SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL Memória Jurisprudencial MINISTRO ALIOMAR BALEEIRO JOSÉ LEVI MELLO DO AMARAL JÚNIOR Brasília 2006 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL Ministra ELLEN GRACIE Northfleet (14-12-2000), Presidente Ministro GILMAR Ferreira MENDES (20-6-2002), Vice-Presidente Ministro José Paulo SEPÚLVEDA PERTENCE (17-5-1989) Ministro José CELSO DE MELLO Filho (17-8-1989) Ministro MARCO AURÉLIO Mendes de Farias Mello (13-6-1990) Ministro Antonio CEZAR PELUSO (25-6-2003) Ministro CARLOS Augusto Ayres de Freitas BRITTO (25-6-2003) Ministro JOAQUIM Benedito BARBOSA Gomes (25-6-2003) Ministro EROS Roberto GRAU (30-6-2004) Ministro Enrique RICARDO LEWANDOWSKI (9-3-2006) Ministra CÁRMEN LÚCIA Antunes Rocha (21-6-2006) Diretoria-Geral Sérgio José Américo Pedreira Secretaria de Documentação Altair Maria Damiani Costa Coordenadoria de Divulgação de Jurisprudência Nayse Hillesheim Seção de Preparo de Publicações Neiva Maria de Moura Ludwig Seção de Padronização e Revisão Kelly Patrícia Varjão de Moraes Seção de Distribuição de Edições Margarida Caetano de Miranda Diagramação: Thiago Silva dos Santos Capa: Jorge Luis Villar Peres Edição: Supremo Tribunal Federal Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Supremo Tribunal Federal — Biblioteca Ministro Victor Nunes Leal) Amaral Júnior, José Levi Mello do. Memória jurisprudencial: Ministro Aliomar Baleeiro / José Levi Mello do Amaral Júnior. – Brasília: Supremo Tribunal Federal, 2006. – (Série memória jurisprudencial) 1. Ministro do Supremo Tribunal Federal. 2. Brasil. Supremo Tribunal Federal (STF). 3. Baleeiro, Aliomar – Jurisprudência. I. Título. II. Série. CDD-341.4191081 Ministro Aliomar Baleeiro APRESENTAÇÃO A Constituição de 1988 retomou o processo democrático interrompido pelo período militar. Na esteira desse novo ambiente institucional, a Constituição significou uma renovada época. Passamos para a busca de efetividade dos direitos no campo das prestações de natureza pública, como pelo respeito desses direitos no âmbito da sociedade civil. É na calmaria institucional que se destaca a função do Poder Judiciário. É inegável sua importância como instrumento na concretização dos valores expressos na Carta Política e como faceta do Poder Público, em que os horizontes de defesa dos direitos individuais e coletivos se viabilizam. O papel central na defesa dos direitos fundamentais não poderia ser alcançado sem a atuação decisiva do Supremo Tribunal Federal na construção da unidade e do prestígio de que goza hoje o Poder Judiciário. A história do SUPREMO se confunde com a própria história de construção do sistema republicano-democrático que temos atualmente e com a consolidação da função do próprio Poder Judiciário. Esses quase 120 anos (desde a transformação do antigo Supremo Tribunal de Justiça no Supremo Tribunal Federal, em 28-2-1891) não significaram simplesmente uma seqüência de decisões de cunho protocolar. Trata-se de uma importante seqüência político-jurídica da história nacional em que atuação institucional, por vários momentos, se confundiu com defesa intransigente de direitos e combate aos abusos do poder político. Essa história foi escrita em períodos de tranqüilidade, mas houve também delicados momentos de verdadeiros regimes de exceção e resguardo da independência e da autonomia no exercício da função jurisdicional. Conhecer a história do SUPREMO é conhecer uma das dimensões do caminho político que trilhamos até aqui e que nos constituiu como cidadãos brasileiros em um regime constitucional democrático. Entretanto, ao contrário do que a comunidade jurídica muitas vezes tende a enxergar, o SUPREMO não é — nem nunca foi — apenas um prédio, um plenário, uma decisão coletada no repertório oficial, uma jurisprudência. O SUPREMO é formado por homens que, ao longo dos anos, abraçaram o munus público de se dedicarem ao resguardo dos direitos do cidadão e à defesa das instituições democráticas. Conhecer os vários “perfis” do SUPREMO. Entender suas decisões e sua jurisprudência. Analisar as circunstâncias políticas e sociais que envolveram determinado julgamento. Interpretar a história de fortalecimento da instituição. Tudo isso passa por conhecer os seus membros, os valores em que acreditavam, os princípios que seguiam, a formação profissional e acadêmica que tiveram, a carreira jurídica ou política que trilharam. Os protagonistas dessa história sempre foram, de uma forma ou de outra, colocados de lado em nome de uma imagem insensível e impessoal do Tribunal. Vários desses homens públicos, muito embora tenham ajudado, de forma decisiva, a firmar institutos e instituições de nosso direito por meio de seus votos e manifestações, são desconhecidos do grande público e mesmo ignorados entre os juristas. A injustiça dessa realidade não vem sem preço. O desconhecimento dessa história paralela também ajudou a formar uma visão burocrática do Tribunal. Uma visão muito pouco crítica ou científica, além de não prestar homenagem aos Ministros que, no passado, dedicaram suas vidas na edificação de um regime democrático e na proteção de um Poder Judiciário forte e independente. Por isso esta coleção, que ora se inicia, vem completar, finalmente, uma inaceitável lacuna em nossos estudos de direito constitucional e da própria formação do pensamento político brasileiro. Ao longo das edições desta coletânea, o aluno de direito, o estudioso do direito, o professor, o advogado, enfim, o jurista poderá conhecer com mais profundidade a vida e a obra dos membros do Supremo Tribunal Federal de ontem e consultar peças e julgados de suas carreiras como magistrados do Tribunal, que constituem trabalhos inestimáveis e valorosas contribuições no campo da interpretação constitucional. As Constituições Brasileiras (1824, 1891, 1934, 1937, 1946, 1967 e 1988) consubstanciaram documentos orgânicos e vivos durante suas vigências. Elas, ao mesmo tempo em que condicionaram os rumos políticoinstitucionais do país, também foram influenciadas pelos valores, práticas e circunstâncias políticas e sociais de cada um desses períodos. Nesse sentido, não há como segmentar essa história sem entender a dinâmica própria dessas transformações. Há que se compreender os contextos históricos em que estavam inseridas. Há que se conhecer a mentalidade dos homens que moldaram também essa realidade no âmbito do SUPREMO. A Constituição, nesse sentido, é um dado cultural e histórico, datada no tempo e localizada no espaço. Exige, para ser compreendida, o conhecimento dos juristas e políticos que tiveram papel determinante em cada um dos períodos constitucionais tanto no campo da elaboração legislativa como no campo jurisdicional de sua interpretação. A Constituição, por outro lado, não é um “pedaço de papel” na expressão empregada por FERDINAND LASSALE. O sentido da Constituição, em seus múltiplos significados, se renova e é constantemente redescoberto em processo de diálogo entre o momento do intérprete e de sua pré-compreensão e o tempo do texto constitucional. É a “espiral hermenêutica” de HANS GEORG GADAMER. O papel exercido pelos Ministros do SUPREMO, como intérpretes oficiais da Constituição, sempre teve caráter fundamental. Se a interpretação é procedimento criativo e de natureza jurídico-política, não é exagero dizer que o SUPREMO, ao longo de sua história, completou o trabalho dos poderes constituintes que se sucederam ao aditar conteúdo normativo aos dispositivos da Constituição. Isso se fez na medida em que o Tribunal fixava pautas interpretativas e consolidava jurisprudências. Não há dúvida, portanto, de que um estudo, de fato, aprofundado no campo da política judiciária e no âmbito do direito constitucional requer, como fonte primária, a delimitação do pensamento das autoridades que participaram, em primeiro plano, da montagem das linhas constitucionais fundamentais. Nesse sentido, não há dúvida de que, por exemplo, o princípio federativo ou o princípio da separação dos poderes, em larga medida, tiveram suas fronteiras de entendimento fixadas pelo SUPREMO e pela carga valorativa que seus membros traziam de suas experiências profissionais. Não é possível se compreender temas como “controle de constitucionalidade”, “intervenção federal”, “processo legislativo” e outros tantos sem se saber quem foram as pessoas que examinaram esses problemas e que definiram as pautas hermenêuticas que, em regra, seguimos até hoje no trabalho contínuo da Corte. Por isso, esta coleção visa recuperar a memória institucional, política e jurídica do SUPREMO. A idéia e finalidade é trazer a vida, a obra e a contribuição dada por Ministros como CASTRO NUNES, OROZIMBO NONATO, VICTOR NUNES LEAL e ALIOMAR BALEEIRO, além de outros. A redescoberta do pensamento desses juristas contribuirá para a melhor compreensão de nossa história institucional. Contribuirá para o aprofundamento dos estudos de teoria constitucional no Brasil. Contribuirá, principalmente, para o resgate do pensamento jurídico-político brasileiro, que tantas vezes cedeu espaço para posições teóricas construídas alhures. E, mais, demonstrará ser falaciosa a afirmação de que o SUPREMO deve ser um Tribunal da carreira da magistratura. Nunca deverá ser capturado pelas corporações. Brasília, março de 2006 Ministro Nelson A. Jobim Presidente do Supremo Tribunal Federal SUMÁRIO ABREVIATURAS ....................................................................................... 17 DADOS BIOGRÁFICOS ............................................................................. 19 NOTA DO AUTOR ...................................................................................... 23 PRIMEIRA PARTE — ASSUNTOS DIVERSOS .......................................... 25 HERMENÊUTICA ...................................................................................... 27 Contra o farisaísmo hermenêutico no Direito Tributário ............................ 30 Contra o farisaísmo hermenêutico no Direito Civil ................................... 31 Elementos úteis para identificação da mens legislatoris .......................... 32 Importância de investigar os princípios econômicos subjacentes ao Direito.... 33 Juiz não pode substituir-se à lei ou à autoridade apontada pela lei como competente ......................................................................................... 34 DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS ........................................... 36 Garantias implícitas .............................................................................. 36 Liberdade de manifestação de pensamento e direito à honra ..................... 36 Liberdade de opinião e incitamento à animosidade contra as Forças Armadas............................................................................................. 37 Liberdade de pensamento e de expressão. Liberdade de imprensa ............ 38 Liberdade de pensamento e tributação estadual ...................................... 41 Liberdade de trabalho ........................................................................... 42 Prisão civil, depositário e alienação fiduciária .......................................... 43 MOROSIDADE DO PODER JUDICIÁRIO ................................................. 44 Responsabilidade civil. Demora no julgamento, prescrição e outras questões..................................................................................................... 44 Desquite por mútuo consentimento. Falecimento antes do julgamento da apelação necessária.............................................................................. 47 CONTROLE DIFUSO E EM CONCRETO DE CONSTITUCIONALIDADE ... 48 Controle de constitucionalidade de decreto-lei ......................................... 49 Controle de constitucionalidade de decreto-lei. Outras questões ............... 57 Controle do quantum de multa fiscal ...................................................... 59 Ex nunc .............................................................................................. 60 Irretroatividade das leis (direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada): diferença essencial entre o Direito francês e o brasileiro e outras questões ................................................................................. 61 Pelo Poder Executivo ........................................................................... 65 Pelo Poder Legislativo .......................................................................... 68 Princípio da isonomia e equiparação de vencimentos ............................... 70 Regra do full bench ............................................................................. 71 Resolução do Senado Federal suspensiva de norma legal declarada inconstitucional pelo STF: inconstitucionalidade de sua modificação por outra ............................................................................................. 73 CONTROLE CONCENTRADO E EM ABSTRATO DE CONSTITUCIONALIDADE ............................................................................................... 76 Amicus curiae em representação de inconstitucionalidade ....................... 79 Declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto ............ 80 “Taxa-ônibus” e presunção de constitucionalidade .................................. 81 Veto do Poder Executivo ...................................................................... 82 RECURSO EXTRAORDINÁRIO. PROCESSUALIDADE .......................... 83 Nova redação de hipótese constitucional do recurso extraordinário. Pluralismo de intérpretes a oxigenar a Constituição ......................................... 83 “Negar vigência” ................................................................................. 85 Questões diversas ................................................................................ 86 DIREITO ADMINISTRATIVO .................................................................... 88 Criação de função por decreto .............................................................. 88 Concurso para procurador do Estado. Idade mínima e inscrição na OAB ....... 88 Exclusão de maiores de 20 anos da rede de ensino, com reserva de cursos supletivos .................................................................................. 88 Desapropriação indireta: juros compensatórios ....................................... 89 Desapropriação indireta: correção monetária .......................................... 92 Desapropriação por interesse social ....................................................... 94 Não há direito subjetivo à posse e à entrada em exercício ......................... 95 Promoção de juízes. Processo de cooptação ........................................... 96 Reforma agrária .................................................................................. 97 Responsabilidade civil do Estado ........................................................... 97 Responsabilidade civil do Estado. Condição funcional do agente ............... 98 Serviço público .................................................................................... 99 FEDERALISMO ....................................................................................... 100 Princípio da simetria ........................................................................... 100 “Peculiar interesse local” .................................................................... 106 Supremacia do Direito Federal ............................................................ 109 MANDADO DE SEGURANÇA ................................................................. 111 Contra lei em tese .............................................................................. 111 Tribunal de Contas. Legitimidade ativa para impetrar mandado de segurança ................................................................................................. 111 PROPRIEDADE DE TERRA. PRESUNÇÃO EM FAVOR DO ESTADO .... 113 PROCESSO LEGISLATIVO ...................................................................... 114 Lobby ............................................................................................... 114 Veto parcial sobre palavras ................................................................. 114 Vício de iniciativa. Aumento de despesa ............................................... 115 DIREITO PENAL ...................................................................................... 118 Detração ........................................................................................... 118 Direito Penal mínimo .......................................................................... 118 SEGUNDA PARTE — DIREITO TRIBUTÁRIO ........................................ 121 CONTRIBUIÇÃO DE MELHORIA ........................................................... 123 CONTRIBUIÇÕES PARAFISCAIS ........................................................... 124 Natureza tributária ............................................................................. 124 Irredutibilidade de vencimentos de magistrado e competência para instituir contribuições sobre eles ............................................................. 126 CONTRIBUINTE EM DÉBITO. ILICITUDE DE CONSTRANGER SUAS ATIVIDADES EM RAZÃO DO DÉBITO. ACESSO AO PODER JUDICIÁRIO ..................................................................................................... 128 IMPOSTO INDIRETO. REPETIÇÃO DE INDÉBITO ................................ 130 IMUNIDADE. CONTRIBUINTE DE DIREITO E CONTRIBUINTE DE FATO.................................................................................................. 134 PEDÁGIO. ASPECTOS HISTÓRICOS ...................................................... 141 TRIBUTAÇÃO EM BRASÍLIA. PERÍODO DE TRANSIÇÃO. APLICAÇÃO DA LEGISLAÇÃO GOIANA .............................................. 142 IMPOSTO TERRITORIAL URBANO: PROGRESSIVIDADE. BIS IN IDEM E BITRIBUTAÇÃO ......................................................................... 143 IMPOSTO SOBRE A TRANSMISSÃO INTER VIVOS ................................ 147 Evasão lícita ...................................................................................... 147 Fato gerador e preservação de conceitos do Direito Privado ................... 147 Isenção relativamente ao Banco do Brasil ............................................ 148 IMPOSTO DE TRANSMISSÃO CAUSA MORTIS ...................................... 149 Fato gerador. Momento do cálculo. Norma estadual supletiva ................. 149 Estado a que cabe a cobrança do tributo ............................................... 150 Incidência sobre transmissão de jazida ................................................. 153 IMPOSTO ÚNICO SOBRE MINERAIS ..................................................... 154 Voto divergente de Súmula. Recepção ou não de legislação por aspecto formal ............................................................................................... 154 Súmula n. 140. Imunidade. Lubrificante. Taxa de previdência social. Similitude com questão recente ........................................................... 156 Súmula n. 91: imposto único vs. imposto de indústrias e profissões, bem assim taxas ................................................................................ 157 Imposto único, taxa de despacho aduaneiro e imposto de consumo ......... 158 Imposto único e Taxa do Fundo de Investimento Minero-metalúrgico ..... 159 IMPOSTO DE INDÚSTRIAS E PROFISSÕES ........................................... 160 Correlação com o imposto de serviços .................................................. 160 Elemento espacial do fato gerador ....................................................... 160 Isenção heterônoma ........................................................................... 161 Operações realizadas em outros municípios .......................................... 162 Relações comerciais intermunicipais. Falta de norma geral. Eqüidade .... 162 IMPOSTO DE VENDAS, IMPOSTO DE CONSUMO, ETC. ....................... 164 Adicional ao imposto de consumo ........................................................ 164 Configuração de produto industrializado ............................................... 164 Exigência antecipada de tributo. Fato gerador presumido ....................... 167 Fato gerador ...................................................................................... 167 Saída ................................................................................................ 168 Questões diversas .............................................................................. 169 TAXA E PREÇO PÚBLICO ....................................................................... 171 Taxa de melhoramento dos portos ........................................................ 171 Taxa do serviço de retransmissão de imagens e de manutenção de torre de canais de televisão ................................................................ 172 TAXA DE SEGURANÇA E EXAÇÕES CORRELATAS .............................. 174 REFERÊNCIAS INTERESSANTES RELATIVAS A MANIFESTAÇÕES DO MINISTRO ALIOMAR BALEEIRO..................................................... 177 Assuntos diversos .............................................................................. 177 Direito Tributário ................................................................................ 187 FRASES .................................................................................................... 193 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................... 197 APÊNDICE ............................................................................................... 199 ÍNDICE NUMÉRICO ................................................................................ 