Interdisciplinaridade e intersetorialidade na Estratégia Saúde da Família e no Núcleo de Apoio à Saúde da Família: potencialidades e desafios Interdisciplinarity and intersectoriality in the Family Health Strategy and Nuclei of Support to Family Health: potentialities and challenges Ana Beatriz Zimmermann*** Regina Célia Titotto Castanharo**** Fernanda Rodrigues Leite de Oliveira***** Resumo A Estratégia Saúde da Família (ESF) foi implantada com o objetivo de reorientar o modelo assistencial em saúde, por meio do desenvolvimento de atividades de promoção de saúde, prevenção de riscos e agravos, recuperação e reabilitação, tendo como foco o sujeito, sua família e a comunidade. Para apoiar a ESF, o Ministério da Saúde criou, em 2008, os Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF). O NASF objetiva aumentar o escopo de ações e a resolutividade da ESF trabalhando de forma compartilhada. Nesse contexto, este estudo buscou compreender algumas das potencialidades e dificuldades para o exercício da interdisciplinaridade e intersetorialidade vivenciadas pelos profissionais da ESF e NASF de uma Unidade Básica de Saúde de Curitiba. Por meio de uma pesquisa exploratória de cunho qualitativo, foram entrevistados 12 profissionais da ESF e NASF no período de novembro de 2011 a janeiro de 2012. Os dados foram analisados com base no método hermenêutico dialético. Os participantes demonstraram a valorização da prática interdisciplinar e intersetorial. No entanto, alguns relatos demonstraram certa fragmentação do trabalho pela valorização da especialização dos saberes. Ainda, como barreiras, alguns relatos destacaram: o excesso de demanda de trabalho; a restrição da comunicação entre os diferentes equipamentos sociais a encaminhamentos e eventuais ligações telefônicas; a falta de interesse de determinados equipamentos no trabalho conjunto. Dessa forma, reforça-se aqui a necessidade da implantação de novas estratégias gerenciais em saúde que promovam possibilidades formais de encontro entre profissionais dos diferentes equipamentos sociais para efetiva elaboração conjunta de ações. Palavras-chave: Saúde Pública. Estratégia Saúde da Família. Integralidade em Saúde. Assistência Integral à Saúde. Abstract The Family Health Strategy (ESF) was implanted in order to reorient the health care model through the development of activities to promote health, prevent illness, recovery and rehabilitation with focus on the individual, the family and the community. To support ESF, the Ministry of Health created, in 2008, the Nuclei of Support to Family Health (NASF). NASF, composed by different professionals, aim to increase the scope of ESF actions and its outcomes, working in cooperation with the family health teams. In this context, this study aims to understand the potentials and difficulties regarding the practice of interdisciplinary and intersectorial actions by ESF e NASF professionals of a Primary Care Unity of Curitiba. Through a qualitative-exploratory field research, 12 professionals from ESF and NASF were interviewed from November 2011 to January 2012. Data were analyzed by using a hermeneutic-dialectic method. The subjects underlined the value of interdisciplinary and intersectorial practice. However, some reports expressed a certain fragmentation of the work due to the valorization of knowledge specialization. Still some reports highlighted as barriers: the excessive demand of work; the restriction of communication among other sectors and equipments to referrals and occasional telephone calls; the lack of interest of certain equipments as regards working together. Thus, we underline the need for new strategies that promote formal meetings among professionals from different social equipments for developing effective actions. Keywords: Public Health. Family Health Strategy. Integrality in Health. Comprehensive Health Care. DOI: 10.15343/0104-7809.20143802129138 * Departamento de Terapia Ocupacional da Universidade Federal do Paraná-PR, Brasil. ** Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) do município de Curitiba-PR, Brasil. *** Departamento de Terapia Ocupacional da Universidade Federal do Paraná-PR, Brasil. **** Departamento de Terapia Ocupacional da Universidade Federal do Paraná-PR, Brasil. ***** Fundação Faculdade de Medicina, São Paulo-SP, Brasil. E-mail: [email protected] Os autores declaram não haver conflitos de interesse. 