NEM ANJOS, NEM DEMÔNIOS: APENAS HOMENS (LAGES, 1840-1870). Nilsen Christiani Borges No dia 24 de maio de 1866, aproximadamente às 9 horas da manhã, Damaso Antunes Lima mandou Joana, sua escrava, rebocar um muro. Alegando que estava muito frio para fazê-lo, Joana não fez o serviço mandado. Quando Damaso estava preste a castigar sua escrava, seu marido José, de 30 anos, natural da Costa da África, tentando protege-la, perguntou o motivo do castigo, pedindo em seguida que seu senhor os vendesse. Sentindo-se provavelmente desafiado em sua autoridade, o senhor decidiu castigar os dois escravos. Neste momento, José pegou um pedaço de pau e deu uma grande “bordoada” na cabeça de Damaso e, fazendo-o cair no chão, repetiu por várias vezes até que apareceu um sobrinho da vítima e o salvou. José conseguiu fugir, reaparecendo mais tarde com um ferimento feito por facão em seu braço, alegando ter sido feito pelo seu senhor. Em novembro de 1867, José foi julgado por júri popular e absolvido pelo juiz Francelizio Guimarães.1 Em todo o período em que perdurou a escravidão no Brasil, o relacionamento entre escravos, trabalhadores livres e senhores de terras e homens, foi marcado pela constante tensão em uma fina e frágil teia de relações. Revoltas, insurreições, assassinatos e fugas foram fatores presentes no sistema escravista, assim como também certos acordos, concessões, negociações, chantagens, cumplicidade, solidariedade, laços afetivos, entre outros. Diversos estudos recentes comprovam que os cativos, longe de serem apenas simples vítimas das atrocidades de seus senhores ou guerreiros e assassinos que escolhiam o crime e a fuga para resistir ao cativeiro, foram sujeitos e agentes de suas próprias histórias. Assim, estes estudos demonstram os caminhos e as estratégias percorridas pelos mesmos na busca da manutenção e reprodução de sua cultura, da obtenção de liberdade e/ou de melhores 1 condições de sobrevivência, ou qualquer outro benefício para seu proveito próprio e, em algumas vezes, de seu grupo. 2 Contudo, é pertinente destacar que embora o crime realmente não tenha sido o primeiro ato humano do escravo, também foi um recurso amplamente utilizado pelo cativo, fosse este motivado pela quebra de acordos e direitos consuetudinários, rompimento brusco de relações afetivas, distanciamento forçado de sua terra natal, resistência a castigos físicos que percebiam como excessivos, entre outros. 3 Não é nossa intenção nesta comunicação homogeneizar o sistema escravista brasileiro e nem super-dimensionar os crimes cometidos por escravos e senhores, mas abordar alguns casos que nos dão pistas sobre os padrões de convivência entre a escravos, libertos, trabalhadores livres pobres e pequenos lavradores na região de Lages, Santa Catarina, no período de 1840 a 1870. Ora, por muito tempo a região de Lages, assim como a antiga província de Santa Catarina como um todo, foi tradicionalmente apontada pela historiografia como região onde a escravidão teria sido caracterizada como “peculiar” e “insignificante”, e cujo inexpressivo contingente escravo teria facilitado uma relação atípica ao grande sistema escravista brasileiro. Tradicionalmente, a historiografia catarinense apontou que, embora tivessem ocorrido alguns crimes praticados por escravos (roubo, homicídio, bebedeira, fuga, etc.), o relacionamento entre senhores e escravos na província teria sido marcado por um tratamento humano e benigno. Como prova, os cativos, em sinal de afeição e gratidão, adotariam os sobrenomes de seus proprietários, e após “ganharem” a alforria preferiam continuar servindoos, mesmo sem remuneração. 