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Durante séculos essa economia se assentava em um só produto de exportação (açúcar, ouro, café, borracha), razão pela qual o modelo agroexportador era extremamente vulnerável. Dependia das oscilações do mercado dos países de economia hegemônica. Esse modelo perdurou até a crise do café, gerada pela crise econômica mundial em 1929. Podemos dizer que nesse período uma política educacional estatal é quase que inexistente. Basta ressaltar que o primeiro Ministério de Educação é criado pelo Governo de Getúlio Vargas em 1930. Isso não quer dizer, porém, que o sistema educacional correspondente aos diferentes momentos desse período fosse totalmente inoperante. De fato, durante o Brasil-Colônia, funcionou aqui um sistema educacional montado pelos jesuítas que cumpria com uma série de funções, também importantes para a coroa portuguesa (Estado). O quadro teórico fornecido por Gramsci possibilitaria a seguinte interpretação: a fase colonial caracterizava-se pela inexistência de instituições autônomas que compusessem a sociedade política. Essa se reduzia às representações locais do poder da metrópole. A sociedade civil era composta quase que exclusivamente pela Igreja. A infra-estrutura correspondia ao que acabamos de caracterizar como economia agroexportadora. Que importância poderia ter a educação dentro de tal formação social? A monocultura latifundiária exigia um mínimo de qualificação e diversificação da força de trabalho. Essa se compunha quase que exclusivamente de escravos trazidos da África. Portanto, não havia nenhuma função de reprodução da força de trabalho a ser preenchida pela escola. A estrutura social também se encontrava pouco diferenciada: além dos escravos (classe trabalhadora), a compunham os senhores das “casas grandes”, ou sejam, os latifundiários e donos de engenho; os administradores portugueses 1 2 Veja especialmente: TAVARES, Maria da Conceição: Da Substituição de Importações ao Capitalismo Financeiro. 2a ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1973. Mas também: FURTADO, Celso: Análise do Modelo Brasileiro. 3a ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972, CARDOSO, Fernando Henrique e FALETTO, Enzo: Dependência y desarrolo en América Latina. 3a ed. México : Siglo Veintiuno Editores, 1971. 50 representantes da Coroa na Colônia e o clero (na maioria jesuítas). A reprodução dessa estrutura de classes era garantida pela própria organização da produção. À escola, como mecanismo de re-alocação dos indivíduos na estrutura de classes, era, portanto, dispensável. Restavam-lhe ainda duas funções: a de reprodução das relações de dominação e a de reprodução da ideologia dominante. As escolas de jesuítas, especialmente os colégios e seminários em funcionamento em toda a Colônia, preenchiam perfeitamente essas funções, ajudando e assegurando dessa maneira a própria reprodução da sociedade escravocrata. Os jesuítas, além de prepararem os futuros bacharéis em belas artes, direito e medicina, tanto na Colônia como na Metrópole, fornecendo assim os quadros dirigentes da administração colonial local, formavam ainda os futuros teólogos, reproduzindo os seus próprios quadros hierárquicos, bem como os educadores, recrutados quase que exclusivamente do seu meio. Com isso a Igreja Católica não só assumia a hegemonia na sociedade civil, como penetrava, de certa forma, na própria sociedade política através dessa arma pacifica, que era a educação. Os colégios e seminários dos jesuítas foram desde o início da colonização os centros de divulgação e inculcação do cristianismo e da cultura européia, ou seja, da ideologia dos colonizadores. Declaradamente sua função consistia em subjugar pacificamente a população indígena e tomar dócil a população escrava. Assim, a Igreja, utilizando-se também da escola, auxiliou a classe dominante (latifundiários e representantes da coroa portuguesa), da qual participava, a subjugar de forma pacífica as classes subalternas às relações de produção implantadas. Apesar da expulsão transitória dos jesuítas do Brasil no fim do Século XVIII, a Igreja preservou sua força na sociedade civil ainda nas fases do Império e da I República. É ela que, basicamente, continuava a controlar as instituições de ensino, encarregando-se ainda por muito tempo da função de reprodução da ideologia. Aliás, são poucas as mudanças sofridas pela sociedade colonial durante o Império e a I República. A economia continuava sendo agroexportadora. Da monocultura açucareira passava-se para a cafeeira. A força de trabalho escrava era substituída parcialmente pela força de trabalho dos imigrantes, que vêm ainda em maior escala quando, no fim do Império, se passava ao regime do trabalho livre. Mas a estrutura social de dominadores e dominados permanece, em sua composição básica, a mesma. Não há necessidade de qualificação da força de trabalho imigrante pela escola brasileira, pois ela já vem qualificada para o tipo de tarefas que a esperam. A dependência econômica, agora em relação à Inglaterra, permanece a mesma, apesar da independência política do Brasil. Surge, porém, a necessidade da formação de quadros técnicos e administrativos novos, razão pela qual se mantêm e se ampliam as inovações introduzidas por D. João VI por ocasião da transferência da corte portuguesa ao Brasil em 1808 (fundação de escolas técnicas, academias, instalação de laboratórios, etc.). Com a independência política, torna-se necessário fortalecer a sociedade política, o que justifica o surgimento de uma série de escolas militares, de nível superior, ao longo do território nacional. As instituições de ensino não-confessionais passam, assim, a assumir parcialmente a função de reprodução dos quadros dirigentes. A função de reprodução ideológica, necessária à submissão das classes subalternas às relações de dominação e às condições do trabalho explorado, continua sendo desempenhada, paralelamente, pela Igreja e suas escolas confessionais. Concluindo, poderíamos dizer que no fim do Império e começo da República se delineiam os primeiros traços embrionários de uma política educacional estatal. Ela é fruto do próprio fortalecimento do Estado, sob a forma da sociedade política. Até então a política educacional era feita quase que exclusivamente no âmbito da sociedade civil, por uma instituição todo-poderosa, a Igreja. O Segundo Período - a fase de 1930-1945 O fortalecimento das instituições da sociedade política decorria, por sua vez, da importância que os aparelhos jurídico e repressivo do Estado adquiriam como mediadores do processo econômico. Este se limitava, para a fase em questão, praticamente à produção do café para o mercado internacional. Por isso, a atuação do Estado vai se dar praticamente entre este mercado e os interesses dos cafeicultores paulistas. Era o Estado que avalizava os investimentos no setor ferroviário, contratava os empréstimos para a expansão da produção cafeeira nos países de economia hegemônica e incentivava (financiandoa, parcialmente) a imigração da força de trabalho necessária, em decorrência da expansão das lavouras. 