129 Artigo Original • Original Paper Emelin Cristina da Silva** O Mundo da Saúde, São Paulo - 2014;38(2):129-138 Luís Felipe Ferro* Introdução Interdisciplinaridade e intersetorialidade na Estratégia Saúde da Família e no Núcleo de Apoio à Saúde da Família... O Mundo da Saúde, São Paulo - 2014;38(2):129-138 130 A Lei n. 8.080/90, criada para regulamentar as ações e serviços de saúde do SUS, explicita que a saúde e a doença são determinadas por diversos fatores, como: alimentação, moradia, meio ambiente, saneamento básico, trabalho, educação, lazer, o acesso aos bens essenciais1,2. Dessa maneira, a saúde passou a ser vista de maneira mais ampliada e como fenômeno de múltiplas determinações, o que exigiu a transformação dos serviços de saúde na busca pela integralidade no cuidado. O reposicionamento dos processos de trabalho, a constituição de uma rede de cuidados intersetorial3 e a prática da interdisciplinaridade tornaram-se, logo, premissas para compor práticas aliadas a esta nova concepção. O Programa Saúde da Família, atualmente denominado Estratégia Saúde da Família (ESF), foi uma das estratégias criadas pelo governo federal com o objetivo de proporcionar a reorientação do modelo assistencial em saúde. A ESF prioriza as ações de promoção, proteção e recuperação da saúde, tendo como objetos centrais o indivíduo e sua família no contexto da comunidade3. A Portaria n. 2.488, de 21 de outubro de 2011 determina que o trabalho da ESF deve valorizar os diversos saberes e práticas na perspectiva de uma abordagem integral e, por isso, deve ser interdisciplinar e intersetorial. Em 2008, com o objetivo de apoiar e ampliar a resolutividade da ESF, o Ministério da Saúde criou o Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF)4. Conforme a Portaria n. 3.124/12, o NASF deve ser composto de equipe multiprofissional e, para superar os modelos convencionais de assistência à saúde que visam à assistência curativa, especializada e fragmentada, busca a corresponsabilização e gestão integrada do cuidado em saúde junto à ESF4,5. A Portaria n. 2.488/11 estabelece a revisão de diretrizes e normas para a Atenção Básica, para a ESF e para o Programa de Agentes Comunitários de Saúde. Reforça as diretrizes da interdisciplinaridade e intersetorialidade ao afirmar, como atribuições da ESF e do NASF, a coordenação da integralidade do cuidado, articulando ações de promoção à saúde, prevenção de adoecimento, tratamento e reabilitação, com enfoque no trabalho interdisciplinar e na articulação das redes de saúde e intersetoriais3. O termo interdisciplinaridade é complexo e exige aprofundamento sobre sua compreensão, pois, com frequência, é confundido com multidisciplinaridade ou pluridisciplinaridade. Segundo Santos e Cutolo, multidisciplinaridade significa a justaposição de diferentes campos de saber para a realização de determinado trabalho sem que as disciplinas envolvidas se transformem ou sejam enriquecidas por outra e sem que haja coordenação do trabalho em equipe. O trabalho pluridisciplinar, por sua vez, diz respeito ao agrupamento e inter-relacionamento de diferentes campos de saber em “um sistema de um só nível e de objetivos múltiplos, com cooperação, mas sem coordenação” (p. 36)6. A interdisciplinaridade na saúde exige a superação do pensamento simplista dos processos de saúde e doença pautados na unicidade da resposta causa-ação. A interdisciplinaridade assume, logo, a possibilidade dos contraditórios, das diferenças e, principalmente, da criatividade. Santos e Cutolo afirmam que A interdisciplinaridade se caracteriza pela intensidade das trocas entre os especialistas e pelo grau de integração real das disciplinas, no interior de um projeto específico (...). O espaço interdisciplinar deverá ser procurado na negação e na superação das fronteiras disciplinares. (...) Podemos dizer que nos reconhecemos diante de um empreendimento interdisciplinar todas as vezes em que ele conseguir incorporar os resultados de várias especialidades, que tomar de empréstimo a outras disciplinas certos instrumentos e técnicas metodológicas, fazendo uso dos esquemas conceituais e das análises que se encontram nos diversos ramos do saber, a fim de fazê-los integrarem e convergirem, depois de terem sido comparados e julgados (p. 37)6. Para procurar garantir a saúde das diferentes populações, a ESF e o NASF devem, para além da interdisciplinaridade das ações entre os membros de suas equipes, promover a integração dos diversos setores sociais. Educação, saúde, trabalho, Método Para alcançar os objetivos propostos, foi composta uma pesquisa de base qualitativa. Segundo Minayo11, a pesquisa qualitativa busca compreender o universo dos significados, motivações, valores e atitudes, ou seja, aquilo que se refere às relações, processos e fenômenos não mensuráveis. Enquanto técnica de coleta de dados, foram realizadas, de novembro de 2011 a janeiro de 2012, entrevistas