4 Tais afirmações têm como base a leitura acrítica de algumas fontes oficiais que parecem comprovar essas tendências, conforme se observa nas Fallas e Relatórios do Presidente da Província de Santa Catarina, como neste exemplo de 1840: “Não pode deixar de se concluir attentos os tempos que tem decorrido, que existe nesta província mais alguma moralidade do que em muitas das outras, e como o maior número de seus habitantes he de raça branca, também se pode tirar alguma conclusão favorável a esta raça sobre as de cor”. [grifo nosso]5 Ao relatar um baixo índice de criminalidade em Santa Catarina, com destaque para a desproporção numérica entre o contingente branco e o não-branco6, naqueles “tempos que tem decorrido”, o Presidente da Província buscava apresentar uma pretensa harmonia social em Santa Catarina em um período conturbado pelo medo de levantes e tentativas de 2 revoltas escravas que surgiram em várias partes do Brasil na primeira metade do século XIX.7 O Relatório do Presidente de Província expressava a tentativa de mostrar que a situação de Santa Catarina a diferenciava das demais províncias brasileiras. Considerando, neste período, a difusão da política de colonização do Império, acreditamos que, ao apresentar com cores mais suaves os índices de criminalidade da província, esta pudesse trazer algum atrativo para a inserção de imigrantes, haja vista que os discursos voltados para a transição da mão-de-obra escrava para a livre já estavam bem difundidos em Santa Catarina na segunda metade da década de 18308: Algumas características da população negra em Lages No período de 1854 a 1865, a região dos Campos de Lages contava com uma média populacional de 1.324 escravos, que correspondia a um percentual médio de 19,4% da população lageana. O contingente de livres e libertos, por sua vez, apresentava uma média de 1.545 almas, correspondendo, então, a um percentual de 20,1%. Por si estes dados nos revelam que a população negra na região nunca chegou a ser tão insignificante como apontaram anteriormente, uma vez que somado os dois contingentes, podemos observar que esta chegou a uma média de 2.870, correspondendo a 37,4%. Em um período de 11 anos, o quadro populacional demonstrou uma queda da população escrava de 19,5%, em 1854, para 15,1%, em 1864, enquanto o contingente de “pretos e pardos”, por sua vez, aumentou de 19,5%, em 1854, para 29,5%, em 1862. 3 Gráfico : Movimento populacional em Lages em números absolutos (1854-1864) 10000 9000 8000 7000 6000 5000 4000 3000 2000 1000 0 1854 1855 1856 1857 Brancos Livres 1858 1859 1860 Pretos e Pardos 1861 Escravos 1862 1863 1864 Total Fonte: Ofícios diversos do chefe de Polícia para o Presidente da Província (1854 a 1862) acervo n. º 1/ Estante n. 2D. Arquivo Público do Estado de Santa Catarina. Embora a queda percentual sugira a diminuição da população escrava, esta deve ser percebida pelo aumento da população livre, como se observa no gráfico acima. Desta forma, percebe-se, através dos números absolutos, a continua inserção de cativos nesta sociedade, ao ponto que também demonstra que o tráfico interno pós 1850 não teve grande impacto na saída de escravos da região.9 Uma leitura detalhada em uma série de 150 processos de inventários, escrituras de compra e venda de escravos, escrituras de liberdade e registros de batismos, referentes ao período, demonstra que tanto o tráfico interno de escravos quanto a reprodução natural foram processos paralelos utilizados pelos proprietários lageanos para a manutenção de seus plantéis.10 Não foram encontrados indícios que pudessem comprovar que Lages estava participando diretamente no tráfico ilegal de escravos, embora foram encontrados nos referidos documentos, embora que poucos, casos de presença de escravos com idade que levantam a hipótese que teriam sido trazido após as leis de 1830 e 1850. O mais provável é que estes cativos foram adquiridos aleatoriamente através do tráfico interno, pelos tropeiros de passagem na região. Sabe-se, neste sentido, que grande parte da escravaria comercializada em Lages provinha do mercado paulista, sendo este sim comprometido com o tráfico ilegal, contando com uma complexa rede de contrabandistas de escravos voltada principalmente para as fazendas de café da região do Vale do Paraíba. É pertinente considerar a venda ocasional de escravos africanos não absorvidos no comércio com as fazendas cafeeiras, 4 O aumento do contingente classificado como “Pretos e Pardos”, a primeira vista, pode causar a impressão de que em Lages foi grande o número de escravos alforriados, além da constatação de que os libertos estariam permanecendo na região