DITADURA E MÚSICA: UM RETRATO DA SOCIEDADE NAS COMPOSIÇÕES DO GRUPO SECOS E MOLHADOS Kely Cristina Enisweler – UNIOESTE1 Sofia Neumann - UNIOESTE2 Ao longo da história da humanidade o homem sentiu necessidade de comunicar suas ideias e para isso desenvolveu diferentes formas linguagens, por meio da expressão corporal, gestos, sinais, iconografia, oralidade, comunicação escrita e, também, os instrumentos digitais. As ideias lançadas têm uma considerável carga histórica, porque aquele que comunica é marcado pelas condições históricas e ideológicas de sua época e seu contexto social. Por isso, podemos dizer que ao expressarmos uma ideia ou produzirmos um texto construímos um discurso, mostrando que o que está sendo dito tem sentido. Elencadas a essas noções preliminares, o estudo se ocupará dos gêneros ligados às músicas do grupo musical Secos e Molhados que fez sucesso durante o período da Ditadura Militar instaurada no Brasil no período de 1964 a 1985. Durante esses 21 anos vivenciados pelo povo brasileiro, sob um regime militar, diversos artistas lançaram canções fazendo críticas à ditadura. O regime ditatorial militar intensificou a repressão em 13 de dezembro de 1968 e baixou o Ato Institucional 5 (AI-5) que instituiu a censura política as diferentes manifestações artísticas, culturais e literárias. Conforme Zan (2001) em um período de 10 anos, estágio que vigorou o AI 5 foram interditados aproximadamente 500 filmes, 450 peças de teatro, mais de 1.000 letras de música e proibidos 200 livros, dezenas de programas de rádio e de televisão. Nos anos de 1970 a música revelou sua importância como forma de protesto contra o sistema capitalista e o Regime Militar. As músicas eram um meio de fugir da censura, os letristas escreviam suas ideias de modo que os militares não percebessem os protestos, porém as letras eram passíveis de decodificação pelo público que vivenciava aquele episódio. 1 [email protected] 2 [email protected] Nesse cenário, surge o grupo musical Secos e Molhados no ano de 1973, lançando dois álbuns em que apresentavam músicas com letras sobre o sistema militar. Segundo Zan (2001) o grupo atraiu milhares de pessoas a seus shows e vendeu milhares de discos, mostrando um repertório que mesclava elementos de gêneros musicais brasileiros e do pop internacional, o chamado glam rock, se configurando na música pop brasileira. O grupo utilizava como estratégia para envolver o público um forte apelo visual, fantasias, maquiagem carregada e gestualidade, parecia chocar e ao mesmo tempo seduzir a platéia. As letras das músicas denunciavam todas as formas de racismo, opressão e, também, as atrocidades cometidas pelas guerras. No ano seguinte após o segundo disco, o grupo que representou um fenômeno na música brasileira se dissolveu devido a problemas entre os integrantes. Neste estudo serão analisadas 4 músicas do grupo musical Secos e Molhados, entre elas: “Primavera nos dentes”, “Sangue latino” e “Assim assado” lançadas no ano de 1973 no álbum de estreia e a canção “Fala”, última faixa do segundo e último álbum do grupo antes da sua separação, no ano de 1974. O contexto histórico da ditadura militar e a música brasileira A Ditadura Militar no Brasil foi um período caracterizado pela falta de democracia, de direitos constitucionais, de perseguição a políticos, de repreensão a quem era contra o regime militar e da censura a livros, jornais, revistas, as artes, teatro, música, filmes, programas de rádio e televisão. O primeiro presidente do regime militar entre os anos de 1964 a 1967 foi o Marechal Humberto de Alencar Castello Branco, de 1967 a 1969 ocupou o cargo de Presidente da República o Marechal Arthur da Costa e Silva, entre os anos de 1969 a 1974 o General Emílio Garrastazu Médici, de 1974 a 1979 o General Ernesto Geisel e de 1979 a 1985 o General João Baptista de Oliveira Figueiredo. O contexto em que a Ditadura Militar no Brasil foi gerada iniciou-se a partir do ano de 1956 quando o país foi governado pelo mineiro Juscelino Kubitschek de Oliveira até 1960, período em que o país viveu um período de grande desenvolvimento econômico, certa estabilidade econômica e a construção de Brasília. O seu sucessor Jânio da Silva Quadros do Partido