semiestruturadas com 8 profissionais da ESF e 4 profissionais do NASF de uma UBS da cidade de Curitiba. Todas as entrevistas Campo de pesquisa: aproximações para o aprofundamento A UBS em que a pesquisa foi realizada é gerida pela prefeitura de Curitiba e funciona de segunda-feira a sexta-feira, das 7 horas às 19 horas, sendo composta por quatro equipes de saúde da família e cinco profissionais do Núcleo de Apoio à Atenção Primária em Saúde (NAAPS). Esse equipamento possui a especificidade de estar vinculado ao PET-Saúde coordenado pelo Departamento de Saúde Comunitária da Universidade Federal do Paraná e com participação dos cursos de graduação em Medicina, Terapia Ocupacional, Enfermagem, Nutrição e Farmácia. O PET-Saúde constitui-se como estratégia 131 O Mundo da Saúde, São Paulo - 2014;38(2):129-138 foram gravadas e, para a análise dos dados, foram realizadas as seguintes etapas: transcrição; leitura das entrevistas; releitura com o objetivo de destacar as ideias centrais relacionadas à interdisciplinaridade e intersetorialidade; formulação de categorias de análise12. Com o objetivo de compreender os relatos na articulação de suas contradições e consensos com os processos sociais e o contexto cultural do grupo de profissionais envolvido na pesquisa, utilizou-se, para análise dos dados, o método hermenêutico-dialético11. O método em questão propõe conjugação reflexiva entre experiência dos sujeitos e momento histórico – quadro que proporciona o aparecimento singular dos dados a serem analisados. A pesquisa é vinculada ao Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde (PET-Saúde), e foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP / UFPR) sob o n. 772.107.09.08. Todos os sujeitos consentiram participar da pesquisa, a partir da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, sendo assegurado o direito de interromper sua participação a qualquer momento, sem qualquer prejuízo. Para garantir o anonimato dos participantes, seus nomes foram substituídos pela sigla P, seguido de numeração e da qualidade ESF ou NASF. O nome e localização da UBS foram omitidos para evitar sua identificação. Antes da apresentação dos dados, contudo, faz-se necessário uma apresentação mais detalhada do campo de pesquisa. Interdisciplinaridade e intersetorialidade na Estratégia Saúde da Família e no Núcleo de Apoio à Saúde da Família... transporte, assistência social, entre outros, devem ser convocados para compor ações estratégicas, tecidas em conjunto, para o fortalecimento das ações em saúde7. A articulação intersetorial torna-se, logo, imprescindível para enfrentar os determinantes do processo saúde-doença. Dessa forma, caracteriza-se como “uma relação reconhecida entre uma ou várias partes do setor de saúde com uma ou várias partes de outro setor que se tenha formado para atuar em um tema” (p. 763)8, com vistas a atingir resultados mais efetivos do que alcançaria a atuação solitária de qualquer um dos setores9. Para alcançar resultados em saúde, os diferentes equipamentos devem se comunicar, dentro e fora do seu setor, criando uma rede de proteção aos usuários. A articulação entre os serviços, estruturada por meio de conexão próxima entre seus diversos profissionais, ações e projetos, criaria, logo, uma rede de interdependência e corresponsabilização entre os equipamentos na direção da garantia do atendimento integral, materializando, assim, o conceito de trabalho em rede10. Contudo, embora o trabalho em equipe seja preconizado como proposta fundamental para a ruptura com o modelo assistencial tradicional, sua pragmatização apresenta, ainda, diferentes desafios a serem superados. Nesse cenário, este trabalho buscou compreender algumas das potencialidades e dificuldades para o exercício da interdisciplinaridade e intersetorialidade vivenciadas pelos profissionais da ESF e NASF de uma Unidade Básica de Saúde de Curitiba-PR. Interdisciplinaridade e intersetorialidade na Estratégia Saúde da Família e no Núcleo de Apoio à Saúde da Família... O Mundo da Saúde, São Paulo - 2014;38(2):129-138 132 para qualificação dos profissionais em serviço e dos alunos em ESF. Na cidade de Curitiba, a gestão realizou a implantação do NASF propondo, no entanto, algumas alterações em sua estruturação no município e, assim, o NASF passou a receber o nome de Núcleo de Apoio à Atenção Primária em Saúde (NAAPS). Embora o NAAPS se guiasse pela Portaria n. 154, de 24 de janeiro de 2008, e, em seguida, pela Portaria n. 2.488/11, estendeu sua abrangência às Unidades Básicas de Saúde que não possuíam a ESF. Em março de 2009, havia, em Curitiba, 29 NAAPS, o que possibilitava a cobertura de todas as UBS13. A definição