NEM ANJOS, NEM DEMÔNIOS: APENAS HOMENS (LAGES, 1840-1870).
Nilsen Christiani Borges
No dia 24 de maio de 1866, aproximadamente às 9 horas da manhã, Damaso
Antunes Lima mandou Joana, sua escrava, rebocar um muro. Alegando que estava muito frio
para fazê-lo, Joana não fez o serviço mandado. Quando Damaso estava preste a castigar sua
escrava, seu marido José, de 30 anos, natural da Costa da África, tentando protege-la,
perguntou o motivo do castigo, pedindo em seguida que seu senhor os vendesse. Sentindo-se
provavelmente desafiado em sua autoridade, o senhor decidiu castigar os dois escravos. Neste
momento, José pegou um pedaço de pau e deu uma grande “bordoada” na cabeça de Damaso
e, fazendo-o cair no chão, repetiu por várias vezes até que apareceu um sobrinho da vítima e o
salvou. José conseguiu fugir, reaparecendo mais tarde com um ferimento feito por facão em
seu braço, alegando ter sido feito pelo seu senhor. Em novembro de 1867, José foi julgado por
júri popular e absolvido pelo juiz Francelizio Guimarães.1
Em todo o período em que perdurou a escravidão no Brasil, o relacionamento entre
escravos, trabalhadores livres e senhores de terras e homens, foi marcado pela constante
tensão em uma fina e frágil teia de relações. Revoltas, insurreições, assassinatos e fugas foram
fatores presentes no sistema escravista, assim como também certos acordos, concessões,
negociações, chantagens, cumplicidade, solidariedade, laços afetivos, entre outros.
Diversos estudos recentes comprovam que os cativos, longe de serem apenas
simples vítimas das atrocidades de seus senhores ou guerreiros e assassinos que escolhiam o
crime e a fuga para resistir ao cativeiro, foram sujeitos e agentes de suas próprias histórias.
Assim, estes estudos demonstram os caminhos e as estratégias percorridas pelos mesmos na
busca da manutenção e reprodução de sua cultura, da obtenção de liberdade e/ou de melhores
1
condições de sobrevivência, ou qualquer outro benefício para seu proveito próprio e, em
algumas vezes, de seu grupo. 2
Contudo, é pertinente destacar que embora o crime realmente não tenha sido o
primeiro ato humano do escravo, também foi um recurso amplamente utilizado pelo cativo,
fosse este motivado pela quebra de acordos e direitos consuetudinários, rompimento brusco
de relações afetivas, distanciamento forçado de sua terra natal, resistência a castigos físicos
que percebiam como excessivos, entre outros. 3
Não é nossa intenção nesta comunicação homogeneizar o sistema escravista
brasileiro e nem super-dimensionar os crimes cometidos por escravos e senhores, mas abordar
alguns casos que nos dão pistas sobre os padrões de convivência entre a escravos, libertos,
trabalhadores livres pobres e pequenos lavradores na região de Lages, Santa Catarina, no
período de 1840 a 1870.
Ora, por muito tempo a região de Lages, assim como a antiga província de Santa
Catarina como um todo, foi tradicionalmente apontada pela historiografia como região onde a
escravidão teria sido caracterizada como “peculiar” e “insignificante”, e cujo inexpressivo
contingente escravo teria facilitado uma relação atípica ao grande sistema escravista
brasileiro.