após terem conseguido a liberdade11. Contudo, foram apurados, através da leitura de inventários e escrituras de liberdade, 60 casos de alforrias em um período correspondente a 25 anos (1840 a 1865), libertando em média 2,5 escravos por ano. Estes dados apontam para um reduzido número de ocorrências de alforrias em Lages, principalmente se consideramos que, segundo Helga Piccolo, dos 90 inventários da cidade de Pelotas, no período de 1850 a 1855 (15 anos), 16 processos alforriaram mais de 80 escravos (5,3 por ano). Warren Dean, por sua vez, aponta que em Rio Claro, 43 escravos receberam liberdade condicional no período de 1846 a 1856 (10 anos), aproximadamente quatro por ano.12 É pertinente destacar que 43,2% dos casos de alforria estavam vinculados a algum tipo de condição que o “alforriado” deveria cumprir antes de obter sua liberdade por completo, prática comum no sistema escravista brasileiro, demonstrando o constante desejo senhorial de evitar uma ruptura dos laços mantidos com os escravos na intenção de controlálos mesmo após a liberdade.” Desta forma, é possível afirmar que o crescimento deste contingente em questão não estava condicionado exclusivamente à inserção e a permanência de escravos forros, assim, como também é possível intuir que não se tratava apenas da reprodução natural deste contingente, dado o aumento constante a cada ano. A hipótese mais provável é que Lages estivesse recebendo um fluxo continuo de migrantes não-brancos, sendo tanto livres como libertos, que buscavam na região maiores oportunidades de trabalho e acesso a terra, tornadose agregados, camaradas e/ou jornaleiros, além de pequenos proprietários de terras e gado.13 A divisão de trabalho na região girava em torno, direta ou indiretamente, da atividade agropastoril, destacando-se principalmente as funções de campeiro, roceiro e tropeiro, que consistiam em desempenhar toda a rotina da lida com o gado, como levá-lo para as diferentes pastagens, capturar as reses fugitivas, castrar os novilhos, construir açudes, dar sal, curar bicheiras, construir currais e galpões, fazer marcação com ferro quente, construir muros de taipa, caçar onças e pumas, tosquear ovelhas, conduzir os animais até os locais de venda ou abate, plantio de gêneros de subsistência como também à preparação e cuidados com os pastos de invernadas (queimar as pastagens secas no final do inverno). Além destas funções, também tinham destaque a de ferreiro, pedreiro, servente, marceneiro, sapateiro e serviços domésticos (cozinheira, lavadeira, mucama, etc.).14 5 De vítima a réu: alguns casos dos processos crimes: Dos processos crimes referentes ao período de 1855 a 1870, foram apurados 38 casos, constando escravos, libertos e trabalhadores livres pobres fossem como réus, vítimas ou testemunhas/informantes. Destes, 17 referiam-se a crimes diversos (injúria, deserção, etc.), enquanto que 21, que nos interessam no momento, referiam-se a assassinato, seqüestro (roubo de escravo), castigos excessivos e re-escravização de libertos, conforme tabela abaixo: Tabela: Relação de Processos Crimes por vítima, réu e tipo de crimes cometidos: Réus Senhores Ag/Cam Escravos Outros Total Vítimas Escravos Senhores Negros libertos/Livres Assassinato Sequestro castigos Assassinato roubo Assassinato re-escravização --2 2 ----1 3 2 --------2 --------3 3 1 --------1 ------2 2 2 4 3 5 3 Fonte: Conjunto de Processos Crimes de 1855 a 1870. Deposito do Fórum de Lages. Obs.: Ag/Cam: Agregagados/Camaradas; Cast/Exc: Castigos Excessivos. Um caso que nos chamou atenção foi a denuncia de que o Capitão José Marcelino mantinha em cativeiro dois crioulos livres, Marcelino e Bernadino. Filhos dos libertos Bento Garcia e sua esposa Joaquina Ignacia, foram batizados como sendo livres, conforme translado da certidão de batismo de Desterro, presente no processo. Como defesa o capitão alegou que o denunciante, o “preto” Manoel Luiz, era um criado da casa de Henrique Ribeiro Córdova, com qual tinha uma disputa de terras, e que fez tal denúncia a mando de seu patrão com o interesse de prejudicá-lo. Além disso, afirmou que as duas crianças teriam sido