dos profissionais que irão compor cada tipo de equipe NASF é de responsabilidade do gestor municipal, que deverá pautar-se nos seguintes critérios: prioridade identificada a partir das necessidades locais, do perfil epidemiológico e social; e da disponibilidade de profissionais de cada uma das diferentes ocupações. Contudo, todas as equipes NAAPS de Curitiba apresentam mesmo padrão de composição: nutricionista, profissional de educação física, fisioterapeuta, psicólogo e farmacêutico. Cada equipe é, ainda, responsável por ser referência para um grupo de duas a cinco Unidades Básicas de Saúde, devendo desenvolver ações compartilhadas com os profissionais da UBS13. No cotidiano do trabalho cada equipe da ESF se reúne quinzenalmente para a discussão dos casos. Também, quinzenalmente, as quatro equipes da ESF se reúnem com os profissionais do NAAPS. Cada profissional do NAAPS está presente na UBS pelo período de 8 horas por semana, revezando-se entre si durante os dias da semana e, ainda, realizam uma reunião coletiva por semana. Resultados e discussão A análise das entrevistas conduziu à elaboração de duas categorias: “Interdisciplinaridade: concepções e desafios para a prática”; e “Trabalho em rede: entre parceria, corresponsabilização e encaminhamentos”. A primeira delas diz respeito a concepções, dificuldades e potencialidades do trabalho interdisciplinar realizado entre ESF e NASF e a segunda categoria abrange algumas barreiras e estratégias realizadas para contemplar a diretriz da intersetorialidade. Interdisciplinaridade: concepções e desafios para a prática Um dos pontos iniciais da discussão diz respeito à apreensão dos participantes em relação à interdisciplinaridade. Alguns profissionais demonstraram uma compreensão do sujeito / família em sua complexidade e consideram importante a articulação de diferentes saberes para o desenvolvimento de ações de cuidado, o que vem ao encontro do princípio da integralidade. considero importante o trabalho interdisciplinar (...) porque cada profissional acaba tendo uma visão (...) do paciente ou das condições em que o paciente vive. Então, a gente pode imaginar como se ele fosse uma caixa no centro de uma sala e cada profissional se disponibilizar em volta dessa caixa, cada um olha aquela caixa de acordo com a face que tem no seu campo de visão. Daí, na conversa, no diálogo em relação àquela condição, àquele paciente a gente tenta observar como cada profissional vê a face dessa caixa. (P1-ESF) Alguns profissionais afirmaram a potência das trocas de saberes e a possibilidade de compartilhar o cuidado para o fortalecimento da integralidade. Que o trabalho em conjunto, assim, é bastante válido pro paciente, né? Porque uma pessoa sozinha não vai conseguir resolver todo o problema do paciente, né? Então, tem que ter um trabalho em conjunto. (P1-NAAPS) Para você ter uma ideia, agora em janeiro, eu e a nutricionista fizemos várias rodas de conversa com vários grupos explicando sobre o controle do estresse e da ansiedade. Então eles vão trocando... e a nutricionista falou sobre que alimentos a gente pode estar comendo e colocando no nosso cardápio para que a gente melhore o humor, que a gente fique mais tranquilo. E daí, na frente de todos na roda de conversa, a gente fez um suco antidepressivo. (P2-NAAPS) É, eu falo por mim, eu estou aqui uma vez por semana, um dia na semana, eu estou na quarta-feira de manhã e na sexta à tarde. Então, o que tem só da minha demanda já leva esse tempo. (P4-NAAPS) Parte dos profissionais afirma que o tempo estabelecido para atividades intersetoriais e interdisciplinares é insuficiente. Relatam, com frequência, conversas sobre casos entre um atendimento e outro nos corredores da UBS, o que culmina por comprometer a comunicação entre os profissionais. Assim, afirmando achados literários14,15, o excesso de demanda e falta de tempo para a realização de reuniões de discussão de casos e planejamento de ações são apontados como barreiras para o exercício do trabalho interdisciplinar. Então, o que a gente percebe (...) é que a gente tem dificuldade de lidar com a demanda, a demanda é grande e a população ainda tem a mentalidade de que vem para consulta médica, aquela ideia ainda medicocêntrica, sabe? E a gente já está começando com o NAAPS a mudar essa ideia, de que tudo é focado na consulta médica. Então, o paciente vem, recebe todo acompanhamento de todos os profissionais e, muitas vezes, acaba nem precisando da consulta médica, porque daí ele já recebeu orientação do farmacêutico sobre tomar direitinho seu remédio que o médico prescreveu, já conversou Essa fala, para além de afirmar o excesso de demanda, insere outro