51 Foi, finalmente, este Estado quem se encarregou da “socialização das perdas”3, durante a crise de superprodução cafeeira no início da década de 20. O Estado passou a comprar o produto excedente com auxílio de créditos adquiridos no exterior, dentro de sua política de “valorização”4. Uma das conseqüências dessa política foi o aumento ilimitado da dívida externa, por sua vez já bastante elevada pela custosa importação de bens de consumo. A crise mundial de 1929 encaminha as mudanças estruturais que vão caracterizar o modelo de substituição das importações, correspondente ao segundo período que nos propusemos a analisar nessa retrospectiva histórica. Esse modelo foi decorrência imediata da crise cafeeira provocada pela crise mundial. A conseqüente baixa dos preços do café fez com que capitais de investimento se deslocassem para outros setores produtivos. A falta de divisas impôs a restrição da importação de bens de consumo. Todos esses fatores contribuíram para o fortalecimento da produção industrial no Brasil, primeiramente concentrada na produção dos bens de consumo anteriormente importados. Essa substituição das importações, além de produzir uma diversificada da produção, relativizou o poder econômico dos cafeicultores e fortaleceu outros grupos econômicos, especialmente uma nova burguesia urbano-industrial. Essas mudanças provocaram uma reestruturação global do poder estatal, tanto na instância da sociedade política como da sociedade civil. A classe até então hegemônica dos latifundiários cafeicultores é forçada a dividir o poder com a nova classe burguesa emergente. Em conseqüência dessa nova situação, há uma reorganização dos aparelhos repressivos do Estado. Com auxílio de certos grupos militares (tenentes) e apoiado pela classe burguesa, Vargas assume o poder em 1930, implantando, em 1937, o Estado Novo, com traços ditatoriais. Isto significa que a sociedade política invade áreas da sociedade civil, subordinando-as ao seu controle. É o que ocorrerá com as instituições de ensino. Percebe-se uma intensa atividade do Estado em ambas as instâncias da superestrutura. É criado pela primeira vez,5 em 1930, um Ministério de Educação e Saúde, ponto de partida, segundo Valnir Chagas,6 para mudanças substanciais na educação, entre outras, a estruturação de uma universidade. De fato, só então são fundadas no Brasil, as primeiras universidades, pela fusão de uma série de instituições isoladas de ensino superior.7 Estabelece a nova Constituição de 34 (Art. 150a) a necessidade da elaboração de um Plano Nacional da Educação que coordene e supervisione as atividades de ensino em todos os níveis. São regulamentadas (também pela primeira vez) as formas de financiamento da rede oficial de ensino em quotas fixas para a Federação, os Estados e Municípios (Art. 156), fixando-se ainda as competências dos respectivos níveis administrativos para os respectivos níveis de ensino (Art. 150). Implanta-se a gratuidade e obrigatoriedade do ensino primário. O ensino religioso toma-se facultativo. Parte substancial dessa legislação do ensino é absorvida pela nova Constituição de 1937. Aqui aparecerão dois novos parágrafos de extrema importância para a refuncionalização do sistema escolar em vista das mudanças macro-estruturais ocorridas na infra-estrutura e na organização do poder. É introduzido o ensino profissionalizante, previsto antes de mais nada para as classes “menos privilegiadas” (Art.129). Dispõe ainda este artigo de lei que é obrigação das indústrias e dos sindicatos criarem escolas de aprendizagem na área de sua especialização para os filhos de seus empregados e membros. Declaram-se obrigatórias as disciplinas de educação moral e política (Art. 131). Tanto Getúlio Vargas como seu Ministro da Educação, Gustavo Capanema, reforçam em discursos e iniciativas essas colocações politicas8 da Constituição. 3 FURTADO, Celso: A Formação Econômica do Brasil, Rio de Janeiro, 1961. Ibid., p.2l8 e segs. 5 Essa afirmação só é válida se negligenciarmos como tal o “Ministério de Instrução, Correios e Telégrafos”, criado em 1890 e dissolvido depois de dois anos. 6 CHAGAS, Valnir: A Luta pela Universidade no Brasil, Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Vol. 48, jul.-set. 1967, p. 48. 7 Remontam a essa época a fundação das universidades, do Rio de Janeiro, de São Paulo, Belo Horizonte e Porto Alegre. 8 Cf. Ministério da Educação e Saúde (cd.): Panorama da Educação Nacional. Rio de Janeiro. 1937, p. 9 e segs. Veja também: PEREIRA DA SILVA, J. (org.): As Melhores Páginas de Getúlio Vargas, Rio de Janeiro 1940. 4 52 De fato, já um ano após a promulgação da lei, são implantadas, por ordem do governo central, escolas técnicas profissionalizantes (liceus) em Manaus, São Luis, Vitória, Pelotas, Goiânia, Belo Horizonte e Rio de Janeiro, destinadas a criar, nas palavras do próprio Ministro Capanema, na moderna juventude brasileira, um “exército de trabalho”, para o “bem da nação”. 9 Temos, pois, no inicio do período que caracterizava o modelo econômico da substituição de importações, uma tomada de consciência por parte da sociedade da importância estratégica do sistema educacional para assegurar e consolidar as mudanças estruturais ocorridas tanto na infra como na superestrutura. Por essa razão a jurisdição estatal passa a regulamentar a organização e o funcionamento do sistema educacional, submetendo-o, assim, ao seu controle direto. A Igreja passa a ter influência cada vez menor sobre ele. Isso se comprova por um lado pela transformação do ensino confessional em facultativo e por outro pela redução da participação das escolas confessionais no ensino primário. Assim, em 1933, as escolas primárias contavam com 21.726 estabelecimentos de ensino oficiais (reunindo os estatais e municipais) e 6.044 particulares (incluindo, portanto, os confessionais). Em 1945 essas cifras se haviam alterado respectivamente para 33.423 e 5.908. Quanto à matricula geral, ela assume as seguintes proporções: em 1933 se registraram 1.739.613 matriculas na rede oficial face a 368.006 na rede particular. Em 1945 esses dados se haviam alterado para 2.740.755 na rede oficial e 498.085 na particular. 