trabalho final de graduação dossier de tfg joão carlos amaral yamamoto orientador: prof. dr. giorgio giorgi jr. março de 2008 Entre o espaço construído e o pensamento de quem o projeta, entre as relações espaciais e sensoriais presentes em uma construção e o desejo do projetista de que certas relações estejam presentes, uma série de traduções, codificações e decodificações, são feitas para que se possa transformar aquilo que não é nada mais do que o resultado de um raciocínio e da soma do que é puramente lógico, matemático, com o que não faz parte do consciente, a necessidade, o impulso, a lembrança, aquilo que não é produto puro da razão, mas da sua fusão com o irracional (desejo, portanto) em um espaço construído, físico, em matéria, e, conseqüentemente, sujeito ao tempo e ao olhar (cheirar, tocar, ouvir,...), em vivência. Primeiro no projeto, quando se traduz esse desejo em um raciocínio apoiado no desenho, no texto, ou em modelo, onde há o vai-e-vem entre pensamento e representação e um processo de realimentação do desejo. Depois na construção, onde essa representação precisa ser lida e traduzida em linguagem verbal ou em outras linguagens para que se possa concretizá-la e onde o material e as mãos de quem constrói imprimem novas marcas e texturas. E, por último, no ato da experiência sensorial, quando serão vivenciadas as relações que o espaço e o tempo provocam em um determinado indivíduo (não um genérico) que, diante do estranhamento provocado e tendo nas mãos as informações presentes no espaço (certamente não todas as disponíveis, mas as que ele elegeu), estabelece as conexões com as suas lembranças, fazendo comparações e analogias e sintetizando esse conjunto todo novamente em abstração. Ao fim do processo, no consciente (e inconsciente) de quem vive a experiência, um outro objeto, não mais aquele da mente de quem o projetou, nem o que foi representado na folha de papel, ou mesmo o construído, mas um quarto, quinto, sexto...Uma tradução. “Então, para nós, tradução de textos criativos será sempre recriação, ou criação paralela, autônoma porém recíproca. Quanto mais inçado de dificuldades esse texto, mais recriável, mais sedutor enquanto possibilidade aberta de recriação. Numa tradução dessa natureza, não se traduz apenas o significado, traduz-se o próprio signo, ou seja, sua fisicalidade, sua materialidade mesma (propriedades sonoras, de imagética visual, enfim tudo aquilo que forma, segundo Charles Morris, a iconicidade do signo estético, entendido por signo icônico aquele ‘que é de certa maneira similar àquilo que ele denota’). O significado, o parâmetro semântico, será apenas e tão-somente a baliza demarcatória do lugar da empresa recriadora. Está-se pois, no avesso da chamada tradução literal”.1 1 CAMPOS, Haroldo de. Metalinguagem. Rio de Janeiro, Vozes, 1970. As imagens dos sonhos, montadas a partir de recortes da realidade (e de recortes de recortes), condensados, deslocados, sobrepostos, invertidos2, são descritas pelo indivíduo que sonha em seu relato e, então, interpretadas pelo analista. Temos aí três traduções. A primeira, uma tradução (ou criação) do consciente e do inconsciente, a segunda das cenas sonhadas, e a terceira do sonho verbalizado. 3 4 apontamento de Samira Chalhub, sobre condensação e deslocamento nos processos oníricos descritos por Freud em A Interpretação dos sonhos. 2 3 quadros do filme Um Cão Andaluz de Luis Buñuel e Salvador Dalí, 1929. 4 quadros do filme Sonhos de Akira Kurosawa, 1990. “(...) E Baleia fugiu precipitada, rodeou o barreiro, entrou no quintalzinho da esquerda, passou rente aos craveiros e às panelas de losna, meteu-se por um buraco da cêrca e ganhou o pátio, correndo em três pés. Dirigiu-se ao copiar, mas temeu encontrar Fabiano e afastou-se para o chiqueiro das cabras. Demorou-se aí um instante, meio desorientada, saiu depois sem destino, aos pulos. Defronte do carro de bois faltou-lhe a perna traseira. E, perdendo muito sangue, andou como gente, em dois pés, arrastando com dificuldade a parte posterior do corpo. Quis recuar e esconder-se debaixo do carro, mas teve