ponto para reflexão: a visão médico-centrada. Nota-se uma preocupação dos agentes do NAAPS em transformar essa visão, porém a ideia de atendimentos individuais especializados como condutas indicadas aos casos é reforçada. A divisão do cuidado entre os profissionais da UBS parece dar corpo à ideia de pluridisciplinaridade em saúde e remeter, por vezes, usuários a atendimentos individuais com os diferentes profissionais. Ainda, no relato apresentado, não parece haver elaboração compartilhada do Projeto Terapêutico Singular (PTS), acusando, ainda, certa fragmentação do saber e do cuidado. Vale ressaltar que o termo PTS sequer faz parte do vocabulário cotidiano dos profissionais dessa UBS. O trabalho em PSF propõe também a organização de relações horizontais no interior das equipes, com o reconhecimento da competência de cada membro e a busca através do diálogo, a definição de uma ação conjunta e não apenas justaposta de todos os integrantes (p. 1470)14. Embora os profissionais da ESF tenham informado o compartilhamento dos casos junto aos profissionais do NAAPS, parece que essas ações são, ainda, focadas na lógica de encaminhamentos, gerando fragmentação do cuidado. Eu encaminho pra educação física, para o grupo da fisioterapeuta, é, para o grupo de saúde mental com a psicóloga, conforme o caso eu encaminho até para a Fundação de Ação Social (FAS). (P1-NAAPS) Às vezes, você esquece que tem um psicólogo lá para você encaminhar, às vezes, uma conversa dela que teve estudo, às vezes, é melhor! (P4-ESF) Diferentes falas aproximaram o trabalho do NAAPS mais da lógica ambulatorial do que da proposta do Apoio Matricial conforme previsto 133 O Mundo da Saúde, São Paulo - 2014;38(2):129-138 Muito pouco tempo pra responder a demanda! Te sufoca mesmo! (...) às vezes acontece alguma coisa lá e eu não estou sabendo. Às vezes, a gente sabe pelo agente comunitário (...) às vezes a gente fica sabendo até pelo vigia, pelo próprio usuário. (P3-ESF) com a psicóloga sobre as questões emocionais que estavam incomodando, já conversou com a equipe de odonto, já conversou com a equipe de enfermagem, quando ele vai ver não precisa nem da consulta. (P2-NAAPS) Interdisciplinaridade e intersetorialidade na Estratégia Saúde da Família e no Núcleo de Apoio à Saúde da Família... Diferentes falas permitiram identificar a valorização da interdisciplinaridade. Contudo, faz-se necessária maior imersão no processo de trabalho dos participantes para explorar a interdisciplinaridade em sua pragmática mais concreta, de maneira a compreender como se estabelecem momentos, trocas e o compartilhamento de atendimentos entre profissionais, assim como as principais dificuldades enfrentadas por esses agentes. Interdisciplinaridade e intersetorialidade na Estratégia Saúde da Família e no Núcleo de Apoio à Saúde da Família... O Mundo da Saúde, São Paulo - 2014;38(2):129-138 134 na portaria do NASF e, portanto, a efetivação da interdisciplinaridade é comprometida. Vale ressaltar que a metodologia de trabalho inerente à proposta de apoio matricial objetiva ampliar as possibilidades de pensar e agir na lógica da clínica ampliada e facilitar a integração dialógica entre os diferentes profissionais16. Contudo, embora o Apoio Matricial seja preconizado como ferramenta de trabalho do NASF3 para propiciar trocas entre os profissionais, destaca-se que a estratégia do matriciamento no momento da coleta dos dados ainda não estava implantada no município de Curitiba. Uma das grandes dificuldades é a superação da fragmentação do trabalho. É preciso lembrar que o trabalho nos estabelecimentos de saúde, inclusive na atenção básica, foi tradicionalmente organizado de forma fragmentada, um processo claramente condicionado pela especialização do saber e pela atuação das corporações profissionais (p. 1977)17. Alguns profissionais, por sua vez, apresentaram em seus relatos uma compreensão de saúde relacionada a questões clínicas. Na unidade de saúde acaba desembocando muito problema social que de repente não tem como resolver, a saúde não tem como resolver e, na minha opinião, acho que nem é a saúde que tem que resolver... (P4-NAAPS) A saúde, a Unidade de Saúde tem que resolver questões clínicas, questões relativas à saúde, porque por exemplo, daí vem... o passe livre pra ônibus, essas coisas tudo tem que depender de carta de médico, de carta da unidade de saúde... (P4-NAAPS) A compreensão ampliada do conceito de saúde impõe-se como premissa para a elaboração de ações estratégicas, interdisciplinares e intersetoriais, fundamentais para o desenvolvimento das ações de promoção, prevenção de riscos e agravos à saúde. Por fim, alguns profissionais parecem