Tradicionalmente, a historiografia catarinense apontou que, embora tivessem
ocorrido alguns crimes praticados por escravos (roubo, homicídio, bebedeira, fuga, etc.), o
relacionamento entre senhores e escravos na província teria sido marcado por um tratamento
humano e benigno. Como prova, os cativos, em sinal de afeição e gratidão, adotariam os
sobrenomes de seus proprietários, e após “ganharem” a alforria preferiam continuar servindoos, mesmo sem remuneração. 4
Tais afirmações têm como base a leitura acrítica de algumas fontes oficiais que
parecem comprovar essas tendências, conforme se observa nas Fallas e Relatórios do
Presidente da Província de Santa Catarina, como neste exemplo de 1840: “Não pode deixar
de se concluir attentos os tempos que tem decorrido, que existe nesta província mais
alguma moralidade do que em muitas das outras, e como o maior número de seus
habitantes he de raça branca, também se pode tirar alguma conclusão favorável a esta raça
sobre as de cor”. [grifo nosso]5
Ao relatar um baixo índice de criminalidade em Santa Catarina, com destaque
para a desproporção numérica entre o contingente branco e o não-branco6, naqueles “tempos
que tem decorrido”, o Presidente da Província buscava apresentar uma pretensa harmonia
social em Santa Catarina em um período conturbado pelo medo de levantes e tentativas de
2
revoltas escravas que surgiram em várias partes do Brasil na primeira metade do século XIX.7
O Relatório do Presidente de Província expressava a tentativa de mostrar que a situação de
Santa Catarina a diferenciava das demais províncias brasileiras. Considerando, neste período,
a difusão da política de colonização do Império, acreditamos que, ao apresentar com cores
mais suaves os índices de criminalidade da província, esta pudesse trazer algum atrativo para
a inserção de imigrantes, haja vista que os discursos voltados para a transição da mão-de-obra
escrava para a livre já estavam bem difundidos em Santa Catarina na segunda metade da
década de 18308:
Algumas características da população negra em Lages
No período de 1854 a 1865, a região dos Campos de Lages contava com uma
média populacional de 1.324 escravos, que correspondia a um percentual médio de 19,4% da
população lageana. O contingente de livres e libertos, por sua vez, apresentava uma média de
1.545 almas, correspondendo, então, a um percentual de 20,1%. Por si estes dados nos
revelam que a população negra na região nunca chegou a ser tão insignificante como
apontaram anteriormente, uma vez que somado os dois contingentes, podemos observar que
esta chegou a uma média de 2.870, correspondendo a 37,4%.
Em um período de 11 anos, o quadro populacional demonstrou uma queda da
população escrava de 19,5%, em 1854, para 15,1%, em 1864, enquanto o contingente de
“pretos e pardos”, por sua vez, aumentou de 19,5%, em 1854, para 29,5%, em 1862.
3
Gráfico : Movimento populacional em Lages em números absolutos (1854-1864)
10000
9000
8000
7000
6000
5000
4000
3000
2000
1000
0
1854
1855
1856
1857
Brancos Livres
1858
1859
1860
Pretos e Pardos
1861
Escravos
1862
1863
1864
Total
Fonte: Ofícios diversos do chefe de Polícia para o Presidente da Província (1854 a 1862) acervo n. º 1/ Estante
n. 2D. Arquivo Público do Estado de Santa Catarina.
Embora a queda percentual sugira a diminuição da população escrava, esta deve
ser percebida pelo aumento da população livre, como se observa no gráfico acima. Desta
forma, percebe-se, através dos números absolutos, a continua inserção de cativos nesta
sociedade, ao ponto que também demonstra que o tráfico interno pós 1850 não teve grande
impacto na saída de escravos da região.9
Uma leitura detalhada em uma série de 150 processos de inventários, escrituras de
compra e venda de escravos, escrituras de liberdade e registros de batismos, referentes ao
período, demonstra que tanto o tráfico interno de escravos quanto a reprodução natural foram
processos paralelos utilizados pelos proprietários lageanos para a manutenção de seus
plantéis.10 Não foram encontrados indícios que pudessem comprovar que Lages estava
participando diretamente no tráfico ilegal de escravos, embora foram encontrados nos
referidos documentos, embora que poucos, casos de presença de escravos com idade que
levantam a hipótese que teriam sido trazido após as leis de 1830 e 1850. O mais provável é
que estes cativos foram adquiridos aleatoriamente através do tráfico interno, pelos tropeiros
de passagem na região. Sabe-se, neste sentido, que grande parte da escravaria comercializada
em Lages provinha do mercado paulista, sendo este sim comprometido com o tráfico ilegal,
contando com uma complexa rede de contrabandistas de escravos voltada principalmente para
as fazendas de café da região do Vale do Paraíba. É pertinente considerar a venda ocasional
de escravos africanos não absorvidos no comércio com as fazendas cafeeiras,
4
O aumento do contingente classificado como “Pretos e Pardos”, a primeira vista,
pode causar a impressão de que em Lages foi grande o número de escravos alforriados, além
da constatação de que os libertos estariam permanecendo na região após terem conseguido a
liberdade11. Contudo, foram apurados, através da leitura de inventários e escrituras de
liberdade, 60 casos de alforrias em um período correspondente a 25 anos (1840 a 1865),
libertando em média 2,5 escravos por ano. Estes dados apontam para um reduzido número de
ocorrências de alforrias em Lages, principalmente se consideramos que, segundo Helga
Piccolo, dos 90 inventários da cidade de Pelotas, no período de 1850 a 1855 (15 anos), 16
processos alforriaram mais de 80 escravos (5,3 por ano). Warren Dean, por sua vez, aponta
que em Rio Claro, 43 escravos receberam liberdade condicional no período de 1846 a 1856
(10 anos), aproximadamente quatro por ano.12
É pertinente destacar que 43,2% dos casos de alforria estavam vinculados a algum
tipo de condição que o “alforriado” deveria cumprir antes de obter sua liberdade por
completo, prática comum no sistema escravista brasileiro, demonstrando o constante desejo
senhorial de evitar uma ruptura dos laços mantidos com os escravos na intenção de controlálos mesmo após a liberdade.”