mêdo da roda. Encaminhou-se aos juazeiros. Sob a raiz de um dêles havia uma barroca macia e funda. Gostava de espojar-se ali: cobria-se de poeira, evitava as môscas e os mosquitos, e quando se levantava, tinha fôlhas sêcas e gravetos colados às feridas, era um bicho diferente dos outros. Caiu antes de alcançar essa cova arredada. Tentou erguer-se, endireitou a cabeça e estirou as pernas dianteiras, mas o resto do corpo ficou deitado de banda. Nesta posição torcida, mexeu-se a custo, ralando as patas, cravando as unhas no chão, agarrando-se nos seixos miúdos. Afinal esmoreceu e aquietou-se junto às pedras onde os meninos jogavam cobras mortas (...) “.5 6 5 RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. São Paulo, Martins, 1965. 6 quadro do filme “Vidas Secas” de Nelson Pereira dos Santos, 1963. Para Freud, o sonho é a realização de um desejo7. No entanto, esse desejo não aceito pelos mecanismos de censura do aparelho psíquico, assim relegado ao inconsciente, sofre uma distorção, uma tradução, para que possa vir à consciência. Ele vem representado na figura de outro objeto e/ou condensado com outros desejos reprimidos, enganando a censura e realizando-se (tornando-se realidade) no sonho. Metáfora e metonímia. Mas ao ser traduzido em outro objeto, o desejo reprimido não se realiza por completo e, da mesma forma, não pode mais ser revelado em sua completude. O trabalho feito pelo analista e pelo paciente na psicanálise é o trabalho de decodificação em linguagem verbal e de decifração dessa imagem distorcida, tentando descobrir o objeto inicial e entrando em contato com o inconsciente. “Toda representação é uma imagem, um simulacro do mundo a partir de um sistema de signos, ou seja, em última ou em primeira instância, toda representação é gesto que codifica o universo, daí se infere que o objeto mais presente e, ao mesmo tempo, mais exigente de todo processo de comunicação é o próprio universo, o próprio real. Dessa presença decorre sua exigência, porque este objeto não pode ser exaurido, visto que todo processo de comunicação é, se não imperfeito, certamente parcial. Assim, corrigindo, toda codificação é representação parcial do universo, embora conserve sempre, no horizonte da sua expectativa, o desejo de esgotá-lo”.8 Assim, ao sonhar ou relatar um sonho, ao pintar uma tela, seja de forma figurativa ou não, ao escrever um poema ou um discurso, ao desenhar o projeto de uma construção, representa-se um ou mais objetos que nunca serão revelados totalmente para quem o lê, ou melhor, realiza-se apenas uma parte de um universo de coisas que, mesmo elas, não são totalmente determinadas, são abertas. No entanto, essa impossibilidade de “esgotamento” do objeto representado, seja ele material ou imaterial como o desejo, permite o aparecimento de situações estranhas, de surpresas, pois na busca dessa totalidade de comunicação, ou na exploração desses vazios, novas relações, analogias, comparações, novas formas surgem, tornando a interferir no que existe. E no que não existe ainda. E é nesse processo de codificação e decodificação, e mais especificamente nos próprios códigos, onde moram as questões que motivam inicialmente esse trabalho. 7 FREUD, Sigmund. A Interpretação dos Sonhos. Rio de Janeiro, Imago, 1972. 8 FERRARA, Lucrecia D’Aléssio. Leitura sem palavras. São Paulo, Ática, 2007. proposta de trabalho Pretendo nesse processo estudar o modo de funcionamento das linguagens e sistemas de representação do espaço, as interferências e relações entre códigos, as escolhas tomadas dentro deles, as sobreposições, somas e diferenças, redundâncias, os limites de comunicação e o que se perde ou transforma entre uma tradução e outra, pela leitura seguida de análise da bibliografia selecionada e das obras realizadas com base nessas relações, como também, e principalmente, pela realização de ensaios e experiências que, no tensionamento dos sistemas, tentem desvelar o seu modo de operação. Será necessário o estudo, ao menos de forma superficial, da Semiótica, em algumas de suas linhas teóricas, “opostas” ou não, fazendo um vôo panorâmico