subvalorizar a realização de reuniões para o planejamento conjunto de ações. A partir desses relatos, esses momentos culminam por significar subtração de tempo para atendimentos clínicos. Ai é muito complicado... ainda mais... é difícil tirar um tempo do profissional da unidade de saúde pra ir fazer reuniãozinha... isso na saúde é difícil de acontecer. Eu falo... sair da unidade de saúde pra fazer reunião com outros... (P4-NAAPS) Os resultados deste estudo puderam confirmar, corroborando com prévios achados na literatura14,15,17,18, a supervalorização do conhecimento técnico, a opção pela realização de atendimentos individuais, a fragmentação do trabalho favorecida pela valorização da especialização dos saberes, pela atuação de categorias profissionais e pelos níveis hierárquicos presentes entre os profissionais que compõem as equipes. Trabalho em rede: entre parceria, corresponsabilização e encaminhamentos O trecho abaixo, entre outras falas presentes nas entrevistas, permite assumir que a intersetorialidade é uma preocupação presente no cotidiano de trabalho dos profissionais da ESF. Então, o que seria esse acompanhamento intersetorial? Seria a relação que a gente tem de trabalho com a FAS, a relação que a gente tem com o trabalho, com o CREAS, a relação que a gente tem de trabalho com as escolas, a relação de trabalho que a gente tem com vários outros setores, com a rede de proteção... em relação ao combate de violência a mulher... então tudo está envolvido com tudo (...) a gente está trabalhando tudo integrado. Então o paciente não é dividido em partes, é visto como um todo. (P2-NAAPS) No entanto, a análise das entrevistas revela a incipiência da realização de planejamentos conjuntos e do estabelecimento de metas entre os profissionais dos diferentes serviços parceiros do território, sendo, por vezes, a relação com outros equipamentos restrita a encaminhamentos. Eu sempre estou encaminhando... para as academias. É direto que eu estou encaminhando, né? Para os grupos também, eu estou sempre encaminhando. (P1-NAAPS) Embora a realização de parcerias seja preconizada por alguns dos profissionais, há, também, dificuldades. Alguns trabalhadores A previsão da intersetorialidade pelas atuais políticas públicas3 não isenta o mais humano de sua prática. Embora aponte a necessidade da relação entre os serviços, os vínculos entre os diferentes equipamentos são sustentados em sua pragmática por diferentes relações e vivências entre sujeitos, alvos de cotidianos enfrentamentos e negociações que permeiam a prática da intersetorialidade. “A noção de rede como um emaranhado de relações das quais os indivíduos constituem os nós”, conforme apontado por Paula, Palha e Protti (p. 345)19, requer, acima de tudo, investimento sólido para compor sua tecitura e não está livre das intempéries próprias às relações humanas. É, acima de tudo, afirmativa de sua existência. Para Feuerwerker e Costa (p. 29), “há necessidade de um exercício permanente de paciência e de negociação, pois ninguém está acostumado a ficar pensando no assunto que é do outro”. A rede de organizações estabelece acordos de cooperação, reciprocidade e alianças que permitem a reflexão e as práticas cotidianas presentes em vários setores sociais articulados com a saúde humana. Para tanto, conforma uma construção coletiva que se define enquanto é realizada, mediante acordos e parcerias entre sujeitos individuais ou coletivos em prol de objetivos comuns (p. 345)19. A maioria dos profissionais afirmou que há pouca oportunidade de diálogo com os profissionais dos diferentes serviços para os quais realizam encaminhamentos. Relataram que ficam sabendo sobre o processo dos encaminhamentos e dos atendimentos de outros serviços por meio dos próprios pacientes. Mas, daí lá, com os profissionais de lá, é mais difícil o contato. É mais a informação do paciente, o relato do paciente... (P1-NAAPS) As falas abaixo retratam a importância do conhecimento da rede para que o fluxo da UBS diminuísse e para que os profissionais pudessem realizar encaminhamentos. Contudo, não aparece a ideia de planejamento conjunto, mas exclusivamente a restrição da parceria a encaminhamentos. acho que para a unidade de saúde ia diminuir um pouco a demanda (...), o pessoal não ia vir tanto aqui, ia ter mais locais na comunidade para estar participando. Tem muita gente que vem aqui por vir, todo dia está aqui. Às vezes, a pessoa se tivesse outras coisas para estar participando, principalmente idosos que gostam de estar participando... Então aqui (no território) tem a associação, as pessoas participam do grupo de artesanato (...), tem outra pessoa também que faz atividade