Democrata Cristão (PDC), conhecido por Jânio Quadros, candidato governista, foi eleito presidente em 3 de outubro de 1960 para o mandato de 1961 a 1965 com 5,6 milhões de votos. De partido da esquerda elegeu-se o vice-presidente João Belchior Marques Goulart do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), conhecido por João Goulart ou Jango. Jânio Quadros representava a promessa de revolução esperada pelo povo, porém durante seu mandato iniciou a crise política que motivou o golpe militar. Governou o país durante um período de apenas seis meses, nesse período traçou novos rumos a política externa e organizou os negócios internos. Diante de uma crise econômica causada pela inflação, déficit da balança comercial e aumento da dívida externa adotada, precisou tomar medidas de restrição ao crédito, congelando salários e incentivo a exportação. Sua política de relações externas desagradou os Estados Unidos, perdeu o apoio dos parlamentares e pressionado pelos militares, Jânio Quadros renunciou no dia 25 de agosto de 1961. O vice-presidente João Goulart se encontrava em viagem diplomática na China e por isso o cargo de Presidente foi ocupado interinamente pelo presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzilli, conforme previa a Constituição de 1946. No regresso de Goulart, este foi impedido de assumir a presidência, pois fora acusado pelos militares de ser comunista. Com o plebiscito de 1963 o povo optou pelo sistema presidencialista e então João Goulart assumiu a Presidência da República. Seu governo deu continuidade à abertura política para as organizações sociais, em seu governo ganharam espaço os movimentos estudantis, organizações populares e trabalhadores, além do apoio a sindicatos, a não repressão as greves e a proposta de aumento do salário mínimo. A demonstração de abertura aos movimentos fez com que o presidente enfrentasse a oposição das classes conservadoras, como empresários, banqueiros e militares. Na opinião de adversários de Goulart ele era considerado um subversivo, apoiado pelos comunistas, conforme destaca Timm (2013, s/p): O estilo populista de Jango chegou a gerar até mesmo preocupação entre setores conservadores da Igreja Católica, entre governadores conservadores e nos Estados Unidos, que, juntamente com as classes conservadoras brasileiras, temiam um golpe de estado comunista no Brasil, como o que havia ocorrido anos antes em Cuba. João Goulart visando superar a crise instaurada, no dia 13 de maio de 1964, realizou na cidade do Rio de Janeiro o famoso comício da “Central do Brasil” onde foram defendidas as Reformas de Base, com a intenção de promover mudanças na estrutura da reforma agrária, educacional e econômica do país. Segundo Lencini (2011, p. 122) “[...] na oportunidade, muitas bandeiras vermelhas são agitadas pedindo a legalização dos Partidos Comunistas do Brasil”. No comício João Goulart assina dois decretos, um desapropriando as refinarias de petróleo que não pertenciam a Petrobrás e outro da Reforma Agrária, onde terras que não estariam sendo produtivas estariam sujeitas a serem desapropriadas. Os opositores à reforma se manifestaram com a “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, que reuniu milhares de pessoas pelas ruas do centro da cidade de São Paulo. Essas manifestações vinham crescendo em todo país e a propaganda dos movimentos comunistas foram consideradas uma ameaça a ordem nacional. Dessa forma, teve início um movimento de contra-propaganda conhecido como perigo vermelho ou perigo comunista. Militares e empresários atuaram para a queda do governo de João Goulart, conforme destaca Fico citado por Lencini (2011, p. 123) “sem a desestabilização (propaganda ideológica, mobilização da classe média) o golpe seria bastante difícil; sem a iniciativa militar, impossível”, se reportando a união dos diferentes meios para a instauração dos militares no poder. Confirmando o interesse e a participação de diversos grupos Hotz (2008, p. 54) destaca que “Esta instabilidade política e econômica encaminhou a burguesia, juntamente com os militares, sob o apoio norte-americano, a tomarem o poder do Estado através de um golpe civil-militar em 31 de março de 1964, depondo o governo João