10 A partir da década de 60 essa tendência também se faz sentir no ensino médio, se bem que não de maneira tão radical.11 Esses dados ilustram bastante bem como o Estado a partir da sociedade política toma conta progressiva do sistema educacional, transformando-o gradualmente de instituição outrora privada da Igreja em um perfeito “aparelho ideológico do Estado”. A política educacional do Estado Novo não se limita à simples legislação e sua implantação. Essa política visa, acima de tudo, transformar o sistema educacional em um instrumento mais eficaz de manipulação das classes subalternas. Outrora totalmente excluídas do acesso ao sistema educacional, agora se lhes abre generosamente uma chance. São criadas as escolas técnicas profissionalizantes (“para as classes menos favorecidas”). A verdadeira razão dessa abertura se encontra, porém, nas mutações ocorridas na infra-estrutura econômica, com a diversificação da produção. Especialmente o trabalho nos vários ramos da indústria exige maior qualificação e diversificação da força de trabalho, e portanto um maior treinamento do que o trabalho na produção açucareira ou do café. O Estado, procurando ir ao encontro dos interesses e das necessidades das empresas privadas, se propõe a assumir o treinamento da força de trabalho de que elas necessitam. Essa medida política é tomada no interesse do desenvolvimento das forças produtivas (veja-se o pronunciamento do então Ministro Capanema de querer “criar um exército de trabalho para o bem da nação”), mas beneficiando diretamente os diferentes setores privados da indústria. A nova força de trabalho precisa ser recrutada dentro da nova configuração da sociedade de classes. Evidentemente não será fornecida pela classe dominante, na qual continuam figurando, mesmo com seu poder reduzido, a velha aristocracia rural, a burguesia financeira e a nova burguesia industrial em ascensão. Preocupada em formar seus quadros dirigentes em escolas de elite (na maioria ainda particulares) esta classe não revela interesse pelo ensino técnico. A força de trabalho adicional também não poderá ser buscada nos setores médios e baixos da burguesia e da pequena burguesia ascendente, preocupada em ocupar as vagas do ensino propedêutico, a fim de alcançar um título acadêmico (uma das formas de ascensão). Pelo grande déficit educacional nas áreas rurais, também não será o campesinato que fornecerá os elementos que, qualificados pela escola, promoverão o desenvolvimento industrial. Resta a reduzida classe operária, formada parcialmente pelos trabalhadores urbanos e rurais imigrados ao Brasil nas décadas anteriores, bem como populações nacionais migradas para os centros urbanos, semi e desqualificadas, ou seja, “o exército industrial de reserva”. Assim, as escolas técnicas vão ser “a escola para os filhos dos outros”, ou melhor, a única via de ascensão permitida ao operário. Que essa via é falsa e se revela um beco sem saída, está implícito na especificidade dessa escola. Sendo de nível médio, ela não habilita seus egressos a cursarem escolas de nível superior. Criou-se a dualidade do sistema educacional que, além de produzir e reproduzir a 9 Ministério de Educação e Saúde MEC/SEEC (cd.): Panorama da Educação Nacional, op. cit., p.30 e segs. Cf. Sinopse Retrospectiva do Ensino no Brasil. Principais Aspectos Estatísticos, Rio de Janeiro, sem data e página. Se estamos tomando particular como confessional isto só é licito porque o confessional pelo menos é uma parte do particular. Assim que reduções neste, também afetam aquele. 11 Veja MEC/IBGE (cd.): Brasil – Séries Retrospectivas, 1970, Rio de Janeiro, pp. 249 e 254. 10 53 força de trabalho para o processo produtivo, garante a consolidação e reprodução de uma sociedade de classes, mais nitidamente configurada que no período anterior. O sistema educacional do Estado Novo reproduz em sua dualidade a dicotomia da estrutura de classes capitalista em consolidação. Tal dicotomia é camuflada atrás de uma ideologia paternalista. As chances educacionais oferecidas pela escolas técnicas (para “os menos favorecidos”) parecem ter caráter de prêmio. De fato, elas criam as condições para assegurar maior produtividade do setor industrial. Em outras palavras, criam a possibilidade de extrair parcela maior de mais-valia dos trabalhadores mais bem treinados. As condições para essa exploração são criadas e financiadas pelo Estado.12 A fase de 1945-1964 A economia de substituição de importações iniciada em 1930 e fortalecida pela conjuntura internacional decorrente da II Guerra Mundial produziu o “deslocamento do centro de decisões de fora para dentro”.13 Em outras palavras, se antes o desenvolvimento da economia agroexportadora dependia do mercado mundial e, portanto, de decisões que escapavam aos produtores internos, essas decisões passaram a ser tomadas internamente, quando o setor produtivo passou a satisfazer as necessidades do mercado interno, produzindo bens de consumo que antes eram importados. Vimos que foi a crise econômica internacional que desencadeou todos esses processos de mudança. Mas este processo foi reforçado e assegurado pela II Guerra Mundial. As economias dos países beligerantes passaram a produzir material bélico e a limitar a produção de bens de consumo para a exportação. Dessa forma a indústria nacional teve chances de desenvolver-se sem a competição de produtos estrangeiros. Sem esse momento puramente conjuntural, a substituição das importações não teria tido grandes êxitos. Prova disso, é que, finda a Guerra, essa situação mudou fundamentalmente. Os laços de dependência que durante o período de 30 a 45 foram se afrouxando, agora se restabelecem.14 A fase que vai de 45 até o início dos anos 60 corresponde à aceleração e diversificação do processo de substituição de importações. Ao nível político, sua expressão mais perfeita é o Estado populista-desenvolvimentista, que representa uma aliança mais ou menos instável entre um empresariado nacional, desejoso de aprofundar o processo de industrialização capitalista, sob o amparo de barreiras protecionistas, e setores populares cujas aspirações de participação econômica (maior acesso a bens de consumo) e política (maior acesso aos mecanismos de decisão) são manipuladas tacitamente pelos primeiros, a fim de granjear seu apoio contra as antigas oligarquias. Surge, nessa fase, um novo protagonista do processo de substituição de importações: o capital estrangeiro, pelo menos na fase de euforia desenvolvimentista, não é percebido como um inimigo do projeto nacionaldesenvolvimentista, já que sua penetração não parecia ter nenhum sentido desnacionalizante, ou de expropriação de áreas já ocupadas pelo capital nacional, mas simplesmente o de abertura de novas frentes de investimento