421 ABREVIATURAS ADI Ação Direta de Inconstitucionalidade CPC Código de Processo Civil CTN Código Tributário Nacional ERE Embargos em Recurso Extraordinário HC Habeas Corpus ICM Imposto sobre Circulação de Mercadorias ICMS Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços IPI Imposto sobre Produtos Industrializados ISS Imposto sobre Serviços MS Mandado de Segurança OAB Ordem dos Advogados do Brasil RE Recurso Extraordinário RHC Recurso em Habeas Corpus RMS Recurso em Mandado de Segurança Rp Representação STF Supremo Tribunal Federal DADOS BIOGRÁFICOS ALIOMAR DE ANDRADE BALEEIRO nasceu em Salvador, capital do Estado da Bahia, em 5 de maio de 1905. Era filho de Arnaldo Baleeiro e de D. Maria Isaura de Andrade Baleeiro. Realizou os estudos primários nos Colégios Oito de Dezembro e Antonio Vieira e os preparatórios em cursos particulares e no Ginásio Ipiranga. Bacharelou-se em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito da Universidade da Bahia, em 1925, conquistando, mais tarde, o título de Doutor em Direito pela mesma Universidade. Desde jovem, iniciou-se no jornalismo, tendo colaborado nos seguintes órgãos de imprensa: Imparcial; Imprensa (1922-1923); A Tarde (1924-1926); Diário da Bahia (Secretário, 1926); Estado da Bahia (Diretor, 1933-1935); Diário de Notícias, da Bahia e do Rio de Janeiro; Correio da Manhã; Diário de Pernambuco; Estado de São Paulo e outros. Dedicou-se também, logo após formado, à advocacia, fundando escritório de que participavam Álvaro Nascimento e Luiz Vianna Filho. Foi Consultor Jurídico do Instituto de Pecuária da Bahia (1936-1941). Exerceu o cargo de Professor de Regime Aduaneiro Comparado e Política Comercial, interinamente, na Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade da Bahia. Obteve em concurso, por aprovação unânime, o cargo de Professor Catedrático de Ciência das Finanças da mesma Universidade (1942-1946 e 1959-1960), onde lecionou também Direito Administrativo (1943). Conquistou, ainda em concurso, mediante aprovação unânime, a cátedra de Ciência das Finanças da Faculdade de Direito da Universidade do antigo Estado da Guanabara (1951), onde já lecionava desde 1947. Foi Professor de Economia Política no curso de doutorado da mesma Faculdade (1957-1958 e 1961-1962) e de Direito Financeiro e História Constitucional na Universidade de Brasília (1967-1973), além de Professor Emérito da Universidade do antigo Estado da Guanabara (1972) e da Universidade de Brasília, que publicou a coletânea Estudos de Direito Público em honra de Aliomar Baleeiro, em 1976. No Conselho Universitário da Universidade do antigo Estado da Guanabara, exerceu os cargos de Membro do Conselho Técnico e Administrativo da Faculdade de Direito e de Diretor do Instituto de Estudos Econômicos da mesma Universidade, participando de comissões organizadoras de concursos nas Faculdades do Brasil, da Guanabara, de Santa Catarina, do Recife, da Bahia, de Minas e nas Faculdades de Economia das Universidades do Brasil e de Minas Gerais. Ingressando na política, foi Deputado à Constituinte Baiana (1935) e à Assembléia Legislativa da Bahia (1935-1937), sendo um dos Relatores do Projeto da Constituição baiana de 1935. Deputado Federal à Constituinte de 1946, destacou-se como Membro da Grande Comissão e Relator da Subcomissão Financeira e Tributária. Integrou a Câmara Federal de 1946 a 1958, em 1960 e de 1963 a 1965. Foi Deputado à Constituinte e à Assembléia da Guanabara (1960-1962), quando lhe coube ser o Relator-Geral da Constituinte (1961). Exerceu o cargo de Secretário da Fazenda do Estado da Bahia (1959-1960). Foi delegado do Brasil à Conferência Geral da Unesco (Florença, 1950). Nomeado Ministro do Supremo Tribunal Federal por decreto de 16 de novembro de 1965, do Presidente Castelo Branco, preenchendo cargo criado pelo art. 6º do Ato Institucional n. 2, de 27 de outubro de 1965, que atribuiu nova redação ao art. 98 da Constituição e aumentou o número de Ministros para 16, tomou posse no cargo em 25 do mesmo mês. Exerceu a Vice-Presidência do Supremo Tribunal Federal no período de 10 de fevereiro de 1969 até 10 de fevereiro de 1971, quando foi eleito Presidente, exercendo as respectivas funções até 9 de fevereiro de 1973. Em sessão de 30 de abril de 1975, o Ministro Djaci Falcão, Presidente, procedeu à leitura da carta que o Ministro Aliomar Baleeiro lhe dirigira, anunciando o afastamento do serviço por motivo de aguda insuficiência coronária. Aposentado por decreto de 4 de maio de 1975, foi homenageado pelo Tribunal, em sessão de 21 do mesmo mês, quando falou, pela Corte, o Ministro Xavier de Albuquerque; pela Procuradoria-Geral da República, o Professor José Carlos Moreira Alves e, pelo Instituto dos Advogados da Bahia e pela Ordem dos Advogados do Brasil, o Professor Josaphat Marinho. Foi Membro do Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção da Bahia (1939-1945); Representante da Seção da Bahia no Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; Membro do Instituto dos Advogados da Bahia e do Instituto dos Advogados Brasileiros; Honorary Lecturer do American Institute for Foreign Trade (Phoenix); Membro do Instituto Brasileiro de Direito Financeiro, do Instituto Uruguayo, da National Tax Association, do Instituto de Derecho Financiero Latino-Americano e do Permanent Fiscal Law Comites of InterAmerican Bar Association. Publicou inúmeros artigos, pareceres, conferências e trabalhos avulsos em revistas especializadas, nacionais e estrangeiras, entre as quais: Revista Forense, Revista dos Tribunais, Revista de Direito Administrativo, Revue de Science Financière (Paris), Archívio Finanziario (Roma), Estudios del Centro de Derecho Financiero (Buenos Aires), além de jornais da Bahia, do Rio, de São Paulo e de outros Estados. Também foi autor de vários livros, destacando-se: Direitos dos Empregados no Comércio (1932); Imposto sobre a Renda (1938); A Tributação e a Imunidade da Dívida Pública (1939); Alguns Andaimes da Constituição (1950); Rui, um Estadista no Ministério da Fazenda (1954); Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar (1951); A Política e a Mocidade (1954); Uma Introdução à Ciência das Finanças (1. ed. 1955 — 10. ed. 1974); Clínica Fiscal (1958); O Direito Tributário da Constituição (1959); Cinco Aulas de Finanças e Direito Fiscal (1959); O Supremo Tribunal Federal, esse outro desconhecido (1967) e Direito Tributário Brasileiro (1. ed. 1970 — 6. ed. 1974). Recebeu o prêmio “Instituto dos Advogados da Bahia” pela obra Introdução à Ciência das Finanças, em 1956, e o “Prêmio Astolfo Rezende”, do Instituto dos Advogados Brasileiros, pelo Direito Tributário Brasileiro, em 1972. Possuía, entre outras, as seguintes condecorações e medalhas: Grã-Cruz da Ordem de Rio Branco; Grã-Cruz da Ordem do Mérito de Brasília; Grã-Cruz da Ordem do Mérito Judiciário Militar; Grã-Cruz do Mérito Aeronáutico; GrãCruz do Infante Dom Henrique (Portugal); Ordem de Mayo (Argentina); Ordem O’ Higgins (Chile); Ordem Nacional do Mérito Educativo; Colar do Estado da Bahia; medalhas Tomé de Souza (Câmara Municipal de Salvador), Muiz Freire e outras. Era Cidadão Benemérito da Guanabara, por ato da Assembléia Legislativa do Estado, e Cidadão Acreano, por haver colaborado na elaboração da Constituição daquela unidade. Era casado com D. Darly Baleeiro. Faleceu em 3 de março de 1978, na cidade do Rio de Janeiro, sendo homenageado pelo Supremo Tribunal Federal em sessão de 11 de maio de 1978, quando expressou o sentimento da Corte o Ministro Rodrigues Alckmin, falando, pela Procuradoria-Geral da República, o Professor Henrique Fonseca de Araújo e, pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e Seccional do Distrito Federal, o Doutor Henrique Lima Santos. Na sessão do dia 29 de setembro de 2005, o Tribunal prestou homenagem ao centenário de nascimento do Ministro Aliomar Baleeiro. Na ocasião, falaram, em nome da Corte, o Ministro Celso de Mello; pela Procuradoria-Geral da República, o Doutor Roberto Monteiro Gurgel Santos e, pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, o Doutor Roberto Rosas. Dados biográficos extraídos da obra Supremo Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal — Dados Biográficos (1828-2001), de Laurenio Lago. Este texto também pode ser encontrado no sítio do Supremo Tribunal Federal na Internet. NOTA DO AUTOR O presente trabalho é fruto de projeto levado a efeito pelos Ministros Nelson Jobim e Gilmar Mendes, concluído na presidência da Ministra Ellen Gracie. Tem por objetivo resgatar a produção jurisprudencial de Ministros do Supremo Tribunal Federal. Coube a mim a tarefa — gratificante e difícil — de resenhar a produção jurisprudencial mais relevante do Ministro Aliomar Baleeiro. Gratificante, porque o trabalho do Ministro Baleeiro é de altíssimo nível técnico, bem como permeado de evidente sensibilidade política (mas sem partidarismos) e de sofisticado senso de humor, às vezes transmudado em fina ironia. O seu estudo, portanto, instrui, enriquece e diverte. Difícil, porque o Ministro Baleeiro, em seus quase dez anos de judicatura no STF, participou de alguns milhares de julgamentos. Só para exemplificar, votou em dezenas de centenas de recursos extraordinários. Ademais, é um arbítrio delicado selecionar os seus votos mais relevantes — todos o são. O método de trabalho foi bastante simples, artesanal: examinei — dentre julgados exaustiva e cuidadosamente recuperados pela Secretaria de Documentação do STF em seis discos ópticos — os recursos extraordinários, as representações de inconstitucionalidade, os mandados de segurança e outros julgados de que participou o Ministro Baleeiro. Selecionei, então, alguns e os resenhei, tematicamente agrupados, sob a contingência da concisão. Optei por um corte, ainda que com risco de perda de substância importante: selecionei julgados de Direito Público em geral e de Direito Tributário em especial. Sim, porque o Ministro Baleeiro, como magistrado, foi, sobretudo, um publicista e um financista-tributarista, o que é próprio à natureza do STF. Assim, não examinei, ou pouco examinei, matéria criminal, como também evitei “assunto miúdo de Direito Civil”, segundo juízo do próprio Ministro Baleeiro1. Escapei às questões processuais menores, que dele não tinham a simpatia2. 1 Voto do Ministro Aliomar Baleeiro, Relator, no RE n. 62.731/GB, julgado em 23 de agosto de 1967. 2 Vale citar exemplos do desapego do Ministro Baleeiro ao formalismo processual: “Não tenho muito amor ao formalismo.” (Voto do Ministro Aliomar Baleeiro no RE n. 50.726/RJ, Relator o Ministro Themistocles Cavalcanti, julgado em 1º de abril de 1968); “Devo dizer a V. Exa., com humildade e sem sentir vergonha, o que disse ao eminente Ministro Amaral Santos: não sou processualista. A liturgia jurídica, a maneira de abrir os evangelhos e o livro de missa, a fumaça do incenso para cima ou para a direita... Celebro, aqui, a minha missa, de frente para o público e em português. Não me levo muito por essas considerações formais. Acho que a forma corresponde a um estágio muito rudimentar do Direito.” (Voto do Ministro Aliomar Baleeiro no RE n. 75.972/SP, Relator o Pretendi fazer como que um índice da produção jurisprudencial mais relevante do Ministro Baleeiro. Logo, muitas das decisões estão referidas de modo breve, no que têm de essencial. Outras foram enfocadas de modo mais alentado, inclusive com transcrição de passagens específicas dos votos e dos debates de que tomou parte o Ministro Baleeiro. Alguns dos acórdãos mais importantes — ou excertos seus mais significativos — estão em apêndice. Registro, aqui, os meus agradecimentos aos Ministros Nelson Jobim, Ellen Gracie e Gilmar Mendes pela oportunidade de participar deste projeto. Agradeço, também, à Dra. Altair Maria Damiani Costa e à equipe da Secretaria de Documentação do Supremo Tribunal Federal, em particular Nayse Hillesheim, Lúcia Helena Lopes Fachinetto, Kelly Patrícia Varjão de Moraes e Thiago Silva dos Santos, bem assim à estagiária Tahinah Albuquerque Martins, pela cuidadosa revisão do texto e pelo exaustivo levantamento jurisprudencial levado a efeito. Pouparam-me de alguns embaraços. O texto que segue é tão-só uma resenha jurisprudencial do Ministro Baleeiro. Não trata da sua biografia ou da sua doutrina. Examina, apenas e tão-somente, a jurisprudência por ele produzida, sem prejuízo de referir, vez ou outra, as evidentes influências e repercussões doutrinárias, jurisprudenciais, legais e constitucionais surtidas por sua produção. Ainda assim, é possível conhecer um pouco do homem por meio do juiz. Fico, portanto, gratificado em contribuir para com a devida reverência à memória e ao legado do Ministro Baleeiro, cujas dimensões estão pálida, mas dedicadamente esboçadas nas páginas que seguem. Lembro, enfim, as palavras que o então Procurador-Geral da República, Professor José Carlos Moreira Alves, dedicou ao Ministro Baleeiro quando da sua aposentadoria: a sua ausência “abre um vazio, o que é próprio dos homens que, por serem intensamente eles mesmos, não se deixam esquecer”3. O Autor Ministro Thompson Flores, julgado em 10 de outubro de 1973, como que aplicando o Concílio Vaticano II ao processo civil). Não deixava de fazer graça com alguns elementos de processo: “A folhinha e o relógio têm muita importância no Direito.” (Voto do Ministro Aliomar Baleeiro no RE n. 72.014/SP, Relator o Ministro Djaci Falcão, julgado em 14 de fevereiro de 1975). A propósito, vale conferir, também, o debate entre os Ministros Aliomar Baleeiro e Amaral Santos no HC n. 46.060/GB, Relator para o acórdão o Ministro Thompson Flores, julgado em 18 de setembro de 1968. 3 ALVES, José Carlos Moreira. “Homenagem ao Exmo. Sr. Ministro Aliomar Baleeiro” in Diário da Justiça de 30 de maio de 1975. p. 3678. PRIMEIRA PARTE Assuntos diversos Ministro Aliomar Baleeiro HERMENÊUTICA O recurso a técnicas de interpretação é bastante freqüente nos votos do Ministro Aliomar Baleeiro. Algumas tendências interpretativas são claras em seu pensamento e merecem destaque. Reconhecia ter influência do positivismo jurídico, excluía o Direito Natural, mas dava importância à interpretação teleológica: “Eu, como egresso, e ainda hoje um tanto saudoso da política, não posso deixar de ouvir com embevecimento tudo o que foi dito. Mas ainda guardo uns ranços de positivismo jurídico, aprendido na Faculdade da Bahia, onde não há quartel, de modo algum, para o direito natural. (...)”4 “Na interpretação do Direito Constitucional há de se levar em conta o resultado final a que ela conduz, e a Constituição não é feita por amor a princípios abstratos, à simetria de coordenação de idéias, mas é um instrumento do Governo para chegar a resultados práticos, para assegurar a vida nacional no máximo de sua eficiência. (...)”5 Diversos são os votos em que o Ministro Baleeiro aparece rigorosamente atento ao contexto político em que a norma foi concebida, o que é coerente com o seu histórico parlamentar. Praticava, com clareza e autoridade, interpretações que não desconheciam a mens legislatoris: “(...) Não é demais recordar, neste assunto, a reserva dos hermeneutas aos trabalhos legislativos. Não sou dos que participam dessas restrições, pois, não raro, a ratio iuris brota vigorosamente da ‘exposição de motivos’ , da ‘justificação’ do projeto, sobretudo quando provêm do líder representativo de considerável grupo parlamentar. (...)”6 Nesse sentido, relativizava o valor da letra da lei, não para decidir de modo contrário à lei, mas, sim, para decidir em harmonia com a vontade parlamentar: “Tenho que a letra vale menos do que o espírito, a ratio juris, enfim, a política legislativa.”7 4 Voto vencido do Ministro Aliomar Baleeiro na Representação n. 881/MG, Relator o Ministro Djaci Falcão, julgada em 13 de dezembro de 1972. 5 Voto do Ministro Aliomar Baleeiro, Relator, no RE n. 79.179/MT, julgado em 20 de novembro de 1974. 6 Voto do Ministro Aliomar Baleeiro no RE n. 58.356/GB, Relator o Ministro Hermes Lima, julgado em 28 de setembro de 1966. 7 Voto do Ministro Aliomar Baleeiro no RE n. 68.015/GB, Relator o Ministro Luiz Gallotti, julgado em 5 de novembro de 1969. 27 Memória Jurisprudencial Ao seu ver, mais importante que o dito por um dispositivo em sua imperfeição literária era o que a Constituição pretendia preservar e o que acontecia na vida real. Claro, há que se ter muita prudência e experiência para o correto manejo desses conceitos, sem perda do sentido da Constituição. Com efeito, aquelas virtudes sobravam ao Ministro Baleeiro. Veja-se, por exemplo, o seu respeito e o seu apego à Constituição ao se dirigir ao Ministro Luiz Gallotti: “Sr. Presidente, os escravos somos dois. E mais ainda: sou o pior, o mais submisso escravo da Constituição.”8 Admitia que o juiz é legislador para o caso concreto9. Mas, insista-se, não descurava da prudência: “Em matéria de inconstitucionalidade pode ser utilizado discreto e prudente apelo do juiz à analogia.”10 Rejeitava, como magistrado, escrutinar a política legislativa praticada pelo Congresso Nacional e pelo Governo: “(...) a política legislativa escapa ao Poder Judiciário.”11 “Pode ser draconiano, mas é lei.”12 “(...) as leis podem ser ruins a nossos olhos e, na consciência do legislador, boas.”13 “(...) não temos o direito de passar atestado de inépcia ao legislador, cuja política penal não nos é dado rejeitar, mas apenas cumprir como nela se contém, ainda que de sua sabedoria discordemos como simples cidadãos. (...)”14 “(...) aqui tenho dito que, conquanto me pareça, e sempre tenha parecido, o Supremo Tribunal Federal é um órgão político na mais 8 Voto do Ministro Aliomar Baleeiro no RE n. 68.538/SP, Relator o Ministro Eloy da Rocha, julgado em 3 de dezembro de 1969. 9 Cf. voto do Ministro Aliomar Baleeiro no RE n. 75.404/GB, Relator o Ministro Oswaldo Trigueiro, julgado em 13 de março de 1973. 10 Cf. ementa do RE n. 75.390/DF, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 24 de outubro de 1973. 11 Voto vencido do Ministro Aliomar Baleeiro, Relator, no RE n. 75.388/PE, julgado em 27 de abril de 1973 (cujo acórdão foi lavrado pelo Ministro Rodrigues Alckmin). 12 Voto do Ministro Aliomar Baleeiro, Relator, no RMS n. 17.634/SP, julgado em 9 de novembro de 1967. 13 Voto do Ministro Aliomar Baleeiro no RE n. 65.295/AM, Relator o Ministro Themistocles Cavalcanti, julgado em 17 de setembro de 1968. 14 Voto do Ministro Aliomar Baleeiro no RE n. 76.071/RN, Relator o Ministro Bilac Pinto, julgado em 6 de março de 1974. 28 Ministro Aliomar Baleeiro pura, nobre e helênica acepção da palavra, todavia, a fim de que possa resguardar essa majestade de órgão político, ele não deve pretender ocupar uma área reservada pela Constituição ao Poder Legislativo (...)”15 “Parece-me que devemos fidelidade aos fins do legislador. Afinal, somos empregados da Nação ou do povo, para fazer cumprir as leis que os homens colocados pelo povo no Governo — ou tolera que fiquem no Governo — resolvem. Somos Ministros, quer dizer, etimologicamente — criados para aplicar a lei. Só e só. A lei tem uma finalidade, não podemos, afinal, dar interpretações contrárias àquela política que o Governo introduz na sua lei, porque um funcionário qualquer entendeu que é assim.”16 “É uma circunstância. Cada um de nós nasce dentro da Constituição e tem que aceitá-la.”17 O Ministro Baleeiro zelava pela preservação do papel do Poder Legislativo e demarcava o limite da atuação judicante: “Quem se queixar da justiça da lei, que vá às eleições e substitua os deputados e senadores. Nosso papel não é fazer leis, mas justiça segundo as leis constitucionais.”18 Por outro lado, não negava ao Poder Judiciário um decidir criativo: “Estamos aqui para melhorar a Constituição.”19 Reconhecia que a última palavra sobre a lei e sobre a Constituição era — e é — do STF: “Queira ou não queira, o Supremo Tribunal Federal diz o que é a lei.”20 “(...) O Supremo Tribunal Federal pode dizer a última palavra sobre a Constituição. Ele é infalível, porque é definitivo, desde que 15 Voto do Ministro Aliomar Baleeiro no RMS n. 14.612/SP, Relator o Ministro Pedro Chaves, julgado em 28 de fevereiro de 1967. 16 Voto vencido (debates) do Ministro Aliomar Baleeiro no RE n. 76.826/RJ, Relator o Ministro Xavier de Albuquerque, julgado em 5 de dezembro de 1974. 17 Voto do Ministro Aliomar Baleeiro no MS n. 15.886/DF, Relator o Ministro Victor Nunes, julgado em 26 de maio de 1966. 18 Voto do Ministro Aliomar Baleeiro, Relator, no RE n. 62.731/GB, julgado em 23 de agosto de 1967. 19 Voto do Ministro Aliomar Baleeiro na Representação n. 861/MG, Relator o Ministro Oswaldo Trigueiro, julgada em 23 de agosto de 1972. 20 Voto do Ministro Aliomar Baleeiro no RE n. 68.015/GB, Relator o Ministro Luiz Gallotti, julgado em 5 de novembro de 1969. 29 Memória Jurisprudencial não há mais recurso. Quando o Supremo diz, e mesmo quando ele erra, está certo. (...)”21 Destacava, também, que o juiz, não raro, prepara ou antecipa evoluções que, mais tarde, poderão vir a ser consagradas pelo legislador: “Uma das funções do Tribunal é preparar a evolução, para que o legislador apenas consagre aquilo que pouco a pouco aqui se foi construindo.”22 Em diversos votos, o Ministro Baleeiro revelou o quanto conhecia a realidade forense, inclusive aquela menos valorizada, ou até mesmo esquecida, a do interior: “(...) Nos Estados do Norte, não há taquigrafia; o juiz leva um caderninho desses de armazém e faz suas anotações. Julgado e homologado o desquite, há o problema de passar as notas do caderninho a limpo, em português legível, para os autos. (...) É papel ordinário, tinta ordinária, e, depois de meses ou anos, é que se resolve, dando solução ao processo. Quem, como eu, já dedicou parte da vida à advocacia, sabe que é assim. Muitas vezes, só por súplica ou simpatia é que se consegue a lavratura do acórdão nos autos.”23 Com sensibilidade, condicionava a interpretação das normas aplicáveis a um caso concreto a esse conhecimento da realidade: “(...) Prefiro a solução mais prática. Meu voto é pragmático e realista, nos termos do pronunciamento do eminente Relator, Ministro Victor Nunes.”24 Enfim, a pletora de recursos de hermenêutica utilizados pelo Ministro Baleeiro e o equilíbrio com que conduzia os seus votos refletem a capacidade e a maturidade do julgador. Contra o farisaísmo hermenêutico no Direito Tributário No RE n. 29.990/GB, Relator o Ministro Victor Nunes, julgado em 20 de junho de 1966, o STF discutiu o significado da sucessão no tempo de duas leis 21 Voto do Ministro Aliomar Baleeiro no RE n. 69.486/SP, Relator o Ministro Thompson Flores, julgado em 18 de novembro de 1970. 22 Voto do Ministro Aliomar Baleeiro no RE n. 65.546/GB, Relator o Ministro Themistocles Cavalcanti, julgado em 19 de março de 1969 (cujo acórdão foi lavrado pelo Ministro Aliomar Baleeiro). 23 Voto do Ministro Aliomar Baleeiro no RE n. 46.617/GB, Relator o Ministro Victor Nunes, julgado em 20 de outubro de 1966. 24 Idem, ibidem. 30 Ministro Aliomar Baleeiro relativas à disciplina da isenção de uma mesma taxa (Lei n. 156, de 27 de novembro de 1947, e Lei n. 1.433, de 15 de setembro de 1951). A primeira lei isentava da taxa em causa “as remessas (...) de juros e dividendos”. A segunda isentava da referida taxa “as remessas de fundos (...) relativos a juros, lucros e dividendos”. Em função do acréscimo do vocábulo “lucros”, contribuintes solicitaram a restituição de parte dos valores recolhidos ao tempo de vigência da primeira lei, porquanto, já àquele tempo, dever-se-ia compreender “lucros” como incluídos na palavra “dividendos”. O STF deu razão aos contribuintes. Durante os debates, o Ministro Aliomar Baleeiro advertiu sobre os problemas advindos da interpretação literal da legislação: “À primeira vista, pareceria que a questão insinuava uma observância religiosa da forma literária ou gramatical da lei. Ninguém sustenta isso. Todos os comentaristas, constitucionalistas e juristas, pelo contrário, têm dito que a pior das interpretações é a chamada judaica. Ela se limita às palavras da lei, sabendo que sempre são mau veículo do pensamento do legislador ou da política legislativa, que ele pretende alcançar.” Por sua vez, o Ministro Adalicio Nogueira sustentou que a segunda lei haveria de ser entendida como lei interpretativa da primeira. Com efeito, o Ministro Aliomar Baleeiro enfatizou o que se pretendeu com a Lei 1.433/51: “Foi a política de fomentar a vinda de capitais que colaborem no desenvolvimento econômico do País.” Há aí a demonstração da consciência e do zelo do julgador para com o contexto em que a legislação foi concebida — e com rigoroso respeito ao fim buscado —, compreendendo a mens legis por meio de recurso à mens legislatoris. Contra o farisaísmo hermenêutico no Direito Civil No RE n. 30.358/MG, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 20 de setembro de 1966, o STF discutiu o reconhecimento de um casal de filhos por concubinos. O juiz de primeira instância, de início, não admitiu a averbação da filha, “porque dela estava grávida a mãe quando o marido faleceu. Era, pois, adulterina, militando a presunção jurídica de ser legítima filha do defunto.” No entanto, o juiz reconsiderou a sua primeira decisão, contra o que se insurgiu o promotor, ao entendimento de ser indispensável ação de investigação de paternidade. 31 Memória Jurisprudencial O apelo do promotor foi provido para anular o processo ab initio. Em grau de embargos, a decisão foi confirmada. Ao votar pelo conhecimento e provimento do Recurso Extraordinário, o Ministro Aliomar Baleeiro deixou assente: “(...) Certamente, doutrinadores ilustres emprestaram a maior ênfase à secular parêmia ‘Pater est, quem justae nuptiae demonstrat’. Para alguns, aliás, encerrava apenas um farisaísmo jurídico. Mas o próprio Código Civil abriu exceções (...) Não há fomento de justiça nem de utilidade em forçar a Recorrente a uma ação para provar o que está cabalmente provado por ato espontâneo e solene do pai, com a confissão da genitora, máxime, quando o único interessado, o irmão, fruto da ligação dos dois concubinos, como se viu, nada alegou, não ignorando o registro. O v. acórdão recordaria, mais uma vez, o Summum jus, summa injuria.” Outros julgados em que o Ministro Baleeiro criticou a interpretação literal: RE n. 62.331/GO e RE n. 67.218/CE. Elementos úteis para identificação da mens legislatoris No RE n. 58.356/GB, Relator o Ministro Hermes Lima, julgado em 28 de setembro de 1966, o Ministro Aliomar Baleeiro, que votou vencido, explicitou alguns elementos úteis para a identificação das razões do legislador quando da interpretação de um dado texto normativo: “Temos, então, que o sentido literal é claudicante, de onde presumir-se que não estão claros e definidos o sentido e o fim exato do dispositivo. E prova disso jaz em que os defensores da tese favorável à competência da sede da empresa recorrem a variados processos de desarticulação do texto, que reescrevem segundo as intenções atribuídas ao Constituinte. Elas, entretanto, não são claras. Não é demais recordar, neste assunto, a reserva dos hermeneutas aos trabalhos legislativos. Não sou dos que participam dessas restrições, pois, não raro, a ratio juris brota vigorosamente da ‘exposição de motivos’, da ‘justificação’ do projeto, sobretudo quando provêm do líder representativo de considerável grupo parlamentar. Outro tanto se pode dizer dos pareceres dos relatores nas comissões parlamentares. Muito menos, porém, pode ser creditado à emenda individual, sobretudo de quem não foi dos principais artífices da Constituição.” 32 Ministro Aliomar Baleeiro Por outro lado, na falta desses elementos, ao Ministro Baleeiro parecia “que a nós não é dado penetrar nas intenções do legislador, se ele não as expressa, para ver quais foram os fins da política legislativa por ele adotada”25. Em suma, apontava como subsídios importantes para a identificação da ratio juris da norma: (1) as exposições de motivos dos projetos originados do Poder Executivo; (2) as justificações, que fazem as vezes das exposições de motivos nos projetos de iniciativa parlamentar; (3) os pareceres dos relatores nas comissões parlamentares, pareceres esses que, no mais das vezes, esclarecem o porquê das redações adotadas e das modificações introduzidas ou não. O voto proferido no RE n. 58.356/GB foi reafirmado no RE n. 53.812/MG, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 22 de abril de 1968. Neste caso, o voto do Ministro Baleeiro prevaleceu26. No RE n. 61.299/SP, Relator o Ministro Oswaldo Trigueiro, julgado em 1º de março de 1967, o Ministro Baleeiro afirmou que não se pode ressuscitar na execução da lei norma que constava de emenda parlamentar não aprovada: “Ora, a lei é o que está na lei.” No mesmo sentido: RE n. 62.015/GB. Importância de investigar os princípios econômicos subjacentes ao Direito No RE n. 60.294/RJ, Relator o Ministro Adalicio Nogueira, julgado em 21 de novembro de 1967, o STF discutiu a retomada de imóvel locado em que funcionava fundo de comércio. O Ministro Aliomar Baleeiro, citando Vivante, fez as seguintes considerações acerca da importância de o intérprete investigar os princípios econômicos subjacentes ao Direito: “Ele chamava a atenção para a necessidade de, no direito privado — e eu vou até ao direito público —, o intérprete investigar os princípios econômicos subjacentes ao Direito. Hoje, mais que no tempo em que Vivante escreveu, a noção da conjuntura econômica é básica em qualquer sentido, jurídico ou social. A economia não é estável. A moeda não é aquela coisa como o metro de platina de Paris, 25 Manifestação do Ministro Baleeiro quando do voto do Ministro Victor Nunes no RMS n. 16.912/SP, Relator o Ministro Djaci Falcão, julgado em 31 de agosto de 1967. Pouco antes, ele já havia advertido: “Estamos entrando no subconsciente do espírito legislativo. As intenções pertencem a Deus.” 26 Sobre a questão de fundo em debate nos Recursos Extraordinários citados, vide o tópico “Estado a que cabe a cobrança do tributo” do Capítulo “Imposto de transmissão causa mortis”. 