Goulart”. Castro (2013, s/p) descreve o golpe militar: Na madrugada do dia 31 de março de 1964, um golpe militar foi deflagrado contra o governo legalmente constituído de João Goulart. A falta de reação do governo e dos grupos que lhe davam apoio foi notável. Não se conseguiu articular os militares legalistas. Também fracassou uma greve geral proposta pelo Comando Geral dos Trabalhadores (CGT) em apoio ao governo. Quando o golpe militar foi deflagrado, em 31 de março de 1964, ironicamente o Brasil tinha os movimentos de bases político-sociais mais organizados da sua história. Sindicatos, movimento estudantil, movimentos de trabalhadores do campo, movimentos de base dos militares de esquerda (dentro das forças armadas), todos estavam engajados e articulados em entidades como a União Nacional dos Estudantes (UNE), o Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), o Pacto da Unidade e Ação (PUA), entre outros. Com a implantação da ditadura, todas essas entidades foram asfixiadas, sendo extintas ou se tornaram clandestinas. O movimento anticomunista foi um dos principais argumentos utilizados para justificar as intervenções ocorridas, o presidente João Goulart foi deposto em 31 de março e no dia seguinte deixou Brasília indo para Porto Alegre e na sequência exilou-se no Uruguai. O presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzilli, ocupa outra vez interinamente o cargo de Presidente da República. Os militares tomam o poder em 1 de abril de 1964, em 9 de abril de 1964 uma junta militar elabora o Ato Institucional Número 1 (AI-1) que teve como objetivo fortalecer o Regime Militar e impedir que os políticos depostos se organizassem para combater a nova ordem social. Todas as pessoas que poderiam reagir ou dificultar o processo precisavam ser afastadas, houve uma oposição a todos os grupos que representassem tendências esquerdistas, pois eram consideradas ameaças de grupos socialistas, conforme destaca Delfhino (2010, s/p): Ficaram suspensos por dez anos os direitos políticos de todos os cidadãos que eram vistos como opositores do atual regime, entre eles tinham congressistas, governadores e até militares. A partir disso, surgiram as ameaças de prisões, cassações, enquadramentos e expulsão do país. O AI-1 cassou os direitos políticos dos cidadãos contrários a ditadura, instituiu a eleição indireta para Presidente da República escolhido por congressistas que faziam parte do colégio eleitoral. No dia 11 de abril de 1964 o General Humberto de Alencar Castello Branco foi eleito de forma indireta como Presidente da República. Segundo Lencini (2011) em seu governo foram promulgados vários decretos e 4 Atos Institucionais, cassação e suspensão de direitos políticos, instituição de eleições indiretas, proibição de greves, intervenção em sindicatos e a instituição do bipartidarismo, ou seja, o partido do Movimento Democrático Brasileiro (MDB) de oposição, mas de certa forma controlado, e o partido da Aliança Renovadora Nacional (ARENA) que representava os militares. No dia 15 de março de 1967 tomou posse o segundo presidente do período militar, o ministro do exército General Artur da Costa e Silva. Durante o seu governo foi emitido o Ato Institucional 5 (AI-5), conforme destaca Lencina (2011, p, 128) ao se reportar ao presidente destaca, “Este, por sua vez, em 1968, declara o Ato Institucional n° 5 (AI-5), que concede ao Presidente da República, entre amplos poderes de fechar o congresso, cassar políticos, suspender garantias individuais daqueles que ousassem ser contrários ao regime militar”. O Ato Institucional AI – 5 entrou em vigor em 13 de dezembro de 1968 e deu poderes quase absolutos aos regime militar. Entre as diferentes determinações, impunha censura para jornais, revistas, livros, peças de teatro e músicas. Silva e Alves (2012, p. 4) que se reportam ao momento histórico vivenciado no Brasil, ao destacar que a repressão e censura só toma corpo de ditadura no campo das artes a partir do ano de 1968 com o decreto do AI-5: “[...] ano de 1968, com o decreto do Ato Institucional número 5, que a atuação da censura se intensificou e atingia obras artísticas que demonstrassem críticas às questões políticas e sociais da sociedade brasileira da