Desta forma, é possível afirmar que o crescimento deste contingente em questão
não estava condicionado exclusivamente à inserção e a permanência de escravos forros,
assim, como também é possível intuir que não se tratava apenas da reprodução natural deste
contingente, dado o aumento constante a cada ano. A hipótese mais provável é que Lages
estivesse recebendo um fluxo continuo de migrantes não-brancos, sendo tanto livres como
libertos, que buscavam na região maiores oportunidades de trabalho e acesso a terra, tornadose agregados, camaradas e/ou jornaleiros, além de pequenos proprietários de terras e gado.13
A divisão de trabalho na região girava em torno, direta ou indiretamente, da
atividade agropastoril, destacando-se principalmente as funções de campeiro, roceiro e
tropeiro, que consistiam em desempenhar toda a rotina da lida com o gado, como levá-lo para
as diferentes pastagens, capturar as reses fugitivas, castrar os novilhos, construir açudes, dar
sal, curar bicheiras, construir currais e galpões, fazer marcação com ferro quente, construir
muros de taipa, caçar onças e pumas, tosquear ovelhas, conduzir os animais até os locais de
venda ou abate, plantio de gêneros de subsistência como também à preparação e cuidados
com os pastos de invernadas (queimar as pastagens secas no final do inverno). Além destas
funções, também tinham destaque a de ferreiro, pedreiro, servente, marceneiro, sapateiro e
serviços domésticos (cozinheira, lavadeira, mucama, etc.).14
5
De vítima a réu: alguns casos dos processos crimes:
Dos processos crimes referentes ao período de 1855 a 1870, foram apurados 38
casos, constando escravos, libertos e trabalhadores livres pobres fossem como réus, vítimas
ou testemunhas/informantes. Destes, 17 referiam-se a crimes diversos (injúria, deserção, etc.),
enquanto que 21, que nos interessam no momento, referiam-se a assassinato, seqüestro (roubo
de escravo), castigos excessivos e re-escravização de libertos, conforme tabela abaixo:
Tabela: Relação de Processos Crimes por vítima, réu e tipo de crimes cometidos:
Réus
Senhores
Ag/Cam
Escravos
Outros
Total
Vítimas
Escravos
Senhores
Negros libertos/Livres
Assassinato Sequestro castigos Assassinato roubo Assassinato re-escravização
--2
2
----1
3
2
--------2
--------3
3
1
--------1
------2
2
2
4
3
5
3
Fonte: Conjunto de Processos Crimes de 1855 a 1870. Deposito do Fórum de Lages.
Obs.: Ag/Cam: Agregagados/Camaradas; Cast/Exc: Castigos Excessivos.