batizadas pela mãe Joaquina como livres sem sua autorização, e que Joaquina na verdade ainda era sua escrava. O processo foi julgado improcedente. Em 27 de maio de 1857, o Capitão José Marcelino inverteu a situação, abrindo um processo contra Manoel Luiz por calúnia.15 O que chama a atenção neste processo em primeira instância são os personagens envolvidos. Ora, um Capitão da guarda foi acusado por um liberto de manter no cativeiro duas crianças que seriam por direito livres, filhos de pais libertos. Notoriamente era comum na época a confusão de um indivíduo negro livre ou liberto com escravo fugido, correndo, assim, o risco de voltar ao cativeiro. Por isso, também era comum que os mesmos andassem constantemente com cópias de suas escrituras de liberdades e registro de batismo consigo, e em caso de estas escrituras terem sido lavradas em outras províncias, deveriam ser transcritas 6 no cartório da cidade onde se encontrava no momento para que se tornar-se público que as pessoas às quais os documentos se referiam não eram escravos fugidos.16. Por outro lado, o réu acusou seu denunciante, que era “criado” de seu “desafeto”, de servir de “testa-de-ferro” para caluniá-lo e desmoraliza-lo publicamente. Talvez um ataque direto de Henrique Córdova pudesse levantar dúvidas por conta dos interesses envolvidos, daí o uso de seu criado. Contudo, poderia ser também um exemplo de solidariedade entre o liberto com os pais das crianças, uma vez que os mesmos estavam presos a algum laço servil com o acusado. O Capitão José Marcelino chegou a afirmar que a mãe das crianças não era liberta, e que teria ido a Desterro registrar as crianças como se fossem livres sem a sua prévia autorização. Ora, como a mesma teria conseguido se deslocar para tão longe sem ser denunciada como fugida? E como conseguiu convencer ao pároco local que ela era liberta (ou até mesmo livre) sem apresentar os documentos necessários, tanto para o batizado das crianças, como para a própria circulação da mesma em outra localidade? Em janeiro de 1858, Dionísio, que era escravo fugitivo de Morrete, Paraná, foi aceito como camarada nas terras do lavrador Pedro Alexandrino Pereira, no “Campo do Buitá Verde”, Campos Novos. Dois dias depois, no dia 31 de janeiro de 1858, Dionísio foi encontrado por Florentino Franco, provável capitão-do-mato que estaria em seu encalço. Resistindo a captura, o escravo reagiu matando-o e fugindo em seguida. Interrogado, Pedro Alexandrino alegou que Dionísio tinha se apresentado como liberto ou livre, e que o aceitou como camarada, pois precisava de um domador.17 Em 1868, o liberto Antonio José Martins, pedreiro, natural e morador de Castro, Paraná, foi preso em Curitibanos por estar em “companhia” de um casal de escravos fugidos. No momento da prisão, Antonio reagiu e acabou ferindo o inspetor de quarteirão Salvador Hilário Bruno.18 Entre os dois casos pode-se inquirir se tratava de casos de solidariedade entre libertos e livres para com escravos, acobertando-os, ou se estes aproveitaram da situação dos fugitivos para obter mão-de-obra sem maiores ônus. É certo que Pedro Alexandrino alegou não saber a verdadeira condição de Dionísio, mas será que era comum empregar um camarada sem ter documentos que comprovasse que se tratava mesmo de uma pessoa livre ou liberta, haja vista, como apontado acima, toda a necessidade na época de se portar tais documento sempre a mão? No processo de Antonio, não aparece se o mesmo sabia da condição do casal que o acompanhava, mas diante de sua reação pode se intuir que sim. Sendo pedreiro, 7 Antonio provavelmente teria ido a Lages para trabalhar nas obras da Igreja Matriz, e seria natural que necessitasse de aprendizes e serventes. Outro caso que chama atenção foi o desaparecimento do preto liberto Reginaldo, camarada de José D'Avila. De acordo com o processo, reaberto em julho de 1852, as testemunhas afirmaram que era de conhecimento público que Reginaldo fora assassinado por D'Avila e por um outro camarada, chamado José Riosca. O crime teria acontecido quando D'Avila soube que Reginaldo pretendia ir embora. Tentando impedir que isso acontecesse, mandou