33 Memória Jurisprudencial que não se dilata quase. O mito da moeda estável tem sido responsável pelas maiores iniqüidades na aplicação do Direito.” Ademais — debateram os Ministros Evandro Lins e Adaucto Cardoso —, não permitir a retomada de imóvel construído especialmente para um determinado fundo de comércio (no caso, cinema e teatro), cujo criador é, portanto, o proprietário, seria negar o direito de propriedade. Ao que arrematou o Ministro Aliomar Baleeiro: “E aí se daria o locupletamento indébito.” À unanimidade de votos, o Tribunal manteve a retomada determinada em sentença de primeiro grau. No RE n. 65.733/GB, Relator para o acórdão o Ministro Themistocles Cavalcanti, julgado em 9 de dezembro de 1968, o Ministro Aliomar Baleeiro voltou a enfrentar a relação havida entre Direito e Economia: “Para mim, o Direito tem uma função puramente ancilar, é mero auxiliar de outros interesses humanos. Esses interesses são de várias ordens, sobretudo a ordem econômica e política. Então, não se pode afastar da interpretação de uma lei o seu conteúdo econômico ou político. Que o legislador quis proteger, qual foi o fim que ele visou a amparar? Para mim, o que ele quis, na sua expressão literal e gramatical, não é o precípuo. Para mim importa muito mais o que a lei quis, em que circunstâncias a lei quis isso, para que algo se atingisse. ‘Por que disse’ e não ‘como disse’.” Neste último caso — relativo à falta de cumprimento de cláusula contratual —, o Ministro Aliomar Baleeiro ficou vencido. Juiz não pode substituir-se à lei ou à autoridade apontada pela lei como competente No RE n. 60.385/GB, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 3 de maio de 1966, o STF examinou acórdão que negara retomada de imóvel — solicitada para reforma — ao argumento de que a obra, que fora autorizada pelo órgão estatal competente, poderia prejudicar a saúde pública, por insuficiência de iluminação e arejamento. O Ministro Baleeiro, destacando que a legislação permitia a retomada para reforma e que ela fora autorizada pelo órgão estatal competente, afirmou: “(...) Certo é que o juiz, do ponto de vista técnico, não é o mais indicado e, do ponto de vista jurídico, não é, em absoluto, competente 34 Ministro Aliomar Baleeiro para dizer a palavra decisiva. Sem ferir a lei, não pode substituir-se à autoridade pública investida da competência legal, para decidir como se pode construir de acordo com o poder de polícia em matéria de edificações urbanas.” São palavras que demonstram a prudência do Ministro Aliomar Baleeiro. À unanimidade de votos, o STF reformou o acórdão recorrido. 35 Memória Jurisprudencial DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS Garantias implícitas No RE n. 72.021/CE, Relator o Ministro Barros Monteiro, julgado em 14 de março de 1973, o STF discutiu legislação estadual relativa ao vitaliciamento de magistrados. O Ministro Aliomar Baleeiro votou vencido na questão de fundo, mas são significativas suas palavras relativamente à existência de garantias implícitas na ordem constitucional brasileira: “A própria Constituição, nos dispositivos citados, diz que ela protege não só os direitos e as garantias expressos, senão também aqueles inerentes ao regime. Esse regime, sabemos, sobretudo na nossa Constituição, que é muito minuciosa, abrange uma porção de garantias não só ao cidadão individualmente mas também por via indireta. Quando a Constituição garante o funcionário, quer garantir um regime, quando garante um magistrado, também quer garantir o sistema político do País.” Nos debates, o Ministro Aliomar Baleeiro afirmou: “é necessário que as Constituições tenham uma cláusula flexível, porque esta fecunda o direito”. Lembrou que foi graças a essas “cláusulas vagas” que a Suprema Corte dos Estados Unidos protegeu afro-descendentes, miseráveis e acusados. E insistiu quanto à Constituição brasileira: “Protege a todos, no Brasil, não só quando ela atribui uma garantia expressa e definida, senão aquelas todas que decorrem do regime que adota: regime democrático, regime da escolha pelo mérito dos magistrados e de todos os servidores públicos. Podemos construir. É por isso que existe um Tribunal como este.” Enfim, advertiu: “A Constituição que não se transforma, que não se adapta às circunstâncias e às necessidades da vida, será cortada por alguém.” Liberdade de manifestação de pensamento e direito à honra No RE n. 64.333/PR, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 29 de outubro de 1968, foi discutida a sempre atual e delicada relação havida entre a liberdade de manifestação de pensamento e o direito à honra. 36 Ministro Aliomar Baleeiro Tratava-se de mandado de segurança impetrado contra juiz criminal que ordenara “a publicação de carta retificativa no Jornal recorrido, na forma requerida pelo Recorrente, sob pena de multa, dado o caráter ofensivo de certo comentário”. A segurança foi concedida. Daí o Recurso Extraordinário. Com a autoridade de quem exerceu o jornalismo — e, após a judicatura constitucional, voltou a exercê-lo —, o Ministro Baleeiro afirmou: “Há dois interesses sociais em confronto e não apenas dois interesses privados. De um lado, a liberdade de manifestação do pensamento, respondendo cada um pelos abusos que cometer. De outro, o direito de cada cidadão ao respeito à sua honra e à sua dignidade e até à sua privacy. Mesmo um criminoso tem o direito à verdade por parte da imprensa. Há de se lhe reconhecer o direito de reagir contra o clima psicológico que o jornal poderá criar, influindo até no julgamento, sobretudo se este for da competência do júri popular. O jornalista, por sua vez, deve ser garantido contra o espírito polemista ou exibicionista do queixoso com sensibilidade da ‘mimosa pudica’ a ver injúria onde ela não existe, ou ávido também de ofender e agredir o próprio comentarista ou terceiros.” O recurso foi conhecido e provido para que o Tribunal recorrido decidisse pelo mérito se o conteúdo da resposta pretendida se conformava com os padrões da lei. Liberdade de opinião e incitamento à animosidade contra as Forças Armadas No RE n. 69.528/PR, Relator o Ministro Amaral Santos, julgado em 24 de novembro de 1970, discutiu-se o caso de um estudante condenado por incitação à animosidade contra as Forças Armadas. Fez, no dia da comemoração da Inconfidência Mineira, de improviso, discurso em que criticou acerbamente as realidades brasileiras, dizendo que feridas cancerosas devoravam a economia nacional, como o Exército com 54% do orçamento, um porta-aviões desnecessário, a Rede Ferroviária com o déficit colossal, o funcionalismo, etc. O Conselho de Justiça Militar o absolveu. Houve recurso e o STM o condenou por incitamento à animosidade contra as Forças Armadas. Ao votar, o Ministro Aliomar Baleeiro lembrou que o fato ocorreu no dia da comemoração da Inconfidência Mineira, “que, juridicamente, segundo o Direito da época, foi ato subversivo”, e exaltação de Tiradentes, “um rebelde, segundo as leis então vigentes”. Entendeu que não houve no discurso do estudante palavras injuriosas, nem o ânimo de denegrir: “O acusado, como cidadão, fez um cálculo econômico que, em outros países, já foi levantado por econo37 Memória Jurisprudencial mistas que divergem a respeito da conveniência social de vultosas despesas militares.” Citou pensadores que discutiram o assunto, bem assim a acesa controvérsia então havida nos Estados Unidos acerca das “(...) astronômicas despesas projetadas para o sistema de defesa antimísseis capaz de destruir, no espaço, imediatamente, os foguetes acaso dirigidos do estrangeiro contra os grandes centros demográficos americanos. O Pentágono tem sido o alvo predileto de artigos e até de livros hostis.” E concluiu: “(...) O crime de instigação à animosidade (...) pressupõe, a meu ver, dolo específico de intriga, provocação, propósito político ou ideológico de incentivar discussões internas para um fim de subversão, etc.” O Ministro Baleeiro controverteu todos esses elementos em recurso extraordinário porque, segundo o seu entendimento, não se tratava, in casu, de reexame de fatos, mas do enquadramento jurídico desses. O STF manteve a condenação, contra o voto do Ministro Baleeiro. Os demais Ministros seguiram o voto do Relator, que não conheceu do recurso extraordinário ao entendimento de que implicava reexame de provas (Súmula n. 279). Liberdade de pensamento e de expressão. Liberdade de imprensa No RMS n. 18.534/SP, Relator o Ministro Themistocles Cavalcanti, julgado em 1º de outubro de 1968, o STF decidiu sobre a apreensão de mais de 230 mil exemplares da revista Realidade, da Editora Abril, determinada por juiz paulistano de menores ao fundamento de que a referida publicação era obscena (medida também tomada por juízes de outras cidades). A discussão deu-se em torno de reportagens com os seguintes títulos: “Sexo não tem nada de indecência”, “Felicidade é possível sem o casamento” e “Devemos ser independentes a qualquer custo”. O art. 53, caput, da Lei de Imprensa de 1953 dispunha: “Não poderão ser impressos, nem expostos à venda ou importados, jornais ou quaisquer publicações periódicas de caráter obsceno, como tal declarados pelo Juiz de Menores, ou, na falta, deste, por qualquer outro magistrado.” O respectivo § 1º determinava a apreensão dos exemplares encontrados. 38 Ministro Aliomar Baleeiro O Relator denegou a ordem ao entendimento de que não havia, no caso, direito líquido e certo: seria necessário examinar o texto da publicação, o seu conteúdo. Disse, ainda, que não existiria um critério objetivo para declarar se uma publicação seria ou não obscena. O Ministro Aliomar Baleeiro divergiu. Concordou que o conceito de “obsceno”, “imoral”, “contrário aos bons costumes” é condicionado ao local e à época. Citou o exemplo do biquíni (“seria inconcebível em qualquer praia do mundo ocidental, há trinta anos”) e diversos outros. Vale referir: “Seria mandado para um hospício de alienados o juiz que apreendesse, hoje, Madame Bovary ou denunciasse Flaubert, mas este, há um século, foi a julgamento.” Classificou como “notória” a enorme biblioteca de publicações eróticas de todos os tempos, bem assim já ter ocorrido em larga escala a publicação de pesquisas comportamentais como a constante da publicação apreendida. Aduziu que, em todas as capitais civilizadas, são publicadas, com a tolerância das autoridades, revistas restritas e voltadas ao erotismo, bem assim que revistas insuspeitas versando os mais graves temas da atualidade, como a Time, em quase todas as suas edições tratam, de algum modo, sobre sexo: “Outro tanto ocorre com revistas brasileiras das mais prestigiosas e insuspeitas do cultivo de paixões más.” Daí perguntou: “Por que, então, a atitude discriminatória contra a Realidade?” Cogitou sobre a influência de concorrentes instigando medidas administrativas, uns contra os outros. Afirmou a necessidade de padrões uniformes na censura de publicações, filmes, rádio e TV — essa foi uma das razões pelas quais, em outros processos, votara no sentido de que, se a União e os Estados podiam exercer a censura cinematográfica, deveria prevalecer a federal sobre a estadual: “o padrão moral do País é um só” e “deve-se prevenir o perigo de um Estado proteger seus produtores contra a competição de produtores d’outro Estado”. Ademais, lembrou que era — e é — da União a competência para regular o comércio interestadual e “só a União, no Brasil, tem competência para legislar sobre Direito Penal e, então, definir e punir o que é obsceno e contrário aos bons costumes”. Leu excerto do voto que proferira no RMS n. 14.686/GB, Relator o Ministro Victor Nunes, julgado em 17 de agosto de 1966. A divergência entre o Relator e o Ministro Baleeiro veio na conclusão e na solução do caso concreto. O Ministro Baleeiro destacou que o Relator negara provimento ao recurso, “deixando sem remédio o que lhe parece e a mim um exemplo de má-aplicação da lei, com prejuízo vultuoso para os direitos da Recorrente, além da ameaça à liberdade de expressão e de pensamento”. 39 Memória Jurisprudencial Sustentou haver, sim, direito líquido e certo de alguém expor e defender livremente o seu pensamento, respondendo pelos abusos que cometer. Por outro lado, concedeu que, no exercício do poder de polícia, a autoridade, o juiz de menores, poderia “(...) apreender a publicação evidentemente pornográfica, obscena ou contrária aos bons costumes, como tal a que visa inequivocamente a excitar a lascívia depravada e fere os padrões de decoro da comunidade, sem nenhum propósito de divulgação científica, artística, educacional ou literária.” Propôs, então, um critério para identificar tais publicações: “Como tal há de entender-se a historieta, a gravura, a película sórdida pelo assunto e pela linguagem, geralmente irreal e com tendências para a ênfase do anormal e do anômalo, seja exageração mórbida do natural, seja pela preferência voltada para o vicioso, o depravado, o pervertido, o acanalhado.” No particular, referiu-se ao que os juristas americanos chamam de “hard core pornography”, como parâmetro para distinção entre publicações de caráter científico, artístico, educacional ou literário e as de evidente caráter pornográfico, obsceno ou contrário aos bons costumes. Em princípio, o que é natural não pode ser imoral: “Os fenômenos da reprodução do homem são equiparáveis aos da digestão, da circulação e outros de origem biológica e comportam divulgação.” Considerou, então, a não-existência, na Jurisprudência do STF, de parâmetros claros e seguros a respeito da linha divisória entre o obsceno ou o pornográfico, de um lado, e o publicável, de outro. Mesmo na US Supreme Court, registrou, ainda reinava a “law’s confusion”. Insistiu que o problema era dos que apresentavam variáveis, “de sorte que a autoridade administrativa, ou judiciária, se vê adstrita à apreciação em caso concreto”. Ainda assim, aquela Corte revelou-se indulgente quando a publicação, em seu todo, não se apresentava como puro veículo de malícia, mas não tolerou a pornografia como fim em si mesmo, pela manifesta evidência de seu objetivo, ou como fim único de lucro, ainda que primorosamente impressa. Citou ampla gama de precedentes e o uso do “clear and present danger test”, utilizado em outros casos de poder de polícia27. 27 Nos debates, o Ministro Baleeiro voltou a referir o “teste de claro e atual perigo” como mecanismo hábil a evitar o arbítrio judicial em casos tais. 40 Ministro Aliomar Baleeiro O importante, defendeu, é a proteção de crianças e adolescentes contra a deletéria influência que o material pornográfico, ou apenas erótico, pode exercer em espíritos ainda em formação. Diferentemente, os adultos têm o direito constitucional de escolher a “vulgarity” para leitura, no que citou opinião do Justice Potter Stewart no case Ginsburg vs. US. Retornando ao caso concreto em julgamento, afirmou que a linguagem da revista apreendida era decorosa e que a exposição se fez num tom alto e sem apologia do vício, da anomalia ou mesmo da irreverência, “enfim, nenhum juízo de valor que se possa considerar anti-social”. Concluiu não haver ofensa aos padrões de então do Brasil em gravuras esquemáticas da concepção e da gestação ou em um inquérito que abordou os mais variados aspectos do comportamento da mulher, inclusive o sexual: “julgo como homem de meu tempo e de meu País”. Portanto, reconheceu haver, in casu, direito líquido e certo e deu provimento ao recurso, mas ressalvou todas as medidas que o juízo de menores entendesse adequadas para evitar a venda da revista a menores no limite de idade que lhe parecesse conveniente ou a possibilidade de consulta por esses menores em bibliotecas ou lugares públicos28. “Aliás, nas mãos de adolescentes, andam obras didáticas com gravuras mais minuciosas e explicativas, quando cursam biologia.” De toda sorte, certamente, nada impedia que adultos lessem a revista: “Certo, Realidade não é indicada para crianças ou alunos de aula primária. Isso não impede que desejem e possam lê-la adultos. Mas duvido muito que os colegiais, hoje, ainda levem a sério a cegonha.” Prevaleceu o voto do Ministro Baleeiro, que lavrou o acórdão, provavelmente um dos mais lembrados e elogiados da sua judicatura29. Liberdade de pensamento e tributação estadual No RE n. 73.895/MG, Relator o Ministro Luiz Gallotti, julgado em 19 de setembro de 1972, o STF discutiu a constitucionalidade de taxa estadual de expediente no tocante à aprovação de programas de rádio e televisão. 28 Em razão do que o acórdão registrou “provimento em parte” do recurso. 29 MELLO FILHO, José Celso de. “Sessão de homenagem ao centenário de nascimento do Ministro Aliomar Baleeiro” in Diário da Justiça de 14 de outubro de 2005. Seção I. p. 4. 41 Memória Jurisprudencial Ao entendimento de que a Constituição de 1967, vigente ao tempo da cobrança, confiava a censura de diversões públicas à União por meio da Polícia Federal, bem assim que o parágrafo único do art. 76 do CTN considerava — e considera — regular o exercício do poder de polícia quando desempenhado pelo órgão competente, o STF declarou inconstitucional a taxa de expediente aludida. O Ministro Aliomar Baleeiro acrescentou que também havia, no caso, um interesse nacional ainda mais alto: o da liberdade de pensamento. Mencionou a possibilidade de um governador utilizar a taxa em causa “para restringir a liberdade de pensamento, que é um direito, uma garantia, um ideal e um princípio da Constituição Federal”. Liberdade de trabalho No RE n. 67.653/GB, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 20 de maio de 1970, o STF discutiu a validade, em face da liberdade de trabalho, de cláusula contratual que obrigava o empregado — que havia feito cursos técnicos no exterior às expensas do empregador — a não servir a nenhuma empresa concorrente nos cinco anos seguintes ao fim do contrato. Tratava-se de litígio entre empresa industrial de produtos de cirurgia dentária que contratara um técnico português para prestar-lhe assistência e mandara-o para cursos na Inglaterra custeados por ela, empresa empregadora. Em antecipação de voto, o Ministro Baleeiro afirmou que o caso era “(...) uma dessas controvérsias em que se tem que escolher entre a literalidade da Constituição ou os grandes interesses nacionais que estão subjacentes, e que o Supremo Tribunal Federal pode e deve propiciar.” Completou cogitando que, a bem do desenvolvimento nacional, a cláusula em questão talvez devesse ser mantida: “Do ponto de vista do desenvolvimento nacional, deveria uma cláusula como esta ser mantida, porque precisamos conhecer todos os segredos da técnica, quer da mecânica, quer sobretudo da química. Há grandes empresas, onde centenas de indivíduos estão pesquisando produtos novos.” No entanto, votou trilhando caminho diverso. O § 23 do art. 150 da Constituição de 1967 assim dispunha: “É livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão (...)”30 30 Correspondente ao inciso XIII do art. 5º da Constituição de 1988. 42 Ministro Aliomar Baleeiro O Ministro Baleeiro concluiu que a cláusula contratual em causa ia, sim, de encontro à liberdade de trabalho. Contudo, não deixou de comentar as possíveis conseqüências dessa solução: “Do ponto de vista do interesse do desenvolvimento nacional, a solução estiolará a aquisição da tecnologia pelos trabalhadores nacionais, pois o procedimento do Recorrido, possivelmente indefensável sob critérios éticos, não encorajará a empresa a arriscar despesas e segredos de fabricação sem um mínimo de garantias. Mas o remédio para isso não cabe ao Supremo Tribunal Federal. Os próprios industriais entre si busquem, na solidariedade de classe, o caminho óbvio.” A decisão foi unânime, nos termos do voto do Relator. Prisão civil, depositário e alienação fiduciária No RE n. 69.404/SP, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 5 de junho de 1970, o STF entendeu razoável — ainda que não a melhor — a interpretação segundo a qual não seria cabível a prisão civil, “porque não se confundem o depósito e a alienação fiduciária em garantia”. No RE n. 73.220/DF, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 17 de agosto de 1973, o STF voltou a enfrentar a mesma questão. Mas havia uma particularidade no caso: a superveniência do Decreto-Lei n. 911, de 1º de outubro de 1969, que estabeleceu normas de processo sobre alienação fiduciária. Segundo o Ministro Baleeiro, o referido Decreto-Lei “cortou a controvérsia em caráter interpretativo, mandou seguir expressamente a ação de depósito e declarou a sua eficácia imediata aos casos pendentes”. O recurso foi decidido no sentido de determinar ao juiz, nos mesmos autos, que processasse a causa nos termos do Decreto-Lei n. 911, de 1969. Tais casos merecem referência, dado ainda haver controvérsia no STF quanto à prisão civil em alienação fiduciária em função do Pacto de São José da Costa Rica31. 31 No HC n. 72.131/RJ, Relator o Ministro Moreira Alves, julgado em 23 de novembro de 1995, o STF entendeu que o Pacto de São José da Costa Rica não interfere com a prisão civil em alienação fiduciária. A questão foi retomada no RE n. 349.703/RS, Relator o Ministro Ilmar Galvão, pendente de julgamento. 43 Memória Jurisprudencial MOROSIDADE DO PODER JUDICIÁRIO A morosidade é tema sempre presente quando se fala em reforma do Poder Judiciário. A mais recente — a da Emenda Constitucional n. 45, de 8 de dezembro de 2004 — trouxe ao texto constitucional norma assegurando a todos, no âmbito judicial e administrativo, “a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação” (inciso LXXVIII do art. 5º da Constituição de 1988). O Ministro Aliomar Baleeiro, em diversos dos seus votos, enfrentou o problema. Responsabilidade civil. Demora no julgamento, prescrição e outras questões No RE n. 32.518/RS, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 21 de junho de 1966, o STF analisou a ocorrência ou não de responsabilidade civil do Estado decorrente da morosidade no processamento de uma ação penal privada que, por isso, prescrevera. O Recorrente perdeu nas instâncias ordinárias. A Justiça gaúcha entendeu que o juiz não agiu com dolo ou culpa, “assoberbado de trabalho, pois atendia a duas comarcas, razão pela qual ocorrera ‘justo motivo’ de retardamento.” O Relator votou pelo provimento do Recurso reconhecendo a “(...) responsabilidade do Estado em não prover adequadamente o bom funcionamento da Justiça, ocasionando, por sua omissão dos recursos materiais e pessoais adequados, os estorvos ao pontual cumprimento dos deveres dos seus juízes. Nem poderia ignorar essas dificuldades, porque, como consta das duas decisões contrárias ao Recorrente, estando uma das Comarcas acéfala, o que obrigou o juiz a atendê-la, sem prejuízo da sua própria — ambas congestionadas de serviço —, à Comissão de Disciplina declarou-se em regime de exceção, ampliando os prazos.” Em casos tais, afirmou o Relator, a responsabilidade transborda do Direito Civil para o Administrativo, independendo — a responsabilidade do Estado — da culpa dos seus agentes. Após invocar a doutrina francesa, o Relator sustentou que o art. 194 da Constituição de 1946 (“As pessoas jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis pelos danos que os seus funcionários, nessa qualidade, causem a terceiros.”) prescindia de prova da culpa do agente público se houvesse falta objetivamente imputável ao serviço. 