Um caso que nos chamou atenção foi a denuncia de que o Capitão José Marcelino
mantinha em cativeiro dois crioulos livres, Marcelino e Bernadino. Filhos dos libertos Bento
Garcia e sua esposa Joaquina Ignacia, foram batizados como sendo livres, conforme translado
da certidão de batismo de Desterro, presente no processo. Como defesa o capitão alegou que o
denunciante, o “preto” Manoel Luiz, era um criado da casa de Henrique Ribeiro Córdova,
com qual tinha uma disputa de terras, e que fez tal denúncia a mando de seu patrão com o
interesse de prejudicá-lo. Além disso, afirmou que as duas crianças teriam sido batizadas pela
mãe Joaquina como livres sem sua autorização, e que Joaquina na verdade ainda era sua
escrava. O processo foi julgado improcedente. Em 27 de maio de 1857, o Capitão José
Marcelino inverteu a situação, abrindo um processo contra Manoel Luiz por calúnia.15
O que chama a atenção neste processo em primeira instância são os personagens
envolvidos. Ora, um Capitão da guarda foi acusado por um liberto de manter no cativeiro
duas crianças que seriam por direito livres, filhos de pais libertos. Notoriamente era comum
na época a confusão de um indivíduo negro livre ou liberto com escravo fugido, correndo,
assim, o risco de voltar ao cativeiro. Por isso, também era comum que os mesmos andassem
constantemente com cópias de suas escrituras de liberdades e registro de batismo consigo, e
em caso de estas escrituras terem sido lavradas em outras províncias, deveriam ser transcritas
6
no cartório da cidade onde se encontrava no momento para que se tornar-se público que as
pessoas às quais os documentos se referiam não eram escravos fugidos.16. Por outro lado, o
réu acusou seu denunciante, que era “criado” de seu “desafeto”, de servir de “testa-de-ferro”
para caluniá-lo e desmoraliza-lo publicamente. Talvez um ataque direto de Henrique Córdova
pudesse levantar dúvidas por conta dos interesses envolvidos, daí o uso de seu criado.
Contudo, poderia ser também um exemplo de solidariedade entre o liberto com os pais das
crianças, uma vez que os mesmos estavam presos a algum laço servil com o acusado. O
Capitão José Marcelino chegou a afirmar que a mãe das crianças não era liberta, e que teria
ido a Desterro registrar as crianças como se fossem livres sem a sua prévia autorização. Ora,
como a mesma teria conseguido se deslocar para tão longe sem ser denunciada como fugida?
E como conseguiu convencer ao pároco local que ela era liberta (ou até mesmo livre) sem
apresentar os documentos necessários, tanto para o batizado das crianças, como para a própria
circulação da mesma em outra localidade?
Em janeiro de 1858, Dionísio, que era escravo fugitivo de Morrete, Paraná, foi
aceito como camarada nas terras do lavrador Pedro Alexandrino Pereira, no “Campo do Buitá
Verde”, Campos Novos. Dois dias depois, no dia 31 de janeiro de 1858, Dionísio foi
encontrado por Florentino Franco, provável capitão-do-mato que estaria em seu encalço.
Resistindo a captura, o escravo reagiu matando-o e fugindo em seguida. Interrogado, Pedro
Alexandrino alegou que Dionísio tinha se apresentado como liberto ou livre, e que o aceitou
como camarada, pois precisava de um domador.17
Em 1868, o liberto Antonio José Martins, pedreiro, natural e morador de Castro,
Paraná, foi preso em Curitibanos por estar em “companhia” de um casal de escravos fugidos.
No momento da prisão, Antonio reagiu e acabou ferindo o inspetor de quarteirão Salvador
Hilário Bruno.18
Entre os dois casos pode-se inquirir se tratava de casos de solidariedade entre
libertos e livres para com escravos, acobertando-os, ou se estes aproveitaram da situação dos
fugitivos para obter mão-de-obra sem maiores ônus. É certo que Pedro Alexandrino alegou
não saber a verdadeira condição de Dionísio, mas será que era comum empregar um camarada
sem ter documentos que comprovasse que se tratava mesmo de uma pessoa livre ou liberta,
haja vista, como apontado acima, toda a necessidade na época de se portar tais documento
sempre a mão? No processo de Antonio, não aparece se o mesmo sabia da condição do casal
que o acompanhava, mas diante de sua reação pode se intuir que sim. Sendo pedreiro,
7
Antonio provavelmente teria ido a Lages para trabalhar nas obras da Igreja Matriz, e seria
natural que necessitasse de aprendizes e serventes.