substitutivo. Com o fim do período fácil de substituição de importações, em que todos os interesses pareciam conciliáveis, vão aflorando os conflitos que até então só existiam de forma latente.15 O pacto populista começa a fragmentar-se: as pressões distributivistas das massas se tornam cada vez mais dificilmente harmonizáveis com a manutenção da lucratividade das empresas e com as necessidades de acumulação, uma vez esgotada a euforia desenvolvimentista. As classes médias, profissionais liberais, forças armadas, pauperizadas pela inflação, sentem-se excluídas dos processos decisórios do Estado populista, que não mais representa os seus interesses, e que parece encaminhar-se para rumos de crescente radicalização. O capital estrangeiro sente no modelo político 12 Se em 1933 havia somente 133 estabelecimentos de ensino técnico industrial, no fim do Estado Novo (1945) são registrados 1.368 estabelecimentos. A matricula para esse ramo de ensino perfazia 14.693 alunos em 1933 e 65.485 em 1945. Os dados foram retirados de uma tabela apresentada por Lourenço Filho em: Alguns Elementos para o Estudo dos Problemas do Ensino Secundário, Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Vol. XIV, no. 40, set.-out. 1950, p. 80. 13 FURTADO, Celso: A Formação Econômica do Brasil, op. cit., p. 218 e, do mesmo autor: A Dialética do Desemvolvimento, Rio de Janeiro, 1961, p. 118. 14 CARDOSO, Fernando Henrique e FALETTO, E.: Democracia y Desarrolo..., op. cit., p. 144. 15 Ibid., p. l45 e segs. 54 vigente (democracia liberal mais ou menos clássica, que permite uma crescente participação das massas) uma barreira ao seu projeto de expansão e de gradual absorção do mercado interno, com o mínimo de freios institucionais ou de interferências reivindicatórias alheias à racionalidade das decisões econômicas. Começa a delinear-se, no fim do período, uma nova polarização: de um lado os setores populares, representados, até certo ponto, pelo Estado, e por alguns intelectuais de classe média; e de outro, um amálgama heterogêneo que compreendia grandes parcelas da classe média, da chamada burguesia nacional, do capital estrangeiro monopolista e das antigas oligarquias. Podemos muito esquematicamente dizer que esse último período se caracterizou pela coexistência contraditória, e às vezes abertamente conflitiva, de uma tendência populista e de uma tendência antipopulista. A política educacional que caracteriza esse período reflete muito bem a ambivalência dos grupos no poder. Essa política se reduz praticamente à luta em torno da Lei Diretrizes e Bases dá Educação Nacional e à Campanha da Escola Pública.16 A Constituição de 46 havia fixado num dos seus parágrafos (Art. 5 XV, d) a necessidade da elaboração de novas leis e diretrizes para o ensino no Brasil que substituíssem aquelas consideradas ultrapassadas do Governo Vargas. De fato, com a reorganização da economia brasileira no contexto internacional, as funções dadas à escola pelo Estado Novo não poderiam permanecer intactas. Mais uma vez o Estado será o mediador dos novos interesses surgidos com a reorganização da economia nacional e internacional depois da Guerra. Como ao nível da sociedade política a configuração do poder ainda não se havia delineado claramente, observando-se também aqui, como na economia, uma fase de transição, a própria legislação educacional brasileira vai passar por uma série de indefinições (sem produzir tão cedo uma nova lei) que refletem essa transitoriedade. O texto definitivo de LDB só será sancionado em 1961, remontando a 1948 o primeiro projetode-lei, encaminhado à Câmara pelo então Ministro da Educação, Clemente Manani. Esse projeto, expressão das preocupações populistas do novo governo, procura corresponder a certas ambições das classes subalternas. A burguesia nacional, ainda a “fração hegemônica” do ‘bloco no poder”17 abre, nesse projeto-de-lei, algumas concessões às classes camponesa e operária. Primeiro, propondo a extensão da rede escolar gratuita (primário e secundário), Segundo, criando a equivalência dos cursos de nível médio (inclusive o técnico), que, além de equiparados em termos formais, apresentam, nesse projeto, maior flexibilidade: permitem a transferência do aluno de um ramo de ensino para outro, mediante prova de adaptação.18 Esse projeto, bastante progressista para a época, é engavetado, sendo retomado somente em 1957. Um novo projeto-de-lei conhecido pelo nome de “substitutivo Lacerda”19 é encaminhado à Câmara. As inovações desse projeto em relação ao anterior e à legislação educacional vigente consistem em reduzir ao máximo o controle da sociedade política sobre a escola, restituindo-a como instituição privada, à sociedade civil. Essa preocupação se traduz nos seguintes tópicos propostos: recorrendo ao direito e dever dos pais de educarem, seus filhos, o projeto propõe que a educação seja predominantemente ministrada em instituições particulares e somente de forma complementar pelo Estado (sociedade política). Assim, os pais teriam a possibilidade de optar livremente pelo tipo de ensino que seus filhos receberiam. Essa colocação evidentemente esconde um interesse de classe. A fração da burguesia que fala através da nova proposta de lei não é mais a nacional que procura cooptar a classe operária. Aqui fala a fração que justamente quer excluí-la de um possível mecanismo de ascensão (mesmo que 16 MACIEL DE BARROS, Rogue Spencer (org.): Diretrizes e Base. da Educação Nacional, São Paulo, 1960. A coletânea reúne todas as contribuições de importância feitas em debates na época contendo um anexo com toda a legislação, inclusive os projetos-de-lei. 17 POULANTZAS, Nicos: Pouvoir Politique et lasses Sociales, Vols. I e II, Petite Collection Maspero, Paris, 1971. 18 Veja Projeto-de-lei sobre as Diretrizes e Bases da Educação Nacional – elaborado em 1948 por uma comissão de especialistas por iniciativa do então Ministro da Educação, Dr. Clemente MARIANI, no anexo de MACIEL DE BARROS, R. S. (org.): Diretrizes.e Baiases..., op. cit., pp. 479-503. 19 Veja Substitutivo ao Projeto de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – apresentado à Câmara dos Deputados pelo Deputado Carlos Lacerda a 15 de janeiro de 1959, no anexo de MACIEL DE BARROS, R. S. (org.): Diretriz.. e Bases...., op. cit., pp. 505-22. 