44 Ministro Aliomar Baleeiro Ademais, no caso dos autos, o Relator destacou que houve, sim, culpa dos agentes públicos, “por omissão de medidas idôneas ao funcionamento da Justiça e até culpa in vigilando das autoridades superiores, por sua passividade”. E arrematou: “(...) Se, desde a lei de 8-6-1865, já se reconhecia direito à indenização pelo erro judiciário apurado em revista, não há por que negá-la pela inércia crônica e invencível, que levou Anatole France a pôr na boca dum personagem de referência a sua ancila: ‘surda como um saco de carvão e lenta como a justiça’.” Durante os debates, o Ministro Vilas Boas classificou como “avançada” a tese do Relator no sentido de que o art. 194 da Constituição também envolveria a responsabilidade pelas faltas da Justiça, ao que respondeu o Ministro Baleeiro: “(...) onde o texto não distingue, o juiz não deve distinguir. Não posso distinguir. Considero o Judiciário como o serviço de vacinação, ou o serviço público de guarda noturna. O cidadão paga para tê-lo (...).” O Ministro Vilas Boas defendeu que, para certos serviços, como o de polícia, há que ser exigida a ocorrência de uma “culpa excessivamente grave”. O Ministro Pedro Chaves acompanhou o Ministro Vilas Boas, invocando o chamado “risco processual”, isto é, o risco que pesa sobre os que “ousam” ir a juízo disputar um direito: “É por isso que eu digo: quando o recorrente entrou em Juízo propondo ação de injúria contra o jornalista, ele correu esse risco que estava pesando sobre todos os brasileiros que ousassem ir a Juízo disputar algum direito nos termos dessa lei processual. É o chamado risco processual, conhecido de todos os tratadistas da matéria. (...) eu lhe neguei provimento, por achar que não havia relação de causalidade entre o dano sofrido por ele e o ato omissivo do funcionário, porque a causa imediata do dano que ele sofreu foi o próprio risco processual, a que se sujeitou com a propositura do processo.” O Relator ficou vencido, prevalecendo — a teor da Ementa do julgado — o entendimento de que: “A atividade jurisdicional do Estado, manifestação de sua soberania, só pode gerar a responsabilidade civil quando efetuada com culpa, em detrimento dos preceitos legais reguladores da espécie.” Lavrou o acórdão o Ministro Vilas Boas. 45 Memória Jurisprudencial Consta do RE n. 69.568/SP, Relator o Ministro Luiz Gallotti, julgado em 17 de novembro de 1970, alentado voto do Ministro Aliomar Baleeiro no mesmo sentido, inclusive citando o RE n. 32.518/RS. No entanto, ao examinar o caso concreto, o Ministro Baleeiro concluiu que não havia que falar — na espécie dos autos — em responsabilidade do Estado por atos de seu Poder Judiciário. O recurso não foi conhecido. Por outro lado, no RE n. 70.121/MG, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 13 de outubro de 1971, o STF examinou caso de comerciante preso em razão de alegada emissão de cheque sem fundos. A prisão perdurou por 3 anos e 17 dias, dos quais 2 anos e 9 meses em virtude de desídia do juiz, que, após o interrogatório, conservou consigo os autos, displicentemente, sem qualquer despacho ou providência, não obstante reiteradas solicitações de devolução por parte do Ministério Público. O acusado foi absolvido a requerimento do próprio Ministério Público. O Ministro Baleeiro reiterou o seu entendimento manifestado no RE n. 32.518/RS. Lembrou que a história da responsabilidade civil é a história da sua contínua e progressiva ampliação, desde a responsabilidade pela culpa à responsabilidade sem culpa, desde o princípio the King does not wrong até a responsabilidade do Estado por todos os seus agentes. “E, já em nossos dias, avança o assalto dessa melhoria ética e jurídica ao reduto mais defendido contra ela — a responsabilidade do Estado pelas leis injustamente danosas às situações individuais legítimas.” Advertiu, então, que os casos como o dos autos “(...) não podem ser aferidos pelos votos dos gloriosos magistrados das gerações anteriores, que nos precederam nesta Corte há cerca de meio século, quando ainda vacilava o espírito jurídico contra os privilégios da irresponsabilidade do Estado pelos atos dolosos ou culposos de seus agentes em serviço.” O Relator sustentou que o caso não se opunha à tese vitoriosa no RE n. 32.518/RS. Explicou que, na espécie dos autos, não se tratava da culpa por fato do serviço público, independentemente de culpa do agente ou representante do Estado, mas, sim, “(...) culpa escancarada, escandalosa e incontestável do juiz, reconhecida pela sentença e pelo v. acórdão; culpa por negligência e ilegalidade, e que justificou a remessa dos autos à Corregedoria, para ajustar contas com o magistrado deslembrado de seus deveres e dos mandamentos da lei, senão até da caridade.” Citou doutrina francesa, italiana e colombiana. 46 Ministro Aliomar Baleeiro Mencionou, ainda, o Parecer da Procuradoria-Geral do Estado, que lembrou que a responsabilidade do Estado não advém somente do erro judiciário mas também da negligência judiciária. O Relator ficou vencido, juntamente com o Ministro Adalicio Nogueira — que já o acompanhara no RE n. 32.518/RS — e com o Ministro Bilac Pinto. Esse registrou que tinha “como precursora a posição assumida pelo Relator”. Prevaleceu o voto do Ministro Djaci Falcão, para quem “a decisão impugnada cingiu-se a emitir um juízo interpretativo não só razoável, (...) mas que se afina com a jurisprudência dominante (...)”. Enfim, é interessante destacar a atualidade do pensamento do Ministro Baleeiro na matéria. Ele já cogitava, inclusive, sobre a responsabilidade do Estado por “leis injustamente danosas às situações individuais legítimas”, o que, ainda hoje, parece tabu32. Desquite por mútuo consentimento. Falecimento antes do julgamento da apelação necessária No RE n. 46.617/GB, Relator o Ministro Victor Nunes, julgado em 20 de outubro de 1966, o STF entendeu que a morte de um dos cônjuges antes de julgada apelação necessária de sentença homologatória de desquite por mútuo consentimento prejudica a ação, o que permitiria ao cônjuge sobrevivente habilitar-se como meeiro do de cujos. Ficaram vencidos os Ministros Relator e Aliomar Baleeiro, que afirmou: “(...) a vida não é lógica. O Direito é para solucionar a vida. (...) Pelo Código, deveria ser julgado dentro de dois meses, pois o juiz, em quinze minutos, poderia ver que o processo se encontra em condições formais para isso. Na verdade não é assim. Nos Estados do Norte, não há taquigrafia; o juiz leva um caderninho desses de armazém e faz suas anotações. Julgado e homologado o desquite, há o problema de passar as notas do caderninho a limpo, em português legível, para os autos. (...) É papel ordinário, tinta ordinária, e, depois de meses ou anos, é que se resolve, dando solução ao processo. Quem, como eu, já dedicou parte da vida à advocacia, sabe que é assim. Muitas vezes, só por súplica ou simpatia é que se consegue a lavratura do acórdão nos autos.” 32 Vide, a propósito, Maria Lúcia Amaral, Responsabilidade do Estado e dever de indenizar. Coimbra: Coimbra, 1998. 47 Memória Jurisprudencial CONTROLE DIFUSO E EM CONCRETO DE CONSTITUCIONALIDADE Com a República, o Direito brasileiro adotou o controle difuso e em concreto de constitucionalidade nos moldes da doutrina e da jurisprudência norteamericanas. Várias gerações de juristas e de magistrados foram formadas dentro da cultura daquele modelo de controle, ainda hoje praticado na ordem jurídica pátria. De João Barbalho33, Rui Barbosa34, e outros, até Lúcio Bittencourt35, o modelo norte-americano de controle era o centro das atenções e desenvolvimentos. A Emenda Constitucional n. 16, de 1965, demarca uma mudança, qual seja, paulatinamente, passou-se a dar maior atenção, doutrinária e jurisprudencial, ao controle concentrado e em abstrato de constitucionalidade, o que, em verdade, já era prenunciado pelo desenvolvimento que conhecera a representação interventiva relativamente à legislação estadual36. Hoje, no Direito brasileiro, ambos os modelos convivem, o que não se dá sem dificuldades. A judicatura constitucional do Ministro Aliomar Baleeiro deu-se, justamente, nessa transição. Seus votos dominavam a doutrina e a jurisprudência norte-americanas, mas, também, já manejavam muitíssimo bem o controle concentrado, como se verá no Capítulo seguinte. De toda sorte, seja em sede de controle difuso, seja em sede de controle concentrado, o Ministro Baleeiro era extremamente prudente. Só admitia declarar a inconstitucionalidade de uma lei quando não houvesse outro meio de resolver o problema posto: “(...) Parto daquela velha regra que copiamos do primeiro país que teve um tribunal do tipo do nosso. O tribunal com poderes de declarar a inconstitucionalidade das leis só deve fazê-lo quando não tiver outro meio de resolver o problema. Essa é a regra. Se há uma fórmula qualquer de colocar-se a questão de direito em termos em que não seja necessário declarar a inconstitucionalidade, fazemos 33 BARBALHO, João. Constituição Federal brasileira: comentários. Edição fac-similar, Brasília: Senado Federal, Secretaria de Documentação e Informação, 1992. 34 BARBOSA, Rui. Atos inconstitucionais. Campinas: Russell, 2003. 35 BITTENCOURT, Lúcio. O controle jurisdicional da constitucionalidade das leis. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1968. 36 MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição Constitucional. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1999. pp. 60-64. O próprio Ministro Baleeiro já o apontava, por exemplo, no MS n. 15.886/DF, Relator o Ministro Victor Nunes, julgado em 26 de maio de 1966. 48 Ministro Aliomar Baleeiro por esse meio. Isso é tranqüilo, e a jurisprudência do Supremo o afirmou inúmeras vezes, embora nós sejamos o Tribunal que mais declara inconstitucionalidade no mundo.”37 A prudência não o impediu de enfrentar as inconstitucionalidades, muito antes pelo contrário, deu-lhe legitimidade, força e autoridade na argumentação. Conduziu o STF a decisões históricas e corajosas, como aquela que declarou inconstitucional um decreto-lei — em pleno regime de exceção — porque escapava ao conceito de segurança nacional. Também são fundamentais os seus julgados sobre direito adquirido, que muito contribuíram para melhor compreensão de um problema antigo, mas sempre atual. Essas e diversas outras questões relativas ao controle difuso merecem destaque na produção jurisprudencial do Ministro Baleeiro. É o que se verá nos tópicos seguintes. Controle de constitucionalidade de decreto-lei No RE n. 62.731/GB, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 23 de agosto de 1967, foi declarada a inconstitucionalidade do art. 5º do Decreto-Lei n. 322, de 7 de abril de 1967, que dispunha sobre purgação de mora em locações comerciais, verbis: “Nas locações para fins não residenciais, será assegurado ao locatário o direito à purgação da mora, nos mesmos casos e condições previstos na lei para as locações residenciais, aplicando-se o disposto neste artigo aos casos sub judice.” O acórdão começa com as notas taquigráficas da sustentação oral do Parecer do Procurador-Geral da República, Professor Haroldo Valadão, sobre a matéria. Levantou uma preliminar, qual seja, “de regra, na instância do recurso extraordinário, não se conhece de lei nova”. Com efeito, a questão constitucional fora levantada de ofício pelo Relator. Sustentou que nem o Senado nem a Câmara deliberaram a respeito do Decreto-Lei n. 322, de 1967, em razão do que foi aprovado pelo Poder Legislativo (cf. parágrafo único do art. 58 da Constituição de 1967): “Tornou-se, assim, por força de expresso texto constitucional, um ato legislativo.” Ademais, afirmou: “esta matéria de locação assumiu, na 37 Voto do Ministro Aliomar Baleeiro no RE n. 72.810/PE, Relator o Ministro Bilac Pinto, julgado em 14 de março de 1973; sustentou no mesmo sentido no RE n. 79.179/MT, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 20 de novembro de 1974. 49 Memória Jurisprudencial vida política brasileira, uma natureza social de maior urgência”. Fez, então, minucioso histórico da legislação sobre inquilinato e apontou: “O Supremo Tribunal Federal tem entendido que esta matéria está dentro da nova concepção da propriedade como função social.” Enfim, sustentou que o Decreto-Lei em causa não foi impugnado no Congresso. Tornou-se um ato legislativo, não mais sendo possível “a qualquer outro Poder, mesmo o Judiciário, dizer que tal lei é inválida pela sua origem”. E arrematou: “Se o Senado e a Câmara podem legislar sobre inquilinato — ninguém o contesta —, podem também fazê-lo indiretamente, aprovando um decreto-lei que o fez sob o título de urgência, segurança nacional, etc.” O Ministro Baleeiro abriu o seu voto afirmando que não contestava as teses ou fatos que o Procurador-Geral da República trouxe como informação ao Tribunal. Reconheceu que a Câmara e o Senado silenciaram sobre o Decreto-Lei em questão. Lembrou que alguns interpretaram esse silêncio como concordância, outros como desaprovação. Mas descartou tais considerações: “Não me cabe, Sr. Presidente, psicanalisar os eminentes representantes da Nação.” Destacou que não entraria na apreciação da justiça da lei e citou lição de D’Argentré: “não julgo a lei, julgo segundo a lei”38. Não desconhecia que o Decreto-Lei não foi invocado pelas partes. No entanto, lembrou que foi o próprio legislador quem expressamente desejou que o Decreto-Lei questionado fosse aplicável aos casos sub judice, “se constitucional”. Passou, então, aos dois problemas que enfrentou em seu voto: (1) a possibilidade de tratar em decreto-lei sobre a purgação da mora nas locações comerciais; (2) a força retroativa do Decreto-Lei n. 322, de 1967, abrangendo relações constituídas antes da expedição da decretação de urgência atacada. Primeiro problema. Não escrutinou a configuração ou não dos pressupostos constitucionais à edição de decreto-lei: “Não me parece duvidoso que a apreciação da ‘urgência’ ou do ‘interesse público relevante’ assume caráter político — é urgente ou relevante o que o Presidente entender como tal, ressalvado que o Congresso pode chegar a julgamento de valor contrário, para rejeitar o decreto-lei. Destarte, não pode haver revisão judicial desses dois 38 É freqüente a invocação da lição de D’Argentré nos votos do Ministro Baleeiro. Por exemplo: RE n. 63.816/RN, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 15 de abril de 1969. 50 Ministro Aliomar Baleeiro aspectos entregues à discricionariedade do Executivo, que sofrerá apenas correção pela discricionariedade do Congresso.” No entanto, ingressou com firmeza no exame da constitucionalidade material da decretação de urgência considerada: “Mas o conceito de ‘segurança nacional’, a meu ver, não constitui algo indefinido, vago e plástico, algo que pode ser ou não ser entregue ao discricionarismo do Presidente e do Congresso. Os direitos e garantias individuais, o federalismo e outros alvos fundamentais da Constituição ficarão abalados nos alicerces e ruirão se admitirmos que representa ‘segurança nacional’ toda matéria que o Presidente da República declarar que o é, sem oposição do Congresso.” A seguir, com base nos arts. 89 a 91 da Constituição de 1967, insertos que eram de Seção intitulada “Da Segurança Nacional”, o Ministro Aliomar Baleeiro conceituou “segurança nacional”: “Quero crer que ‘segurança nacional’ envolve toda matéria pertinente à defesa da integridade do território, independência, paz e sobrevivência do País, suas instituições e valores materiais ou morais, contra ameaças externas e internas. (...)” Aplicou, então, essa compreensão das coisas ao caso concreto: “Se nisso se contém a matéria da segurança nacional, toda ela de ordem pública e de Direito Público, repugna que ali se intrometa assunto miúdo de Direito Civil, que apenas joga com os interesses também miúdos e privados de particulares, como a purgação da mora nas locações em que seja locatário o comerciante. (...) Já se disse que o Parlamento britânico pode tudo, menos transformar um homem em mulher ou mulher em homem. Mas num país de Constituição escrita e rígida não há o mesmo arbítrio. A lei, no Brasil, não pode transformar o quadrado no redondo sempre que o redondo e o quadrado tenham sido designados como tais na Constituição, expressa ou implicitamente.”39 39 No RE n. 72.486/SP, Relator o Ministro Luiz Gallotti, julgado em 19 de abril de 1972, o STF entendeu constitucional Decreto-Lei que definiu como contrário à segurança interna — e, portanto, da competência da Justiça Militar — o crime de assaltar, roubar ou depredar estabelecimento de crédito ou financiamento, qualquer que seja a sua motivação. O Ministro Baleeiro votou vencido, tendo afirmado: “Creio que o conceito de segurança nacional não pode ser dilatado a ponto de se empregar as palavras no sentido oposto ao que elas significam. Quando a Constituição emprega palavras de Direito Privado, 51 Memória Jurisprudencial Segundo problema. A mora já havia ocorrido de há muito, em função do que o Relator entendeu “que o Recorrente, por isso, estava numa situação jurídica definitivamente constituída e acabada, como titular de direito adquirido garantido pelo art. 150, § 3º, da Constituição de 1967”. O Ministro Baleeiro não negou que o Decreto-Lei levado a julgamento poderia ter “(...) aplicação imediata aos efeitos futuros das situações anteriores, mas não poderá projetar sombra sobre os passados, a fim de atingir os efeitos já produzidos por essas situações anteriores e definitivas. Como, então, aplicá-lo aos processos sub judice?” Enfim, afastou a aplicação do art. 5º do Decreto-Lei n. 322, de 1967, ao caso concreto porque incorreu em inconstitucionalidade ao “dispor sobre matéria estranha à segurança nacional” e ao retroagir “para atingir direito adquirido oriundo de situação jurídica anterior e definitivamente constituída”. Afirmou, ainda, que “(...) a inconstitucionalidade não pode ser convalidada pelo Congresso (art. 58, parágrafo único), porque a matéria de segurança nacional não envolve conceito que o legislador possa discricionária e politicamente definir — ela está definida nos arts. 89 a 91 da Constituição. Nem o Congresso pode sanar a eiva contra o art. 150, § 3º.” Deu, então, provimento ao RE nos termos da legislação anterior. Iniciados os debates, o Ministro Gonçalves de Oliveira agitou a possibilidade de lei nova ser considerada em recurso extraordinário. O Ministro Aliomar Baleeiro respondeu que foi o próprio art. 5º do Decreto-Lei n. 322, de 1967, que determinou a aplicação desse aos casos sub judice. O Ministro Adaucto Cardoso chamou a atenção para o fato de que havia dois temas diversos em julgamento “que devem ser abordados cada um de per si.” O Ministro Aliomar Baleeiro admitiu, então, uma inversão no julgamento: ela se reporta àqueles conceitos de Direito Privado: quando ela se refere a conceitos de Direito Penal, também se reporta àqueles conceitos já consagrados no País, se por acaso não lhes emprestou outros.” E concluiu relativamente ao caso concreto: “No caso concreto, creio que o crime de contrabando ou ataque a bancos, se foi praticado sem um móvel político, por meliantes comuns com passado criminoso, etc., (...), não pode, à luz da Constituição, ser julgado pela Justiça Militar. Até degrada a Justiça Militar, que foi instituída exclusivamente para delitos militares ou de civis que prejudiquem instituições militares, ou para casos de crimes políticos, como tais definidos, naquelas hipóteses a que a Constituição se refere.” O referido voto vencido guarda coerência com o proferido pelo Ministro Baleeiro no RE n. 62.731/GB, no que toca à interpretação restritiva e sistemática do conceito de segurança nacional. 52 Ministro Aliomar Baleeiro partir-se-ia do julgamento do art. 5º do Decreto-Lei n. 322, de 1967, e sua aplicação retroativa, em vez de considerar a validade de todo o referido Decreto-Lei, até porque, segundo a velha regra da U. S. Supreme Court, “não se pronuncia a inconstitucionalidade se não for estritamente necessário — e só na parte necessária à solução do caso concreto”. O Ministro Prado Kelly insistiu com a correção ou não do art. 5º em face da disciplina constitucional do recurso extraordinário. Argumentou que, se essa preliminar fosse vitoriosa, não haveria razão para enfrentar outros assuntos. O Ministro Baleeiro assim respondeu à ponderação: “Creio que a sugestão do eminente Ministro Prado Kelly teria a virtude de restringir ao estritamente indispensável a votação. Sou dos que acham que as leis, aliás na velha regra, só quando absolutamente inconstitucionais devem ser declaradas como tais. Acho que os membros do Congresso, responsáveis pela política legislativa do País, podem exigir que apliquemos cegamente todas as leis que forem constitucionais, boas ou ruins. Quem se queixar da justiça da lei, que vá às eleições e substitua os deputados e senadores. Nosso papel não é fazer leis, mas justiça segundo as leis constitucionais.” Posto isso, sugeriu que fosse, sim, discutida a constitucionalidade ou não do art. 5º do Decreto-Lei n. 322, de 1967, ao menos no que tocava à sua aplicação retroativa aos casos sub judice (e ainda que não se discutisse o problema da segurança nacional): “Quem tiver interesse, suscite a outra questão.” Iniciada a tomada dos demais votos, a maioria dos Ministros enfrentou ambas as questões, isto é, a decisão enfocou o conceito de segurança nacional. O Ministro Barros Monteiro afirmou que as duas questões estavam entrelaçadas. O Ministro Victor Nunes concordou e acrescentou: “Se se tratasse de lei emanada do Congresso, que ampliasse a faculdade de purgar a mora, inclusive para os processos pendentes, eu a aplicaria.” E, a seguir, arrematou: “tenho primeiro de analisar a validade de decreto-lei, porque o tenho por inconstitucional”. O Ministro Evandro Lins seguiu no mesmo sentido: “A questão da inconstitucionalidade é prejudicial de todas as outras questões.” Mais adiante, lembrou que, relativamente ao Decreto-Lei n. 2, de 14 de janeiro de 1966, que deslocava para a competência da Justiça Militar os crimes contra a economia popular, já havia sustentado: “(...) de acordo com o Ato Institucional n. 2, não podia o Presidente da República, baseado na regra que lhe permitia expedir 53 Memória Jurisprudencial decretos-leis em matéria que envolvesse a segurança nacional, ampliar conceitos, de modo a absorver a competência do Poder Legislativo.” O Ministro Djaci Falcão também acolheu os dois fundamentos adotados pelo Relator, muito embora não desconhecesse “a tendência de publicização de certos princípios de direito privado”. O Ministro Eloy da Rocha destacou: “(...) O voto do eminente Relator é exaustivo, convincente, brilhante. (...) Poder-se-á discutir sobre a extensão do conceito [de segurança nacional], mas, no caso, é evidente o excesso.” O Ministro Prado Kelly acompanhou a conclusão do Relator (provimento do RE), mas não acolheu o argumento relativo à segurança nacional, ao entendimento de que o art. 5º não seria aplicável no STF, “porque a observância de tal preceito feriria conceituação constitucional do apelo extremo, qual seja a condição de ‘prequestionamento’.” O Ministro Adalicio Nogueira, não obstante entender como o Relator quanto ao conceito de segurança nacional, acompanhou, no caso vertente, o ponto de vista do Ministro Prado Kelly. O Ministro Hermes Lima votou vencido, entendendo que “(...) o conceito de segurança nacional é extremamente flexível e aberto.” O Ministro Baleeiro insistiu: “O conceito emana de todas as ações que possam pôr em perigo a perenidade, a independência, a segurança, a paz, a ordem interna do País, suas instituições, seus valores morais e intelectuais, quer por agressores externos, quer por agressores internos, em maior ou menor escala, em suas formas aparentes, extrínsecas, ou mesmo com as formas insidiosas, veladas, dissimuladas, que todos conhecemos.” O Ministro Hermes Lima replicou sustentando que o art. 58 da Constituição de 1967 alargava o conceito de segurança nacional ao empregar a fórmula “casos de urgência ou de interesse público relevante”, isso é, “a segurança nacional abrange como casos de urgência ou de interesse público relevante mais alguma coisa do que aquilo que está compreendido no art. 91 da Constituição”. Com a autoridade de quem foi parlamentar, inclusive constituinte, o Ministro Baleeiro lembrou “a velha regra da arte de elaborar leis”, qual seja, não se deve empregar palavras ou cláusulas ou locuções diferentes para uma idéia só: “A Constituição emprega a locução ‘segurança nacional’, mas abre subtítulo ‘Da segurança nacional’, e em outro capítulo a ela se 54 Ministro Aliomar Baleeiro refere. Tem-se que buscar o conceito aí. É a velha arte de interpretar-se a lei analogicamente, sistematicamente. Uma disposição completa a outra, uma lei completa a outra. Não se pode tomar uma disposição isolada, se há uma autorização ao Presidente da República.” O Ministro Evandro Lins ponderou que, em verdade, “a urgência ou o interesse público relevante, ao invés de ampliar o poder do Presidente da República, aí funciona como condição restritiva”. O Ministro Hermes Lima ainda argumentou que os decretos-lei só têm uma instância: o Congresso Nacional, ao que retrucou o Ministro Victor Nunes: “Então esse decreto-lei valeria mais que a lei.” O Ministro Baleeiro, então, insistiu que o conceito de segurança nacional estava definido nos arts. 89 a 91 da Constituição de 1967, e o Presidente da República não poderia hipertrofiá-lo, “(...) com a aprovação do Congresso ou sem ela. O Congresso não pode convalidar ato do Presidente da República nesse sentido, nem por lei”. Criticou o espaço de discricionariedade reconhecido ao Congresso Nacional pelo Ministro Hermes Lima. “Esse é o problema: será matéria discricionária do Executivo e do Congresso?”, indagou o Ministro Victor Nunes. “Se for discricionária, meu nobre Colega, só o céu é o limite.”, respondeu o Ministro Baleeiro. Não obstante, o Ministro Aliomar Baleeiro deixou claro que era partidário de um governo forte e, por isso mesmo, defendia o parlamentarismo, porque, ao seu ver, seria “o governo mais forte do mundo. O detentor de poderes mais discricionário do mundo é o Primeiro Ministro da Inglaterra, enquanto apoiado pelo Parlamento”. O Ministro Hermes Lima não se entregou: “(...) o freio para os decretos do Presidente, em matéria de segurança nacional, está no Congresso. O Congresso que exerça as suas funções, o Congresso que tome realmente a posição de um fiscal desses decretos do Presidente da República. (...)”40 Lembrou, também, que nenhum parlamentar se pronunciou contra o Decreto-Lei em discussão. O Ministro Baleeiro arriscou o porquê: “Não foi por medo do Presidente da República, porque tem havido críticas severas e irreverentes a Sua Excelência em outros assuntos. Mas os deputados tiveram medo de perder a eleição — a maior parte da população é de inquilinos.” 