógrafa do grupo de Dança do
Bloco Afro Ilê Aiyê, descreveu e salientou a importância da Dança na instituição:
(...) A coreografia ressalta a dança, enquanto um dos importantes canais estéticos
de expressão e linguagem daquilo que construímos e consideramos por uma
estética negra, em contraposição ao que, hegemonicamente a sociedade oficial
brasileira impôs enquanto “modelo estético”. Transpondo isso, a coreografia
permite aos corpos negros falarem pela sua força dinamizadora, retirando de
tradições, de histórias, de mitos, de lendas, de pensamentos e da memória dos
antepassados, enquanto ancestralidade, motivos e inspiração que dialogam com o
cotidiano e com a dinâmica social, o que permite novos conceitos e elaborações
da arte. (Via e-mail, em 08/09/2011).
Assim como, as tradições de culturas africanas, estas danças não se apresentam de
formas isoladas, existe uma tríade dança, música e canto que estão em constante relação,
esta mesma tríade defini-se por Ligiéro (2011) da seguinte forma: (...) Cantar-dançarbatucar não é apenas uma forma, mas uma estratégia de cultuar uma memória exercendoa com um corpo em sua plenitude. Uma espécie de oração orgânica. (p.143).
Nestes concursos acontecem inversões de conceitos. É notável como corpos,
antes invisibilizados, se projetam resignificados e empoderados. São corpos/expressões
de um imaginário, de símbolos e signos despertados pela experiência vivida. Não são
corpos engessados, são corpos que ao dançar apresentam outros conceitos que como
“motriz” expressam suas complexidades, diversidades e singularidades.
“O conceito de Motrizes Culturais empregado é para definir um conjunto de
dinâmicas culturais utilizado na diáspora africana para recuperar comportamentos
ancestrais africanos. A este conjunto chamamos de práticas performativas e se
refere a combinação de elementos como a dança, o canto, a música, o figurino, o
espaço, entre outros, agrupados em celebrações religiosas em distintas
manifestações no mundo Afro-Brasileiro.” (LIGIÉRO, 2011, p.130)
As rainhas de blocos transformam a sociedade em um grande palco, onde
representam papéis e contam sua própria história, são memórias presentes que
constroem novas realidades e refletem sobre as mesmas. São pessoas com diversas
formações sócio-educacionais, ligadas por uma atividade comum, a dança, que carregada
do sentido histórico confere uma identidade sócio-cultural. “A identidade, então, costura
(ou, para usar uma metáfora médica, “sutura”) o sujeito à estrutura. Estabiliza tanto os
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sujeitos quanto os mundo culturais que eles habitam, tornando ambos reciprocamente
mais unificados e predizíveis.” (HALL, 2002, p.12).
A representação social e a história de vida destas mulheres são construções de
símbolos dados pela dinâmica da sociedade e esta construção se dá também através da
interação estabelecida com outros sujeitos históricos. Os Blocos Afro tornam visíveis
indivíduos esquecidos pela sociedade, apresentando-os como seres únicos e singulares
com potencialidades culturais.
As danças de motrizes africanas são apresentadas como uma linguagem não
verbal que traçam uma espécie de caminho para a compreensão dos elementos e
símbolos que constituem as identidades de um indivíduo, pois é através dos gestos e dos
ritmos que é possibilitada a sensação de estar junto com os antepassados.
Como professora na verdade eu não sabia passar para os meus alunos, o porquê
ser negra e qual o motivo de usar o meu cabelo Black Power, qual o motivo de ser
rainha, o sentimento que tenho de ver dali de cima as alas dançando. Depois do
Malê Debalê eu conheci na verdade o quanto é importante a cultura afro na vida
da gente, principalmente quem mora aqui na Bahia. (DAMASCENO, 2008).7
O senso de pertencimento étnico é outro fator fundamental despertado no sujeito
que tem acesso às informações de sua história e de sua cultura. Conhecer a sua história
é reconhecer a si mesmo como cidadão, suas origens, é buscar representações para
continuar a luta contra o preconceito, é não se anular diante de uma sociedade que
historicamente descrimina a população negra pelas suas características estéticas que
também representam a afirmação de sua auto-estima.