55 simplesmente individual). O ensino particular – como se sabe – é ensino pago. Que liberdade teriam os pais de um camponês, operário ou habitante de favela para escolher uma escola particular para seus filhos? Essa proposta, que aliás omitia o parágrafo da gratuidade do ensino no Brasil, era obviamente excludente. Nem por isso o projeto abdicava da subvenção do Estado, propondo que este financiasse a rede particular, a fim de assegurar a educação adequada de seus futuros cidadãos. Essa tarefa não lhe daria, porém, em contraposição, o direito de fiscalizar a rede particular. Alegando a liberdade de ensino, o projeto propunha que esta ficasse ao encargo dos professores e dos diretores das escolas particulares. Foram justamente estes aspectos do projeto que levantaram uma onda de protestos entre intelectuais, pedagogos e liberais em todo o Brasil. Em seu “Manifesto dos Educadores” eles se opõem ao projeto, alertando o público e o governo sobre as implicações dessa proposta.20 Através desse manifesto, dão ainda início a uma campanha a favor da escola pública com a intenção de impedir a aceitação desse projeto como lei pela Câmara, Senado e Presidência da República.21 Dos muitos debates travados, resultou finalmente a Lei 4.024 que estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Ela é o compromisso entre as duas tendências expressas pelos dois projetos-de-lei (Mariani e Lacerda). Assim ela estabelece que tanto o setor público quanto o particular têm o direito de ministrar o ensino no Brasil em todos os níveis (Art. 2). A gratuidade do ensino fixada na Constituição de 46 fica omissa na nova lei. Em casos claramente definidos, o Estado se propõe a subvencionar as escolas particulares (Art. 95, § 1, c). Se dessa forma os setores privados viram assegurados os seus direitos triunfando parcialmente a proposta Lacerda, a lei também absorve elementos da proposta Mariani, como a equiparação dos cursos de nível médio e a flexibilidade de intercâmbio entre eles (Art. 51). A LDB reflete assim as contradições e os conflitos que caracterizam as próprias frações de classe da burguesia brasileira. Apesar de ainda conter certos elementos populistas, essa lei não deixa de ter um caráter elitista. Ela, ao mesmo tempo que dissolve formalmente a dualidade anterior do ensino (cursos propedêuticos para as classes dominantes e profissionalizantes para as classes dominadas) pela equivalência e flexibilidade dos cursos de nível médio, cria nesse mesmo nível uma barreira quase que intransponível, assegurando ao setor privado a continuidade do controle do mesmo. Assim, a criança pobre, incapaz de pagar as taxas de escolarização cobradas pela rede, não pode seguir estudando. Essa lei, que procura estabelecer um compromisso entre os interesses de uma burguesia nacional e os interesses das frações de classe mais tradicionais, ligadas ao capital internacional, em verdade já está ultrapassada, quando entra em vigor. Em dezembro de (1961) já se delineiam claramente as novas tendências da internacionalização do mercado interno. Com isso se anunciam possíveis mudanças na organização do poder ao nível da sociedade política o que certamente iria levar a reformulações da política educacional, visando a sociedade civil. Fato é que essa lei tardia passou a materializar-se na década seguinte nas instituições de ensino. O sistema formal de ensino passou a ser estruturado e reformulado segundo suas prescrições; os currículos redefinidos; professores, alunos e profissionais moldados segundo suas diretrizes. A tão discutida lei se “materializava”, se “corporificava” portanto, no dia-a-dia das salas de aula, em estruturas de personalidade e em sistemas de pensamento. A lei, sancionada na instância da sociedade política, passava a funcionar na sociedade civil. Como – assim se torna quase que óbvio perguntar – a realidade educacional brasileira resolveu na prática os conflitos e contradições dessa lei? Que funções manifestas ou latentes a nova estrutura de ensino preenchia para o sistema global em fase de transição? Uma resposta a essas perguntas só pode ser encontrada numa análise empírica da realidade educacional.22 20 Cf. O Manifesto dos Educadores, publicado pela primeira vez em O Estado de S. Paul., de 1.6.1959. Veja FERNANDES, Florestas,: Os Objetivos da Campanha em Defesa da Escola Pública, em: FERNANDES, Florestan: Educação e Sociedade me no Brasil. São Paulo, 1965, p. 356 e segs. 22 Aqui temos que considerar o time lag entre promulgação e efetivação de uma lei. Se a lei é expressão dos interesses de uma classe ou coalizão de classes, esses interesses, materializados nos objetivos e fins de ensino só podem ser analisados na realidade e avaliados de acordo com o seu maior ou menor desvio das intenções originais, vários anos depois. Por isso, dados empíricos do período 60-70 refletem a materialização de interesses articulados no fim da década anterior. Assim, os dados educacionais aqui apresentados que, apesar de já pertencerem parcialmente ao terceiro período que nos propusemos analisar, refletem a conseqüência prática dos interesses absorvidos na LDB do período anterior. Constataremos essa mesma defasagem quando 21 56 A Política Educacional de 1964 a 1975 Como vimos, o período da substituição fácil de importações esgotou suas possibilidades nos primeiros anos da década de 60. A demanda por bens de consumo duráveis e não-duráveis, antes atendida pelas importações, podia agora, em sua maioria, ser atendida pela produção doméstica. Para que o processo de acumulação pudesse prosseguir, no ritmo de expansão desejado, era necessário assegurar um crescimento dinâmico da demanda. Não se tratava mais de ocupar um espaço econômico pré-existente, mas de criar um novo espaço econômico. Este resultado poderia ser obtido – sem que se alterasse o modo de produção capitalista – de duas formas. A primeira seria a realização de reformas estruturais (por exemplo, reforma agrária) que permitissem a inclusão das massas populares num padrão de consumo democratizado. Era a política mais ou menos explícita do Estado populista, que se frustrou quando a burguesia nacional sentiu que em sua aliança com as classes populares poderia perder o controle do processo reformista. Este, nas mãos de setores populares, poderia desembocar em transformações estruturais incompatíveis com a própria sobrevivência do sistema capitalista. O outro caminho seria a criação de uma demanda adicional, através de uma reorganização da estrutura do consumo interno e do aproveitamento das possibilidades do mercado externo. Este caminho implicava, por um lado, uma aristocratização dos padrões de consumo interno e, por outro lado, exportações maciças, principalmente de produtos manufaturados e semimanufaturados. Foi assim que se gerou, internamente, um perfil de consumo baseado na extrema concentração de renda e na criação de uma faixa de consumidores de alto poder aquisitivo e com capacidade praticamente ilimitada de absorver os bens de consumo, principalmente duráveis, produzidos pela indústria nacional e pelas empresas