40 Lição atual no contexto das medidas provisórias. 55 Memória Jurisprudencial O Ministro Victor Nunes, ao acompanhar o Relator, voltou à questão da discricionariedade: “O que é discricionário, nesse dispositivo, é a condição da urgência e do interesse público relevante. Sobre isso falam soberanamente, em primeiro lugar, o Executivo e, em segundo, o Congresso. Mas a matéria do decreto-lei, esta é outra condição sem a qual o Presidente da República não pode expedir decretos-leis, pois não basta que a matéria seja urgente e de interesse público relevante, mas é preciso também que se refira à segurança nacional ou às finanças públicas. A definição dessa matéria não é discricionária, pois o nosso sistema constitucional seria ilusório, se um conceito tão básico, tão importante, tão fundamental, seja para a segurança do Estado, seja para a segurança dos indivíduos, dependesse tão-só do critério ilimitado e exclusivo dos órgãos políticos.” O Ministro Gonçalves de Oliveira acompanhou o Relator por ambos os fundamentos e aduziu: “Se a matéria, evidentemente, pelo seu conteúdo, não diz respeito à segurança nacional nem a finanças públicas, mas há aprovação implícita do Congresso Nacional, (...) fica o projeto convalidado? Então, não é apenas sobre segurança nacional e finanças públicas que pode legislar o Presidente da República. É sobre qualquer matéria. E isso é o que o legislador constituinte não quis, deixando ao crivo do Judiciário, do Supremo Tribunal, apreciar o conteúdo dessa lei.” O Ministro Candido Motta também afirmou a inconstitucionalidade do art. 5º do Decreto-Lei n. 322, de 1967, por ambos os fundamentos. Advertiu que, se a segurança nacional fosse considerada no seu sentido mais amplo, não haveria mais garantia para os direitos individuais, sociais e políticos. Destacou o perigo do conceito de segurança nacional que se alastrava nos Estados Unidos, “onde se dizia que o conceito de segurança nacional se dilatava até o Vietnam!” Também acompanharam o Relator, por ambos os fundamentos, os Ministros Adaucto Cardoso, Lafayette de Andrada e Luiz Gallotti. Trata-se de julgado histórico e de grande atualidade. Fornece importantes subsídios sobre a natureza e a sindicabilidade judicial dos pressupostos constitucionais à edição das medidas provisórias, bem assim sobre a convalidação ou não dos eventuais vícios dessas pelo processo de conversão em lei41. 41 AMARAL JÚNIOR, José Levi Mello do. Medida provisória e a sua conversão em lei. A Emenda Constitucional n. 32 e o papel do Congresso Nacional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. pp. 128, 156-163, 230-235 e 284-293. 56 Ministro Aliomar Baleeiro Vale destacar: o julgado examinado também demonstra, de modo eloqüente, a independência do STF, mormente em período de déficit democrático. No mesmo sentido foi o RE n. 62.739/SP, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, também julgado em 23 de agosto de 1967, mas cujo acórdão traz somente o voto do Relator. Controle de constitucionalidade de decreto-lei. Outras questões No RE n. 75.935/SP, julgado em 9 de outubro de 1973, bem assim no RE n. 76.336/SP, julgado em 25 de outubro de 1973, o Ministro Baleeiro, Relator em ambos os feitos, voltou ao tema dos pressupostos do decreto-lei: “A ‘urgência’ e o ‘interesse público relevante’ são aspectos políticos entregues à discricionariedade (não ao arbítrio) do Congresso e do Presidente da República, como o Supremo Tribunal Federal decidiu por unanimidade no RE 62.739 (RTJ 44/173), exibido pelas próprias Recorrentes. O controle do Judiciário nesse caso só poderá ocorrer excepcionalmente se a discricionariedade, praticada já no campo do absurdo, tocar ao arbítrio. (...)” No RE n. 75.972/SP, Relator o Ministro Thompson Flores, julgado em 10 de outubro de 1973, o Ministro Baleeiro discutiu a possibilidade ou não de o decreto-lei instituir e majorar tributos. A Constituição de 1967 admitia que o decreto-lei disciplinasse “finanças públicas” (art. 58, II). A Emenda Constitucional n. 1, de 1969, acrescentou ao permissivo constitucional a fórmula “inclusive normas tributárias” (art. 55, II — conforme renumeração). Ainda assim, o Ministro Baleeiro sustentou que não seria dado ao decreto-lei instituir ou majorar tributos: “Mas creio que, fora das exceções da CF no art. 21, I, II, V e § 2º, I, e no art. 153, § 29, o decreto-lei não é idôneo para instituir ou majorar tributo, a tanto não chegando a nova cláusula ‘inclusive normas tributárias’.” O Ministro Baleeiro fez, nos debates, severa crítica ao decreto-lei: “Decreto-lei não é lei. É uma ferramenta da Constituição brasileira, um instrumento de um regime diferente, instituído, a princípio, pela ditadura de 1937; em segundo lugar, pelo regime parlamentar de 1961, restabelecido dentro de uma Constituição presidencialista. Tem as mais nefastas conseqüências para a evolução do Direito brasileiro, para a perfeição do regime, porque mistura instrumentos de regimes políticos diversos e opostos.” 57 Memória Jurisprudencial O Ministro Baleeiro, neste último julgado, ficou vencido quanto à questão de fundo — natureza do Adicional ao Frete para Renovação da Marinha Mercante. A questão relativa à possibilidade ou não de o decreto-lei instituir ou majorar tributos não foi decidida porque lhe faltava prequestionamento42. Nos já referidos RE 75.935/SP e RE 76.336/SP, o Ministro Baleeiro também discorreu sobre a aptidão do decreto-lei para a decretação e para a majoração de tributos. Sustentou que, em princípio, a decretação e a majoração de tributos deveriam ser feitas única e exclusivamente pela lei ordinária, “do que resulta a inidoneidade do decreto-lei para esse fim”. No entanto, em se tratando de imposto de importação, cujas alíquotas podem ser modificadas por ato do Poder Executivo, aí incluído o decreto-lei, afirmou: “Se a Constituição Federal deu essa faculdade ao Executivo, claro que não há de ser exercida por lei ordinária, ato do Legislativo.” Prosseguiu: “o Presidente da República pode curar do assunto até num simples decreto e, com mais razão, num decretolei que será submetido ao controle do Legislativo”. No RE n. 76.828/SP, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 8 de março de 1974, o STF entendeu que os efeitos de um decreto-lei poderiam ficar subordinados à expedição do respectivo regulamento de execução. O Ministro Baleeiro sustentou que quem pode o mais pode o menos: “se o Executivo pode expedir decreto-lei com vigência imediata, pode condicioná-la à expedição de regulamento”. A decisão é relevante porque implicou admitir que a vacatio legis não desprezou o pressuposto constitucional de urgência — que também é exigido para a atual medida provisória. No RE n. 79.212/SP, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 3 de novembro de 1976, o STF discutiu se acaso decreto-lei poderia alterar o CTN. O Ministro Baleeiro sustentou que decreto-lei não poderia fazê-lo, porque o CTN passara a ser uma lei complementar. Explicou a situação: quando o CTN foi sancionado, em 25 de outubro de 1966, não havia, no texto constitucional então vigente — de 1946 —, lei complementar. Veio, logo a seguir, a Emenda Constitucional n. 18, de 1º de dezembro de 1966, que falava, aí sim, em lei complementar, sem, todavia, estabelecer critérios para distinguir essa da lei ordinária. Foi a Constituição de 1967 que estabeleceu que lei complementar deveria ser votada pela maioria absoluta dos membros de cada Casa do Congresso Nacional43, bem assim a ela confiou as normas gerais de Direito Tributário44. Prevaleceu, no 42 Vide, a propósito, o tópico “Natureza tributária” do Capítulo “Contribuições parafiscais”. 43 Art. 53 da Constituição de 1967. 44 Art. 19, § 1º, da Constituição de 1967. 58 Ministro Aliomar Baleeiro entanto, o voto do Ministro Leitão de Abreu, que deixava de lado esse problema e reconhecia haver harmonia entre o CTN e o decreto-lei objeto do caso concreto. Controle do quantum de multa fiscal No RE n. 60.964/SP, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 7 de março de 1967, discutiu-se a possibilidade ou não de o Poder Judiciário reduzir o quantum de multa fiscal. O Relator deixou assente a impossibilidade de o Poder Judiciário fazê-lo, consignando em expressivo trecho da Ementa do julgado: “O Supremo Tribunal Federal não corrige injustiça da lei se não é inconstitucional, nem do executor, se não há ilegalidade.” Em seu voto, o Relator referiu antigo precedente no mesmo sentido, qual seja, o RE n. 21.211/DF, Relator o Ministro Ribeiro da Costa, julgado em 13 de outubro de 1952. No entanto, no caso concreto, tratava-se de multa de Estado cujo Código Tributário permitia que as autoridades julgadoras reduzissem ou mesmo relevassem as penalidades cabíveis quando fosse evidenciado que a infração fora praticada sem dolo ou má-fé. Tem-se, aí, portanto, problema de legalidade que não pode ser excluído da apreciação do Poder Judiciário (cf. despacho de admissão do Recurso, transcrito no Relatório do julgado). O Recurso não foi conhecido, mantendo-se, portanto, a decisão recorrida, que reduzira a multa fiscal imposta. Em igual sentido, o voto do Ministro Baleeiro, Relator, no RE n. 60.972/SP, julgado em 7 de março de 1967. Vale registrar, também, a ocorrência de casos outros em que, constatado não haver fraude por parte do contribuinte, mas, sim, controvérsia relativamente à interpretação de lei, o STF decidiu pela exclusão da multa. Exemplo é o RE n. 74.882/RS, Relator o Ministro Djaci Falcão, julgado em 30 de outubro de 1973. O Relator retificou o seu voto para acompanhar o Ministro Aliomar Baleeiro, que, depois de pedido de vista, sugeriu a aplicação daquele entendimento. No RE n. 78.291/SP, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 4 de junho de 1974, admitiu redução de multas, juros, etc., pelos quais dívidas em mora, sem fraude, ficaram elevadas a mais de 400%. Tratava-se, na espécie, de débito decorrente de contribuições parafiscais. O Ministro Baleeiro afirmou a natureza tributária dessas, em razão do que se sujeitariam ao art. 108, IV, do CTN, que admite a eqüidade, segundo a qual, nos termos do art. 114, do CPC de 59 Memória Jurisprudencial 1939, vigente ao tempo do acórdão recorrido, o juiz ficava habilitado a julgar como se fosse legislador45. O Ministro Baleeiro consignou: “Os abusos na aplicação das multas, sobretudo quando moratórias, como a destes autos, têm sido clamorosos, especialmente se ponderar-se que o art. 920 do Código Civil limita as cláusulas penais ao valor da obrigação principal.”46 Ex nunc Na Representação n. 882/SP, Relator o Ministro Xavier de Albuquerque, julgada em 21 de março de 1974, o STF declarou inconstitucional lei paulista que autorizava a designação de funcionários do Poder Executivo para o desempenho das funções próprias do cargo de Oficial de Justiça. No RE n. 78.209/SP, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 4 de junho de 1974, o Tribunal relevou os atos praticados pelos funcionários designados nos termos daquela lei declarada inconstitucional. O Ministro Baleeiro sustentou que, se o Direito reconhece a validade dos atos até de funcionários de fato, estranhos aos quadros do pessoal público, com maior razão há de reconhecê-la se praticados por agentes do Estado no exercício daquelas atribuições por força de lei que veio a ser declarada inconstitucional. E concluiu: “Uma coisa é a inconstitucionalidade da Lei paulista de 3-12-71; outra, as conseqüências jurídicas dos atos materiais e até dos atos jurídicos por eles praticados por ordem e sob responsabilidade dos juízes, como serventuários destes, antes da declaração daquela inconstitucionalidade.” Houve, aí, reconhecimento de inconstitucionalidade cujos efeitos foram modulados no tempo, de modo que não se deu, a rigor, uma declaração de inconstitucionalidade ex tunc, que baniria da ordem jurídica a lei inconstitucional e todos os atos praticados com base nela. Logo, tem-se, aqui, caso de declaração de inconstitucionalidade ex nunc, ainda que não seja expressamente dito. No mesmo sentido, com voto do Ministro Baleeiro: RE n. 78.958/SP, RE n. 78.967/SP e RE n. 79.628/SP. 45 Norma hoje constante do art. 327 do CPC: “O juiz só decidirá por eqüidade nos casos previstos em lei.” 46 A norma constante do art. 920 do Código Civil de 1916 consta, hoje, do art. 412 do Código Civil de 2002: “O valor da cominação imposta na cláusula penal não pode exceder o da obrigação principal.” 60 Ministro Aliomar Baleeiro Irretroatividade das leis (direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada): diferença essencial entre o Direito francês e o brasileiro e outras questões No RE n. 60.175/GB, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 8 de novembro de 1966, a Segunda Turma do STF discutiu a sucessão de leis no tempo em matéria locatícia. Tratava-se de locação procedida por usufrutuária que veio a falecer antes de esgotado o prazo contratual. Era necessário saber se acaso o nu-proprietário — que já era proprietário — equiparava-se ou não ao “novo proprietário” referido pela legislação (que determinava a esse a obrigação de respeitar a locação porventura havida47). Ademais, sobreveio legislação que prorrogava, por tempo indeterminado, as locações que se vencessem em sua vigência48. O Ministro Baleeiro, citando a obra Les conflits de lois dans le temps, de Paul Roubier, discorreu sobre a aplicação da lei no tempo no Direito brasileiro e a sua peculiariedade relativamente ao Direito francês, qual seja, a sede constitucional do princípio da irretroatividade: “Mas não raro os juristas se esquecem de que, no Direito francês, a cláusula de irretroatividade, estando no Código de Napoleão, não é constitucional nem obriga ao legislador ordinário, porque se endereça apenas aos juízes e intérpretes. No Brasil é diferente. A cláusula é constitucional. Está no art. 141, § 3º. Invalida a lei sem desafiá-la. (...) A lei se aplica aos efeitos atuais e futuros das situações preexistentes. De agora para o futuro. Para o futuro, os contratos que se romperem, isto é, em que não houver renovatória ou que ela for improcedente, os efeitos serão de acordo com a lei nova, mas as situações que se produziram e consolidaram no regime da lei antiga, estas são definitivas. A lei aí seria retroativa e não de eficácia imediata, se anulasse tais efeitos já produzidos sob o regime da Lei 1.300/50. A meu ver, aliás, na obra de Roubier está claro o conceito da lei de eficácia imediata e da lei de efeito retroativo. As confusões vêm, às vezes, do olvido daquelas diferenças entre o Direito francês e o Direito brasileiro.” 47 Art. 14 da Lei n. 1.300, de 28 de dezembro de 1950. 48 Art. 8º da Lei n. 4.494, de 25 de novembro de 1964. 61 Memória Jurisprudencial Assim, a Segunda Turma do STF, seguindo o voto do Ministro Baleeiro, decidiu que o nu-proprietário, depois de extinto o usufruto, não é um novo proprietário — porque já tinha o domínio —, não ficando vinculado ao contrato de aluguel anteriormente firmado, mesmo em face da legislação superveniente. Do contrário, a lei nova seria retroativa, e não de eficácia imediata, incorrendo na vedação constitucional — o que não aconteceria no Direito francês49. Caso similar consta do RE n. 60.383/GB, Relator o Ministro Adaucto Cardoso, julgado em 23 de outubro de 1967. A decisão seguiu o entendimento do Ministro Aliomar Baleeiro, ficando vencido o Relator50. Vale referir, ainda, o RE n. 60.767/GB, Relator o Ministro Hermes Lima, julgado em 29 de maio de 1968. A decisão também seguiu o entendimento do Ministro Baleeiro, vencido o Relator. Tratava-se de locação em que a locadora intentou o despejo pela mora do inquilino, que, no entanto, obteve do juiz a purgação da mora. Sem dizê-lo claramente, acórdão de segunda instância (em grau de embargos) manteve a decisão do juiz, aplicando lei nova51 a fato pretérito, com o que não concordou o Ministro Baleeiro52. No mesmo sentido, o RE n. 62.768/SP, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 28 de fevereiro de 1969. 49 Sem prejuízo da argumentação do Ministro Aliomar Baleeiro relativamente ao princípio da irretroatividade, o Plenário do STF, em grau de Embargos, modificou a decisão quanto à matéria de fundo, deixando assente que, com a extinção do usufruto, pela morte do usufrutuário-locador, não cessa a locação. O nu-proprietário foi, então, equiparado ao “novo proprietário”. O Ministro Baleeiro votou vencido (ERE n. 60.175/GB, Relator o Ministro Eloy da Rocha, julgados em 14 de agosto de 1968). No mesmo sentido, o RE n. 69.121/GB. Por outro lado, a conclusão do Ministro Baleeiro voltou a prevalecer em casos posteriores, inclusive em grau de Embargos. A propósito, registrem-se os ERE n. 71.313/ GB, Relator o Ministro Xavier de Albuquerque, julgados em 30 de outubro de 1974. Em fins da sua judicatura, o Ministro Baleeiro voltou à questão. No RE n. 73.249/GB, Relator o Ministro Bilac Pinto, julgado em 1º de abril de 1975, lembrou: “há quase dez anos tive oportunidade de, tenazmente, com a minha conhecida teimosia, defender o ponto de vista de que a morte do usufrutuário rompe a locação por ele celebrada, sem acordo ou concordância do nu-proprietário”. Fiel aos seus votos anteriores, acompanhou o Relator, que, inclusive, invocara, em seu voto, o RE n. 60.175/GB e os ERE n. 71.313/GB. 50 Aqui também houve a oposição de Embargos, mas esses não foram conhecidos em função da atribuição de nova redação ao pertinente permissivo constitucional do recurso extraordinário pelo Ato Institucional n. 6, de 1º de fevereiro de 1969 (ERE n. 60.363/GB, Relator o Ministro Thompson Flores, julgados em 5 de março de 1969). 51 Lei n. 4.494, de 1964. 52 “(...) reconheço a eficácia imediata da lei nova para os efeitos pendentes e futuros. Mas aplica-se, sem dúvida, a lei da época do fato causador da rescisão — a lei em vigor ao tempo em que ocorreu a mora.” 62 Ministro Aliomar Baleeiro Essa compreensão da sucessão das leis no tempo permanece observada na jurisprudência do STF (inclusive com expressas menções a Roubier)53. Merece registro o RE n. 65.134/SP, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 22 de abril de 1969. Nele, discutiu-se o influxo do Ato Complementar n. 30, de 1966, sobre direitos adquiridos em matéria de remuneração de servidores públicos. O Ministro Baleeiro também cogitou sobre o influxo que teriam emendas constitucionais e atos institucionais sobre direitos adquiridos: “Não tenho a mínima dúvida de que essa cláusula apresenta eficácia imediata, regendo os efeitos novos das situações jurídicas. A vinculação pretérita não mais operará seus efeitos para quaisquer mutações daquele dia em diante. Ninguém tem direito adquirido a alegá-la para furtar-se aos atos novos do legislador em matéria de remuneração. Para efeitos futuros, a vinculação passada é lei morta. Mas sobrevive nos efeitos já produzidos pelas leis anteriores. Trata-se, porém, de Ato Complementar da Constituição de 1946 e que, por isso, não a emenda: complementa-a. Um Ato Institucional, ou Emenda Constitucional, poderia extinguir direitos adquiridos, destruindo situações jurídicas individuais perfeitamente definidas e constituídas. Teria força constitucional para isso. Mas não creio que de tal efeito se revista o Ato Complementar 30/66, que, aliás, não manifesta expressa ou implicitamente seu objetivo retroativo. Como o leio, vejo nele apenas eficácia imediata, a partir de 26-12-66, quando de há muito estabelecidas aquelas situações jurídicas e já ajuizada a causa, para resguardá-las em seus efeitos já legalmente produzidos.”54 Com efeito, vale registrar, o Ministro Baleeiro admitia ao constituinte pátrio a possibilidade de “nulificar um ato jurídico perfeito e acabado, direito adquirido”. Vejam-se, por exemplo, os seus votos no RE n. 67.496/DF, no RE n. 67.623/DF e no RE n. 67.977/DF, todos relatados pelo Ministro Djaci Falcão e julgados em 9 de dezembro de 1970. No mesmo sentido foram os seus votos no 53 Por exemplo, a ADI n. 493/DF, Relator o Ministro Moreira Alves, julgada em 25 de junho de 1992 (modificação do índice de correção das prestações de imóveis financiados) e o RE n. 226.855/RS, Relator o Ministro Moreira Alves, julgado em 31 de agosto de 2000 (correção das contas de FGTS em face da sucessão de planos econômicos). 54 No mesmo sentido, quanto à posição dos atos complementares no sistema de fontes do Direito brasileiro de então, vide o voto do Ministro Aliomar Baleeiro no RE n. 68.661/MG, Relator o Ministro Luiz Gallotti, julgado em 3 de dezembro de 1969. 63 Memória Jurisprudencial RE n. 74.284/SP e no RE n. 74.534/SP, ambos relatados pelo Ministro Thompson Flores e julgados em 28 de março de 197355. No RE n. 69.410/SP, julgado em 24 de novembro de 1970, o Ministro Baleeiro, Relator, distinguiu direito adquirido e expectativa de direito. Tratava-se de situação concreta ainda hoje corriqueira (vantagens e adicionais por decurso de tempo que foram suprimidos pela legislação subseqüente): “Não gozavam, a meu ver, de direito adquirido, pois tinham apenas expectativa de direito. Se não podiam exercer o direito em tal dia de 1961, porque não preenchiam as condições alternativas de tempo, era lícito ao legislador mudar a situação estatutária sem ofensa ao art. 141, § 3º, da CF de 1946 ou ao art. 6º da Introdução ao Código Civil. (...)” Em suma, é a conhecida orientação do STF no sentido de que não há direito adquirido a um determinado regime jurídico. No mesmo sentido, o RE n. 70.239/SP. No RE n. 72.378/GB, Relator o Ministro Djaci Falcão, julgado em 13 de março de 1973, o Ministro Baleeiro lembrou o problema da retroatividade das leis interpretativas. Insistindo na diferença havida entre o Direito brasileiro e o francês (em que a irretroatividade não tem sede constitucional), afirmou: “Mas, no Brasil, não há a possibilidade racional de dúvida. Contaminar-se-á de inconstitucionalidade a lei que, a pretexto de interpretar, resolver as situações pretéritas que se constituíram sob a lei interpretada.” Invocou, ainda, lição de juristas no sentido de que a lei interpretativa com efeito sobre o passado é incompatível com a democracia. O caso concreto era relativo à Lei n. 5.670, de 2 de julho de 1971. Ela vedava que o cálculo da correção monetária recaísse sobre período anterior à data em que tivesse entrado em vigor a lei que o instituíra (in casu, a Lei n. 4.686, de 1965). O Ministro Baleeiro já admitira em diversos casos que a correção monetária alcançasse período anterior, de modo a diminuir o efeito da inflação. Do contrário, insistia, não se cumpriria a determinação constitucional de justa 55 Aplicação do entendimento firmado nos ERE n. 72.509/PR, Relator o Ministro Luiz Gallotti, julgados em 14 de fevereiro de 1973, qual seja: “Se, na vigência da lei anterior, o funcionário preenchera todos os requisitos exigidos, o fato de, na sua vigência, não haver requerido a aposentadoria não o faz perder o seu direito, que já havia adquirido.” (o que levou à alteração da Súmula n. 359, não obstante a resistência do Ministro Baleeiro: “Dado que o Regimento Interno não estabelece à risca como se deve fazer a reforma da Súmula, parece-me temerário um processo de plano como este.”). 64 Ministro Aliomar Baleeiro indenização. Votou vencido — como já o fizera nos ERE n. 69.304/MG, Relator o Ministro Luiz Gallotti, julgados em 24 de novembro de 1971 (sobre caso de desapropriação direta) —, porque não se convencera “(...) da constitucionalidade da Lei 5.670, de 1971, que se me afigura a restauração do famoso artigo da execrada Carta de 1937, pelo qual o ditador, por decreto, poderia cassar decisões do Supremo Tribunal, como cassou efetivamente. Pelo menos, foi franco e direto.”56 Pelo Poder Executivo57 No MS n. 15.886/DF, Relator o Ministro Victor Nunes, julgado em 26 de maio de 1966, o STF discutiu se acaso poderia o Poder Executivo — leia-se: Presidente da República ou Governador de Estado — recusar aplicação a uma lei ao argumento de sofrer ela vício de inconstitucionalidade. A questão não era nova na Corte, que já admitira a recusa em casos anteriores. No entanto, o Ministro Victor Nunes argumentou que, com a introdução da representação de inconstitucionalidade pela Emenda Constitucional n. 16, de 1965, não mais haveria espaço para o Poder Executivo recusar aplicação a uma lei: “Se é conclusiva, nessa matéria, a decisão do Supremo Tribunal, o lógico é que essa decisão seja provocada antes de se descumprir a lei. Anteriormente à EC 16/65, não podíamos chegar a essa conclusão por via interpretativa, porque não havia um meio processual singelo e rápido que ensejasse o julgamento prévio do Supremo Tribunal. Mas esse obstáculo está arredado, porque o meio processual foi agora instituído no próprio texto da Constituição.” 