seu camarada Riosca atrás de Reginaldo alegando que este não poderia ir, pois era seu escravo. Podemos considerar duas situações neste caso. Primeiro, que Reginaldo considerando-se liberto, ainda devia cumprir algumas condições impostas em sua carta alforria. Segundo, que, sendo Reginaldo livre ou liberto, estava do mesmo jeito sob o julgo de D’Avila, que não queria abrir mão dele. Segundo Paulo Pinheiro Machado, o homem livre pobre, fosse ele descendente de africano, indígenas, mestiço e até mesmo português, e que desempenhava funções como peão de estância ou agregado, estava preso ao poder dos grandes fazendeiros por uma série de obrigações, sendo uma característica do século XIX, de que a maior parte da força de trabalho era fixa, nascia e morria sob os mesmos patrões.19 Considerações Finais: Como afirmamos anteriormente, o crime e a violência não eram artifícios únicos do escravo como ato humano, e nem mesmo como ato desumano de proprietários sádicos, mas não por isso deixou de ser utilizado pelos mesmos. Antes, o crime e a violência podem ser percebidos como instrumentos recorrentes frente a uma situação de dominado e dominador em toda a história do trabalho, utilizado pelos mais variados tipos de trabalhadores e patrões. Embora o número de processos crimes levantados para esta comunicação seja apenas uma pequena amostragem, podemos levantar alguns pontos sobre o funcionamento da sociedade lageana e os padrões de convivência. Se por um lado tradicionalmente a historiografia apontou que as lidas pastoris não necessitavam de muitos trabalhadores, enfatizando uma pretensa inadequação do emprego conjunto de mão-de-obra livre de camponeses pobres com a escrava,20 estes poucos casos, já nos fornecem indícios que esta assertiva não se aplicava em Lages, assim como também 8 demonstram que o tratamento dispensado aos escravos não era caracterizado como “humano e benigno”, em uma relação atípica ao grande sistema escravista brasileiro. Neste sentido, o que se pôde apreender é um esboço do quadro social em Lages, onde trabalhadores livres pobres, pequenos lavradores, libertos e escravos dividiam os espaços de trabalho, sendo que em alguns momentos compartilhavam, solidarizando-se como parceiros e cúmplices, e em outros disputavam em conflitos que cominavam em crimes. Além disso, o roubo de escravos e a re-escravização de libertos levantam a importância da mão-de-obra escrava na região. É certo que devemos considerar que os escravos roubados poderiam estar sendo vendidos para outras regiões, contudo, nos três casos de re-escravização levantados às vítimas permaneceram em poder de fazendeiros locais. Por fim, resta-nos indagar sobre os caminhos percorridos por estes trabalhadores em Lages. Certo é que as condições de trabalho enfrentadas por estes indivíduos estavam atreladas à condição precária em que se encontravam na hierarquia social: fossem escravos ou não estavam submetidos ao julgo dos grandes proprietários de terras e de homens. Contudo, as relações não apareciam de forma homogênea para todos. O liberto que permaneceu atrelado ao seu senhor, não por gratidão, mas por falta de opção, fosse devido a condições expressas na alforria, ou simplesmente para não perder o que havia conquistado (os laços de compadrio e parentesco e as relações de solidariedades, etc.); O escravo que moveu um processo contra seu senhor para obtenção de sua liberdade, ou que, com ajuda de terceiros, conseguiu levantar um pecúlio; O pequeno lavrador que abrigou um escravo fugido, colocando-o como seu camarada ou agregado; O escravo que agrediu seu senhor ou a outros como resposta a castigos e violências excessivas; O camarada que roubou gado de seu patrão; O escravo que também roubou para assim completar seu pecúlio. Estes casos, entre outros que não foram apresentados aqui, aparecem como estratégias para alcançar a liberdade, facilitar o acesso a terra, iniciar uma pequena criação, e dessa forma, com essas estratégias, acender socialmente, revertendo sua condição de explorado para, em muitos casos, explorador, ou mesmo simplesmente obter melhores condições de sobrevivência, para si ou para seu grupo. 