ID: 49714282
13-09-2013 | Ípsilon
Tiragem: 45304
Pág: 24
País: Portugal
Cores: Cor
Period.: Semanal
Área: 27,31 x 31,97 cm²
Âmbito: Informação Geral
Corte: 1 de 1
E
A História é o que fazemos
dela, conclui Brecht nos
anos em que, perante a
ascensão de Hitler, começa
a escrever Os Negócios
do Senhor Júlio César.
Com esse romance, na
encenação de Gonçalo
Amorim, o São João
abre a temporada.
JOÃO TUNA
Inês Nadais
Júlio
César
nunca
existiu
m 1938, exilado na Dinamarca mas ainda assim suficientemente perto da Alemanha
para se arrepiar com a irresistível ascensão de Adolf
Hitler, Bertolt Brecht descobriu uma frase igualmente irresistível com que pichar os livros de História: Júlio César nunca existiu (pelo menos não nos termos que
ficaram para a posteridade). Não
chegou a acabar o romance que decidiu escrever a partir desse slogan,
mas mais de 70 anos e um grande
tremor-de-terra na City depois, Os
Negócios do Senhor Júlio César encontra a sua primeira encenação
portuguesa a partir de hoje com o
Teatro Experimental do Porto (TEP)
– uma encenação de combate que,
depois de arrasar Júlio César e toda
a linhagem imperial que vai de Roma a Berlim, chega até este 2013 e
decide que é altura de pichar não os
livros de História mas as paredes da
cidade. A ver se treme.
Há retórica na nova encenação de
Gonçalo Amorim – uma criação verdadeiramente colectiva levantada a
partir de um gigantesco trabalho de
reconversão dramatúrgica do original de Brecht –, mas também é uma
retórica de combate. “Em 2009 encenei A Mãe, um texto da fase em
que o Brecht estava profundamente
implicado na construção de uma
sociedade nova – é um Brecht dinâmico, a trabalhar com operários,
sindicalistas, amadores, a fazer teatro para ser completado pelos espectadores. Desde então sempre
quis voltar ao Brecht, mas não sabia
bem com quê. Ao ler Os Negócios…
pareceu-me que poderia ter encontrado a continuação das imprecações do Paul Southman de O Dia do
Santo, uma das minhas últimas encenações para o TEP, e de Um Espectáculo para os Meus Compatriotas, a
criação colectiva que estreámos na
ZDB”, explica o encenador ao Ípsilon. Traduzindo: o chão que aqui se
pisa já não são as reluzentes avenidas novas da utopia comunista, mas
o beco sem saída, e bastante escavacado, em que se ressaca a desilusão colectiva dos últimos anos. Vejamos: “É um Brecht completamente desiludido com o que aconteceu
na Alemanha em 1933: ele sabe agora que o esforço posto em textos
como A Mãe foi completamente em
vão. As perguntas que ele se coloca
são as perguntas que os artistas portugueses se colocam agora: será
mesmo útil o nosso trabalho, alguém
estará interessado? Pessoalmente,
vejo esta desistência retórica, este
‘estou-me a marimbar’, como uma
pausa para respirar. Voltaremos
quando voltar a haver tempo para
os artistas na cidade.”
Ao contrário do Paul Southman
de O Dia do Santo – e do Vastio Alder
de Os Negócios do Senhor Júlio César –, a desistência de Gonçalo Amorim e do grupo mais ou menos fixo
de actores e criadores com que vai
trabalhando é relativa. Sobretudo
no caso de Os Negócios…, que faz uso
de algumas técnicas de guerrilha
ideológica (dos slogans projectados
nas paredes a formas mais ou menos
vernaculares de street art, como o
stencil e a pichagem, que transformarão, do dia para a noite, os cartazes espalhados pela cidade em organismos vivos, e aditivados com palavras de ordem: “A City treme”, “A
sopa não era má”, “Caminhamos
para uma catástrofe, é claro”, “Nada
é o que parece”), o activismo é assumido. Mas não a manipulação, acrescenta Gonçalo: “Sim, a propaganda
política é uma das imagéticas do espectáculo. Os slogans que projectamos na parede correspondem a sublinhados nossos, mas também a um
convite que fazemos ao espectador
para que entre nas páginas do romance, para que possamos todos ler
em conjunto, em silêncio, devagar,
sem foco. O que normalmente acontece no teatro é o encenador dirigir
o olhar do espectador, tanto quanto
é possível dirigir o olhar de um espectador contemporâneo…”
Coro como
personagem principal
No palco, pelo contrário, a energia
é completamente colectiva – até porque uma das intervenções mais radicais desta encenação, para além
da construção da banda sonora ao
vivo, é a introdução de um coro que
funciona como personagem principal (mais principal do que Júlio César). E também é uma ideia colectiva, a ideia de geração, que, contada
esta história da chegada ao poder de
“um peralvilho” com o apoio interessado dos especuladores da City,
está na cabeça do encenador: sim,
os bastidores do poder são inevitavelmente sinistros, mas talvez o trabalho seja menos sujo se formos nós
a fazê-lo. “Sou naturalmente contrapoder e há sítios sinistros que não
quero nada frequentar porque sei
que algures a meio do caminho vai
aparecer alguém a tentar corromperme, mas acho que a minha geração
tem de construir projectos de poder.
Depende de nós pensar que com
tantos desempregados e tanta gente
a trabalhar demasiadas horas se calhar pode haver emprego para todos.
O que o Brecht nos mostra com esta
anatomia do percurso do Júlio César
é que a História não é inevitável. Não
é inevitável sermos resgatados pela
Troika, não é inevitável ser o dinheiro a mandar. Embora também seja
humano baixar os braços e tentar
sobreviver neste mundo em vez de
tentar fazer outro.”
Noutro mundo, o de Brecht, onde
se lia Júlio César devia ler-se Adolf
Hitler; no nosso, podemos ler o que
quisermos, mas, admite Gonçalo
Amorim, “falou-se muito de Sócrates e de George W. Bush nos ensaios”. Em Os Negócios…, Júlio César
também aparece assim, a virar o seu
melhor lado para as câmaras antes
de entrar no ar. Não ficou mal na
História, apesar de tudo. Mas como
a História do presente ainda está por
fazer, depende de nós aquilo que vai
ficar escrito – e em parte o que este
espectáculo escreve é que estes
anos, talvez até mais do que os anos
que viram a irresistível ascensão de
Hitler, fabricaram demasiados maus
políticos. Talvez não seja assim tão
por acaso que esta peça fica em cena até às próximas eleições.
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Júlio César nunca existiu - Teatro Nacional São João no Porto