56 Referia-se ao parágrafo único do art. 96 da Constituição de 1937: “No caso de ser declarada a inconstitucionalidade de uma lei que, a juízo do Presidente da República, seja necessária ao bem-estar do povo, à promoção ou defesa de interesse nacional de alta monta, poderá o Presidente da República submetê-la novamente ao exame do Parlamento: se este a confirmar por dois terços de votos em cada uma das Câmaras, ficará sem efeito a decisão do Tribunal.” 57 Não obstante o debate passar pela introdução da representação de inconstitucionalidade pela Emenda Constitucional n. 16, de 1965, o presente tópico consta do Capítulo relativo ao “Controle difuso e em concreto de constitucionalidade” porque a matéria nele versada foi manejada em mandado de segurança, ação comum àquela modalidade de controle de constitucionalidade. Ademais, quando o Poder Executivo não cumpre a lei, ele inverte o ônus da ação: “Em vez de tomar a iniciativa, ele não cumpre a lei, e o particular procura o Poder Judiciário, usando das medidas que a Constituição e as leis lhe asseguram.” (Voto do Ministro Aliomar Baleeiro no MS n. 16.003/DF, Relator o Ministro Prado Kelly, julgado em 30 de novembro de 1966.) 65 Memória Jurisprudencial Ponderou que essa interpretação daria novo vigor à presunção de constitucionalidade das leis. Ademais, prosseguiu, dela “resulta que a lei, até ser declarada inconstitucional pelo Judiciário, será obrigatória não só para os particulares como também para os Poderes do Estado”. O Ministro Aliomar Baleeiro registrou que, durante muitos anos, esteve convencido de que não era lícito ao Poder Executivo repudiar a execução de uma lei sob alegação de que fosse inconstitucional. Referiu que a sua convicção ficou abalada com a jurisprudência do STF, mas agora tinha o apoio do Ministro Victor Nunes, “que, como todos sabemos, é a própria jurisprudência viva do Supremo Tribunal andando pelas ruas”. Criticou, então, o sistema de governo presidencialista, agravado pela possibilidade reconhecida ao STF de declarar, de plano e em tese, a inconstitucionalidade de leis estaduais (art. 8º da Constituição de 1946). Ademais, a Emenda Constitucional n. 16, de 1965, estendeu o dispositivo às leis federais. Por outro lado, o Ministro Baleeiro apegou-se à jurisprudência anterior. Afirmou haver inconsistência na invocação da representação de inconstitucionalidade de lei federal. Não obstante a introdução dela, sustentou, não se poderia negar ao Poder Executivo a possibilidade de repudiar a aplicação de leis inconstitucionais. O Ministro Luiz Gallotti concordou: “Se antes já existia, para os governadores, o art. 8º da Constituição, e admitimos pudessem eles, apesar disso, deixar de cumprir as leis que considerassem inconstitucionais, parece-me que não devemos adotar critério diferente para o Governo Federal, só porque a este se estendeu a mesma possibilidade de representação que já tinham os governadores.” Concluiu, o Ministro Baleeiro, divergindo do Ministro Victor Nunes, que poderia, sim, o Presidente da República ou um governador recusar aplicação a uma lei que violasse a Constituição: “Tudo isso se prende à raiz da própria Constituição, ao sistema de governo que adotamos e que acho nefasto para a Nação.” A Corte, por maioria, rejeitou a argüição de que faltava ao Poder Executivo (in casu, ao Presidente da República) a faculdade de negar cumprimento à lei por entendê-la inconstitucional. Reafirmou-se, assim, a jurisprudência já havida sobre o tema. No mesmo sentido, o RMS n. 14.136/ES, Relator o Ministro Vilas Boas, julgado em 14 de junho de 1966. Prevaleceu o entendimento do Ministro Baleeiro, que lavrou o acórdão. 66 Ministro Aliomar Baleeiro Lembrou que a declaração de inconstitucionalidade cobre apenas a parte que bateu às portas do Poder Judiciário, em defesa de seus direitos: “A lei continua em vigor. Não é nula. Só quem pode derrogá-la é o Congresso, o Poder Legislativo ou o Senado Federal, naqueles casos do art. 64 da Constituição.” Afirmou que o Poder Executivo não pode declarar a inconstitucionalidade de uma lei, mas admitiu que ele poderia, sim, em face de uma lei que reputasse inconstitucional, sob sua responsabilidade e risco, descumpri-la — da mesma forma que também pode fazê-lo o particular. Em casos tais, inverte-se o ônus da prova: em vez de ir ao Tribunal — representação de inconstitucionalidade ou representação interventiva —, obriga a parte interessada a ir a juízo defender os seus direitos, momento em que, então, apresentará justificação do seu ato. Referiu, ainda, o risco político que toma o administrador: o impeachment. No MS n. 16.003/DF, Relator o Ministro Prado Kelly, julgado em 30 de novembro de 1966, o STF confirmou o entendimento aludido. O Ministro Baleeiro voltou a criticar o presidencialismo (“não tenho muito acatamento aos ossos venerandos de Montesquieu”) e reafirmou o seu voto anterior na matéria: “A meu ver, o Presidente da República pode, como qualquer cidadão, aceitar o risco de não cumprir uma lei, sob color de que é inconstitucional. Qualquer cidadão que, por exemplo, não queira pagar imposto, convencido de que a lei que o decretou não era constitucional ou de que, sendo constitucional essa lei, não foi condicionado pelo orçamento do exercício respectivo, pode fazê-lo, sob o risco de ser executado ou de sofrer outras medidas legais e vir a pagar multa e demais sanções.” Lembrou, uma vez mais, o risco mais importante que corre o Presidente da República, qual seja, o político, que, no limite, pode implicar impeachment. Assim se pronunciou, mas não quis “chegar ao ponto a que chegou o eminente Ministro Nelson Hungria, que, em sessão memorável, declarou que ‘essas saias pretas não serviam para espantar leão’, famosa frase do chanceler Francis Bacon, no século XVII.”58 58 Referência ao voto do Ministro Nelson Hungria no MS n. 3.557/DF, Relator o Ministro Afrânio Costa (convocado), julgado em 7 de novembro de 1956: “A nossa espada é um mero símbolo. É uma simples pintura decorativa no teto ou na parede das salas de Justiça. Não pode ser oposta a uma rebelião armada. Conceder mandado de segurança contra esta seria o mesmo que pretender afugentar leões autênticos sacudindo-lhes o pano preto de nossas togas.” Não há, para casos tais, “remédio na farmacologia jurídica”. 67 Memória Jurisprudencial Pelo Poder Legislativo No RMS n. 13.239/SC, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 22 de março de 1966, o STF discutiu a possibilidade de o Poder Legislativo anular as suas próprias leis em função da verificação da ocorrência de alguma inconstitucionalidade59. O recorrente fora nomeado, em caráter efetivo, Chefe de Viaturas, mas, quatro meses depois da posse, o Governador do Estado tornou sem efeito o respectivo decreto de nomeação porque lei posterior declarou nula e inconstitucional a lei criadora do cargo. A Assembléia Legislativa assim procedeu em razão de a legislação em causa ter criado cargos — aí incluído o que fora ocupado pelo recorrente — por emendas dos parlamentares, sem que houvesse a iniciativa do Poder Executivo (legislação, portanto, com vício de iniciativa). O Ministro Baleeiro afirmou, em seu voto, que relevaria o vício apontado com base na Súmula n. 5 do STF (“A sanção do projeto supre a falta de iniciativa do Poder Executivo.”)60. Todavia, negou provimento ao recurso ao entendimento de que, “declarando nula e de nenhum efeito” a lei criadora dos cargos, a lei impugnada “teve apenas o efeito de revogá-la, suprimindo os cargos por ela criados, num dos quais fora provido o Recorrente.”61 No RE n. 49.286/RN, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 27 de setembro de 1966, o STF reiterou o entendimento antes referido. 59 A questão não era nova na Corte, e o Ministro Baleeiro seguiu a jurisprudência já assente (a propósito, vide a Representação n. 512/RN, Relator o Ministro Pedro Chaves, julgada em 7 de dezembro de 1962). No entanto, a matéria é relevante e, com alguma freqüência, é recolocada perante o STF. 60 Aventou o mesmo entendimento no RE n. 63.316/MG, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 21 de março de 1969. 61 Grifamos. Vale registrar caso bastante similar na jurisprudência recente do STF. Tratase da ADI 221-MC/DF, Relator o Ministro Moreira Alves, julgada em 29 de março de 1990. A Ação Direta impugnava as Medidas Provisórias n. 153 e 156, ambas de 15 de março de 1990, que definiam crimes de abuso econômico contra a Fazenda Pública. Antes do julgamento da Ação Direta, foi editada a Medida Provisória n. 175, de 27 de março de 1990, que declarou “nulas e de nenhuma eficácia” as Medidas Provisórias n. 153 e 156. O STF, seguindo o voto do Relator, interpretou a Medida Provisória n. 175 como ab-rogatória das Medidas Provisórias n. 153 e 156. Esse precedente foi confirmado sob o modelo da Emenda Constitucional n. 32, de 11 de setembro de 2001. A Medida Provisória n. 124, de 11 de julho de 2003, foi revogada pela Medida Provisória n. 128, de 1º de setembro de 2003 (convertida na Lei n. 10.752, de 30 de outubro de 2003). O STF indeferiu pedido de liminar contra a Medida Provisória n. 129, de 2003, formulado na ADI n. 2.984/DF, Relatora a Ministra Ellen Gracie, julgada em 4 de setembro de 2003. 68 Ministro Aliomar Baleeiro Tratava-se de funcionária pública que “não era estável nem ingressou por meio de concurso”. A funcionária havia obtido decisão favorável no Tribunal de Justiça local. O STF voltou a aplicar o entendimento de que, em se tratando de legislação que cria cargo público, a sua anulação ou declaração de ineficácia por lei superveniente torna inexistente o cargo em questão. Há que entender, portanto, revogada aquela legislação. Ademais, “negando ao Legislativo a competência para cassar as próprias leis, vale dizer, revogá-las, o v. acórdão chocou-se com o princípio da harmonia e independência dos Poderes”. Em casos tais, não havia que aplicar a Súmula n. 21 do STF (“Funcionário em estágio probatório não pode ser exonerado nem demitido sem inquérito ou sem as formalidades legais de apuração de sua capacidade.”), mas, sim, a Súmula n. 22 (“O estágio probatório não protege o funcionário contra a extinção do cargo.”). No mesmo sentido: RREE n. 49.572/RN, 58.962/RN, 60.733/RN e 61.549/RN. Por outro lado, no julgamento dos RREE n. 61.045/RN, 61.046/RN, 61.048/RN, 61.050/RN, 61.055/RN, 61.056/RN e 61.057/RN, todos relatados pelo Ministro Evandro Lins — que, até então, votava vencido na matéria — e julgados em 30 de maio de 1967, prevaleceu o entendimento de que não mais poderiam ser demitidos os funcionários na situação em causa porque se tornaram estáveis com a superveniência da Constituição de 1967, cujo art. 177, § 2º, assim dispôs: “São estáveis os atuais servidores da União, dos Estados e dos Municípios, da Administração centralizada ou autárquica, que, à data da promulgação desta Constituição, contem, pelo menos, cinco anos de serviço público.” O Ministro Adalicio Nogueira, ao acompanhar o Ministro Evandro Lins, sustentou que o novo “dispositivo constitucional convalidou a situação”. O Ministro Baleeiro manteve o seu entendimento, passando, portanto, a votar vencido. Com efeito, o Ministro Baleeiro guardou coerência com a leitura de que a Lei do Rio Grande do Norte limitou-se a revogar a legislação anterior. Assim, não haveria que falar em convalidação. Ademais, ainda que não se aceitasse a leitura do Ministro Baleeiro, não é — ou não era — da tradição brasileira admitir a convalidação de uma inconstitucionalidade (como parece ter admitido o Ministro Adalicio Nogueira), conquanto o próprio Ministro Baleeiro tivesse aventado a aplicação da Súmula n. 5. 69 Memória Jurisprudencial Nos RREE n. 61.324/RN, 61.350/RN, 61.352/RN, 61.353/RN, 61.513/RN e 61.519/RN, todos relatados pelo Ministro Adaucto Cardoso e julgados em 25 de outubro de 1967, o Tribunal Pleno reafirmou a sua jurisprudência anterior. Por sua vez, o Ministro Baleeiro acompanhou o Relator também porque os impetrantes não fizeram prova de que eram ocupantes atuais dos cargos. Julgados no mesmo sentido, com voto do Ministro Baleeiro: RE n. 61.549/ RN, RE n. 63.571/RN, RE n. 68.259/RN, ERE n. 49.565/RN, ERE n. 61.316/ RN, ERE n. 61.327/RN, ERE n. 61.444/RN e ERE n. 61.553/RN. Outro caso do Rio Grande do Norte sobre funcionalismo, com voto do Ministro Baleeiro: RE n. 62.404/RN (Súmula n. 27). Princípio da isonomia e equiparação de vencimentos No RE n. 52.598/GB, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 27 de setembro de 1966, o STF enfrentou a antiga — mas sempre atual — questão relativa à possibilidade ou não de equiparar vencimentos — ou estender vantagens — com base no princípio da igualdade. No caso vertente, assim votou o Ministro Baleeiro: “A Lei, equiparando-os aos funcionários em geral, quis ampará-los quanto à estabilidade e às garantias asseguradas a estes. Mas se ela não se referiu a vencimentos, não é possível ao Judiciário assumir competência, que a Constituição reserva só ao Congresso com a sanção do Presidente da República e por iniciativa deste. Nem é possível dar vencimentos sem classificação em cargos, aos quais eles se referiam. (...) O Supremo Tribunal Federal já tem proclamado iterativamente que a invocação do princípio da isonomia não o investe na competência de equiparar vencimentos.” Já havia, inclusive, Súmula sobre a matéria, qual seja, a de n. 339, verbis: “Não cabe ao Poder Judiciário, que não tem função legislativa, aumentar vencimentos de servidores públicos sob fundamento de isonomia.” Essa jurisprudência é observada até hoje. Trata-se de entendimento prudente, porque não permite que o STF assuma papel de legislador positivo, o que não lhe cabe. No entanto, vale lembrar, a jurisprudência em questão já foi posta de lado em alguns raríssimos casos concretos. Exemplo recente é o RMS n. 22.307/DF, 70 Ministro Aliomar Baleeiro Relator o Ministro Marco Aurélio, julgado em 19 de fevereiro de 1997 — caso dos “28,86%” concedidos aos servidores militares, mas não aos servidores civis. Em igual sentido foram os votos do Ministro Baleeiro nos seguintes feitos: RE n. 62.538/PE (em que cita o RE n. 43.063/PE, cuja ementa diz: “Não está na esfera do Judiciário fixar ou corrigir a lei.”), RE n. 64.220/SP, cuja ementa diz: “o STF não substitui o Poder Legislativo”, RE n. 65.595/MG, RE n. 67.315/SP, RE n. 67.720/SP (o recurso extraordinário “é remédio para correção da rebeldia ao Direito Federal, não para as injustiças do legislador, desde que este não ultrapasse as limitações constitucionais”), RE n. 67.862/AM, RE n. 69.087/GB, RE n. 70.728/GB, RE n. 72.588/PE, RE n. 73.791/PE, RE n. 74.193/GB (em que refere que os Estados, sem embargo da autonomia a eles inerente, devem guardar simetria com o modelo federal em matéria de divisão, independência e competência dos Poderes, “assim como os princípios reguladores do funcionalismo público”), RE n. 74.488/GB, RE n. 74.538/SP, RE n. 75.616/SP, RE n. 75.665/CE e RE n. 80.330/SP. Em grau de embargos, também votou no mesmo sentido: ERE n. 67.958/GB e ERE n. 71.492/SP. Em casos específicos, o Ministro Baleeiro abriu exceção ao entendimento referido. No RE n. 69.270/SP, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 9 de setembro de 1970, o STF afastou a tese da Súmula n. 339. Tratava-se de lei estadual que concedia aumento a servidores do Poder Judiciário. No entanto, a lei estadual referida não teria derivado de processo legislativo deflagrado por iniciativa do Poder Judiciário. Dois motivos levaram o Ministro Baleeiro a não aplicar a jurisprudência dominante in casu, quais sejam: (1) o próprio Tribunal de Justiça de São Paulo recuou do seu repúdio à constitucionalidade da lei estadual em causa, não só porque aplicou aquele mas também pedindo ao Poder Legislativo suplementação orçamentária para cumpri-la, em razão do que a situação passou a ser idêntica àquela da Súmula n. 5, afirmou o Relator; e (2) o acórdão recorrido não contrariou o princípio da isonomia constante da Constituição de 1967, porque, “em verdade, dele se socorre como um dos argumentos eficientes de sua fundamentação, que reside na interpretação de leis estaduais, cuja validade afinal proclamou”. Logo, o acórdão recorrido limitou-se a trazer “soberana interpretação do Direito local pela Justiça do Estado, que entendeu resultar o aumento de lei válida do Estado”. No mesmo sentido e com manifestação do Ministro Baleeiro: RE n. 69.570/SP, RE n. 69.603/SP e RE n. 71.295/SP. Regra do full bench No RE n. 49.286/RN, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 27 de setembro de 1966, o STF deu provimento ao recurso para cassar a segurança 71 Memória Jurisprudencial concedida, entre outros argumentos, em função de o acórdão recorrido não ter observado a regra do full bench, constante do art. 200 da Constituição de 1946 (“Só pela maioria absoluta dos seus membros poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou de ato do Poder Público.”). A inconstitucionalidade da Lei estadual fora reconhecida por quatro votos contra três, em um Tribunal de onze membros. No RE n. 46.959/SC, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 4 de outubro de 1966, o STF anulou julgamento do Tribunal a quo, que também não observara o art. 200 da Constituição de 1946. Três eram os argumentos de ordem constitucional, mas nenhum deles alcançou a maioria exigida. No RE n. 65.134/SP, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 22 de abril de 1969, o STF entendeu que não há “(...) inconstitucionalidade na circunstância de não ter sido submetida a matéria novamente ao Pleno, porque este, antes, por algumas vezes, já se havia manifestado uniformemente sobre ela. O mesmo faz-se no Supremo, e é expresso, nesse sentido, o Regimento Interno do eg. Tribunal de Justiça de São Paulo. As teses eram as mesmas, e os mesmos os diplomas controvertidos.” Com efeito, é corriqueiro que os regimentos internos dos tribunais brasileiros disponham neste exato sentido. Em verdade, trata-se de uma questão de economia processual inerente à regra do full bench. Ademais, o próprio CPC adotou idêntico proceder62. No mesmo sentido, o seguinte julgado com manifestação do Ministro Baleeiro: RE n. 69.673/SP. No RE n. 77.935/RJ, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 17 de maio de 1974, o STF deixou claro que os tribunais estaduais devem observar a regra da maioria absoluta de seus juízes quando tiverem de declarar a inconstitucionalidade de leis, ainda que locais. O Ministro Baleeiro consignou que, no caso vertente, o Tribunal recorrido somente se referia a dispositivos da Constituição estadual e até parecia conceder que a Lei não era inconstitucional, mas só as Instruções. Seriam, então, apenas ilegais. “Por outro lado, os dispositivos da Constituição estadual malferidos, segundo o acórdão, correspondem a iguais da Constituição Federal, nela integrados por força do art. 200 da Emenda 1/69”. 62 “Art. 481. (...) Parágrafo único. Os órgãos fracionários dos tribunais não submeterão ao plenário, ou ao órgão especial, a argüição de inconstitucionalidade, quando já houver pronunciamento destes ou do plenário do Supremo Tribunal Federal sobre a questão.” (Acrescentado pela Lei n. 9.756, de 17 de dezembro de 1998.) 72 Ministro Aliomar Baleeiro Resolução do Senado Federal suspensiva de norma legal declarada inconstitucional pelo STF: inconstitucionalidade de sua modificação por outra No MS n. 16.512/DF, Relator o Ministro Oswaldo Trigueiro, julgado em 25 de maio de 1966, o STF decidiu sobre a possibilidade ou não de o Senado Federal interpretar decisão do STF — modificando-lhe o sentido ou lhe restringindo os efeitos — por meio de resolução subseqüente a outra, que suspendera a execução de norma legal declarada inconstitucional pelo STF. O mandado de segurança foi conhecido como representação de inconstitucionalidade, e essa foi julgada procedente. Assim também aconteceu com a Reclamação n. 691/SP, Relator o Ministro Carlos Medeiros, julgada na mesma oportunidade. Discutiu-se, in casu, a norma então constante do art. 64 da Constituição de 1946, correspondente ao atual art. 52, X, da Constituição de 198863. Importa, aqui, registrar a opinião do Ministro Aliomar Baleeiro sobre a norma constitucional referida, bem assim sobre a questão constitucional controvertida. Primeiro, o Ministro Baleeiro reconheceu ser uma faculdade do Senado Federal a suspensão ou não de uma lei ou ato normativo declarado inconstitucional pelo STF. Não aceitava fosse o Senado Federal reduzido a um mero “carimbador” das decisões do STF: “Ele tem, a meu ver, como está neste dispositivo, o poder de, se forem dois ou três dispositivos, suspender um e não suspender os demais. O papel do Senado Federal não é o de um simples carimbo de borracha das decisões do Supremo Tribunal; ele tem uma opção política de achar conveniente suspender ou não.” Segundo, o Ministro Baleeiro acompanhou o Relator ao considerar inadequado o mandado de segurança para a discussão posta. Isso porque sustentou o caráter normativo da resolução do Senado Federal fundada no art. 64 da Constituição de 1946: “O mandado de segurança, nesse caso, não se pode utilizar pelo mesmo princípio de que ele não é utilizado contra a norma em tese.” Também descartou o uso de reclamação no caso vertente, como pretendido pelo Procurador-Geral da República, dado o seu caráter correcional, “que a torna 63 “Compete privativamente ao Senado Federal: (...) suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal;” 73 Memória Jurisprudencial absolutamente imprópria para ser dirigida contra um dos órgãos dos Poderes da República”. No entanto, considerando que o Procurador-Geral da República assumira a autoria da reclamação, conheceu como representação. Terceiro, no mérito, o Ministro Baleeiro votou vencido. Sustentou a possibilidade de o Senado Federal “suspender e rever o seu ato e fazê-lo a qualquer tempo”. Lembrou hipótese manejada pelo Ministro Victor Nunes, qual seja, o Senado Federal poderia chegar à conclusão de que mais convém aguardar uma mudança de composição do STF quando a margem de votação foi mínima, “como poderia, também, preferir o processo de emenda constitucional” para superar a jurisprudência firmada pelo Tribunal. Deu, ainda, exemplo fundado na História constitucional norte-americana, qual seja, um Estado-Membro, profundamente conturbado por um problema político como aquele havido no sul dos Estados Unidos em 1860. Sobrevém, então, uma decisão judicial, como a do célebre case Dred Scott vs. Sanford 64, provocada por um ou dois indivíduos, enquanto todos os demais querem cumprir a lei: “Isso pode provocar tamanha irritação no Estado, que o leve a tomar de armas, como lá aconteceu, em parte, por efeito do acórdão sobre Dred Scott.” Concluiu, então, que o Senado não está preso à disciplina jurídica, às formas de direito, e poderia, sim, optar por critérios políticos e “preferir ‘suspender a sua suspensão’, para parodiar Pontes de Miranda, e evitar um mal maior para o País.” E concluiu: “A Constituição não é, apenas, um Oráculo de Delfos em matéria de ordem jurídica. Ela é para fazer andar o País; não é para fazer parar a vida do País.” A resolução impugnada foi declarada inconstitucional. Enfim, vale registrar, o Ministro Baleeiro reconhecia a inconstitucionalidade da legislação objeto da suspensão senatorial, apenas ressalvava a possibilidade de o Senado Federal querer reformar a sua decisão de suspensão, conforme afirmou em seus votos dos seguintes julgados: RMS n. 17.049/SP, Relator o Ministro Adalicio Nogueira, julgado em 19 de setembro de 1967, RMS n. 17.113/SP, Relator o Ministro Adaucto Cardoso, julgado em 17 de outubro de 1967, RMS n. 17.310/SP, 64 O julgamento se deu em 1857 e foi a primeira declaração de inconstitucionalidade de lei federal após Marbury vs. Madison. A propósito, CLINTON, Robert Lowry. Marbury v. Madison and judicial review. Lawrence: University Press of Kansas, 1989. p. 119. 74 Ministro Aliomar Baleeiro Relator o Ministro Adalicio Nogueira, julgado em 13 de junho de 1967, e RMS n. 17.499/SP, Relator o Ministro Evandro Lins, julgado em 7 de novembro de 1967. No mesmo sentido, o RMS n. 16.893/SP, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 7 de março de 1967, e o RMS n. 17.116/SP, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 30 de maio de 1967. 75 Memória Jurisprudencial CONTROLE CONCENTRADO E EM ABSTRATO DE CONSTITUCIONALIDADE O Ministro Aliomar Baleeiro mal começara a sua judicatura constitucional quando o controle concentrado e em abstrato de constitucionalidade, em moldes próximos aos defendidos por Kelsen65, dava os seus primeiros passos na Constituição de 194666. A representação de inconstitucionalidade fora introduzida pela Emenda Constitucional n. 16, de 26 de novembro de 1965. O Ministro Baleeiro tomara posse no STF no dia anterior. Ademais, como mencionado, a representação interventiva já permitira um esboço de controle concentrado e em abstrato, mas somente relativamente a leis estaduais67. Em não poucos votos, o Ministro Baleeiro revelou-se cauteloso diante do poder de declarar inconstitucional uma lei em tese, mormente pelo receio de conflitos entre Poderes. Veja-se, por exemplo, a seguinte manifestação sua: “(...) Hoje, temos o poder formidável de declarar a inconstitucionalidade de uma lei em tese, anulando as atribuições do Congresso. Um justice da Corte Suprema dos Estados Unidos já disse que, ‘quando há impressão de que a lei não é boa, sempre arranjamos um motivozinho para declará-la inconstitucional’. Essa inclinação satânica do poder político — e este é um poder político — pode levar-nos a fricções que nunca houve, nos setenta e sete ou setenta e oito anos da vida republicana brasileira, entre o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal.” 68 Na mesma oportunidade, alertou para a delicadeza do momento político então vivido pelo Poder Legislativo. Recomendava, assim, que a inconstitucionalidade de uma lei somente fosse declarada quando induvidosa: “(...) Para que quebrar essa velha harmonia que a Constituição quer entre os Poderes, agredindo o Poder nacional que está mais agredido, mais enfraquecido, mais humilhado, mais vilipendiado? 