1 Sumário Crime de Denuncia do Inspetor do quarteirão Francisco Antunes Lima, de 11/01/1867 – maço 96. Neste sentido vide, entre outros: : SCHWARTZ, Stuart. Segredos Internos: engenhos e escravos na sociedade colonial. São Paulo: Cia. das Letras, 1988; REIS, J. J. ; SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Cia. das Letras, 1989. CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história da últimas décadas da escravidão na Corte. 4 reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. MATTOS, Hebe Maria. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no Sudeste escravista – Brasil, século XIX. Rio de Janeiro. Arquivo Nacional, 1995. XAVIER, Regina Célia L. A conquista da liberdade: libertos em Campinas na segunda metade do século XIX. Campinas, CMU/UNICAMP, 1996. FLORENTINO, 2 9 M.; GOES, J.R. “A paz das senzalas: Famílias escravas e tráfico atlântico, Rio de Janeiro, c.1790 – c.1850.” Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 1997. SLENES, Robert. Na senzala, uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava - Brasil Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. MENDONÇA, Joseli Nunes. Cenas da Abolição: escravos e senhores no Parlamento e na Justiça. São Paulo. Editora Fundação Perseu Abramo, 2001. SCHWARTZ, Stuart. Escravos, roceiros e rebeldes. Bauru, SP: EDUSC, 2001 3 CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão a corte. São Paulo: Companhia das Letras. 1990. p. 57. 4 PIAZZA, W. A escravidão negra numa província periférica. p. 20. CABRAL, O. R. História de Santa Catarina. pp. 167-8. No entanto, ao descrever as características das fazendas da região de Lages, Licurgo se contradiz ao sugerir que as casas deveriam ser protegidas dos escravos: “Os fazendeiros mais fortes, já em meados do século passado [século XIX], construíam-nas [as fazendas] de pedras, com paredões externos como se fossem fortaleza, beirando um metro de largura. Na verdade eram assim porque em tempo de escravos e de perigo de assaltos, as casas deviam oferece grande segurança.”(grifo nosso) COSTA, Licurgo. O continente das Lagens. p. 1483. 5 SANTA CATARINA. Relatórios de Presidente de Província. Discurso pronunciado pelo presidente da Província de Santa Catarina, Marechal de Campo Francisco Joze de Souza Soares D’Andrea, na sessão ordinária do ano de 1840 aberta no primeiro dia do mês de março. Administração de Justiça e estatísticas dos crimes. Cidade do Desterro, Typografia Provincial, 1840. Embora Oswaldo Cabral não tenha referenciado as fontes em que baseou grande parte das suas conclusões, observa-se pela utilização de dados e estatísticas sobre a população o provável manuseio dos relatórios de Presidente de Província. Walter Piazza e Maria Luiza Hering chegam a citar algumas falas presentes nesses relatórios como forma de confirmar seus argumentos. CABRAL, O. R. História de Santa Catarina; HERING, Maria R. Colonização e industrialização no Vale do Itajaí; PIAZZA, W. A escravidão negra numa província periférica. 6 De acordo com o relatório de 1842, de uma população total de 67.218, 12.580 (18,71%) eram escravos. SANTA CATARINA. Relatórios de Presidente de Província Discurso pronunciado pelo presidente da província de Santa Catarina, Marechal de Campo Francisco Joze de Souza Soares D’Andrea na sessão ordinária do ano de 1842 aberta no primeiro dia do mês de março. Administração de Justiça e estatísticas dos crimes. Cidade do Desterro, Typografia Provincial, 1842. 7 Quando, em 1840, Soares D’Andrea pronunciou o discurso acima reproduzido, por exemplo, a província do Rio Grande do Sul estava em volta dos problemas ocasionados pela guerra de Farrapos, que iniciada em 1835 se arrastava até meados da década de 40. Arregimentando considerável contingente negro em suas fileiras, os farrapos armaram seus escravos com estacas, facas e foices, causando grande temor nos fazendeiros e estancieiros fiéis à coroa. A província baiana enfrentou, desde 1807 até 1835, diversas ameaças e tentativas de insurreições e levantes de escravos em seu território. Em 1824, os escravos do engenho de Santana, após se