Os bens culturais legados pela humanidade não são proporcionados através da
educação brasileira em condições iguais, havendo uma contra educação, as histórias
contadas através dos materiais didáticos não despertam o senso critico dos estudantes,
alienam e não dão abertura para contestações e nem sempre são as verdadeiras
histórias. A educação ideal seria aquela capaz de fazer com que o indivíduo conceba sua
própria existência, enquanto membro de um determinado grupo social. Portanto, a
despeito de sua origem étnica, ao receberem igualmente nos ensinamentos da dança, as
7
Entrevista concedida por Alexandra da Paixão Damasceno, Rainha do Bloco Malê Debalê, em 8 de
outubro de 2008.
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mesmas oportunidades de compreensão das diversas expressões do povo brasileiro, irão
partilhar autenticamente dos significados de uma cultura. E sobre o procedimento
metafórico do corpo que é uma maneira de proceder do corpo que gera muitas metáforas,
não temos ciência absoluta dos conceitos que regem nosso relacionamento com o mundo
e com as pessoas. Isso porque, embora consigamos nos dar conta de algumas
informações dentre as inúmeras que temos contato, a cada instante, muitas nos
contaminam sem ao menos nos atentarmos para isso. Quando entramos em contato com
algo, tanto nós quanto este algo são afetados mutuamente. É justamente nesta conexão
entre nós e o que nos cerca que nossas significações são constituídas.
Minha crioula.
Vou cantar para você.
Estás tão linda, no meu bloco Ilê Aiyê
Com suas tranças.
Muita originalidade
Pela avenida
Cheia de felicidade
Minha deusa do ébano
É deusa do ébano
Todos os valores
De uma raça estão presente
Na estrutura deste bloco diferente
Por isto eu canto pelas ruas da cidade.
Pra você minha crioula
Minha cor, minhas verdades
Minha deusa do ébano. (Repete)
Deusa do Ébano
Geraldo Lima, 1976.
A identidade feminina é reconstruída a partir do acesso a informações que foram
subtraídas ao longo da história, neste sentido, os Blocos Afro participam da história
contemporânea da revolução negra, suas armas são o canto, as vestes, os tambores, as
poesias e danças. O dança neste processo transmite uma identidade reconstruída que se
reafirma cotidianamente. O acesso aos referenciais africanos faz com que suas
intérpretes reflitam sobre a estrutura social que as cerca, conscientizando-se de que são
também construtoras de uma sociedade que, assim como elas, está em constante
mutação. Os Blocos Afro tornam visíveis mulheres esquecidas pela sociedade,
apresentando-as como seres únicos e singulares com potencialidades culturais. Sei do
lugar que estou falando, pois sou parte dele e considero que apesar de nos finais destes
concursos termos apenas uma eleita, todas saem vencedoras, pois durante todo processo
somos motivadas a voltar o nosso olhar para nossas histórias e rememoramos
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informações que fazem parte do processo de nossa construção identitária. E esta
identidade em questão, não é fixa nem engessada esta em constante mutação e trocas,
assim como as danças que apresentamos que apesar de terem padrões se modificam e
evoluem a cada corpo que a executa.
Bibliografia
CONRADO, Amélia Vitória de Souza. Dança negra no contexto social brasileiro e na
educação. Monografia (Mestrado em Educação)-Universidade Federal da Bahia, Salvador, 1993
b.
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LIGIÉRO, José. O conceito de “motrizes culturais” aplicado às praticas performativas de
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contemporânea. 2001. 33 f. Tese (Doutorado em Artes Cênicas) – Escola de Teatro. Universidade
Federal da Bahia – UFBA, Salvador, 2001.
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Mazza Edições, 1997.
OLIVEIRA, Nadir Nóbrega.
Sou negona, sim senhora! Um olhar sobre as práticas
espetaculares dos blocos afros Ilê Aiyê, Olodum, Malê Debalê e Bankoma no carnaval
soteropolitano / Nadir Nóbrega Oliveira. - 2013.
PINHO, Patrícia de Santana. Reinvenções da África na Bahia. São Paulo: Annablume, 2004.
RENGEL, Lenira. Corponectividade: Comunicação por Procedimento Metafórico nas Mídias
e na Educação, PUC/SP, 2007.
*Licenciada, Especialista em Dança (UFBA) e Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Dança
(UFBA), Docente dos Cursos de Licenciatura em Dança e em Teatro da UESB. É Coordenadora do
Subprojeto de Dança da UESB/Jequié. Foi Rainha do Bloco Afro Malê Debalê durante os anos 2000 e 2006.
Coordenadora do Coletivo Dançando Nossas Matrizes.
Endereço eletrônico: [email protected]
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