José Antônio de Ávila Sacramento
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DAS VICISSITUDES E DOS TRIUNFOS DE
EDUARDO CANABRAVA BARREIROS
José Antônio de Ávila Sacramento
Nascido em Curvelo-MG, a 11 de julho de 1908, Eduardo Canabrava
Barreiros, no livro “Semicírculo - Recordações quase memórias” (José
Olympio Editora, 1977), referiu à sua terra natal como sendo “uma cidade
rude, do sertão mineiro, onde o clima, a água e o leite eram os melhores do
mundo, e suas moças as mais belas, bem como o luar e o pôr do sol”. E
continuou: “quanto à minha família era igual e diferente das outras.
Comíamos à hora certa e orávamos à noite, ríamos e chorávamos
adequadamente, assim pensávamos. Entre o desejo de ter coisas e a
impossibilidade em adquiri-las, cresci mofino, malfeito de corpo, desbotado
e mole como ninguém, diferente dos meus irmãos e dos demais meninos que
me cercavam. Na escola, onde sofri os métodos pedagógicos da época, o
estouvamento dos colegas bem dotados de físico, passei os piores dias de
minha infância. Em compensação aprendi que antes de b, p e m não se
escreve n – “por quê?” – indagaria então. Pela vida afora iria descobrir que
tudo é relativo, que toda indagação se justifica, que só a vaidade nos impede
de indagar seguidamente, receosos talvez de constatar o quanto somos
ignorantes. Talvez por isso passei a indagar de mim o que me parece íntimo,
e dos outros o que não consigo aprender comigo mesmo...”.
Newton Vieira, secretário-geral da Academia Curvelana de Letras, revela que
“o menino Eduardo perdeu o pai quando criança e passou por momentos
difíceis, tamanha era a sua pobreza. Andava constantemente descalço.
Botinas? Só nos dias de quermesse. Por isso, nele madrugou a luta pela
existência.”. Magricelo, anêmico, apanhou de todos os meninos de sua
geração, e foram essas surras que o levariam a cometer verdadeiros
desatinos, na esperança de provar a si mesmo que “não era assim tão
perrengue”1.
1
Newton Vieira, no texto “O Centenário de Eduardo Canabrava Barreiros”, publicado na Revista da
Academia Mineira de Letras, ano 85º - Volume L - Outubro, novembro, dezembro de 2008, páginas 291
a 294.
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Até a faixa dos trinta anos, “aventurou-se a diversos quefazeres, inclusive à
garimpagem na Serra do Cabral2, no Rio das Velhas e no alto do Jucu (ES)3.”.
Trabalhou em Belo Horizonte, Barbacena (na Secretaria de Viação e Obras
Públicas) e em outras cidades do interior mineiro. Depois, em 1935, foi para
o Rio de Janeiro, para tentar ganhar a vida como desenhista (comercial e
artístico) e pintor, as grandes ambições de sua vida4. Não deu certo.
Evaporadas as suas economias, achegou-se a outros desajustados da então
Capital Federal. Marginalizado, transformou-se em trapeiro. Passou fome.
Catava papel e fazia das imediações do Campo de Santana o seu quartelgeneral “onde confraternizava-se com vendedores ambulantes, bicheiros e
vagabundos, e também permutava, com guardas e varredores, frutas por
pontas de charutos. Fumava estes até quase queimar os lábios e os dedos.”.
Durante bom tempo isolou-se de todos os parentes e amigos. Preocupados
com a falta de notícias, a família enviou um emissário5 ao Rio de Janeiro com
a missão procurar pelo curvelano que há muito não dava mais notícias.
Depois de procurá-lo e não encontrá-lo no único endereço de que dispunha,
começou a indagar pelo paradeiro dele; Eduardo acabou por ser reconhecido
por Alfredo meio que por acaso, enquanto tentava se esconder ao enfrentar
a sua miserável “vida de trapeiro” pela Rua Sachet. Foi a partir daquele
reencontro com Alfredo que aconteceu uma espécie de volta de Eduardo ao
seu passado: “abraçamo-nos com lágrimas nos olhos, e arrastado por ele,
fomos almoçar, coisa que não fazia decentemente há muitos dias. Antes
mesmo de me portar a devorar o bacalhau à portuguesa, fui respondendo às
indagações do amigo, provocando-lhe exclamações de espanto ao saber de
minhas vicissitudes... Instado a dizer o que precisava, esclareci que para
alugar um fundo de loja, instalando aí uma prancheta onde pudesse
trabalhar, necessitava de no mínimo quinhentos-mil-réis, quantia inacessível
para mim. Alfredo não me deixou acabar de falar, estendendo-me o dinheiro.