Outro caso que chama atenção foi o desaparecimento do preto liberto Reginaldo,
camarada de José D'Avila. De acordo com o processo, reaberto em julho de 1852, as
testemunhas afirmaram que era de conhecimento público que Reginaldo fora assassinado por
D'Avila e por um outro camarada, chamado José Riosca. O crime teria acontecido quando
D'Avila soube que Reginaldo pretendia ir embora. Tentando impedir que isso acontecesse,
mandou seu camarada Riosca atrás de Reginaldo alegando que este não poderia ir, pois era
seu escravo. Podemos considerar duas situações neste caso. Primeiro, que Reginaldo
considerando-se liberto, ainda devia cumprir algumas condições impostas em sua carta
alforria. Segundo, que, sendo Reginaldo livre ou liberto, estava do mesmo jeito sob o julgo de
D’Avila, que não queria abrir mão dele. Segundo Paulo Pinheiro Machado, o homem livre
pobre, fosse ele descendente de africano, indígenas, mestiço e até mesmo português, e que
desempenhava funções como peão de estância ou agregado, estava preso ao poder dos
grandes fazendeiros por uma série de obrigações, sendo uma característica do século XIX, de
que a maior parte da força de trabalho era fixa, nascia e morria sob os mesmos patrões.19
Considerações Finais:
Como afirmamos anteriormente, o crime e a violência não eram artifícios únicos
do escravo como ato humano, e nem mesmo como ato desumano de proprietários sádicos,
mas não por isso deixou de ser utilizado pelos mesmos. Antes, o crime e a violência podem
ser percebidos como instrumentos recorrentes frente a uma situação de dominado e
dominador em toda a história do trabalho, utilizado pelos mais variados tipos de trabalhadores
e patrões.
Embora o número de processos crimes levantados para esta comunicação seja
apenas uma pequena amostragem, podemos levantar alguns pontos sobre o funcionamento da
sociedade lageana e os padrões de convivência.
Se por um lado tradicionalmente a historiografia apontou que as lidas pastoris não
necessitavam de muitos trabalhadores, enfatizando uma pretensa inadequação do emprego
conjunto de mão-de-obra livre de camponeses pobres com a escrava,20 estes poucos casos, já
nos fornecem indícios que esta assertiva não se aplicava em Lages, assim como também
8
demonstram que o tratamento dispensado aos escravos não era caracterizado como “humano e
benigno”, em uma relação atípica ao grande sistema escravista brasileiro.
Neste sentido, o que se pôde apreender é um esboço do quadro social em Lages,
onde trabalhadores livres pobres, pequenos lavradores, libertos e escravos dividiam os
espaços de trabalho, sendo que em alguns momentos compartilhavam, solidarizando-se como
parceiros e cúmplices, e em outros disputavam em conflitos que cominavam em crimes.
Além disso, o roubo de escravos e a re-escravização de libertos levantam a
importância da mão-de-obra escrava na região. É certo que devemos considerar que os
escravos roubados poderiam estar sendo vendidos para outras regiões, contudo, nos três casos
de re-escravização levantados às vítimas permaneceram em poder de fazendeiros locais.
Por fim, resta-nos indagar sobre os caminhos percorridos por estes trabalhadores
em Lages. Certo é que as condições de trabalho enfrentadas por estes indivíduos estavam
atreladas à condição precária em que se encontravam na hierarquia social: fossem escravos ou
não estavam submetidos ao julgo dos grandes proprietários de terras e de homens. Contudo,
as relações não apareciam de forma homogênea para todos. O liberto que permaneceu
atrelado ao seu senhor, não por gratidão, mas por falta de opção, fosse devido a condições
expressas na alforria, ou simplesmente para não perder o que havia conquistado (os laços de
compadrio e parentesco e as relações de solidariedades, etc.); O escravo que moveu um
processo contra seu senhor para obtenção de sua liberdade, ou que, com ajuda de terceiros,
conseguiu levantar um pecúlio; O pequeno lavrador que abrigou um escravo fugido,
colocando-o como seu camarada ou agregado; O escravo que agrediu seu senhor ou a outros
como resposta a castigos e violências excessivas; O camarada que roubou gado de seu patrão;
O escravo que também roubou para assim completar seu pecúlio. Estes casos, entre outros que
não foram apresentados aqui, aparecem como estratégias para alcançar a liberdade, facilitar o
acesso a terra, iniciar uma pequena criação, e dessa forma, com essas estratégias, acender
socialmente, revertendo sua condição de explorado para, em muitos casos, explorador, ou
mesmo simplesmente obter melhores condições de sobrevivência, para si ou para seu grupo.
1
Sumário Crime de Denuncia do Inspetor do quarteirão Francisco Antunes Lima, de 11/01/1867 – maço 96.
