MEMÓRIAS DOS APOSENTADOS JOSÉ ROBERTO MARTINS SEGALLA PROMOTOR DE JUSTIÇA APOSENTADO Assumi o cargo de P.J. Substituto na primeira quinzena de maio de 1986. Tendo sido aprovado em 12º lugar, quando fui chamado para "escolher" minha sede e sendo originário de Bauru, fato conhecido porque possuia um irmão, mais novo seis anos em idade mas bem mais "velho" no Ministério Público ( José Haroldo Martins Segalla, hoje Procurador de Justiça e momentaneamente atuando fora da carreira ), não foi preciso que eu declinasse minha preferência, tendo o Dr. Optaciano Capistrano de pronto dito, assim que levantei-me de meu lugar, "é Bauru, não é Segalla?", bastando-me apenas assentir. Naquele ano o Ministério Público inovou, enviando de início todos os Promotores Substitutos para suas sedes, onde colegas experientes foram designados para servirem como "tutores" durante alguns dias de aprendizado. Como vim "para minha casa", onde, por força do relacionamento do meu irmão eu já era conhecido da maioria dos colegas, tive um início bem facilitado. Isto foi muito importante para mim vez que eu não tinha nenhuma experiência forense. Eu já tinha 38 anos de idade naquela ocasião e estava formado em Direito a menos de um ano e meio. Até então tinha tido como profissão a engenharia mecânica e o magistério superior na Faculdade de Engenharia. Por mais de quinze anos eu havia atuado na área da engenharia de produção e era sócio de uma empresa especializada na construção de prédios industriais. Meu trabalho na empresa era fazer o projeto de localização das máquinas ( plant lay out ) e antes de entregarmos o prédio pronto fazer as instalações delas. Para tanto especializei-me nos Estados Unidos ( New York University ) e realizei mais de doze cursos de especialização. Não é preciso dizer que estava feliz, era plenamente realizado, ganhava bem e tinha reconhecimento da minha capacidade de trabalho, não só da sociedade como dentro da classe, tendo sido Presidente da Associação dos Engenheiros e Arquitetos de Bauru. Vem então a grande pergunta: "Por que fazer Direito?" e mais: "Por que prestar concurso para o M.P.?". Fui fazer Direito por cultura. Tendo ocupado cargos de direção em empresas e na Universidade ( fui diretor administrativo da Fundação Educacional de Bauru, hoje UNESP/BAURU, que à época possui quase cinco mil alunos ), comecei a perceber que eu precisava de uma formação humanística para lidar melhor com pessoas. Pensei em fazer Psicologia, mas o horário e as exigências eram incompatíveis com as atividades profissionais que eu mantinha. Sobrou fazer Direito, um curso mais "leve" e acessível. Durante o curso muitos professores e colegas estudantes sugeriamme fazer concurso, alegando que eu compreendia muito bem o que estudava e, principalmente, era capaz de explicar o que havia aprendido com mais eficiência do que o professor. Isto ocorria não por eu ser um gênio e sim porque tinha muita experiência no magistério, onde atuava ha mais de 18 anos. Essas sugestões nunca me seduziram simplesmente porque estava feliz com minha vida de engenheiro. Ao formar-me, entretanto, a economia nacional estava em frangalhos ( 1985 ) e a área profissional em que eu atuava sofria com isso, o que levou-me a pensar que não haveria mal nenhum em prestar concurso para algo que eu também aprendera a gostar e que tinha boas perspectivas pela estabilidade que oferecia. De mais a mais, o que custava tentar? Achava que não iria passar, já que não tinha muito tempo para estudar. Mesmo assim, escrevi-me. Passei ! Eis-me então a tomar posse, sem nenhum conhecimento prático do exercício da profissão, que naquela ocasião não oferecia nenhum “cursinho”, senão umas poucas palestras de não mais do que uma ou duas horas de duração. Graças aos excelentes assessores do P.G.J.