João, Maria e a saúde publicado no Jornal do Brasil: 4 janeiro de 2006 A história de João e Maria é contada há gerações. A madrasta - que dominava um lenhador, pai de duas crianças - propõe e consegue que elas sejam abandonadas. Os irmãos acabam nas mãos de uma bruxa que obriga Maria a engordar João, para ser comido. Aproveitando-se de um momento de distração, Maria empurra a bruxa para dentro do forno, deixando-a queimar até a morte. As crianças libertadas encontram jóias na casa macabra e voltam para o pai. Vivem felizes, sem problemas financeiros e livres da madrasta, já falecida. Este conto retrata o drama de crianças desprotegidas e abandonadas. Os autores, irmãos Jacob e Wilhelm Grimm, tiveram uma dura infância. Perderam o pai de apenas 44 anos, quando tinham menos de 11 anos de idade. A mãe faleceu logo após, em 1804. Os Grimms criaram os seis irmãos e morreram com mais de 70 anos, deixando um grande legado literário. Quem afinal é o vilão desse conto: a bruxa? Pode-se especular que ela teve seu território invadido. A madrasta? É possível imaginar que sentisse ciúmes doentios do lenhador, que só teve filhos com a primeira mulher. O lenhador, porque casou novamente? Será que amava a nova mulher ou procurava alguém para ajudá-lo com os filhos? Não há dúvida de que foi um pai covarde, pois aceitou que os filhos fossem abandonados. Ficou feliz em tê-los de volta, mas podemos questionar sua sinceridade, pois se encontrava novamente viúvo, sozinho e o retorno das crianças lhe trouxe companhia e riqueza. Várias adaptações foram feitas dessa amedrontadora fábula. Na literatura brasileira e principalmente no teatro infantil nossos autores criaram bruxas estilizadas e músicas alegres. A trama é contada de modo descontraído, com o bem sempre vencendo o mal. Como médico e freqüentador de teatro, imaginei adaptar essa fábula na qual o cenário seria o Sistema de Saúde. Fantasiei que João faria o papel de paciente e Maria, o de médica. Afinal um precisa do outro, como irmãos. João, como paciente, fica engaiolado e é alimentado com falsas promessas. Maria fica bem no papel de médica, pois sabe cuidar do irmão, e as mulheres são maioria em algumas faculdades de medicina. Aprisionado, só resta ao médico, independentemente de sexo, servir a quem o domina. Mas sempre procurando ajudar o paciente, alimentá-lo com esperanças e enganar alguma bruxa. Somente João e Maria teriam seus papéis definidos nesse contexto. Mas quem representaria a bruxa, a madrasta e o lenhador? Os governos, os planos de saúde, os hospitais, a indústria de medicamentos e de equipamentos? Nos tempos atuais os planos de saúde têm imensa relevância, e é problemático considerá-los como bruxas ou madrastas. O mesmo é possível dizer dos empresários que investem em centros de diagnósticos e tratamento; assim como da indústria farmacêutica e de equipamentos, em constante busca do progresso tecnológico. Dizem alguns que é norma o lucro que a maioria alcança, porém o termo desmedido é mais especulado no setor médico. Escolher quem melhor representaria o papel do lenhador é a tarefa mais complexa de todas. É possível que, desde o passado mais remoto, esse papel caiba aos governos. É obrigação do pai (lenhador) estabelecer as regras. Deve manter os filhos longe das bruxas e assegurar que eventuais madrastas os respeitem e os adotem verdadeiramente. É obrigação dos governos (políticos) estabelecer e fiscalizar as leis (regras) destinadas a manter a união da sociedade (pessoas-empresas e empresas-negócios). O que terá ocorrido com a mãe biológica das crianças? Seria sua ausência a origem de toda a trama? No texto escrito há dois séculos e nas releituras subseqüentes não encontrei nenhuma referência. Não tenho dúvida de que ela deveria se chamar solidariedade (compromisso ético). Nesta minha adaptação estou seguro de que ela terá que aparecer, nem que eu, como autor, a ressuscite. Na sua ausência, nunca haverá o tão almejado final feliz. Alfredo Guarischi, medico