multinacionais aqui instaladas; ao mesmo tempo, externamente, o país praticamente decuplicou o valor de suas exportações. Os investimentos destinados a substituir importações cederam lugar aos investimentos destinados a produzir bens de consumo sofisticados para o mercado interno e bens destinados à exportação. Os dois processos – a aristocratização do consumo e a expansão das exportações – são interdependentes, e a mediação é assegurada pelo capital estrangeiro, agora representado pelas grandes empresas transnacionais. O esforço exportador só podia ser realizado, com êxito, pelas grandes empresas, que tinham subsidiárias no Brasil e utilizavam toda a sua rede internacional de comercialização para garantir a colocação dos produtos brasileiros. Por outro lado, essas empresas, instaladas no Brasil, adotam um tipo de tecnologia excludente (altamente poupadora de mão-de-obra), que resulta numa crescente concentração de renda e na formação de um mercado consumidor altamente elitista. “Estas características criam um consumidor exigente que requer padrões de qualidade dos produtos (isto é, tecnologia avançada) independentemente das considerações sociais sobre a possibilidade de uso de alternativas tecnológicas que empreguem mais mão-de-obra. Criam-se estímulos de consumo que obedecem aos padrões do mercado internacional, reforçando-se a tendência prevalente para que a industrialização adote cada vez mais a forma de um processo internacionalizado.”23 Assim, o capital estrangeiro cria e serve o seu consumidor. Por sua vez, como dissemos, os dois processos do afunilamento do perfil da demanda e da expansão exportadora se condicionam dialeticamente. Para atender a esse perfil de consumo, é necessário um substancial dispêndio de divisas, inclusive para o pagamento de royalties pelo uso da tecnologia importada, o que provoca um crescente endividamento externo, sendo, portanto, necessário, para fazer frente a esses gastos (inerentes ao modelo, e não acidentais), o crescimento exponencial da receita de exportações, a qual, por sua vez, ajuda a financiar um padrão de consumo cada vez menos igualitário. Essa nova situação tomou-se sociologicamente possível pela fratura do bloco populista e pelo novo alinhamento segundo o qual a burguesia nacional preferiu divorciar-se dos seus perigosos aliados da véspera e aliar-se, como sócio menor, ao capital monopolista internacional. A nova constelação surgida com o colapso do Estado populista permite que o processo da “internacionalização do mercado” interno, gerado no período anterior, agora se desdobre em toda sua plenitude. Fundamental para este novo período é a reorganização da produção industrial a partir das 23 analisarmos a legislação da década de 65 a 75. Muitos parágrafos de lei não poderio ser avaliados em sua efetividade, pelo fato de ainda não terem se consumado e materializado na vida cotidiana. CARDOSO, F. H.: Industrialização, Dependência e Poder na América Latina, em: CARDOSO, F. H.: O Modelo Político Brasileiro, Difusão Européia do Livro, São Paulo, 1972, p. 43. 57 novas técnicas de produção ao mesmo tempo que se assegura internamente a produção dos setores dinâmicos da economia moderna: a indústria química, eletrônica e automobilística. Dá-se uma nova “fase de industrialização com hegemonia dos consórcios internacionais”.24 O aumento da produtividade agora é assegurado pela introdução de moderna tecnologia e know-how desenvolvido nas metrópoles e pelo excedente estrutural de força de trabalho que permite manter os salários extremamente baixos. Essas condições possibilitam uma redefinição dos antigos laços de dependência. A transferência de filiais de consórcios estrangeiros (as multinacionais) para o Brasil só faz sentido, se houver um mercado interno suficientemente elástico para absorver os bens sofisticados produzidos. Portanto, há necessidade de garantir o crescimento do poder de compra dos consumidores. Essa necessidade aparentemente se choca com a outra, mais fundamental, o congelamento dos salários do trabalhador que torna atraente para as multinacionais a produção no país, assegurando uma taxa de lucro maior que em suas metrópoles, onde os salários oscilam constantemente em vista de reivindicações operárias organizadas. Para solucionar o impasse torna-se necessária “uma reorganização administrativa, tecnológica e financeira que, por sua vez, implica uma reordenação das formas de controle social e político”.25 Surge a necessidade de uma política salarial e de distribuição de renda que ao mesmo tempo congele os salários da massa trabalhadora e crie, como já dissemos, uma classe intermediária de alta renda apta a consumir os produtos produzidos. Pois, somente pelo consumo interno das mercadorias produzidas, se realiza a mais-valia, fechando o círculo que garante a reprodução do capital. Neste caso, toma-se, porém, necessário controlar os movimentos operários e de massa que procurem obter uma participação maior do produto, mediante reivindicações salariais periódicas. A nova situação econômica exige, portanto, a reorganização da sociedade política e da sociedade civil, a fim de que o Estado se torne novamente mediador dos interesses da reprodução ampliada das empresas privadas nacionais e multinacionais. O Estado, que no fim do período anterior se havia tomado mais ou menos o porta-voz dos interesses daquelas frações da classe média e das classes subalternas que eram adeptas da alternativa da democratização do consumo com a preservação da autonomia nacional, é forçado a ceder à nova tendência da “internacionalização do mercado interno”. Ë neste momento que “as forças armadas, como corporação tecnoburocrática, ocupam o Estado para servir a interesses que crêem ser os da nação. Os setores políticos tradicionais (ou seja, as massas populares e os intelectuais progressistas da burguesia nacional) – expressão, no seio do Estado, da dominação de classe do período populista-desenvolvimentista – são aniquilados e se busca transformar a influência militar permanente como condição necessária para o desenvolvimento e a segurança nacional...”26 A essa reestruturação e redefinição dos aparelhos do Estado corresponde uma reorganização da própria estrutura de classes. Não que esta fosse transformada em seus traços fundamentais. Pois é para manter sua configuração básica que a pseudo-aliança de burguesia nacional e povo (classe operária e camponesa) é dissolvida. A burguesia nacional em sua maioria vai se incorporar, em uma posição subordinada, à burguesia internacional, a fim de defender seus interesses de classe, que consistem em assegurar parcela cada vez maior da mais-valia. Juntamente com ela são cooptados alguns setores da classe média que se tornam essenciais para a implantação e manutenção do novo modelo: os intelectuais e os tecnocratas. São estes grupos e frações de classe que passarão a usufruir das vantagens do modelo. A burguesia nacional,_que vai compartilhar com as multinacionais dos lucros assegurados com o congelamento dos salários dos trabalhadores 27 e a introdução da moderna tecnologia, e os setores médios, cooptados para o modelo como assalariados altamente remunerados, vão constituir grande parcela dos consumidores dos bens produzidos. As classes subalternas, excluídas de qualquer participação tanto política como econômica28 precisam ser privadas de seus mecanismos democráticos (votos, greves, movimentos reivindicatórios) o que torna necessário uma reorganização e 24 FURTADO, Celso: Análise do Modelo Brasileiro, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1972, 3a ed., p. 68. CARDOSO, F. H. e FALETTO, E.: Dependencia..., op. cit., pp. 149-50. 