época”. Durante o período de ditadura o Brasil os movimentos de base política organizada, os quais passaram a ser clandestinos com a instauração do período ditatorial. Em 1968 os maiores inimigos dos militares passaram a ser os estudantes, reprimidos em suas entidades, impossibilitados de denunciar, passaram a ter voz através da música. As massas populares passam a ser atingidas pelas músicas populares brasileiras, com mensagens que não poderiam ser ditas a população. Diante da força dos festivais da MPB, no final da década de sessenta, o regime militar vê-se ameaçado. Movimentos como a Tropicália, com a sua irreverência mais de teor social-cultural do que político-engajado, passou a incomodar os militares. A censura passou a ser a melhor forma da ditadura combater as músicas de protesto e de cunho que pudesse extrapolar a moral da sociedade dominante e amiga do regime. (MANIFESTO JEOCAZ LEE MEDI, 2008, s/p). Segundo a Revista Comunicação Brasileira (2008) para combater esse movimento e realizar a censura da arte após a promulgação do AI-5, em 1968 é criada a Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP). Através dessa divisão deveriam passar todas as músicas antes de serem transmitidas nos meios de comunicação. A censura não obedecia a qualquer critério, os censores poderiam vetar por motivos políticos, proteção à moral ou por não perceber o que o autor queria dizer. Segundo o autor a censura nem sempre era capaz de perceber o que as letras de muitas músicas queriam transmitir, pois as mensagens eram apresentadas de maneira metafórica. As músicas eram avaliadas antes de irem para os meios de comunicação, cantores como Caetano Veloso, Chico Buarque, Elis Regina, Titãs, Raul Seixas, entre outros, foram perseguidos e censurados porque as letras das suas músicas faziam denúncias contra o governo militar ou empregavam palavras julgadas impróprias para serem comunicadas. Secos e Molhados: história e músicas Secos e Molhados foi um grupo vocal brasileiro que surgiu no início da década de 1970 em São Paulo, suas músicas retratavam a defesa da liberdade de expressão, o racismo e as guerras. João Ricardo escolheu o nome que havia lido em uma placa na cidade de Ubatuba em um armazém que vendia secos e molhados, segundo Morari (1974, p. 7) "um nome que não determina coisa alguma, que se abre para todos os gêneros". Inicialmente, o grupo foi formado por João Ricardo, que foi seu idealizador, Fred e Antônio Carlos conhecido como Pitoco. Em 1971 Fred e Pitoco resolveram sair do grupo e seguir carreira solo. A nova formação ocorreu no ano de 1971 com Ney Matogrosso, Gérson Conrad e João Ricardo, Lançando o primeiro álbum no ano de 1973. Conforme destaca Zan (2001, p. 6). Em maio de 1973, o trio gravou as 13 canções que compõem o LP Secos & Molhados, lançado pela gravadora Continental. As gravações foram realizadas no Estúdio Prova, em São Paulo, com produção de Moracy do Val. João Ricardo fez a direção musical e Júlio Nagib a direção artística. Os arranjos foram assinados pela própria banda, com exceção da faixa “Fala”, que contou com a participação de Zé Rodrix. A capa do LP, composta a partir de foto de Antônio Carlos Rodrigues, com lay-out de Décio Duarte Ambrósio, mostra as cabeças dos quatro músicos sobre bandejas dispostas numa mesa ao lado de pães, garrafas de vinho, cebola, grãos e lingüiças. O trabalho gráfico cuidadoso e a gama de metáforas presente na composição fizeram com que o jornal Folha de S. Paulo a elegesse como a melhor capa de long play de toda a história da música popular brasileira. O grupo Secos e Molhados se tornaram um fenômeno ao fazer uma mistura do rock, poesia, diversão, sensualidade, androginia e protesto político. Quanto a capa do disco Garcia (2010, s/p) se refere: A capa do disco - com homens maquiados e cabeças servidas na mesa de jantar - o som seco do rock, a poesia contundente, os recados políticos. Tudo isso, aliado à performance provocativa do andrógino e esguio Ney Matogrosso e seus parceiros de banda, fez da estreia dos Secos & Molhados o grande escândalo (para os conservadores) e a grande alegria (para crianças, gays, jovens e progressistas em geral) de 1973. Na capa do álbum de estreia do grupo aparece a