Baumgart Baumgart Por: José Roberto Vieira José Roberto Vieira Baumgart Usando máscaras etéreas de mentiras reais, os cidadãos de Wünder vestiam–se como personagens do teatro dos vampiros. Meras sombras e sussurros de um poder paralelo golpeando a luz. - Rápido –dizia o patriarca da família ao cocheiro – Vamos perder as melhores mercadorias. – os cavalos aceleraram subjugados pela dor do açoite. - Sim senhor – respondeu o serviçal – Chegaremos a tempo, Senhor, não se preocupe. – ele abaixou o chapéu vermelho sobre o rosto e acelerou, fazendo os cavalos mecânicos que levavam a carruagem acelerarem. Máquinas desalmadas, não sentiam a força dos golpes, e tudo que faziam era andar. Sua carapaça brilhava sob os archotes e postes da cidade, que, com suas luzes artificiais, revelavam as faces mentirosas de um povo egoísta e perverso. Trilhos cortavam as ruas, formando uma complicada teia metálica. Vista de cima, parecia um poliedro sinistro, pronto para abraçar a cidade lentamente. Eles tremeram, prenunciando a chegada do colosso férreo. Distante, na orla da cidade, o grito da locomotiva quebrou todas as conversas e rachou todos pensamentos. A carruagem que levava os nobres parou embaixo da ponte de aço e aguardou. Como um monstro demoníaco rasgando o véu de maya, dobrando o tempo à sua vontade e a vida ao seu desejo, a locomotiva adentrou Wünder, humilhando o cidadão comum com baques de aço sobre a terra. - Eles chegaram – disse o patriarca, tirando Cartola. – Rápido, homem! Os Escravocratas chegaram! A névoa rastejava a seus pés, Nebeldumpf, névoa do vapor, a energia que movia aquelas monstruosidades, fazendo-as ter vida própria num mundo sem vida. Wünder era um milagre arquitetônico, templos gigantescos adornados com arabescos, arcos, torreões e gárgulas, rosáceas e estátuas de santos. O templo de Shoah, com suas sessenta e nove torres e o descomunal obelisco perolado, podia ser visto de outros reinos, a anunciar o poderio da fé. Tudo na cidade era grandioso, extremo, abusivo. Vinho, mulheres, festas, aço e bronze, vapor e névoa, carvão e lenha. Carros, as novas maravilhas da ciência, passavam, impressionando o populacho; motos, absurdos da humanidade, eram disputadas por jovens ricos e mimados. O exército observava, guardava, com suas armaduras de placas cheias de detalhes dourados, com mascas ocultando suas faces. E os trens? Cruzavam a cidade, estuprando-a por trilhos maculados de dor e desespero. Eram eles que agora passavam, fazendo os trilhos vibrarem terrivelmente. Cuspiam fumaça preta na cidade pintando-a da cor do céu, mais tarde escravos seriam mandados para José Roberto Vieira Baumgart lavar as torres, morreriam intoxicados, e novos escravos seriam trazidos pelos trens para lavarem a cidade enquanto novos trens passavam, trazendo novos escravos. Pelas frestas dos vagões, eles viam os torreões negros apinhados de outros escravos. Era um círculo negro de sujeira e morte, abaixo da riqueza e das máscaras de sombras, que se repetia e repetia, em palavras usadas insistentemente em cada parágrafo. - Levantem-se! – ordenou o feitor, estalando o chicote. – Levantem, desgraçados! A locomotiva apitou ao parar na estação, seus vagões centrais se abriram. Era um sonho dantesco, tinir de ferros, estalar de açoites, legiões de homens negros como a noite. Sua pele era preta (de carvão ou natural?), os corpos um dia fortes enfraqueciam e definhavam, outrora risonhos e camaradas, eram agora uma raça fraca e subjugada. Seus rostos, um misto de fera e homem, não passavam de faces maltratadas de bichos dominados. Que tinha acontecido com aquele povo? Clamavam pela mãe-terra, mas, sem poder ouvi-la, esqueciam-se de seu orgulho, seu poder. Pretos, negros, escuros, honrados, corajosos, valentes, senhores de sua liberdade, apagada pelo homem branco de cartola. De fora ria-se a orquestra irônica, jogando preços pelas cabeças tontas. – Cem drakkars1 pelo filhote! –gritou um mercador. –Setenta pela fêmea! –gritou outro. O trem apitou. O chicote estalou alto novamente. – Um lindo exemplar de força e coragem! –gritou o feitor, puxando um jovem para frente. – Músculos sem alma ou cérebro, tudo que um patrão quer! Excitados pela mercadoria, os compradores avançaram. Alguém levou um soco, outro levou um chute, uma criança foi derrubada no chão e pisoteada, para desespero da escrava que a seguia. Uma espada foi sacada, uma mancha de sangue pintou os paralelepípedos. A