26 Ibid., p. 156. 27 CUNHA, L. A. R.: Educação e Desenvolvimento Social no Brasil, Francisco Alves, Rio de Janeiro, 1975, p. 86, Tabs. 2-6. 28 Ibid., p. 76 e segs., Tabs. 2-3, 2-4, 2-5. 25 58 mobilização da sociedade civil. Os aparelhos repressivos do Estado assumem o controle dos mecanismos e aparelhos ideológicos (sindicatos, meios de comunicação de massa e escolas). Esboçado em seus traços gerais o contexto macroestrutural em que se insere a política educacional do período de 65 a 75, podemos agora analisar as medidas e iniciativas então tomadas, não só em sua funcionalidade e ação retroativa sobre as estruturas, mas também em sua continuidade histórica, tendo-se em mente a análise dos períodos anteriores vistos no capítulo precedente. A política educacional que analisaremos a seguir será o elo mediador entre os impasses educacionais gerados no passado e as intenções e objetivos a serem realizados com o auxilio da educação no futuro. A política educacional, ela mesma expressão da “reordenação das formas de controle social e político”,29 usará o sistema educacional reestruturado para assegurar este controle. A educação estará novamente a serviço dos interesses econômicos que fizeram necessária a sua reformulação. Essa afirmação encontra seu fundamento nos pronunciamentos oficiais, nos planos e leis educacionais e na própria atuação do novo governo militar. As primeiras diretrizes formuladas por este governo, norteadora s da futura política educacional, já foram fixadas no inicio do Governo Castello Branco. Estão contidas nas declarações feitas pelo Presidente aos Secretários de Educação de todos os Estados, em meados de 64: o objetivo do seu governo seria restabelecer a ordem e a tranqüilidade entre estudante operários e militares. 30 Excluindo o grupo dos militares podemos dizer que com a nova legislação, promulgada pelo governo militar, visa-se de fato criar um instrumento de controle e de disciplina sobre estudantes e operários. Entre 1963 e 1964, acontecem o I Encontro Nacional de Alfabetização e Cultura Popular e o Seminário da Cultura Popular respectivamentes. O período político que se avizinha a 1964, o chamado "Golpe Militar" de 31 de março, atravessaria sobremaneira a atuação desses movimentos. Segundo Saviani, no que se refere à educação, o governo militar "não intencionou criar uma nova LDB, mas apenas ajustar a que estava em vigor – Lei nº 4.024/61. Dentro desse enfoque, foram elaboradas as reformas do ensino superior – Lei nº 5.540/68 – e a dos ensinos primário e médio – Lei nº 5.692/71. Nesse período, inaugura-se a fase tecnicista da educação no Brasil; baseada na necessidade de "modelar o comportamento humano" através de técnicas específicas, essa teoria abordava os conteúdos através do ordenamento lógico e psicológico das informações. As mudanças efetuadas pela reforma do ensino superior (Lei nº 5.540/68) procuraram atender às exigências, tanto dos professores e estudantes, quanto as dos empresários ligados ao regime militar, que viam a educação superior como um comércio; sob forte influência dos acordos MEC/USAID31, o Brasil adotava o "economicismo educativo" calcado nos pressupostos da chamada "Teoria do Capital Humano". Contrapondo-se à concepção tecnicista implantada pelo regime militar, vamos encontrar a concepção crítico-reprodutivista que, segundo o professor Luiz A. R. da Cunha (...) Contribuiu no sentido de desfazer as ilusões do liberalismo que fundamenta as concepções "humanista tradicional" – vertente leiga – e "humanista moderna", assim como as ilusões do "economicismo"da Teoria do Capital Humano.32 Todavia, não se deve esquecer que grassava o discurso do "Brasil-Potência" e para tanto, faziase mister que o país resolvesse ou pelo menos demonstrasse seu interesse em resolver o problema do analfabetismo, a fim de entrar para o "clube dos grandes". Se por um lado a LDBEN (Lei nº 4.024/61) foi considerada de base conservadora-reacionária, no que diz respeito à posição política nela contida, por outro, as reformas do ensino levadas a cabo no período de exceção – Lei nº 5.540/68 e 5.692/71 – demonstraram o predomínio "economicista", estabelecido por intermédio da relação direta entre a produção e a educação. Nesse ínterim compreendido entre 1968 e 1971, tivemos a promulgação da Constituição de 1967 com a devida emenda de 1969. Nela, vamos encontrar "tudo quanto se relaciona com o problema 29 CARDOSO. F. H. e FALETTO, E.: Dependencia..., op. cit., p. 149. Veja: Castello Branco Reafirma as Diretrizes de seu Governo aos Secretários de Educação, O Estado de S. Paulo, 10.6.1964. 31 Ministério da Educação e Cultura / United States Agency International Development 32 Luiz A. R.Cunha – Educação e Desenvolvimento Social no Brasil, 1975. 