foto de Ney Matogrosso, Gérson Conrad, João Ricardo e do baterista do grupo, músico argentino Raul Carlos Frias, conhecido como Marcelo Frias. Segundo Silva (2007) Frias era considerado um dos integrantes do grupo até o final das sessões de fotos, mas não quis participar do grupo. Frias fazia sucesso nos festivais da Rede Record na década de 1960, participou apenas da gravação do primeiro álbum. Segundo Zan (2001) a fotografia de Antônio Carlos Rodrigues e lay-out de Décio Duarte Ambrósio retrata a disposição das cabeças dos quatro músicos em bandejas sobre uma mesa acompanhadas de pão, grãos, linguiça, cebolas e garrafas de vinho. FIGURA 1 - Capa do álbum Secos e Molhados3 O grupo apresentava um estilo musical mais pesado que o destacado pela música popular brasileira, com uma mistura de músicas da MPB, com toques de rock and roll, baião, jazz, pop e rock progressivo. Com o mesmo nome do grupo o álbum apresenta os integrantes com uso de maquiagem carregada na capa do LP, conforme destaca a figura 1. A estreia do grupo foi um sucesso, o grupo se tornou um dos maiores fenômenos da música popular brasileira, batendo todos os recordes de venda de discos e de público em seus shows. Conforme destaca Zan (2001, p. 1), "Em 1973, momento em que o regime ditatorial militar do Brasil mostrava sua face mais violenta, a banda Secos & Molhados surgia como fenômeno de mercado, vendendo milhares de discos e atraindo milhares de pessoas aos seus shows”. No ano de 1974 o grupo grava o segundo álbum também com 13 músicas e no mesmo ano o grupo se desfez devido a problemas financeiros. João Ricardo prosseguiu gravando álbuns da marca ‘Secos e Molhados’, Gérson continuou sua carreira tocando sozinho e Ney Matogrosso, na carreira solo, se tornou o mais bem sucedido dos ex-integrantes do grupo. As músicas do grupo tinham um estilo exuberante, a dança sensual e a voz aguda e fina de Ney Matogrosso, usavam máscaras e o corpo coberto com plumas e paetês, mostrando 3 Disponível em <http://f508.com.br/o-dono-da-capa-secos-e-molhados/>. parte do corpo extremamente magro dos integrantes. Segundo Zan (2001, p. 9) “[...] a maquiagem e as máscaras funcionavam como metáforas no clima pesado e obscuro daqueles anos de 1970”. Esse modo de apresentar-se ao público, desconhecido naquela época, chamava a atenção do público, o grupo conseguia chocar e ao mesmo tempo seduzir quem assistia aos shows. Disponível no site Virtuália – O Manifesto Digital4 (2008, s/p) se refere ao grupo que aparece no Programa “Fantástico” da Rede Globo. Ney Matogrosso além de trazer a cara pintada, tinha uma voz de timbre totalmente diferente da de um homem cantor, um aspecto andrógeno e apresentava-se entre plumas, sem camisa. Os pêlos do peito do cantor e os seus frenéticos rebolados, incomodaram à censura, à moral e aos seus bons costumes vigentes, que proibiu que as câmeras da televisão focassem o cantor de perto, sendo permitido apenas aparecer o rosto em close. Com o objetivo de chamar a atenção e ao mesmo tempo encantar ao público, os integrantes do grupo usavam carregadas maquiagens, sobre elas Ney Matogrosso teria se reportado a Revista TPM no ano de 2009, conforme destacam Silva e Alves (2012, p. 8): Sempre fui muito recatado, mas descobri que, com aquela maquiagem liberava um lado meu mais agressivo, contestador. O Brasil era um país careta, submetido a uma ditadura militar agressiva. Claro que fiquei supresso com a repercussão. Eu sabia que estava provocando. Volta e meia recebia ameaças. Cheguei a receber informações, antes de subir no palco, de que seria assassinado naquela noite. Queriam que eu entrasse em carros que nunca entrei. Uns carros que apareciam para me apanhar na saída do teatro. Diziam que era para me proteger. O grupo ditava moda e lançava tendências, as letras das músicas faziam críticas ao sistema político instaurado no Brasil durante o período da Ditadura Militar. O primeiro álbum fez com que a Bossa Nova, movimento da música popular brasileira do final da década de 1950, derivado do samba com influência do jazz, passasse ao Movimento Tropicalista surgido da vanguarda e da cultura pop como o pop-rock e finalmente ao rock brasileiro que fez sucesso nos anos de 1980 e abordava