física na outra associação... (P3-NAAPS) Pra mim ia melhorar (se referindo à possibilidade de haver maior articulação da rede) porque, eu ia saber quais as ações que tem em determinados lugares, para eu poder estar indicando, o que também diminui o fluxo aqui da unidade, o fluxo para o médico, essas coisas. (P3-NAAPS) Quanto aos espaços de comunicação junto aos profissionais dos outros serviços, com os quais a UBS mantém algum tipo de parceria, os sujeitos afirmaram que são escassos, se restringindo a encaminhamentos, cartas de alta e/ou eventuais ligações telefônicas. Por falta da comunicação mesmo, você acaba não sabendo uma coisa tão simples! (P4-ESF) Essa conversa é o que? (referindo-se ao diálogo com serviços de atenção especializada do território). Na ida quando você ajuda 135 O Mundo da Saúde, São Paulo - 2014;38(2):129-138 Eu tentei fazer três parcerias com as escolas para estar fazendo um trabalho com os adolescentes, ginástica, essas coisas. Não fui bem aceito, também agora não tenho tempo para fazer isso. (P3-NAAPS) Eu tenho retorno deles (pacientes)! Quando eles retornam aqui. Daí eles ficam conversando, nosso vinculo é maior com o pessoal que trabalha dentro da unidade de saúde. (P3-NAAPS) Interdisciplinaridade e intersetorialidade na Estratégia Saúde da Família e no Núcleo de Apoio à Saúde da Família... relataram a falta de tempo como impeditivo para a realização de parcerias que ultrapassem a lógica do encaminhamento, outros versam, ainda, sobre dificuldades de comunicação e do interesse de equipamentos da rede. O relato abaixo evidencia essas dificuldades: pra... notificar o encaminhamento e aguardar vaga, e apenas uma carta de alta de lá pra saber o tipo de ajuda vai estar realizando pela unidade de saúde. (P1-ESF) Interdisciplinaridade e intersetorialidade na Estratégia Saúde da Família e no Núcleo de Apoio à Saúde da Família... O Mundo da Saúde, São Paulo - 2014;38(2):129-138 136 Na medida do possível, a gente faz contato com CRAS, (...) assistência social, como os colégios, quando uma criança não está bem a gente liga para a pedagoga pra saber... ou pedagoga liga pra mim mandando uma cartinha pra gente tentar fazer os encaminhamento. (P3-ESF) Então, alguns (encaminhamentos) são por fluxo via sistema, pela prefeitura, outros são via contato telefônico. (P2-NAAPS) Alguns autores apresentam a estruturação de programas e órgãos colegiados democráticos, como fóruns, comitês, câmaras e núcleos intersetoriais territoriais, como possibilidades formais que promovam a união entre gestores, profissionais e representantes de usuários para, com isso, fomentar trocas e a elaboração conjunta de ações e políticas públicas entre diferentes setores7,19-22. Outras dificuldades para o estabelecimento da intersetorialidade, citadas pelos profissionais, referem-se à fragilidade da rede de suporte, escassez de serviços especializados de referência e à cultura da população que ainda está fortemente ligada ao modelo biomédico de busca pela atenção curativa. Na Atenção Primária, eu acredito que está dando para fazer muito bem o seu papel! Contudo, temos duas situações: um segmento da atenção primária seria o apoio dos profissionais especializados, então, já entraria na Atenção Secundária (...) ainda faltam muitos profissionais em algumas áreas, então, a Atenção Secundária acaba deixando a desejar de uma maneira (...). E, por outro lado, temos também uma população de uma cultura voltada muito para a questão curativa! Nada preventiva. (P1-ESF) Giovanella, et al (p. 788)7 afirmam a importância, para dar suporte às práticas de integração entre os serviços, no investimento em tecnologias de informação e comunicação por meio da construção de sistemas informatizados integrados e destaca, ainda, as iniciativas de Belo Horizonte quanto ao incentivo à “(...) criação de comissões de regulação nos centros de saúde, com fluxo de estabelecimento de critérios de priorização ascendente partindo do centro de saúde”. Os autores apresentam, contudo, o desafio a ser enfrentado das longas filas de espera e da insuficiente oferta de atenção especializada. Uma das profissionais entrevistada afirma conseguir desenvolver um contato mais próximo com serviços especializados em Saúde Mental. Quando questionada sobre o trabalho com outros equipamentos do território, a psicóloga responde que encontra espaço para a estruturação de momentos de trocas em sua “área”. Sim, mas já vejo que na minha área a gente já faz isso (...) Tem todo esse acompanhamento se está frequentando, se não está, por exemplo, um CAPS, se o paciente está indo para o CAPS, a gente recebe mensalmente todos os relatórios de quem está indo, de