30 59 educacional e com o ensino". Embora sob os auspícios do regime militar, essa Constituição declarava que a "educação era um direito de todos e dever do Estado". Período pós abertura política A tendência tecnicista marcou a educação durante o período militar, por conta disso, iniciaramse fortes críticas por parte dos educadores que se faziam representar por diversas entidades, como: ANDE, ANPED, CEDES, etc. Os resultados das pressões exercidas por essas entidades foram as chamadas Conferências Brasileiras de Educação (CBE), ocorridas entre 1980 e 1991. Toda essa movimentação dá-se concomitantemente ao processo de abertura democrática que vinha sendo conquistado pela sociedade brasileira. Assim é que, durante o mandato do presidente João Baptista de Oliveira Figueiredo33 – 1979/1985 – deu-se o processo de abertura política, tendo como fatores fundamentais o retorno do pluripartidarismo e a Lei de Anistia. A principal resistência política encontrada durante o governo João Figueiredo era feita pelo sindicalismo brasileiro, sobretudo na região do ABC paulista, na qual ganhou destaque a liderança de Luís Inácio Lula da Silva34, sindicalista e um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores (PT). A crise econômica se avolumava no país discutia-se a dívida externa e as exorbitantes taxas inflacionárias. O período de sucessão do presidente Figueiredo é marcado pela apresentação ao Congresso Nacional, da emenda "Dante de Oliveira"35, cujo teor previa a realização de eleições diretas para presidente; tal emenda, engendrou uma campanha a nível nacional, dando origem ao movimento "Diretas Já". No entanto, a emenda "Dante de Oliveira" foi refutada na Câmara. Uma vez derrotada a citada emenda, o extinto Colégio Eleitoral cumpre aquilo que seria seu último ato, ou seja, elege o presidente Tancredo Neves - candidato pela Aliança Democrática - que vem a falecer antes de assumir efetivamente o cargo; em conseqüência, assume a Presidência da República, seu vice, José de Ribamar Sarney, responsável pela transição do antigo regime à consolidação da "democracia", através da Constituição de 1988. Esse recorte do panorama político brasileiro é importante para que se possa entender a correlação de forças presente no momento em que a comunidade educacional organizava-se para influir no texto da Carta Magna que estava sendo gestada no Congresso Nacional Constituinte em fevereiro de 1987. Fruto da IV Conferência Brasileira de Educação, realizada na cidade de Goiânia, no ano de 1986, surge a chamada "Carta de Goiânia", cuja finalidade era subsidiar a confecção do capítulo constitucional que trataria da educação. Essa proposta marcaria um longo debate em torno do novo projeto de LDB que culminaria com a aprovação da Lei nº 9394/96 – Lei de Diretrizes e Bases da Educação – vigente até os dias atuais. Apesar de não se constituir objeto de aprofundamento da presente reflexão, discorreremos sobre o seu arcabouço, a fim de caracterizarmos em que medida o Estado brasileiro vem se tornando mínimo no que se refere às garantias sociais, dentre elas, o direito inalienável à educação pública de qualidade. Ao referir-se à Lei de Diretrizes e Bases da Educação (9393/96), o professor Demerval Saviani, assim se expressa (...) Para se compreender o real significado da legislação não basta ater-se à letra da lei; é preciso captar o seu espírito. Não é suficiente analisar o texto; é preciso analisar o contexto. Não basta ler nas linhas; é preciso ler nas entrelinhas. É, portanto, com esse olhar crítico que devemos encarar o texto e o contexto da LDB que, teve o seu início tão logo a Constituição de 1988 fora promulgada. Ao contrário do que ocorreu durante a discussão da Lei nº 4.024/61, em que apenas liberais e conservadores debateram a questão educacional; o projeto de Lei nº 9394/96, teve ampla representatividade da sociedade acadêmica do país, traduzida pelos fóruns estaduais e municipais que se constituíram como desdobramentos do Fórum em Defesa da Escola Pública. Uma vez conseguida a 33 Último presidente do Regime Militar Atual Presidente do Brasil. 35 Deputado Federal pelo Estado do Mato Grosso. 34 60 aprovação na Câmara dos Deputados (1993), o projeto seguiu para o Senado Federal; entretanto, ao dar entrada naquela casa - desta feita já em forma de Substitutivo – o Substitutivo Cid Sabóia que expressava as propostas oriundas dos diversos fóruns realizados, sofreria uma disputa acirrada com o projeto do Senador Darcy Ribeiro, que por sua vez, expressava a articulação da base governista tanto no Senado, quanto na Câmara dos Deputados. Após Fernando Henrique Cardoso assumir a Presidência do país, a matéria passou a ser apreciada, sendo o seu relator na Comissão de Constituição e Justiça, o próprio Senador Darcy Ribeiro que, através de manobras regimentais, conseguiu que o projeto de sua autoria substituísse aquele apresentado na Câmara dos Deputados; passando as propostas originárias dos Fóruns Educacionais a meras emendas textuais; ainda assim, conseguidas por intermédio de lobistas. Sem ensejar entrar no mérito da análise contextual da Lei nº 9394/96; podemos observar a fragmentação da organização educacional no país. Tida como "descentralizada" pelo MEC, ela preconiza que, caberá a cada instância governamental (União, Estados, Municípios e Distrito Federal) a organização dos seus respectivos sistemas de ensino, em regime de colaboração. Quanto ao MEC, cabe-lhe o papel de formulador de políticas e planos educacionais, assessorado pelo Conselho Nacional de Educação que passa a ter funções "Normativas e de Supervisão". Fica claro, portanto, que a LDB vigente estruturou-se sob uma concepção democráticorepresentativa, cuja essência limita a participação da sociedade ao momento do voto, dado àqueles que irão representá-la. Ao proceder à análise pormenorizada do texto da LDB, o professor Saviani elenca dois objetivos implícitos no referido documento; aos quais passa denominar de "objetivos proclamados" e "objetivos reais" "(...) A função de mascarar os objetivos reais através dos objetivos proclamados é exatamente a marca distintiva da ideologia liberal, dada a sua condição de ideologia típica do modo de produção capitalista o qual produziu, pela via do "fetichismo da mercadoria" a opacidade nas relações sociais." Nesse sentido, o eminente educador alude a três contradições – ainda que existam muito mais – marcantes na Lei nº 9394/96; em primeiro lugar a contradição entre homem e sociedade, em segundo, entre o homem e o trabalho e por último, a contradição entre o homem e a cultura. Conclusão Na impossibilidade de esgotar o assunto, mas apenas cumprindo o percurso temporal ao qual nos propusemos no início dessa reflexão (1889 a 1989), extrapolando-o no que foi necessário somente para compreendermos todo o contexto; podemos inferir sobre alguns aspectos que deram sustentação ao sistema de ensino vigente no país. O primeiro apontamento, diz respeito à mínima participação real da sociedade no desenrolar do processo, ficando a decisão sobre os destinos da educação, a cargo de uma minoritária elite política; o segundo refere-se à tensão provocada pela correlação de forças imiscuída nos embates que, ao demandarem um longo período de discussão, acabaram por aprovar uma lei senil e por isso mesmo, descontextualizada no que tange aos anseios da comunidade acadêmica; e por último, mais do que a sensação, mas a efetiva constatação "minimalista" inclusa no corpo do documento atual que regulamenta o ensino brasileiro que, em síntese, serve para ratificar a igual política de "Estado Mínimo" que tem norteado a proposta governamental nos últimos anos.