temáticas sociais com um tom de ironia. O primeiro álbum do grupo com 13 músicas que destacavam inúmeras críticas ao regime militar. As canções mais executadas deste primeiro trabalho foram "Sangue Latino", 4 Disponível em < http://virtualiaomanifesto.blogspot.com/2008/07/msica-e-censura-da-ditadura-militar.html>. "O Vira", e "Rosa de Hiroshima", "Assim Assado" e em canções como "Primavera nos Dentes". A música “Primavera nos Dentes” é uma poesia escrita por João Apolinário, pai de João Ricardo e por este musicada, sendo a música mais longa do grupo. Como proposta deste trabalho nos reportamos a mesma que possui a seguinte letra: Quem Tem Consciência Para Ter Coragem Quem Tem A Força De Saber Que Existe E No Centro Da Própria Engrenagem Inventa A Contra-Mola Que Resiste Quem Não Vacila Mesmo Derrotado Quem Já Perdido Nunca Desespera E Envolto Em Tempestade Decepado Entre Os Dentes Segura A Primavera. Esta composição de João Ricardo e seu pai o jornalista português João Apolinário (1924-1988) que em sua juventude lutara contra o fascismo, vivenciou os anos da Ditadura Militar no Brasil. Em seus versos trazia a mensagem da necessidade do povo conhecer e ter consciência do que estava acontecendo no país, um clima tenso e de asfixias, empregando metáforas, o grupo denunciava o que estava acontecendo nos porões da ditadura. Através da música pedem que cada um busque libertar-se das repressões do sistema, ao citar “inventa a contra-mola que resiste”, é preciso coragem para enfrentar a rotina, a sociedade. Outra letra que merece destaque é a da música “Sangue Latino”, escrita por João Ricardo e Paulinho Mendonça também faz parte do primeiro álbum do grupo. [...] Os ventos do norte Não movem moinhos E o que me resta É só um gemido. Minha vida, meus mortos Meus caminhos tortos Meu Sangue Latino Uh! Uh! Uh! Uh! Minh'alma cativa. Rompi tratados Traí os ritos Quebrei a lança Lancei no espaço Um grito, um desabafo E o que importa É não estar vencido [...]. Uma das músicas mais tocadas nas rádios retrata a condição dos povos latino americanos e capacidade de resistir frente à dura realidade que precisam enfrentar, com um sufocado que às vezes se apresenta cheio de esperança e às vezes de desespero. Ao final da letra faz um apelo pedindo que “o que importa é não estar vencido”, é preciso resistir sempre, não deixar se vencer diante das dificuldades. As músicas “Primavera nos Dentes” e “Sangue Latino” que denunciavam o sistema político não foram censuradas. Sobre elas Garcia (2010, s/p) destaca que “[...] não se sabe se tais letras passaram despercebidas pela censura, ou se a aclamação popular abafou qualquer tentativa de represália”. Outra letra de música que merece destaque é “Assim Assado”, fazendo parte do primeiro álbum, e com letra de João Ricardo. São duas horas da madrugada de um dia assim Um velho anda de terno velho assim, assim. Quando aparece o guarda belo Quando aparece o guarda belo É posto em cena fazendo cena um treco assim Bem apontado nariz chato assim, assim. Quando aparece a cor do velho Quando aparece a cor do velho Mas guarda belo não acredita na cor assim Ele decide o terno velho assim, assim. Porque ele quer o velho assado Porque ele quer o velho assado Mas mesmo assim o velho morre assim, assim. E o guarda belo é o herói assim assado Por que é preciso ser assim assado [...]. Composição de João Ricardo, com versos que personificam uma disputa entre socialismo e capitalismo. O velho que anda na rua quando aparece o “guarda belo” que representa o sistema repressor, mata o velho porque não gosta da cor que este carrega. A cor não está identificada na letra da música, supondo que fosse vermelha pode-se destacar que o guarda estaria combatendo o comunismo, combatido pelo regime militar instaurado no país, ou se fosse preta o guarda estaria lutando contra o racismo. O título da música se refere a uma expressão já popularizada do povo brasileiro “assim assado”. A última faixa do primeiro álbum traz como título a música “Fala” que trazia uma mensagem contra a tortura e qualquer tipo de opressão, escrita por João Ricardo e Luhli: Eu não sei dizer Nada por dizer Então eu escuto Se você disser Tudo o que quiser Então eu escuto Fala Fala Se eu não entender Não vou responder Então eu escuto Eu só vou falar Na hora de falar Então eu escuto Fala [...]