( Paulo Frontim ), Renatinho e Antonio Augusto, que entenderam meus problemas, fui designado para substituir em uma das Varas de Acidentes do Trabalho, no Fórum João Mendes, onde havia muitos colegas que poderiam me ajudar. Cheguei cedo no primeiro dia de trabalho. O “gabinete” era uma sala grande, com diversas escrivaninhas uma para cada colega. Um funcionário ( nenhum colega havia ainda chegado para o trabalho ) indicou-me a escrivaninha que me cabia, a qual estava lotada de processos a ponto de não se ver o tampo! Curioso, comecei a folhear alguns deles, “recheados” de fotografias, radiografias, laudos médicos, etc. O tempo foi passando, os colegas foram chegando, eu fui me apresentando e, de repente, o fiel entrou na sala e perguntou “Quem vai substituir na Vara tal?”. Levantei a mão e ele então disse; “A sessão já está instalada, aguardando o senhor”. Acompanhei-o . Ao chegar na sala de audiência, cumprimentei a todos, educado que sou. Sentei-me. Ficaram todos me fitando, sem ninguém dizer nada. O escrevente de sala então falou: “Dr., o senhor está com a palavra” e entregou-me o processo em julgamento. Peguei-o e como nunca havia lidado com nada daquilo, abri-o na primeira página e comecei a ler a inicial. O processo, em três volumes, deveria ter mais de 600 páginas! Felizmente o Juiz percebeu tratar-se de um absoluto neófito e salvou-me dizendo “Dr., o senhor gostaria que eu lhe concedesse um prazo de cinco dias para manifestar-se?”. Agradecendo em silêncio aos deuses dos ignorantes, respondi que sim e a sessão foi encerrada. Voltei à sala coletiva e contei a um colega o que havia ocorrido. Ele então me disse: “Não se acomode e nem insista com isso de aceitar ou pedir prazo para manifestação porque, olhe as pilhas de processos que você tem para se manifestar” e apontou-me a mesa lotada. E prosseguiu:” Cada processo que te derem prazo ou que você pedir prazo vai vir imediatamente para você, aumentando continuamente essas pilhas”. Em seguida, gentil e generosamente passou a me ensinar como trabalhar, principiando por dizer que os processos devem ser folheados do fim para o começo e não do começo para o fim como eu havia feito. Rapidamente fui anotando, “quando o despacho for assim, escreva isto; quando o despacho for assado, escreva aquilo” e assim por diante . Alertou-me: “fique atento com tal coisa pois tem muito advogado malandro atuando em acidentes do trabalho; quando você perceber coisas assim, faça tal coisa”. Infelizmente não registrei na memória o nome desse verdadeiro anjo da guarda ministerial, até porque fiquei pouquíssimos dias nessa substituição, mas em compensação registrei o nome do Juiz com quem trabalhei naqueles dias, por um episódio singular. Entrei para uma das audiências e “flagrei” o advogado explicando ao Juiz, Dr. Irineu Pedrotti, como que determinada máquina operatriz trabalhava, justificando assim o acidente sofrido por seu cliente. Ouvi até o fim e quando ele terminou, pedi licença ao Juiz e disse que lamentava informar que a máquina não funcionava daquele jeito, passando então a explicar aos dois o verdadeiro funcionamento da complexa máquina. Tanto um quanto outro ficaram me olhando boquiabertos. Foi então que esclareci que eu era também engenheiro mecânico e que me havia pós-graduado em engenharia de segurança do trabalho, tendo atuado como consultor em diversas empresas que utilizavam aquele tipo de equipamento. O Dr. Pedrotti além de agradecer a intervenção, disse-me que estava escrevendo um livro sobre acidentes e segurança no trabalho e perguntou-me se poderia ajudá-lo conseguindo algum material técnico que complementasse o que ele estava escrevendo. Ajudei-o conseguindo para ele o que ele precisava e passamos a ter um excelente relacionamento enquanto durou a substituição, o que me foi de extrema utilidade para superar o trauma de atuar em algo que eu ainda desconhecia. A superação, contudo, foi conseguida com três horas de sono por dia, durante sete dias da semana, e o resto dedicado aos processos e aos estudos. Não sucumbi. Prossegui e cheguei à aposentadoria quase vinte anos depois.