Neste sentido vide, entre outros: : SCHWARTZ, Stuart. Segredos Internos: engenhos e escravos na sociedade
colonial. São Paulo: Cia. das Letras, 1988; REIS, J. J. ; SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: resistência
negra no Brasil escravista. São Paulo: Cia. das Letras, 1989. CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma
história da últimas décadas da escravidão na Corte. 4 reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
MATTOS, Hebe Maria. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no Sudeste escravista – Brasil,
século XIX. Rio de Janeiro. Arquivo Nacional, 1995. XAVIER, Regina Célia L. A conquista da liberdade:
libertos em Campinas na segunda metade do século XIX. Campinas, CMU/UNICAMP, 1996. FLORENTINO,
2
9
M.; GOES, J.R. “A paz das senzalas: Famílias escravas e tráfico atlântico, Rio de Janeiro, c.1790 – c.1850.” Rio
de janeiro: Civilização Brasileira, 1997. SLENES, Robert. Na senzala, uma flor: esperanças e recordações na
formação da família escrava - Brasil Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. MENDONÇA,
Joseli Nunes. Cenas da Abolição: escravos e senhores no Parlamento e na Justiça. São Paulo. Editora Fundação
Perseu Abramo, 2001. SCHWARTZ, Stuart. Escravos, roceiros e rebeldes. Bauru, SP: EDUSC, 2001
3
CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão a corte. São
Paulo: Companhia das Letras. 1990. p. 57.
4
PIAZZA, W. A escravidão negra numa província periférica. p. 20. CABRAL, O. R. História de Santa
Catarina. pp. 167-8. No entanto, ao descrever as características das fazendas da região de Lages, Licurgo se
contradiz ao sugerir que as casas deveriam ser protegidas dos escravos: “Os fazendeiros mais fortes, já em
meados do século passado [século XIX], construíam-nas [as fazendas] de pedras, com paredões externos como
se fossem fortaleza, beirando um metro de largura. Na verdade eram assim porque em tempo de escravos e de
perigo de assaltos, as casas deviam oferece grande segurança.”(grifo nosso) COSTA, Licurgo. O continente
das Lagens. p. 1483.
5
SANTA CATARINA. Relatórios de Presidente de Província. Discurso pronunciado pelo presidente da
Província de Santa Catarina, Marechal de Campo Francisco Joze de Souza Soares D’Andrea, na sessão ordinária
do ano de 1840 aberta no primeiro dia do mês de março. Administração de Justiça e estatísticas dos crimes.
Cidade do Desterro, Typografia Provincial, 1840. Embora Oswaldo Cabral não tenha referenciado as fontes em
que baseou grande parte das suas conclusões, observa-se pela utilização de dados e estatísticas sobre a população
o provável manuseio dos relatórios de Presidente de Província. Walter Piazza e Maria Luiza Hering chegam a
citar algumas falas presentes nesses relatórios como forma de confirmar seus argumentos. CABRAL, O. R.
História de Santa Catarina; HERING, Maria R. Colonização e industrialização no Vale do Itajaí; PIAZZA, W.
A escravidão negra numa província periférica.
6
De acordo com o relatório de 1842, de uma população total de 67.218, 12.580 (18,71%) eram escravos.
SANTA CATARINA. Relatórios de Presidente de Província Discurso pronunciado pelo presidente da província
de Santa Catarina, Marechal de Campo Francisco Joze de Souza Soares D’Andrea na sessão ordinária do ano de
1842 aberta no primeiro dia do mês de março. Administração de Justiça e estatísticas dos crimes. Cidade do
Desterro, Typografia Provincial, 1842.