Isto daria para me instalar e pagar pensão no mínimo por uns dois meses,
enquanto aguardasse os primeiros fregueses. Uma ‘vaga’, em pensão regular,
2
Fica no centro-norte de Minas Gerais, região de Várzea da Palma, Buenópolis, Joaquim Felício, Augusto
de Lima, Lassance e Francisco Dumont.
3
Referência ao Rio Jucu, no Estado do Espírito Santo. É um rio histórico, que permitiu o desbravamento
do interior dos municípios de Vila Velha, Cariacica e Viana. O rio recebeu esse nome através dos índios:
Jucu é o nome de uma árvore de canela (Cinnamomum zeylanicum, sinônimo C. verum). Canela é uma
especiaria extraída da casca do tronco da caneleira e utilizada na culinária como condimento e/ou
aromatizante.
4
Desde menino Eduardo despertou a vocação para o desenho e a perspectiva. Estudou desenho com o
engenheiro Paulo Metre e topografia com Arlindo Araújo. Recebeu lições de pintura de Alberto André
Feijó Delpino.
5
Tratava-se de Alfredo Marques Vianna de Góes, o “Fiduca”.
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custava seus ‘oitenta-mil-réis’.”. Após o almoço, por estar habituado a comer
apenas frutas deterioradas, Eduardo chegou a passar mal por ter se excedido
na quantidade da comida que foi jogada para dentro de um estômago
acostumado com a fraqueza alimentar.
A partir de então, Canabrava Barreiros alugou um fundo de loja na Rua
General Câmara, por “sessenta-mil-réis por mês, com direito a dar e a
receber telefonemas, desde que seja de negócio, somente de negócio. (...)
Além da prancheta com seu banquinho, adaptei prateleiras num caixote de
pinho, transformando-o assim em estante. Nisso consistia toda a instalação
de meu primeiro escritório de desenho, soberbo aos olhos de um ex-catador
de papel, que dias antes não tinha nem mesmo onde dormir direito. (...) Foi
aceitando trabalhos de última hora, sujeitos a prazos exíguos, que
conseguiria afinal alguma freguesia própria. (...) Era o milagre da
adaptação!”, revela-nos o próprio Eduardo.
Em 1942 casou-se com Maria da Conceição Cabral de Vasconcellos,
hipocorístico “Ceicinha”, e não tiveram filhos. No Rio de Janeiro fez muitos
amigos, entre os quais o poeta Carlos Drummond de Andrade, que dele fez
carinhosa menção num trecho de “O Observador no Escritório” (Ed. Record,
1985); dedicou-se à cartografia, e fez o nome em um escritório que foi muito
requisitado por pessoas físicas e jurídicas daquela época. No ano de 1940
fundou o Instituto Cartográfico Canabrava Barreiros. Em 31 de maio de 1967,
tomou posse no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. A sua bibliografia
é vasta. Dentre outras obras, escreveu “O Segredo de Sinhá Ernestina”, cujo
texto introdutório foi escrito por Guimarães Rosa. Com o ensaio “Itinerário
da Independência”, em 1972, obteve o “Prêmio Joaquim Nabuco” de 1974,
pela Academia Brasileira de Letras. O livro de memórias “Semicírculo”6 foi
editado em 1977. Publicou “Roteiro das Esmeraldas, a Bandeira de Fernão
Dias Pais” e “Das Buscas e Descobertas”. Escreveu também “D. Pedro,
Jornada a Minas Gerais em 1822” (1973) e “Episódios da Guerra dos
Emboabas e sua Geografia”. Os livros de Eduardo Canabrava Barreiros foram
publicados por José Olympio Editora e Editora Itatiaia.
No conjunto das boas obras de Canabrava Barreiros, destaca-se “As Vilas delRei e a Cidadania do Tiradentes” (Rio de Janeiro, J. Olympio Editora, convênio
com o INL, Brasília, 1976/Coleção Documentos Brasileiros, v. n.172). As “Vilas
6
O livro – SEMICÍRCULO, recordações, quase Memórias – foi a fonte principal usada para a elaboração
deste texto que foi concluído em 13 de agosto de 2012 e foi publicado originariamente, em versão
reduzida, no Jornal de Minas (São João del-Rei - MG, Ano XII, Edição nº 187, de 17 a 23 agosto de 2012,
página 2).