e mergulhando hora ou outra em estudos específicos, a fim de tentar compreender em linhas gerais o funcionamento e formação dos processos de significação. Os estudos de Lingüística, sobretudo os desenvolvidos por Roman Jakobson acerca das funções da linguagem, oferecem instrumentos de análise das estruturas de comunicação que parecem ser muito pertinentes para o futuro estudo. Mesmo sendo a Lingüística “a ciência global da estrutura verbal”9, obtemos nela um interessante ponto de partida, considerando a importância e abrangência do código aqui usado. Ao defender a Poética como parte integrante dos estudos da Lingüística, Jakobson disse: “É evidente que muitos dos procedimentos estudados pela Poética não se confinam à arte verbal. Podemos reportar-nos à possibilidade de converter O Morro dos Ventos Uivantes em filme, as lendas medievais em afrescos e miniaturas, ou L´aprés-midi d´un faune em música, balé, ou arte gráfica.(...) O fato de discutir-se se as ilustrações de Blake para a Divina Comédia são ou não adequadas, é prova de que as diferentes artes são comparáveis.(...) Em suma, numerosos traços poéticos pertencem não apenas à ciência da linguagem, mas a toda a teoria dos signos, vale dizer, à Semiótica geral. Esta afirmativa, contudo, é valida tanto para a arte verbal como para todas as variedades de linguagem, de vez que a linguagem compartilha muitas propriedades com alguns outros sistemas de signos ou mesmo com todos eles (traços pansemióticos)”.10 9 JAKOBSON, Roman. “Linguística e Poética”. In: Lingüística e Comunicação. São Paulo, Cultrix, 1969. 10 Idem. Sendo assim, os trabalhos empreendidos em outras linguagens, visuais e não visuais, as experiências feitas pelas vanguardas artísticas, construtivistas, dadaístas, futuristas, surrealistas, etc., assim como os concretos, neo-concretos, seus descendentes, os desenvolvimentos no cinema, no texto, na música, artes gráficas, teatro,... tudo poderá, de acordo com a relevância da comparação, ser usado como referência. Os estudos serão feitos com o objetivo de esclarecer as questões levantadas nos ensaios que deverão ser realizados ao longo de todo o período (de 1 ano). Espera-se que estes sejam, tanto em termos de volume, como de poder de análise e síntese das questões levantadas , a parcela mais significativa do trabalho. Cada um deles deverá ser realizado dentro de uma linguagem específica, explorando seus contornos e meandros, seus limites, havendo entre um e outro, ensaios que explorem as relações entre as linguagens. Será, portanto, o produto deste trabalho final de graduação, um conjunto de objetos feitos na exploração das capacidades expressivas de cada sentido em particular ou em conjunto, de forma a transmitir através deles (quem sabe) algumas das questões estudadas durante o processo, e de servir de suporte (certamente) a outras tantas questões imprevistas. bibliografia BARTHES, Roland. Elementos de semiologia. São Paulo, Cultrix, 1971. BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo, Perspectiva, 1987. BENJAMIN, Walter. A tarefa do tradutor. Cadernos do Mestrado, vol. 1. Rio de Janeiro: UERJ, 1992. CAMPOS, Haroldo de. Metalinguagem. Rio de Janeiro, Vozes, 1970. CHALHUB, Samira. Funções da linguagem. São Paulo, Atica, 1987. DEELY, John. Semiótica básica. São Paulo, Atica, 1990. FERRARA, Lucrécia D´Aléssio. A estratégia dos signos: linguagem, espaço, ambiente urbano. São Paulo, Perspectiva, 1981. FERRARA, Lucrécia D´Aléssio. Leitura sem palavras. São Paulo, Ática, 2007. JAKOBSON, Roman. Lingüística e Comunicação. São Paulo, Cultrix, 1969. JAKOBSON, Roman. Poética em ação. São Paulo, Perspectiva, 1990. PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica e Filosofia. São Paulo, Cultrix, 1975. PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica. São Paulo, Perspectiva, 1977. PIGNATARI, Décio. Semiótica da arte e da arquitetura. São Paulo, Cultrix, 1981. PLAZA, Júlio. Tradução intersemiótica. São Paulo, Perspectiva, 1987. cronograma março: leitura abril: leitura e início dos ensaios maio: leitura e ensaios junho: leitura, ensaios e relatório