carruagem da nobre família chegou nesta hora, sem poder passar, estacionou distante. – Eu mandei você correr! –gritou o patriarca, colocando a cabeça pra fora da janela e apontando para o cocheiro. Não havia ninguém sentado ali. O homem de vermelho tinha sumido. Do trem, do tablado, do frio, os escravos tremeram de medo. Em nenhum lugar de Nordara a compra e venda de escravos era tão selvagem quanto em Wünder. – Calma! –berrou o vendedor, a multidão se afastava. – Não precisam temer, senhores, vamos aos negócios? –os nobres baixaram as armas, ainda com os olhos fixos no feitor. Ou em algo atrás dele. 1 O dinheiro usado no reino, um drakkar equivale a R$10,00 José Roberto Vieira Baumgart Ele se virou, pronto para anunciar a mercadoria. Parou atônito, medindo a figura atrás de si. Primeiro achou tratar-se de um golem, um dos inúmeros guardas de aço de Wünder. Mas não era. Assemelhava-se a uma armadura de placas, vermelha, cheia de tubos e engrenagens, rangia alto e tinha uma espécie de escapamento nas costas, de onde saía fumaça. Os olhos prateados fitavam o homem com ira, apesar da inexpressão. A máscara era uma aberração sorridente, envolta por um elmo meio triangular com abas levantadas e chifres. Em cada mão trazia uma espada: uma curta de cabo perolado, outra longa de cabo ébano. O Espectro Rubro. O mais temido abolicionista de Nordara, o libertador, aquele que se lembrava que o povo negro era um igual e não o deixava se esquecer: lutem. Ninguém sabia se era negro ou branco, vermelho ou amarelo, azul ou cinza. O que importava, é que ele fazia alguma coisa. Com um rápido golpe com as espadas, o Espectro quebrou as correntes que prendiam os escravos. O primeiro deles jogou o corpo para o lado empurrando o feitor para dentro da multidão. Alvoroçadas, as pessoas correram, pisoteando o homem com a mesma crueldade que havia matado o menino segundos antes. – Peguem o Espectro!- berraram, apesar do medo. Não se aproximavam, esperavam a guarda chegar para prendê-lo. O vendedor tentou puxar a arcabuz da cintura, mas o inimigo foi mais rápido e cortou-lhe o braço com o sabre negro. Girou o corpo com velocidade espectral e atirou a mesma espada num guarda que vinha em sua direção. A arma, presa por uma fina corrente que saía de seu pulso mecânico, voltou para o atacante obediente. Algo criou uma sombra sobre a multidão. Cem cabeças voltara-se para o céu e viram, aterrorizadas, mais um inimigo se aproximando. Inimigo dos homens, amigo da liberdade. Era um pássaro. Mas, assim como o Espectro Rubro, não era um pássaro de carne e sangue: suas penas eram feitas de malhas de aço sobrepostas, seu bico era de ferro e seus olhos o mais puro vidro escurecido. Ela não guinchava. Sobrevoava em silêncio a multidão estarrecida. Arremetendo agilmente, ela agarrou um homem qualquer e o ergueu, sem que seus protetores pudessem reagir. Um deles tentou disparar uma pistola, mas a bala resvalou nas camadas de metal e caiu novamente no chão. José Roberto Vieira Baumgart Apreciando o pavor que causara, o Espectro sorriu. À maneira das máquinas. Seus escapamentos soltaram mais vapor e ele apitou como se fosse uma locomotiva, empunhando as espadas, triunfante. O ar tremeu. Uma bola de fogo explodiu violentamente, erguendo do chão o trem dos escravos. Casas queimaram, escravagistas rasgaram-se em pedaços borbulhantes, destroços quentes atravessaram corpos. Uma viga abriu ao meio um soldado, um telhado soterrou algumas senhoras da nobreza, que tinham vindo só para assistir e agora eram a cena principal. - Linkululeko! – gritou o Espectro. - Linkululeko! – respondeu o escravo que havia empurrado o feitor na multidão. Empolgados com a liberdade e a possibilidade de lutar, os outros o seguiram em uníssono: - Liberdade, Linkululeko! A locomotiva tombou, levando consigo os vagões num jogo de dominó brônzeo e cruel, que foi derrubando prédios e casas ao longo dos trilhos até as montanhas. O Espectro Rubro observava, satisfeito. Ao seu lado, o agora líder que empurrara o feitor, ria-se fartamente da destruição e da dor de seus inimigos. – Com os cumprimentos da Maffia Rouge. – sussurrou a voz metálica do Espectro. A escuridão avançou quente, plácida, abraçando-os carinhosamente. Quando a luz voltou a acender nada mais restava. Além de uma cidade de rosto cortado e orgulho ferido. Marcus Baumgart, o escravo, mergulhou na escuridão. E dela fez parte para sempre… José Roberto Vieira