quem abandonou, quem está faltando, se mudou de modalidade de tratamento (...) porque se o paciente não está mais aderindo a gente precisa fazer busca ativa novamente com orientação pra que a gente possa retomar o tratamento (...) Tenho contato via telefone, que eles ligam pra saber se alguma coisa de diferente aconteceu (...) e todo mês eu tenho reunião lá no CAPS pra discussão de caso. Então eles me contam “oh, o paciente da tua unidade ‘tal’ que veio pra cá, está evoluindo assim... tá passando por consulta com a psicóloga (...) a gente vai trabalhar assim agora”. (P2-NAAPS) É interessante notar a presença de uma fragmentação por áreas, reservando a uma das categorias profissionais a possibilidade de reuniões mensais com profissionais do CAPS da região. As reuniões, circunscritas à figura do psicólogo, separam pragmaticamente os demais profissionais do NAAPS e ESF deste espaço e reiteram a incipiência e fragilidade da possibilidade de trocas de conhecimentos e saberes, restrita aos especialistas do campo da Saúde Mental. Embora esta articulação com a rede de serviços especializados seja de fundamental importância para a realização da integralidade, observa-se que as ações e Com base nos resultados, nota-se que os profissionais compreendem a importância e a necessidade de um trabalho interdisciplinar e intersetorial. No entanto, ainda são observados diferentes desafios a serem enfrentados. No tocante à interdisciplinaridade, verificou-se a tendência à fragmentação do trabalho, por meio da atuação das categorias profissionais, e a escassez e fragilidade de espaços disponíveis para que os profissionais possam discutir casos, elaborar PTS, planejar ações de maneira compartilhada com os usuários e profissionais de diferentes equipamentos. Os enunciados dos sujeitos demonstraram que a articulação da rede é focada nos serviços de saúde e que as ações intersetoriais Referências 1. Brasil. Ministério da Saúde. Clínica ampliada, equipe de referência e projeto terapêutico singular. 2a ed. Brasília: Ministério da Saúde; 2007. 2. Brasil. Ministério da Saúde. Lei n. 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 20 set. 1990. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8080.htm. 3. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria GM n. 2.488, de 21 de outubro de 2011. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes e normas para a organização da Atenção Básica, para a Estratégia Saúde da Família (ESF) e o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS). Diário Oficial da União, Brasília, 24 out. 2011. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2011/prt2488_21_10_2011.html. 4. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria GM n. 154, de 24 de janeiro de 2008. Cria os Núcleos de Apoio à Saúde da Família – NASF. 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DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S1414-49802007000200015. 137 O Mundo da Saúde, São Paulo - 2014;38(2):129-138 Conclusão são, muitas vezes, restritas a encaminhamentos entre os serviços, não havendo, na maioria dos casos, um espaço estruturado e oficial para a realização de planejamentos de ações conjuntas. Nesse contexto, diante das propostas de política de saúde brasileira, torna-se urgente a implementação de técnicas de gerenciamento – foco dado ao matriciamento, fóruns, comitês, câmaras e núcleos intersetoriais territoriais – que viabilizem a estruturação de espaços de elaboração conjunta de ações, metas e divisão estratégica de funções entre os profissionais dos diferentes equipamentos, de modo a facilitar o intercâmbio entre os saberes apresentados por cada um desses agentes. É imprescindível que os recursos de cada território sejam considerados e que parcerias concisas possam se estabelecer para proporcionar acompanhamento que responda de maneira profícua às necessidades da população e que, com isso, se possa garantir a integralidade do cuidado. Interdisciplinaridade e intersetorialidade na Estratégia Saúde da Família e no Núcleo de Apoio à Saúde da Família... trocas são restritas a alguns profissionais de uma área especifica do cuidado em saúde, no caso relatado, a Saúde Mental. Interdisciplinaridade e intersetorialidade na Estratégia Saúde da Família e no Núcleo de Apoio à Saúde da Família... O Mundo da Saúde, São Paulo - 2014;38(2):129-138 138 10. Bourguignon JA. Concepção de rede intersetorial. 2001 [acesso 27 Set 2011]. Disponível em: http://www.uepg.br/ nupes/intersetor.htm. 11. Minayo MCS, organizador. Pesquisa Social: teoria, método e criatividade. 22a ed. São Paulo: Vozes; 2003. 12. Minayo MCS. 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