7
Quando, em 1840, Soares D’Andrea pronunciou o discurso acima reproduzido, por exemplo, a província do
Rio Grande do Sul estava em volta dos problemas ocasionados pela guerra de Farrapos, que iniciada em 1835 se
arrastava até meados da década de 40. Arregimentando considerável contingente negro em suas fileiras, os
farrapos armaram seus escravos com estacas, facas e foices, causando grande temor nos fazendeiros e
estancieiros fiéis à coroa. A província baiana enfrentou, desde 1807 até 1835, diversas ameaças e tentativas de
insurreições e levantes de escravos em seu território. Em 1824, os escravos do engenho de Santana, após se
sentirem traídos pelo não cumprimento das reivindicações acordadas com o fim da revolta de 1790, desafiaram
novamente as autoridades locais e provinciais ao assumirem o controle do engenho por quatro anos. Em 1835, o
levante dos Malês, detalhadamente organizado pelos haussás e nagôs, deixou a sociedade assustada por envolver
não apenas escravos, mas também libertos. A região sudeste também não ficou livre de uma ameaça negra. Com
a ascensão da produção cafeeira no Vale do Paraíba, aumentou-se o número de fazendas povoadas por uma
crescente população negra. Até mesmo a proibição do tráfico negreiro atlântico, em 1831, não foi capaz de
diminuir a inserção de novos escravos, trazidos por uma rede de contrabando ilegal de almas, contribuindo para
o aumento do medo de uma grande revolta negra no Brasil. CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravatura
no Brasil. 2 ed. Rio de Janeiro: Civilização do Brasileira, 1978. REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a
história do levante dos Malês (1835). Rio de Janeiro: Brasiliense, 1986. RODRIGUES, Jaime. O infame
comércio: propostas e experiências no final do tráfico de africanos para o Brasil (1800-1850). Campinas: Editora
da Unicamp / CECULT, 2000. BORGES, Nilsen C. Oliveira Borges. O contrabando de almas: tráfico ilegal de
escravos no Vale do Paraíba Paulista (1820-1860). Monografia (Graduação), 1999. São José dos Campos, SP:
UNIVAP, 2000.
8
A natureza, entre os dons que foi pródiga com este país abençoado favoreceu com hum clima, além de benigno,
próprio para quasi todas as produções de ambos hemispherios. A população, porém não he proporcionada a
extensão do território: faltão-nos braços que fação valer este torrão precioso. [...] Estes braços, estes auxílios
só nos podem vir da Europa, onde a população superabunda [...] cumpre pois que por meio da colonização
chamemos ao nosso Paiz homens com braços livres esses inertes e aviltados pelos ferros da escravidão que
nos fornecia o abominavel tráfico de carne humana. SANTA CATARINA. Relatório do Presidente da
Província de Santa Catharina José Mariano de Albuquerque Cavalcanti na abertura da 2.a sessão da 1.a
Legislatura Provincial em 5 de abril de 1836. Colonização e catequese. Desterro, Typografia Provincial, 1836.
9
Os anos de 1859 e 1860 dos mapas de população chamam atenção pela queda brusca na população geral,
destacando o contingente de “Pretos e Pardos” (identificado nestes apenas como libertos) e “escravos”. Esta
queda, entanto, seria improvável, considerando que no ano de 1861 a população voltou a apresentar a mesma
10
tendência de crescimento positivo verificado nos anos anteriores. Normalmente estes censos discriminavam que
estavam sendo agregadas à população de Lages as populações de suas respectivas freguesias (Curitibanos,
Campos Novos e Baguais), o que não se observou no ano de 1860, indicando que se trata de um sub-registro.
10
Através da leitura dos inventários post-mortem, referentes ao período abordado, pôde-se perceber que, de
acordo com a classificação de cor/origem, 44,4% dos escravos lageanos foram identificados como nascidos no
Brasil (crioulos, pardos, cabras e mulatos), enquanto 1,8% seriam escravos africanos. Contudo, para 41,6% dos
escravos não constava nenhuma identificação direta ou indireta de cor ou etnia. Provavelmente a omissão desta
informação seria em razão da pouca importância dada a identificação da origem do escravo nos processos de
inventários. No entanto, não se pode descartar a intenção de alguns inventariante de esconder propositadamente a
posse de africanos importados ilegalmente depois da proibição do tráfico atlântico em 1831. Conjunto de 150
inventários post-mortem da comarca de Lages. (1870 a 1879). Museu do Judiciário. Tribunal da Justiça de Santa
Catarina. (Florianópolis, SC); escrituras de compra e venda de escravo, escritura de liberdade, Livros de notas do
n.º 17 ao 34 (1840 a 1865) Primeiro Tabelionato de Lages (Lages, SC). Assentos de Batismo da Freguesia de
Lages.
11
Carlos Lima analisando o censo de população de 1799 referente ao Rio de Janeiro destaca que a classificação
“pardos e pretos libertos” utilizada naquele censo referia-se, na verdade, a todos os não-brancos, livres ou
libertos, e seus descendentes, contados juntos. LIMA, Carlos A. M. Pequena diáspora: migrações de libertos e
de livres de cor (Rio de Janeiro, 1765-1844). LOCUS: Revista de história. Juiz de Fora: Núcleo de História
Regional/ Departamento de história/ Arquivo Histórico/ EDUFJF, 2000. v 6, n 2. pp. 99-110
12
PICCOLO, Helga Iracema L. O sistema escravista no Rio Grande do Sul: os inventários como fonte para
pesquisa histórica. IN: História em revista, Universidade de Pelotas. Departamento de História e Antropologia,
Núcleo de Documentação Histórica. v. 3, novembro 1997. Pelotas: Ed. UFPEL, 1997. pp. 13-18.DEAN, Warren.