sentirem traídos pelo não cumprimento das reivindicações acordadas com o fim da revolta de 1790, desafiaram novamente as autoridades locais e provinciais ao assumirem o controle do engenho por quatro anos. Em 1835, o levante dos Malês, detalhadamente organizado pelos haussás e nagôs, deixou a sociedade assustada por envolver não apenas escravos, mas também libertos. A região sudeste também não ficou livre de uma ameaça negra. Com a ascensão da produção cafeeira no Vale do Paraíba, aumentou-se o número de fazendas povoadas por uma crescente população negra. Até mesmo a proibição do tráfico negreiro atlântico, em 1831, não foi capaz de diminuir a inserção de novos escravos, trazidos por uma rede de contrabando ilegal de almas, contribuindo para o aumento do medo de uma grande revolta negra no Brasil. CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil. 2 ed. Rio de Janeiro: Civilização do Brasileira, 1978. REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos Malês (1835). Rio de Janeiro: Brasiliense, 1986. RODRIGUES, Jaime. O infame comércio: propostas e experiências no final do tráfico de africanos para o Brasil (1800-1850). Campinas: Editora da Unicamp / CECULT, 2000. BORGES, Nilsen C. Oliveira Borges. O contrabando de almas: tráfico ilegal de escravos no Vale do Paraíba Paulista (1820-1860). Monografia (Graduação), 1999. São José dos Campos, SP: UNIVAP, 2000. 8 A natureza, entre os dons que foi pródiga com este país abençoado favoreceu com hum clima, além de benigno, próprio para quasi todas as produções de ambos hemispherios. A população, porém não he proporcionada a extensão do território: faltão-nos braços que fação valer este torrão precioso. [...] Estes braços, estes auxílios só nos podem vir da Europa, onde a população superabunda [...] cumpre pois que por meio da colonização chamemos ao nosso Paiz homens com braços livres esses inertes e aviltados pelos ferros da escravidão que nos fornecia o abominavel tráfico de carne humana. SANTA CATARINA. Relatório do Presidente da Província de Santa Catharina José Mariano de Albuquerque Cavalcanti na abertura da 2.a sessão da 1.a Legislatura Provincial em 5 de abril de 1836. Colonização e catequese. Desterro, Typografia Provincial, 1836. 9 Os anos de 1859 e 1860 dos mapas de população chamam atenção pela queda brusca na população geral, destacando o contingente de “Pretos e Pardos” (identificado nestes apenas como libertos) e “escravos”. Esta queda, entanto, seria improvável, considerando que no ano de 1861 a população voltou a apresentar a mesma 10 tendência de crescimento positivo verificado nos anos anteriores. Normalmente estes censos discriminavam que estavam sendo agregadas à população de Lages as populações de suas respectivas freguesias (Curitibanos, Campos Novos e Baguais), o que não se observou no ano de 1860, indicando que se trata de um sub-registro. 10 Através da leitura dos inventários post-mortem, referentes ao período abordado, pôde-se perceber que, de acordo com a classificação de cor/origem, 44,4% dos escravos lageanos foram identificados como nascidos no Brasil (crioulos, pardos, cabras e mulatos), enquanto 1,8% seriam escravos africanos. Contudo, para 41,6% dos escravos não constava nenhuma identificação direta ou indireta de cor ou etnia. Provavelmente a omissão desta informação seria em razão da pouca importância dada a identificação da origem do escravo nos processos de inventários. No entanto, não se pode descartar a intenção de alguns inventariante de esconder propositadamente a posse de africanos importados ilegalmente depois da proibição do tráfico atlântico em 1831. Conjunto de 150 inventários post-mortem da comarca de Lages. (1870 a 1879). Museu do Judiciário. Tribunal da Justiça de Santa Catarina. (Florianópolis, SC); escrituras de compra e venda de escravo, escritura de liberdade, Livros de notas do n.º 17 ao 34 (1840 a 1865) Primeiro Tabelionato de Lages (Lages, SC). Assentos de Batismo da Freguesia de Lages. 