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del-Rei” são referências dele aos municípios de São João del-Rei e São José
del-Rei (atual Tiradentes). Foi o conjunto de pranchas cartográficas, os
profundos estudos e os pareceres contidos nesse livro que este articulista
utilizou como principais fundamentos para ajudar a justificar a inicial da ação
cível 062505048873-7 (Registro Civil Tardio do Tiradentes) que tramitou na
3ª Vara Cível do Fórum Carvalho Mourão da Comarca de São João del-Rei,
petição protocolizada no ano de 20057. O parecer ministerial8 e a apreciação
judicial decorrentes desta ação, confirmando ao Município de São João delRei a honra e a glória de ser a terra natal do Patrono Cívico da Nação
Brasileira, teve o mérito de pacificar antigas especulações e as mais
descabidas reivindicações a respeito da naturalidade do menino Joaquim
José da Silva Xavier9.
Eduardo Canabrava Barreiros é o patrono da cadeira de nº 34 do Instituto
Histórico e Geográfico de São João del-Rei, de onde, em vida, era sócio
correspondente. Neste sodalício, durante preleção em honra ao ilustre
historiador e cartógrafo10, na manhã de 05 de agosto de 2012, que Lúcio
Flávio Baioneta e Vilma Canabrava Baioneta, parentes dele, estavam
presentes; na ocasião, Lúcio Flávio, relembrando o homenageado, contou o
caso que se segue: corria o ano de 1971 e a TV Itacolomi11 apresentava o
programa “Mineiros Frente a Frente”, uma espécie de competição entre
cidades. Cada cidade (no caso, Curvelo e Itaúna) se apresentava com um rol
de variedades. Um dos quadros do programa – “Eu conto a verdade” –
consistia-se em contar um caso interessante e verídico acontecido na
comunidade, valendo pontuação. Naquela ocasião, Eduardo Canabrava
7
Saiba mais em: http://www.patriamineira.com.br/ver_pdf.php?id_noticia=676&id=3
Parecer disponível em: http://www.patriamineira.com.br/ver_pdf.php?id_noticia=2055&id=3
9
Sobre a gênese desta obra, o autor assim se expressou: “originou-se o presente livro no atendimento
de um apelo de edis da Câmara Municipal de São João del-Rei, tendo à frente um de seus líderes, a
Vereadora d. Alba Lúcio Lício Lombardi, cujo fervor patriótico nos comoveu. Suas palavras, repassadas
de civismo, ao nos entregar a resenha dos esforços até então desenvolvidos, na tentativa de restaurar
uma verdade histórica, não nos permitiram qualquer recusa. (...) Mas a verdadeira finalidade dessa é
estabelecer a cidadania de Tiradentes, o que julgamos também ter alcançado. Anexamos ao presente os
pareceres das mais altas instituições históricos geográficas, como sejam o Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro e o Instituto de Geografia e História Militar do Brasil, os quais enriquecem este
ensaio.”.
10
Na ocasião, Paulo Chaves Filho, sócio efetivo do IHG de São João del-Rei, titular da cadeira nº 34,
cumprindo disposição estatutária, apresentou uma dissertação em defesa do seu patrono.
11
TV Itacolomi era um dos canais pertencentes aos Diários Associados, com sede em Belo Horizonte-MG
(integrava a Rede Tupi de televisão). Fundada em 1955, por Assis Chateaubriand, a TV Itacolomi foi
inaugurada em 8 de novembro de 1955 e funcionou até 18 de julho de 1980. A primeira sede da
emissora funcionou no Edifício Acaiaca, na Av. Afonso Pena, 867. Na década de 1970, mudou-se para o
Palácio do Rádio, na Av. Assis Chateaubriand, 499 (hoje sede da TV Alterosa).