65 KELSEN, Hans. La garanzia giurisdizionale della costituzione (La giustizia costituzionale) in La giustizia costituzionale. Milano: Giuffrè Editore, 1981. pp. 143 a 228. 66 Na doutrina anterior à Emenda Constitucional n. 16, de 1965, vide a obra clássica de Alfredo Buzaid, Da ação direta de declaração de inconstitucionalidade no direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1958. 67 MENDES, Gilmar Ferreira. Op. cit. pp. 60-64. O próprio Ministro Baleeiro já o apontava, por exemplo, no MS n. 15.886/DF, Relator o Ministro Victor Nunes, julgado em 26 de maio de 1966. 68 Voto do Ministro Aliomar Baleeiro na Representação n. 751/GB, Relator o Ministro Victor Nunes, julgada em 19 de outubro de 1967. 76 Ministro Aliomar Baleeiro Quero fazer aqui a minha profissão de fé de usar, no meu voto, desse poder somente quando for fora de dúvida a inconstitucionalidade.”69 Advertia-o por experiência própria, “com a prática de quem militou, muitos anos, no Congresso Nacional”. Certa feita, recordou julgamento do STF que exaltou os ânimos de parlamentares mais jovens. Fez, ainda, graça consigo mesmo: “Lembro-me bem que os deputados mais novos, os mais fogosos, pretendiam, imediatamente, apresentar uma emenda restringindo as atribuições regimentais do Supremo Tribunal. Os mais velhos disseram: ‘Nós sempre vivemos bem com os velhinhos. Reconhecemos a utilidade dos velhinhos. Para que exagerar essas coisas?’ Aliás, ‘velhinhos do Supremo Tribunal’ — é uma expressão carinhosa, embora não tivesse sido bem compreendida pelo antecessor de V. Exa., Sr. Presidente, nesta Corte, numa carta que me dirigiu.”70 Conhecia, com clareza, a natureza marcadamente política do controle concentrado e em abstrato: “A temperatura de Brasília pode variar e a pressão atmosférica e o grau higroscópico, também. Mas as questões constitucionais — por isso que são questões políticas — fazem subir a temperatura, normalmente, e também sofrem a pressão ambiente. É o clima natural de qualquer órgão jurisdicional que tenha de resolver problemas de constitucionalidade de lei. A vida inteira, enquanto o Supremo Tribunal Federal decidir questões políticas — e política é toda a questão que diz se vale ou não vale determinada lei, em face da Constituição —, ele tem de sofrer essas pressões climáticas todas.”71 Por outro lado, negava à representação de inconstitucionalidade o caráter de ação. Via nela um instrumento político, à semelhança do impeachment: “Para mim não é uma ação, no sentido clássico, genuíno de Direito Processual. Para mim é uma instituição de caráter político, à semelhança do impeachment, que, por mais que queiramos pôr dentro do processo penal, não é processo penal. É uma medida política, 69 Voto do Ministro Aliomar Baleeiro na Representação n. 751/GB, Relator o Ministro Victor Nunes, julgada em 19 de outubro de 1967. 70 Voto do Ministro Aliomar Baleeiro no Agravo na Representação n. 700/SP, Relator o Ministro Victor Nunes, julgado em 8 de novembro de 1967. 71 Voto do Ministro Aliomar Baleeiro na Representação n. 770/GB, Relator o Ministro Djaci Falcão, julgada em 26 de fevereiro de 1969. 77 Memória Jurisprudencial pouco importando que ela adote alguns dos ingredientes processualistas, como há exemplo do Direito Administrativo, que se socorre de recursos do Direito Comercial ou Civil, a mesma coisa fazendo o Financeiro em relação ao Direito Privado.”72 Recusava o papel de censor da estética ou da técnica legislativas. Ao refutar examinar se acaso determinadas palavras “se compreenderiam bem nas atribuições”73 de órgão estadual, disse: “Podem ser pernósticas, mas não inconstitucionais.”74 Ao seu melhor estilo, ainda registrou: “Até é bom que as leis sejam um pouco imperfeitas, porque, assim, dão maior margem à imaginação do jurista quando aplicá-las.”75 Voltou ao tema em outra oportunidade, ao recomendar cuidado na censura à legislação estadual: “O Supremo Tribunal Federal declara inconstitucionalidades das Cartas estaduais e das leis em relação à Constituição Federal, mas seria excesso corrigir defeitos de técnica ou política legislativa, deslizes literários e outros senões que existem tanto na Constituição Federal quanto em todas as Constituições de países cultos. Na da Suíça, regula-se até como devem ser abatidas as reses. Na de Weimar, dispunha-se que deputado podia viajar grátis nas estradas de ferro.”76 O Ministro Baleeiro exerceu a judicatura constitucional em tempos em que não só o Congresso Nacional estava enfraquecido mas também a própria Federação. Tinha plena consciência disso e, por isso mesmo, insistia na prudência com que o escrutínio havia de ser levado a efeito: “(...) é com timidez e prudência que participo do exercício deste poder de declarar, em tese, leis inconstitucionais, quer da União, quer dos Estados, sobretudo da União. 72 Voto do Ministro Aliomar Baleeiro no Agravo na Representação n. 700/SP, Relator o Ministro Victor Nunes, julgado em 8 de novembro de 1967. Já havia cogitado sobre a natureza política do impeachment no RE n. 62.387/RJ, Relator o Ministro Adaucto Cardoso, julgado em 24 de outubro de 1967. 73 Voto do Ministro Prado Kelly na Representação n. 751/GB, Relator o Ministro Victor Nunes, julgada em 19 de outubro de 1967. 74 Voto do Ministro Aliomar Baleeiro na Representação n. 751/GB, Relator o Ministro Victor Nunes, julgada em 19 de outubro de 1967. 75 Voto do Ministro Aliomar Baleeiro na Questão de Ordem suscitada na Representação n. 751/GB, Relator o Ministro Victor Nunes, julgada em 19 de outubro de 1967. O Ministro Adaucto Cardoso solicitou fosse a Representação discutida em Conselho, isto é, em sessão secreta. O Tribunal acolheu a proposta. 76 Representação n. 799/GB, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgada em 29 de abril de 1970. 78 Ministro Aliomar Baleeiro Também não tenho dúvida alguma de que a pena com que foi escrita essa reforma da Constituição da Guanabara devia estar muito grossa e rombuda. Mas, por outro lado, a pena que escreveu a Constituição de 1967, pelo menos na parte literária, também estava muito maltratada e enferrujada.”77 Como que antevendo tempos futuros, advertia contra a vulgarização do controle concentrado e em abstrato: “Se a prática se generalizasse e o STF tivesse de espancar as dúvidas sobre a constitucionalidade dos milhares de leis e decretos expedidos cada ano pela fecundidade legiferante das instituições atuais, nenhum tempo lhe sobraria para o exercício de outras atribuições. Não se pode transformar em rotina o que foi concebido como remédio heróico para os casos graves de exceção. (...)”78 Enfim, importa coligir alguns dos julgados de que tomou parte o Ministro Baleeiro, em que problemas pertinentes ao controle concentrado e em abstrato foram por ele enfrentados. Amicus curiae em representação de inconstitucionalidade Na Representação n. 700/SP, Relator o Ministro Victor Nunes, julgada em 3 de maio de 1967, o Ministro Aliomar Baleeiro defendeu a figura do amicus curiae, “como faculdade e debaixo da cláusula de relevância, a critério do Presidente da Casa”, em molde próximo àquele praticado na U. S. Supreme Court. Explicou: “(...) Essa figura funciona exatamente nos casos em que não é possível configurar-se a intervenção de interessado remoto, como um assistente ou oponente em qualquer forma de litisconsórcio. Lá, nos 77 Voto do Ministro Aliomar Baleeiro na Representação n. 746/GB, Relator o Ministro Gonçalves de Oliveira, julgada em 7 de março de 1968. O Ministro Baleeiro referia-se à permissão constitucional de 1967 no sentido de que a lei poderia “criar, mediante proposta do Tribunal de Justiça, Tribunais inferiores” (art. 136, § 1º, a). A Constituição de 1946 dizia de modo mais feliz: “poderão ser criados tribunais de alçada inferior à dos Tribunais de Justiça” (art. 124, II). No feito referido, foram declaradas inconstitucionais normas que subordinavam Tribunal de Alçada ao de Justiça. O Ministro Baleeiro votou com a maioria. Entre outros argumentos, sustentou que as garantias da magistratura não protegem somente os juízes mas também os próprios Tribunais. 78 Voto vencido do Ministro Aliomar Baleeiro, Relator, na Representação n. 909/RJ, julgada em 7 de maio de 1975 (cujo Acórdão foi lavrado pelo Ministro Rodrigues Alckmin). 79 Memória Jurisprudencial Estados Unidos, são os Estados geralmente que têm interesse em que prevaleça uma determinada tese fiscal, defendida por um outro Estado. Outras vezes, são associações desinteressadas do ponto de vista econômico e que pretendem apenas um ideal democrático. (...)” O Relator admitiu a assistência79. A Lei n. 9.868, de 11 de novembro de 1999, art. 7º, § 2º, admite o amicus curiae nos seguintes termos: “O relator, considerando a relevância da matéria e a representatividade dos postulantes, poderá, por despacho irrecorrível, admitir, observado o prazo fixado no parágrafo anterior, a manifestação de outros órgãos ou entidades.” Vale destacar: o amicus curiae é admitido, pela legislação vigente, “como faculdade e debaixo da cláusula de relevância”. Declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto Na Representação n. 745/DF, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgada em 13 de março de 1968, o Tribunal discutiu a constitucionalidade do art. 82 da Lei n. 5.194, de 26 de dezembro de 1966, relativa ao exercício profissional de engenheiros, arquitetos e agrônomos, verbis: “As remunerações iniciais dos engenheiros, arquitetos e engenheiros-agrônomos, qualquer que seja a fonte pagadora, não poderão ser inferiores a 6 (seis) vezes o salário mínimo da respectiva região.” O Presidente da República havia vetado esse dispositivo, estranho à sua iniciativa, mas o Congresso Nacional derrubou o veto. O Ministro Baleeiro afirmou ser indubitável a inconstitucionalidade do dispositivo relativamente àqueles profissionais quando servidores públicos, “desde que a cláusula impugnada resultou de emenda no seio do Congresso, ampliando-a ”. Logo não reconheceu a inconstitucionalidade “em relação às empresas privadas, e só a estas, o que não se estende às empresas e órgãos industriais e comerciais das pessoas de Direito Público”. 79 Assim também na Representação n. 727/RS, Relator o Ministro Prado Kelly, julgada em 12 de abril de 1967. 80 Ministro Aliomar Baleeiro Prevaleceu, no entanto, o voto do Ministro Themistocles Cavalcanti, um pouco mais amplo que o do Ministro Baleeiro: recebia a Representação relativamente aos funcionários da Administração Pública direta e indireta, qualquer que fosse a forma de remuneração, salvo aqueles admitidos pela Consolidação das Leis do Trabalho e que percebessem salários e gozassem dos direitos e garantias previstos na legislação trabalhista. Seja como for, ambos os votos, divergindo tão-só na medida, foram no sentido de proferir declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto, ainda que não tenham feito uso da expressão. Enfim, a fórmula “declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto” consta, expressamente, do art. 28, parágrafo único, da Lei n. 9.868, de 1999. “Taxa-ônibus” e presunção de constitucionalidade Na Representação n. 903/GB, Relator o Ministro Thompson Flores, julgada em 22 de maio de 1974, o STF examinou a constitucionalidade de taxas do antigo Estado da Guanabara. Interessa, aqui, destacar a discussão havida sobre a taxa que era “devida pela prestação permanente dos serviços de remoção normal de lixo dos imóveis e de assistência sanitária a domicílio”. O então Procurador-Geral da República, Professor José Carlos Moreira Alves, sustentou a sua constitucionalidade nos seguintes termos: “Dentre os serviços que o justificam, segundo essa nova redação, há vários que se ajustam ao conceito de serviço público específico e divisível utilizado efetiva ou potencialmente pelo contribuinte, como: a limpeza de logradouros, a assistência sanitária a domicílio e a prevenção contra sinistros e calamidades públicas. Não desvirtua a figura de taxa o fato — como sucede na hipótese sub judice — de o contribuinte não ser o único beneficiário do serviço. (...)” O Relator adotou essa fundamentação em seu voto. O Ministro Aliomar Baleeiro também seguiu essa linha de raciocínio e destacou que se tratava de uma “taxa-ônibus”, em que cabiam diversos serviços: “(...) Restou o artigo 16, que é uma espécie de taxa-ônibus — ‘serviços diversos’ —, compreendendo assistência sanitária (no caso, suponho que seja presença da ambulância, quando chamada) e uma parte sobre limpeza de logradouros. Entendo que aí é limpeza de ruas, praças, praias, etc. São serviços públicos gerais e, ao mesmo 81 Memória Jurisprudencial tempo, segurança pública, o que assemelha essa taxa àquela do Espírito Santo. O defeito é técnico — o de um Estado justapor tributos que são, realmente, taxas a outros que são duvidosos.” O Ministro Baleeiro lembrou já ter dito que o STF é o Tribunal “que mais declara inconstitucionalidade entre os Tribunais que podem fazê-lo no mundo”80. Na dúvida, concluiu, deve-se declarar a constitucionalidade da legislação impugnada: “De sorte que, partindo daquele princípio, que é adotado pela Corte Suprema dos Estados Unidos, de que só na certeza da inconstitucionalidade ela deve ser declarada e, na dúvida, é preferível declarar a constitucionalidade, de acordo com o eminente Relator, Ministro Thompson Flores, dou como improcedente a representação em relação ao artigo 16.” É verdade que se poderia contraditar que o referido princípio parece mais próprio ao controle difuso e em concreto. Seja como for, há, sim, espaço para ele no controle concentrado e em abstrato, mormente em benefício da segurança jurídica. A aguda colocação do Ministro Baleeiro revela um dado que é muito claro sob a Constituição de 1988: são tão corriqueiras as impugnações de inconstitucionalidade, que se inverteu um outro princípio, o da presunção de constitucionalidade das leis. As leis brasileiras, hoje, como que são presumidas inconstitucionais, o que compromete a segurança jurídica. Veto do Poder Executivo Na Representação n. 686/GB, Relator o Ministro Evandro Lins, julgada em 6 de outubro de 1966, o Ministro Aliomar Baleeiro votou vencido, ao entendimento de que a não-manifestação de veto por parte do Poder Executivo fecharia a esse a possibilidade de se socorrer da representação para obter a declaração de inconstitucionalidade. 80 Manifestou-se neste sentido, por exemplo, na Representação n. 741/SP, de que foi Relator, julgada em 6 de junho de 1968 (cujo acórdão foi lavrado pelo Ministro Oswaldo Trigueiro), e na Representação n. 864/GB, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgada em 11 de abril de 1973 (cujo acórdão foi lavrado pelo Ministro Thompson Flores). 82 Ministro Aliomar Baleeiro RECURSO EXTRAORDINÁRIO. PROCESSUALIDADE Nova redação de hipótese constitucional do recurso extraordinário. Pluralismo de intérpretes a oxigenar a Constituição No RE n. 45.255/GO, Relator o Ministro Prado Kelly, julgado em 5 de abril de 1967, o STF discutiu a nova redação de uma das hipóteses constitucionais do recurso extraordinário. A Constituição de 1946 admitia o recurso extraordinário quando a decisão recorrida fosse “contrária a dispositivo desta Constituição ou a letra de tratado ou lei federal” (cf. art. 101, III, a). Por sua vez, a Constituição de 1967 admitia o mesmo recurso quando a decisão recorrida “contrariar dispositivo desta Constituição ou negar vigência de tratado ou lei federal” (cf. art. 114, III, a). Assim, o Relator do feito submeteu a espécie ao Tribunal Pleno para decidir: (1) acerca da exegese da nova redação; e (2) sobre a sua aplicabilidade a recursos em vias de julgamento — se acaso incompatível com a anterior. Preliminarmente, o Relator buscou precisar o significado da expressão “negar vigência”. Sustentou que a nova cláusula equivaleria à da Constituição de 1891: “negar aplicação”, ou seja, “deixar de reconhecer eficácia à norma federal no caso concreto”. O Relator lembrou que, de início, o recurso extraordinário ficou cingido aos casos elementares de ab-rogação, ou não, da lei. No entanto, a correção — ampliativa — começou a partir de um Parecer do então Procurador-Geral da República, Epitácio Pessoa, de 23 de abril de 1904: “O recurso deve ser admitido não só quando a justiça local decide contra a validade de lei federal, mas também quando deixa de aplicá-la a um caso que ela expressamente regula.” 81 Pontuou, ainda, o Relator, que “negar vigência”, “negar vigor” e “negar aplicação” são fórmulas que implicam o mesmo atentado, que é missão do STF coartar. Em suma, o que se busca impedir ou emendar é a “contravenção à lei”. O Ministro Aliomar Baleeiro, afirmando que, “mais do que nunca se pode repetir a velha verdade de que as palavras são péssimo veículo para condução do pensamento do legislador”, acompanhou o Relator destacando que o fundamento do STF — à semelhança da Suprema Corte dos Estados Unidos — é conferir unidade ao Direito federal. 81 Cf. excerto constante do voto do Relator. 83 Memória Jurisprudencial E arrematou: “Sou daqueles, Sr. Presidente, que levam muito em conta a ratio iuris — o fim inspirador da lei ou por ela alvejado. A letra da lei não é tudo. É impossível que o legislador quisesse limitar o recurso extraordinário a essa hipótese, muito rara, de um Tribunal local, ou mesmo de um Tribunal Federal de instância inferior, negar vigência à lei federal. (...) Acredito também que, mais importante do que a Constituição literária, essa que foi impressa no ‘Diário Oficial’, num papel muito ordinário e até com pleonasmos, é a Constituição viva, aquela que foi constituída pelo Supremo Tribunal, pelo Congresso Nacional, pelo Presidente da República, pelo cidadão na rua, adquirindo maior elasticidade, maior sobrevivência. E só isso explica que, em outros países, velhos textos do século XVIII ainda vigorem, assim como antigos códigos, de 150 anos, ainda resolvam problemas ligados à tecnologia, à ciência, a todas as forças dominadas pelo homem na época em que vivemos.”82 Na Representação n. 861/MG, Relator o Ministro Oswaldo Trigueiro, julgada em 23 de agosto de 1972, o Ministro Baleeiro ressentiu-se de não haver maior debate — uma crítica plural — sobre trabalhos do STF: “(...) Se há uma coisa em que falhamos é não termos provocado, dos juristas, das universidades, das Ordens de Advogados e dos cidadãos, uma crítica permanente às nossas opiniões e aos nossos trabalhos.” Vale destacar a atualidade da lição do Ministro Aliomar Baleeiro, compreendendo o texto constitucional de modo plural. É o que defende doutrina recente83. Uma última observação: a alínea a do inciso III do art. 114 da Constituição de 1967 encontra correlação com as alíneas a (“contrariar dispositivo desta Constituição”) e b (“declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal”) do inciso III do art. 102 da Constituição de 1988. A diferença é que, na Constituição vigente, a alínea b requer expressa declaração de inconstitucionalidade para a interposição do recurso extraordinário84. Ademais, a jurisprudência 82 Grifo no original. 83 A propósito, vide HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes, Porto Alegre: Fabris, 1997. 84 RE n. 294.361/SP, Relator o Ministro Ilmar Galvão, julgado em 6 de novembro de 2001. 84 Ministro Aliomar Baleeiro do STF já deixou assente que, na hipótese da vigente alínea b, a negativa de aplicação pressupõe o juízo de inconstitucionalidade85. “Negar vigência” Ainda sobre a expressão “negar vigência”, vale destacar a polêmica havida entre os Ministros Aliomar Baleeiro e Themistocles Cavalcanti. No RE n. 63.699/SP, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 1º de abril de 1968, o Ministro Baleeiro votou vencido. Prevaleceu o entendimento do Ministro Themistocles Cavalcanti, que afirmou em seu voto: “Vigência é aplicação no tempo, e não interpretação da lei.” No RE n. 65.295/AM, Relator o Ministro Themistocles Cavalcanti, julgado em 17 de setembro de 1968, o Ministro Baleeiro acompanhou o Relator por motivos outros, mas registrou: “(...) É verdade que não só eu, mas também constitui fato — e V. Exa. pode atestar — que o Supremo Tribunal Federal tem admitido uma certa benignidade em favor dos recursos extraordinários dos Estados, interpostos em processo de mandado de segurança, para que eles não fiquem em desigualdade em relação aos impetrantes que dispõem do recurso ordinário.” No RE n. 65.088/GB, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 29 de outubro de 1968, também prevaleceu o ponto de vista do Ministro Themistocles Cavalcanti. O Ministro Baleeiro entendeu que o acórdão recorrido ignorou parte de dispositivo legal, e afirmou: “A Constituição, no art. 114, III, a, quer o império da lei federal em todo o País, determinando que o STF a restaure quando não tiver vigência pelo erro ou rebeldia do Tribunal ou Juiz, que a não aplicou e decide exatamente o oposto do que nela se contém.” O Ministro Themistocles Cavalcanti replicou nos debates: “(...) a Lei de Introdução ao Código Civil estabelece, de maneira clara, o que é vigência, e a jurisprudência anterior do Supremo também a conceituou. Castro Nunes chegou a dizer que vigência é aplicação da lei no tempo.” 85 RE n. 179.170/CE, Relator o Ministro Moreira Alves, julgado em 9 de junho de 1998. 85 Memória Jurisprudencial Disse, então, o Ministro Baleeiro: “Permita-me, sem verniz de impertinência: há inúmeros casos em que a Constituição emprega uma expressão jurídica num sentido; e o direito ordinário, noutro.” O entendimento do Ministro Themistocles Cavalcanti também prevaleceu no RE n. 64.037/PE. No RE n. 63.816/RN, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 15 de abril de 1969, o Ministro Baleeiro fez prevalecer o seu entendimento e criticou o entendimento do Ministro Themistocles Cavalcanti, que limitava o recurso extraordinário “à hipótese raríssima de o acórdão declarar que não vige mais ou ainda não vige lei em vigor”. Prosseguiu: “Creio que equivale a negar vigência o fato de o julgado negar aplicação a dispositivo específico, único aplicável à hipótese, quer ignorando-o, quer aplicando outro inadequado.” Portanto, o Ministro Aliomar Baleeiro admitia o recurso extraordinário quando o Tribunal recorrido “(...) delira, isto é, destrilha da lei, divorciando-se dela, seguindo por atalhos em detrimento da estrada real aberta pelo legislador. Pior que interpretar mal é não aplicar a lei. E não a aplica o acórdão que dá o que ela nega, ou nega o que ela dá.” No mesmo sentido: RE n. 62.118/MG, RE n. 64.309/MG, RE n. 64.422/PE, RE n. 64.581/BA86, RE n. 64.851/GB e RE n. 69.686/SP. Questões diversas As omissões e os defeitos que inutilizam a petição do recurso extraordinário não podem ser supridos pelo despacho que o admitiu. (RE n. 69.353/SP) Flexibilidade na contagem do prazo de interposição em se tratando de “cidade em que o Diário Oficial só circula à tarde, ou no dia imediato, tirando praticamente um dia ao prazo”. (RE n. 59.954/GB) 86 O recurso tratava da partilha decorrente da morte do cônjuge varão em casal que não tinha filhos. Metade tocou à viúva, a outra aos ascendentes do de cujus. Um ano depois, foi reconhecida filha em ação de paternidade. Partindo do pressuposto de que o direito da menor era receber a metade da herança paterna que havia sido adjudicada aos ascendentes do de cujus, e que — por um princípio de economia — não se deveria obrigar a viúva a fazer nova partilha e novo registro (“Ela nem reside mais na comarca e ninguém iria indenizá-la das despesas por isso.”), conheceu e proveu o recurso para que ficasse intacta a parte da meação da viúva e para que a parte dos ascendentes fosse aquinhoada à “filha natural”. 