11 Carlos Lima analisando o censo de população de 1799 referente ao Rio de Janeiro destaca que a classificação “pardos e pretos libertos” utilizada naquele censo referia-se, na verdade, a todos os não-brancos, livres ou libertos, e seus descendentes, contados juntos. LIMA, Carlos A. M. Pequena diáspora: migrações de libertos e de livres de cor (Rio de Janeiro, 1765-1844). LOCUS: Revista de história. Juiz de Fora: Núcleo de História Regional/ Departamento de história/ Arquivo Histórico/ EDUFJF, 2000. v 6, n 2. pp. 99-110 12 PICCOLO, Helga Iracema L. O sistema escravista no Rio Grande do Sul: os inventários como fonte para pesquisa histórica. IN: História em revista, Universidade de Pelotas. Departamento de História e Antropologia, Núcleo de Documentação Histórica. v. 3, novembro 1997. Pelotas: Ed. UFPEL, 1997. pp. 13-18.DEAN, Warren. Rio Claro: um sistema brasileiro de grande lavoura, 1820-1920; tradução de Waldívia Portinho. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977. p. 82. 13 Segundo Carlos Lima, “No Rio de Janeiro – área com população escrava grande e comparativamente antiga, haveria quase três escravos para cada não-branco livre (com libertos incluídos entre estes últimos). Regiões de mais recente ocupação escravista, por outro lado, teriam proporções inversas, como São Paulo, com cinco nãobrancos livres para cada três escravos, ou como o Rio Grande do Sul, com forte presença de quatro não-brancos livres para cada escravo. Havia assim muito poucos não-brancos livres (em comparação com o número de escravos) na área com presença cativa maior e mais antiga, ao lado de fortíssima presença em áreas de escravidão africana mais diminuta e recente, dos não-brancos frente a uma população escrava cujas gerações anteriores, portanto, não podiam tê-los gerado. LIMA, Carlos A. M. Pequena diáspora. pp. 99-100. Frank Marcon, por sua vez, afirma que era comum em Lages o emprego de negros e pardos livres como jornaleiros e agregados, sendo que às vezes, estes se tornavam pequenos proprietários de terras ou de pequenas casas comerciais e botequins. MARCON, Frank. A escravidão em Lages: negros livres, liberto e escravos. IN: BRANCHER, Ana (org.) História de Santa Catarina: estudos contemporâneos. Florianópolis, SC: Letras Contemporâneas, 1999. 14 Conjunto de 124 inventários post-mortem da comarca de Lages. (1870 a 1879). MJTJSC. Mapa Demonstrativo dos Trabalhadores das Obras da Igreja Matriz de Lages. MACHADO, Paulo Pinheiro. Lideranças do contestado: a formação e a atuação das chefias cablocas (1912-1916). Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2004. p. 67. 15 Sumário de Denuncia. Denunciante: Manoel Antonio Luiz; Denunciado: Capitão José Marcelino Alves de Sá. 30/10/1855 – maço 88; Réu: Manoel Antonio Luiz, preto liberto; Autor: Capitão José Marcelino Alves de Sá. Motivo: Calúnia. 16 Segundo Hebe Mattos: “Apesar da igualdade de direitos civis entre os cidadãos brasileiros reconhecida pela Constituição [Imperial de 1824], os brasileiros não-brancos continuavam a ter até mesmo o seu direito de ir e vir dramaticamente dependente do reconhecimento costumeiro de sua condição de liberdade. Se confundidos com cativos ou libertos, estariam automaticamente sob suspeitas de serem escravos fugidos – sujeitos, então, a todo tipo de arbitrariedade, se não pudessem apresentar sua carta de alforria”. MATTOS, Hebe Maria. Escravidão e cidadania no Brasil monárquico. p. 21. 17 Sumário crime contra o Réu Dinísio, escravo, de Dona Francisca Vieira Marinho, por Homicídio. 08/02/1858 – maço 26. 18 Sumário crime contra o Réu Antonio José Martins. 19/05/1868 – Maço 31. 19 MACHADO, Paulo Pinheiro. Lideranças do contestado: p. 66. 20 PRADO JÚNIOR, Caio. História econômica do Brasil. 41 ed. São Paulo: Brasiliense, 1994; FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. São Paulo: Companhia da Letras, 1976; CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e escravidão no Brasil meridional. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977; CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil. 2 ed. Rio de Janeiro: Civilização do Brasileira, 1978; GORENDER, 11 Jacob. O escravismo colonial. 2 ed. São Paulo: Ática, 1978; COSTA, Emília Viotti da. Da senzala a colônia. 2 ed. São Paulo: Ciências Humanas, 1982. 12