. A letra representa as torturas ocorridas durante o período da Ditadura Militar onde os torturadores tentavam arrancar confissões por meio de atos violentos e silenciar os movimentos que eram contra o regime. Os agonizantes gritos de Ney Matogrosso durante a música se reportam ao momento onde os militares pretendiam instaurar um permanente estado de medo entre a população. Zan (2001, p. 11) ao se referir a Nunes destaca “Quase tudo no Secos e Molhados beirava a metáfora. [...] Nada era explícito, nada era dito de cara, mas os efeitos seriam perfeitamente assimilados [...]”. As músicas apresentadas neste trabalho, que fazem parte dos dois álbuns do grupo musical Secos e Molhados que num período breve mas muito intenso deixaram suas contribuições com a música brasileira num período conturbado da história do país. Através da arte o grupo buscava denunciar todas as formas de perseguição, racismo e guerras. A forma que o grupo encontrou para realizar a sua arte, denunciando o sistema opressor instaurado durante o regime militar, passou despercebida pela censura. Porém as letras das músicas possuíam uma mensagem que o povo era capaz de compreender e de alguma forma podem ter contribuído na conscientização do povo contra o sistema político instaurado no país durante os 21 anos da Ditadura Militar. Considerações Finais Ao final da pesquisa de revisão bibliográfica realizada destacamos a contribuição do trabalho musical do grupo Secos e Molhados para a formação de conscientização política do povo brasileiro durante o período da Ditadura Militar. As apresentações do grupo além de um extravagante figurino, maquiagens carregadas, danças sensuais faziam denúncias a Ditadura Militar. Ao final do trabalho, concluímos que os 21 anos do período de Ditadura Militar vivenciado pelo povo brasileiro, foram marcados por momentos de repressão e perseguição a todas aquelas pessoas que se manifestassem contrárias ao sistema militar. Os meios de comunicação jornais, revistas, livros, peças de teatro e músicas eram fiscalizados pela censura e precisavam cuidar o que divulgar, pois do contrário eram perseguidos e seus proprietários podiam ser exilados. Nesse período muitos intelectuais, professores, jornalistas, sociólogos e pesquisadores foram torturados e exilados. Estudantes eram perseguidos, pois antes do período da Ditadura Militar eram um dos grupos mais organizados do país e se protestavam diante das medidas julgadas impopulares adotas pelos governantes. Nesse cenário, o grupo musical Secos e Molhados gravou dois álbuns no ano de 1973, durante o governo do General Emílio Garrastazu Medici, considerado o presidente mais duro do período militar, período conhecido na história do Brasil conhecida como “anos de chumbo”. Apesar da censura do Destacamento de Operações e Informações e ao Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi) que atuava como centro de investigações e repressão do governo militar, o grupo encontra uma forma de fazer denúncias a Ditadura Militar sem que fosse censurado. Considerado na atualidade um dos grupos mais aclamados pela crítica, pela forma de denunciar o sistema político na época, com temas que continuam atuais, seu líder João Ricardo vem continuando com a marca do grupo Secos e Molhados e, neste ano (2013) o primeiro álbum completa 40 anos. Entre as letras das músicas que compuseram os dois álbuns do grupo, 4 delas foram objeto de análise neste trabalho, mas as proposições apresentadas vão além das análises apresentadas pelas autoras. 5. Referências CASTRO, C. O golpe de 1964 e a instauração do regime militar. Disponível em <http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/FatosImagens/Golpe1964>. Acesso em 19 de jul. de 2013. FIORI, J. L.; TAVARES, M. C. (Des)ajuste global e modernização conservadora. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993. GARCIA, L. L. Terapia do choque. O Estado de São Paulo. 2010. Disponível em http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,terapia-de-choque,645871,0.htm. 2010. Acesso em 21 de jul. de 2013. HOTZ, C. 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