8
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Barreiros obteve a preferência do júri para a sua cidade natal, contando, em
três minutos, um caso ocorrido durante a “Revolta”, Revolução Liberal de
1842, na ponte Santo Antônio, que atravessava por sobre um rio da região
norte da então Vila de Curvelo. A ponte estava interditada e vigiada pelos
soldados do governo, ninguém podia atravessá-la livremente. Para se
comunicar, revolucionários usavam como mensageiras algumas velhas
escravas, tentando driblar a vigilância. Enviavam, pelas escravas, mensagens
escondidas dentro de sabugos de milho, varas de pescar, canudinhos de
papel ou costuradas em bentinhos, como se fossem “rezas-bravas”... Certo
dia, quando atravessava a ponte, uma escrava foi interceptada pela sentinela
“bate-pau”12, o negro Antônio, que a revistou em busca de mensagens
escondidas na carapinha ou sob as roupas. Apalpou daqui, apalpou dali e
coisa alguma foi encontrada. Suspeitando que a negra escondesse alguma
comunicação estratégica nas partes mais íntimas, o olheiro deu-lhe a
seguinte ordem: “tire a roupa!”. A negra, completamente aturdida com
aquela exigência e tomada por um sentimento de escrupulosa pureza moral,
recusou a despir-se e desandou a correr. A sentinela tomou a carabina,
disparou certeiro tiro nas costas da escrava, e correu para junto do corpo
dela para revistá-la mais detalhadamente, rasgando-lhe as vestes com
violência, ávido pelo encontro d’uma possível mensagem que ela pudesse
estar carregando. Foi aí que os seios da escrava saltaram fora; então o
guarda deparou com uma profunda marcação feita a ferro quente, em forma
de T, a mesma com a qual fora cruelmente castigada a sua mãe, pelo “crime”
de tê-lo gerado contra a vontade do senhor de “escravos-de-ganho”13;
lembrou que na sua idade mais tenra, ao sugar o leite daqueles seios,
acariciou muitas vezes aquela cicatriz da sua mãe, Tibéria. Chamou-a pelo
nome, e ela, com grande esforço, fitou-lhe a face; o vigia gritou por “Tiba!
Mãe-Tiba”, aqui é o “Tonho”. Naquele momento a velha escrava, num último
esforço, olhou, sorriu, e reconheceu-o como filho; antes que desse o suspiro
final, ela ainda teve forças para bradar um sonoro “Tooonnnho!!!...” Então,
percebendo o matricídio que havia acabado de praticar, Antônio foi tomado
por imenso desatino. Desesperado, envolveu nos braços o inerte corpo da
sua mãe, e, em desandada carreira, carregando-a no colo, galgou o corrimão
do vão central da ponte, atirando-se nos redemoinhos das águas do rio, onde
12
“Bate-pau” é termo regional que designa o cidadão comum (civil) que presta serviços à polícia em
razão da falta de homens ou de recursos públicos destinados à tarefa que deveria de ser executada por
policiais.
13
Escravos e escravas que podiam realizar tarefas remuneradas, entregando ao senhor o pagamento
recebido; saíam para as ruas, faturar algum dinheiro como vendedores de doces, refrescos, lingüiças...
Trabalhavam também como carregadores, barbeiros, artesãos e até mesmo atuavam como pedintes ou
prostitutas (embora proibido por lei, alguns senhores induziam as suas escravas à prostituição).
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os dois corpos desaparecerem para sempre... Naquela ocasião, o caso valeu
um ponto a mais para a cidade de Curvelo, que venceu a de Itaúna14.
A nobre existência de Eduardo Canabrava
Canabr
Barreiros,, como se percebe,
per
foi
repleta de vicissitudes e, também, de triunfos. Ele faleceu
aleceu no ano de 1984,
1984
vítima de complicações de uma cirurgia da vesícula. Teve uma septicemia no
pós-operatório. Chegou
hegou a confessar que “consciente ou inconscientemente
inconscientement
cometeu as suas
as próprias misérias, e que não foram poucas”.
poucas Talvez ele
tenha também se revelado um pouco nos versos do seu livro “Das Buscas e
Descobertas” (1980): “foi
“foi temendo o isolamento que me integrei na
multidão. Isolei-me
me ainda mais! Foi receando a miséria que amealhei. E me
tornei miserável!
ável! Foi apavorado ante a morte que me defendi. E acabei
matando! E pior: foi temendo o medo de ter medo que me tornei medroso.”.
medroso.
Eduardo Canabrava Barreiros
(Bico de pena de Luís Jardim, extraído do livro “As Vilas del-Rei
del
e a Cidadania do Tiradentes””, pág. XI)
14
Este relato também está registrado
gistrado nas páginas 42, 43 e 44 do livro “Semicírculo”.
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Vicissitudes e triunfos de Eduardo Canabrava Barreiros