Rio Claro: um sistema brasileiro de grande lavoura, 1820-1920; tradução de Waldívia Portinho. Rio de Janeiro,
Paz e Terra, 1977. p. 82.
13
Segundo Carlos Lima, “No Rio de Janeiro – área com população escrava grande e comparativamente antiga,
haveria quase três escravos para cada não-branco livre (com libertos incluídos entre estes últimos). Regiões de
mais recente ocupação escravista, por outro lado, teriam proporções inversas, como São Paulo, com cinco nãobrancos livres para cada três escravos, ou como o Rio Grande do Sul, com forte presença de quatro não-brancos
livres para cada escravo. Havia assim muito poucos não-brancos livres (em comparação com o número de
escravos) na área com presença cativa maior e mais antiga, ao lado de fortíssima presença em áreas de
escravidão africana mais diminuta e recente, dos não-brancos frente a uma população escrava cujas gerações
anteriores, portanto, não podiam tê-los gerado. LIMA, Carlos A. M. Pequena diáspora. pp. 99-100. Frank
Marcon, por sua vez, afirma que era comum em Lages o emprego de negros e pardos livres como jornaleiros e
agregados, sendo que às vezes, estes se tornavam pequenos proprietários de terras ou de pequenas casas
comerciais e botequins. MARCON, Frank. A escravidão em Lages: negros livres, liberto e escravos. IN:
BRANCHER, Ana (org.) História de Santa Catarina: estudos contemporâneos. Florianópolis, SC: Letras
Contemporâneas, 1999.
14
Conjunto de 124 inventários post-mortem da comarca de Lages. (1870 a 1879). MJTJSC. Mapa Demonstrativo
dos Trabalhadores das Obras da Igreja Matriz de Lages. MACHADO, Paulo Pinheiro. Lideranças do
contestado: a formação e a atuação das chefias cablocas (1912-1916). Campinas, SP: Editora da UNICAMP,
2004. p. 67.
15
Sumário de Denuncia. Denunciante: Manoel Antonio Luiz; Denunciado: Capitão José Marcelino Alves de Sá.
30/10/1855 – maço 88; Réu: Manoel Antonio Luiz, preto liberto; Autor: Capitão José Marcelino Alves de Sá.
Motivo: Calúnia.
16
Segundo Hebe Mattos: “Apesar da igualdade de direitos civis entre os cidadãos brasileiros reconhecida pela
Constituição [Imperial de 1824], os brasileiros não-brancos continuavam a ter até mesmo o seu direito de ir e vir
dramaticamente dependente do reconhecimento costumeiro de sua condição de liberdade. Se confundidos com
cativos ou libertos, estariam automaticamente sob suspeitas de serem escravos fugidos – sujeitos, então, a todo
tipo de arbitrariedade, se não pudessem apresentar sua carta de alforria”. MATTOS, Hebe Maria. Escravidão e
cidadania no Brasil monárquico. p. 21.
17
Sumário crime contra o Réu Dinísio, escravo, de Dona Francisca Vieira Marinho, por Homicídio. 08/02/1858
– maço 26.
18
Sumário crime contra o Réu Antonio José Martins. 19/05/1868 – Maço 31.
19
MACHADO, Paulo Pinheiro. Lideranças do contestado: p. 66.
20
PRADO JÚNIOR, Caio. História econômica do Brasil. 41 ed. São Paulo: Brasiliense, 1994; FURTADO,
Celso. Formação econômica do Brasil. São Paulo: Companhia da Letras, 1976; CARDOSO, Fernando
Henrique. Capitalismo e escravidão no Brasil meridional. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977; CONRAD, Robert.
Os últimos anos da escravatura no Brasil. 2 ed. Rio de Janeiro: Civilização do Brasileira, 1978; GORENDER,
11
Jacob. O escravismo colonial. 2 ed. São Paulo: Ática, 1978; COSTA, Emília Viotti da. Da senzala a colônia. 2
ed. São Paulo: Ciências Humanas, 1982.
12
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