86 Ministro Aliomar Baleeiro Não-conhecimento em função de desistência. (RE n. 35.484/SP) Ainda sobre as hipóteses de interposição do recurso extraordinário: Interpretação ampla da alínea a do permissivo constitucional (decisão que contraria dispositivo da Constituição). Promoção de juízes. Inconstitucionalidade. (RE n. 50.274/PR) Possibilidade ou não de invocar outra alínea dentre as permissivas de recurso extraordinário, que não aquela invocada quando da interposição do recurso: “A minha tese é a seguinte: se a parte interpõe o recurso extraordinário pela letra a, delimita o campo do debate, de sorte que não é possível nas razões, e sobretudo agora, perante o próprio Supremo, invocar a letra d — primeiro, por uma questão de lei; segundo, por uma questão de lealdade. O processo é contraditório e leal. A parte não pode surpreender a outra trazendo argumento ao qual esta não pode responder, porque está encerrada a sua oportunidade de falar no processo.” (RE n. 66.567/SP) Princípio da relevância da Suprema Corte dos Estados Unidos: voto do Ministro Baleeiro em que se lê: “esses mesmos Ministros que se mostraram tremendamente rígidos, em certos casos, elastecem a letra a, adotando, praticamente, aquele princípio da relevância, da Corte Suprema dos Estados Unidos”. (RE n. 62.577/SP). Violação estridente. Voto do Ministro Baleeiro em que se lê: “Sou daqueles que pensam, Sr. Presidente, que não podemos baratear o recurso extraordinário fora, nos casos taxativos da Constituição, naquelas quatro letras do art. 101, III. Não se pode ser generoso nessa matéria. Temos que defender a letra da lei federal na sua inteireza, mas não a ponto de tolher aos Tribunais a interpretação dessa lei federal quando não há choque frontal com a letra dela.” (RE n. 59.871/RS) 87 Memória Jurisprudencial DIREITO ADMINISTRATIVO Criação de função por decreto No RE n. 60.181/GB, Relator o Ministro Vilas Boas, julgado em 7 de junho de 1966, o STF discutiu a juridicidade da criação de função por decreto baixado em 1940. O Ministro Aliomar Baleeiro votou vencido ao entendimento de que função — assim como cargo — deve ser criada por lei. Ainda que o País estivesse sob uma ditadura ao tempo da edição do decreto, os atos do ditador ter-se-iam de conformar com o aspecto formal que a própria ditadura instituiu: criação da função por lei ou por decreto-lei. Concurso para procurador do Estado. Idade mínima e inscrição na OAB No RE n. 69.610/SP, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 9 de março de 1971, o STF entendeu compatível com o princípio da igualdade a lei estadual que exige como requisitos, para inscrição em concurso de provimento do cargo de procurador do Estado, ter o candidato menos de 45 anos e ser inscrito na OAB. O Relator reputou tais requisitos compatíveis com a Constituição. Lembrou que os cargos públicos são acessíveis a todos os brasileiros, mas sob a condição de que sejam “preenchidos os requisitos que a lei estabelecer”, e completou: “(...) Requisitos naturalmente compatíveis com a Constituição, que não toleraria, por exemplo, exclusão de pretos, judeus, filhos de imigrantes, feios, etc. Mas a lei pode exigir outros indispensáveis ou convenientes à natureza específica do cargo, como a diplomação em certo cargo, a idade, e, para certas funções, determinada estatura, grande vigor físico, e, a meu ver, até QI acima de um teto mínimo. (...)” Exclusão de maiores de 20 anos da rede de ensino, com reserva de cursos supletivos Outra questão etária foi decidida no RE n. 78.106/SP, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 4 de junho de 1974. Examinou-se a juridicidade de Resolução da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo que somente permitia aos candidatos menores de 20 anos a matrícula na rede de ensino estadual de 2º grau. O Ministro Baleeiro entendeu que não foi negado o princípio da 88 Ministro Aliomar Baleeiro isonomia “nem o de que a educação é direito de todos, que deve ser entendido dentro das possibilidades materiais e técnicas do Estado”. Concluiu: “(...) Insuficientes as redes de ensino estadual, há de adotar-se critério seletivo e não se mostra ilegal o da Resolução impugnada. Resta ao Impetrante apelar para o ensino supletivo instituído para sua faixa etária com facilidades fechadas aos adolescentes.” O Ministro Baleeiro votou no mesmo sentido no RE n. 78.669/SP e no RE n. 78.734/SP. Desapropriação indireta: juros compensatórios No RE n. 52.441/RN, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 20 de setembro de 1966, o STF aplicou a Súmula n. 345: “Na chamada desapropriação indireta, os juros compensatórios são devidos a partir da perícia, desde que tenha atribuído valor atual ao imóvel.” O Ministro Baleeiro votou vencido, criticando a Súmula n. 345 e defendendo que os juros compensatórios fossem contados desde a posse efetiva do desapropriante: “Os frutos auferidos pelo proprietário podem ser em dinheiro, em colheitas ou crias, etc. e também na satisfação psicológica que a coisa possuída lhe proporciona. Um colecionador pode obter satisfações enormes, segundo seu gosto artístico, em contemplar sua galeria de quadros ou, por vaidade, exibi-la a terceiros. Iguais consolações poderá ter o dono de um jardim que não vende flores. Na pior hipótese, poderia vender a coisa no momento mais favorável do mercado imobiliário e desde logo reinverter proficuamente o preço, atitude que foi obstada pelo ato violento da autoridade rodoviária.” Redigiu o acórdão o Ministro Adalicio Nogueira87. No entanto, no RE n. 53.430/SP, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 7 de março de 1967, o entendimento do Ministro Baleeiro prevaleceu. Naquela oportunidade, o Relator insistiu: “Ora, o cidadão despojado ilegalmente de sua terra por ato arbitrário da autoridade, que não quis depositar previamente o preço a ser fixado pelo Juiz, a fim de obter a imissão, perdeu os frutos que lhe adviriam da posse e uso dela. Se a tivesse vendido àquele tempo, 87 Como se verá logo adiante, a decisão foi modificada em grau de embargos. 89 Memória Jurisprudencial na pior hipótese ganharia os juros bancários que equivalem aos legais da mora. Se o DER tivesse respeitado a Constituição e a lei, teria depositado antes da ocupação o preço arbitrado pelo Juiz, e o desapropriante haveria ganhado seus juros desde então. Repugna-me interpretação que conduz ao absurdo de premiar o esbulhador pela ilicitude de seu ato, encorajando-o a repeti-lo contra outros cidadãos num Estado de Direito.” O Ministro Baleeiro lembrou que a fórmula “desapropriação indireta” é um “eufemismo forense” (trata-se, isso sim, de simples esbulho). Concluiu que a Súmula n. 345 premia o ato ilícito, preferindo, portanto, o critério da Súmula n. 164, cuja aplicação analógica defendeu (“No processo de desapropriação, são devidos juros compensatórios desde a antecipada imissão de posse, ordenada pelo juiz, por motivo de urgência.”). Apontou, ainda, uma possível antinomia entre os dois verbetes. Durante os debates, o Ministro Adalicio Nogueira referiu que vinha votando “no sentido de contar os juros da data da perícia, de acordo com a Súmula, só quando se trata de desapropriação direta.” Porém, esclareceu o Ministro Baleeiro, o caso dos autos enfrentava uma desapropriação indireta. Ademais, vale destacar, o caso julgado em 1966, antes referido, também tratava de uma desapropriação indireta. O Ministro Evandro Lins registrou que não via contradição entre a Súmula n. 164 e a n. 345, mas acompanhou o Relator. No RE n. 58.446/SP, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 30 de maio de 1967, também foi aplicada a Súmula n. 164. No RE n. 60.253/SP, Relator o Ministro Eloy da Rocha, julgado em 15 de maio de 1968, o STF debateu eventual revisão da Súmula n. 34588. O Ministro Aliomar Baleeiro voltou a destacar que a Súmula cuida da desapropriação indireta, “na raça”. No entanto, ela foi confirmada segundo maioria que seguiu voto do Ministro Thompson Flores. O Ministro Baleeiro também votou vencido no particular no RE n. 63.351/SP89 e no RE n. 63.573/SP. 88 Voltou a referir, nos ERE n. 52.886/SP, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgados em 9 de abril de 1969, que a Súmula n. 345 necessitava de reforma. No entanto, os embargos não foram conhecidos por questões processuais. 89 Como se verá logo adiante, a decisão foi modificada em grau de embargos. 90 Ministro Aliomar Baleeiro No entanto, nos ERE 47.934/SP, Relator o Ministro Luiz Gallotti, julgados em 27 de março de 1969, o STF mandou fossem os juros compensatórios computados desde a ocupação do imóvel. Na prática, o julgado em causa fez valer o entendimento do Ministro Baleeiro, mas com certo acanhamento, como se lê na respectiva ementa: “Não há confundir o problema relativo ao justo valor da indenização, assegurado pela Lei Maior, e o atinente aos juros, que são compensatórios.” No mesmo sentido, inclusive com voto do Ministro Baleeiro, foram decididos os ERE n. 52.441/SP, Relator o Ministro Thompson Flores, julgados em 20 de agosto de 1969. No RE n. 70.304/SP, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 25 de agosto de 1970, voltou a prevalecer o entendimento do Ministro Baleeiro, inclusive com referência ao RE n. 53.430/SP como jurisprudência dominante. Nos ERE n. 63.351/SP, Relator o Ministro Antonio Neder, julgados em 19 de setembro de 1973, o STF reafirmou o novo entendimento. Em seu voto, o Ministro Baleeiro lembrou que havia, ao tempo em que presidia a Corte, uma comissão destinada a dar parecer sobre os acórdãos que haviam sido enunciados, para o fim de elaborar-se uma nova série de verbetes. Sugeriu, então, que seria mais prático fazê-lo na presente matéria, convocando a comissão, ou substituindo-a. O Ministro Presidente colocou em votação a revisão do verbete em causa. O Relator votou pelo prosseguimento do julgamento dos embargos, deixando para momento oportuno a alteração do verbete. O Ministro Thompson Flores declarou-se de acordo com a revisão da Súmula n. 345, lembrando que, em verdade, ela já estava revista. Enfim, no RE n. 74.803/SP, Relator o Ministro Eloy da Rocha, julgado em 21 de outubro de 1975, foi dito, expressamente, pelo Relator: “Não mais prevalece o princípio da Súmula 345.” Desapropriação indireta: correção monetária No RE n. 64.620/SP e no RE n. 65.167/SP, ambos relatados pelo Ministro Aliomar Baleeiro e julgados em 26 de fevereiro de 1969, discutiu-se a aplicabilidade ou não da correção monetária da Lei n. 4.686, de 1965, à desapropriação indireta (“Decorrido prazo superior a um ano a partir da avaliação, o Juiz ou o Tribunal, antes da decisão final, determinará a correção monetária do valor apurado.”), bem assim o que se deveria entender por “decisão final” antes da qual seria determinada a correção. 91 Memória Jurisprudencial Quanto ao direito à correção monetária, o Ministro Baleeiro afirmou: “Se o legislador garante esse direito a quem não sofreu ilegalidade, porque foi desapropriado corretamente, com mais razão garante-o a quem foi ilegalmente despojado de seu imóvel pela violência, fraude, deslealdade ou desenvoltura dos agentes do Estado.” Quanto à segunda questão, o Ministro Baleeiro sustentou que, pelo tom vago e indefinido da Lei em causa, a “decisão final” não seria só a de primeira ou a de segunda instância da ação desapropriatória mas também a de liquidação e execução dessa. Ademais, como lembrou o Ministro Adalicio Nogueira, não houve, no caso, fixação da indenização. Por sua vez, o Ministro Adaucto Cardoso enfatizou que tratar de maneira mais benigna os casos de desapropriação indireta constituiria um estímulo aos atos de arbítrio e violência90. No mesmo sentido, com debates acirrados, o RE n. 65.546/GB, Relator o Ministro Themistocles Cavalcanti, julgado em 19 de março de 1969. O Relator ficou vencido, tendo prevalecido o voto do Ministro Baleeiro. No RE n. 64.311/SP, Relator o Ministro Djaci Falcão, julgado em 22 de abril de 1969, o Ministro Aliomar Baleeiro votou com o Relator, mas ressalvando “ao expropriado o direito de requerer, na instância inferior, a correção monetária, mesmo na execução, conquanto não tenha sido proferida sentença final em face de adjudicação ou encerramento da expropriação”. No RE n. 68.315/SP, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 11 de novembro de 1969, prevaleceu, uma vez mais, o ponto de vista do Ministro Baleeiro. No entanto, é curioso destacar que o próprio Relator votou, preliminarmente, pelo não-conhecimento do recurso, que reputou tecnicamente inepto porque: (1) foi brevemente arrazoado (“nada acresceu de útil ao debate”); (2) não invocou o permissivo constitucional relativo à divergência; e (3) não fez referência à jurisprudência dominante (“A parte teve a infelicidade de contratar um advogado mal informado.”). Com o advento da já referida Lei n. 5.670, de 1971, bem assim em razão do precedente do STF no sentido da sua constitucionalidade (ERE n. 69.304/ MG), a Corte também modificou o seu entendimento relativamente à desapropriação indireta. É o que se verifica do RE n. 72.378/GB, Relator o Ministro Djaci Falcão, julgado em 13 de março de 1973, em que o Ministro Baleeiro votou vencido. Lembrou que já admitira em diversos casos que a correção monetária alcançasse período anterior para diminuir o efeito da inflação. Do contrário, insistia o Ministro Baleeiro, não se cumpriria a determinação constitucional de justa indenização. 90 No mesmo sentido, o alentado voto do Ministro Aliomar Baleeiro, Relator, no RE n. 65.395/SP, julgado em 13 de agosto de 1969 (mas sobre desapropriação direta). 92 Ministro Aliomar Baleeiro Em caso subseqüente, o RE n. 79.875/SP, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 10 de dezembro de 1974, relativo a desapropriação indireta havida em 1965, o entendimento do Ministro Baleeiro voltou a prevalecer. Concedeu a correção monetária independentemente de nova ação porque houve retardamento no pagamento da indenização fixada em sentença. E afirmou: “Desapropriação indireta é eufemismo para ação de perdas e danos por ato ilícito.” Enfim, vale registrar que o Ministro Baleeiro, durante toda a sua judicatura, defendeu o reconhecimento universal da correção monetária às causas levadas ao Poder Judiciário. Defendeu a sua aplicação em diversos feitos, mas, em boa parte deles, ficou vencido. Citava doutrina e jurisprudência estrangeiras, mormente francesas. Em matéria de desapropriação indireta, ajudou a firmar jurisprudência no sentido de condenar o “expropriante” ao pagamento da correção monetária. No entanto, desejava ampliar a aplicação da correção monetária. Invocava, por analogia, justamente, o entendimento sedimentado no que toca à desapropriação indireta: “A correção monetária é uma construção judiciária em evolução ainda não acabada. Em matéria de atos ilícitos, o Supremo Tribunal Federal a tem edificado, extraindo do Direito escrito o que nele está implícito e que só veio a exteriorizar-se sob o império da inflação aguda e não dominada nos últimos trinta anos. Inúmeras vezes tem sido dada às vítimas e beneficiários de acidentes de trânsito, seja pela atualização do salário mínimo, seja por outro modo. Caso típico são as muitas dezenas de julgados sobre a impropriamente chamada desapropriação indireta, que não passa de uma reivindicatória transformada, por práticas razões, em indenizatória de ato ilícito.”91 A propósito, vale transcrever expressiva passagem de voto do Ministro Rodrigues Alckmin sobre a matéria, concordando com o Ministro Baleeiro: “Volto à referência feita inicialmente, pelo eminente Ministro Baleeiro, ao texto de Gendrel, em que declara, invocando Castan, que, na colisão entre o princípio de seguridade da lei e o de moralidade do direito, não lhe desagrada que o primeiro seja sacrificado no altar do segundo.” 91 RE n. 79.663/SP, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 18 de setembro de 1975. 93 Memória Jurisprudencial Sobre correção monetária e a sua discussão no Congresso Nacional, confira-se, ainda, o voto vencido do Ministro Aliomar Baleeiro nos ERE n. 69.304/MG, Relator o Ministro Bilac Pinto, julgados em 24 de novembro de 197192. Desapropriação por interesse social No RE n. 74.635/SP, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 29 de maio de 1974, o STF decidiu — seguindo o voto do Ministro Xavier de Albuquerque, vencido o Relator — que a desapropriação por interesse social poderia ser decretada por Estado ou por Município desde que, atendida a lei federal pertinente, não tivesse por objeto propriedade rural nem visasse a fins de reforma agrária. O Ministro Baleeiro, coerente com o seu voto na Representação n. 718/RN93, sustentou: “(...) sendo a propriedade regulada por Direito Civil, que só pode ser legislado pela União, a desapropriação a que se referia o art. 147 da Constituição Federal de 1946, para redistribuição, dependeria de lei federal.” Votou vencido lembrando que, no processo constituinte, pleiteara “um sistema de pulverização da propriedade para torná-la acessível a todos”. Desejava “transformar o País numa grande classe média”. Explicou: “(...) O artigo 147 visava à redistribuição da propriedade para dar igual oportunidade a todos. O pensamento do grupo da Constituinte 92 Vale destacar a amplitude com que defendia a correção monetária: “Acho que, mesmo nas obrigações ex delicto, nós deveríamos, em todos os casos de responsabilidade civil não contratual, admitir a correção monetária. Ora, já enunciei aqui o meu ponto de vista de que a Nação só me pode exigir dois sacrifícios: o do imposto e o do serviço militar. Fora disso, deve indenizar todos os males que suscitar ou que forem dirigidos contra ela e eu sofrer as conseqüências.” 93 “(...) Quanto ao mérito, conquanto a letra da Constituição permita a inteligência dada pelo ilustre Ministro Victor Nunes de que só se reserva à União aquele processo de desapropriação mediante títulos, todavia, acho que a função política do Supremo Tribunal Federal, no caso, e numa matéria essencialmente, dramaticamente política como esta, aconselha uma construção, e essa construção, a meu ver, no interesse nacional, é no sentido da Constituição de reservar-se para o Congresso Nacional e para o Presidente da República a estruturação da política da terra. A experiência brasileira, nos últimos anos, mostrou que há uma tragédia muito grande por causa dos planos locais e das agitações regionais em matéria de reforma agrária.” E prosseguiu ao debater com o Ministro Victor Nunes: “Quem viajou pelo interior do Brasil, em 1963 e 1964, já teve oportunidade de ver essa gente armada de metralhadoras em defesa de sua terra. (...)” (excertos do voto vencido do Ministro Aliomar Baleeiro na Representação n. 718/RN, Relator o Ministro Gonçalves de Oliveira, julgada em 22 de agosto de 1968). 94 Ministro Aliomar Baleeiro que fez passar essa emenda era que, por um processo de desapropriação, pudesse estender-se a propriedade ao maior número de brasileiros. O pagamento seria justo e em dinheiro, não em títulos. Mas a tributação seria progressiva e graduada, pessoal, pela capacidade econômica do contribuinte, segundo o artigo 202 daquele Estatuto Político. Os mais ricos pagariam mais. Era um processo de, lentamente, na história, fazer a erosão da classe poderosa opulenta e disseminar a propriedade. Era uma Constituinte em que havia dezesseis comunistas, alguns socialistas, poucos milionários e enorme número da classe média. Todos sentiam a questão social como fator inevitável e, então, queriam uma forma progressiva, evolutiva, que evitasse a ‘catástrofe’ no sentido marxista.” O Ministro Baleeiro entendeu não ser dado ao Município fazer uma “desapropriação com fins redistributivos, porque seria ferir a sistemática da Constituição”. Sustentou que, para tanto, seria necessário um “plano nacional geral, para todo o País, não para uma área pequena”94. Não há direito subjetivo à posse e à entrada em exercício No RE n. 49.025/SC, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 12 de abril de 1966, o STF discutiu a existência ou não de direito subjetivo à posse e à entrada em exercício em cargo público de Escrivão de Paz. Concordando com o Parecer da Procuradoria-Geral da República — a nomeação é convite, a posse é aceitação; aquela gera vinculabilidade, mas não vinculação —, pontuou o Relator: “A nomeação é ato unilateral, que só se completa, em suas conseqüências, com a aceitação do cidadão escolhido manifestada pelo ato de posse e entrada em exercício, salvo se o direito a ela tem base em lei, como, por exemplo, no caso do primeiro classificado em concurso. (...)” 94 Na já referida Representação n. 718/RN, o Ministro Baleeiro também havia explicado neste mesmo sentido: “Parece que a Constituição quer que a política da reforma agrária obedeça a um plano federal. Então, se cada Estado quiser fazer sua reforma agrária, não poderá existir esse plano federal.” Logo a seguir exemplificou: “E pode provocar um desequilíbrio entre os Estados, modificando sua situação econômica e vindo, mais tarde, a comprometer a Federação. Esse problema aconteceu na guerra civil americana de 1860, por um desnível entre Estados prósperos, industriais, em relação àqueles Estados que ficaram, vamos dizer, subdesenvolvidos. A questão da escravatura foi uma concausa.” 95 Memória Jurisprudencial Promoção de juízes. Processo de cooptação No RE n. 67.839/ES, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 11 de dezembro de 1969, o STF examinou questão relativa à formação e ao encaminhamento de lista tríplice de magistrados ao Poder Executivo para o fim de promoção por merecimento. O Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo interpretou o art. 136, II, a, da Constituição de 1967 (“apurar-se-á o merecimento mediante lista tríplice, quando praticável”) no sentido de permitir ao Tribunal entender — decidir — praticável ou não a formação da lista tríplice, isto é, admitiu que o Tribunal poderia remeter um só nome ao Poder Executivo. Magistrado de primeiro grau impetrou, então, mandado de segurança alegando que havia, pelo menos, quatro nomes com interstícios na primeira instância para formação da lista tríplice para promoção por merecimento, não se justificando a indicação do nome único. O Ministro Baleeiro sustentou que o “quando praticável” da Constituição de 1967 equivaleria ao “quando possível” da Constituição de 194695 e explicou: “A lista tríplice organizada pelo Tribunal para que o chefe do Executivo escolha um dos nomes constitui o velho processo da cooptação, que atenua, de um lado, a discricionariedade do Presidente da República, ou do Governador, e de outro, o favoritismo e o spirit de coupe da magistratura. É via de mão dupla na profilaxia do nepotismo ou do patronato.” Afirmou entender “que a cláusula ‘quando praticável’ significa: quando haja número suficiente de juízes — três no mínimo — com dois anos de exercício, que possibilite a formação da lista”, não podendo ser interpretada como permissiva de subjetivismo. Reconheceu que entra na preferência do Poder Executivo “uma certa dose de discricionariedade política, no mais honesto sentido da palavra”. Mas, pouco antes, citou Carlos Maximiliano, para lembrar que, “se o magistrado fica independente em relação ao Executivo, será dependente dos seus chefes, e de modo irremediável.” 95 Referia-se ao inciso III do art. 124 da Constituição de 1946: “o ingresso na magistratura vitalícia, dependerá de concurso de provas, organizado pelo Tribunal de Justiça com a colaboração do Conselho Secional da Ordem dos Advogados do Brasil, e far-se-á a indicação dos candidatos, sempre que for possível, em lista tríplice” (grifo nosso). 96 Ministro Aliomar Baleeiro Seguindo o voto do Ministro Baleeiro, o STF anulou o ato impugnado e determinou fosse organizada lista tríplice com os nomes de maior merecimento, “a critério do Tribunal, escolhendo o Governador livremente um dentre eles.” O precedente analisado e as suas razões de decidir guardam, ainda, atualidade. Não são raros os casos em que tribunais brasileiros elaboram listas para promoção de magistrados que acabam impugnadas no STF. Reforma agrária No RE n. 78.048/SP, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 17 de maio de 1974, o Ministro Baleeiro explicou o porquê de o Estatuto da Terra estabelecer módulos rurais indivisíveis: “No caso dos autos, cada co-proprietário viria a receber menos de 7 ha e menos de 400 laranjeiras, quinhão tão exíguo que não se conciliaria com a atividade econômica racional. Isso, aliás, já reconhecia um marxista, como Karl Kautsky, quando analisou a reforma agrária ao apagar das luzes do século XIX.” Evita-se, assim, a pulverização irracional do fundo agrário. Responsabilidade civil do Estado No RE n. 58.990/GB, Relator o Ministro Vilas Boas, julgado em 16 de agosto de 1966, o STF enfrentou questão relativa à responsabilidade civil do Estado decorrente de evento danoso em acidente de trânsito. Tratava-se de indenização requerida por passageira de bonde abalroado por caminhão militar. O processo foi movido contra a concessionária do serviço público de transporte e contra a União. As instâncias ordinárias condenaram somente a concessionária, parte no contrato de transporte. A União não foi condenada porque aquelas instâncias reconheceram a ocorrência de caso fortuito relativamente à viatura (quebra da barra de direção). O Recurso Extraordinário foi interposto pela concessionária, tendo a União como recorrida. O Relator mandou arquivar o processo, reputando razoável a interpretação dada à legislação aplicável ao feito. Em agravo, o Relator ficou vencido quanto ao não-conhecimento do Recurso. Prevaleceu, no particular, o voto do Ministro Aliomar Baleeiro, para quem 97 Memória Jurisprudencial não se verificava, na espécie dos autos, caso fortuito. Sustentou que os veículos pertencentes à União deveriam estar sujeitos a inspeção contínua. Ademais, o evento “aconteceu dentro do perímetro urbano, em que o veículo não pode correr mais do que a velocidade determinada pela Lei do Trânsito”. Chegou a essa conclusão após sustentar que não estava a apreciar prova, mas, sim, a classificar fato no Direito. O Ministro Baleeiro adiantou, ainda, o seu entendimento no mérito. Vale transcrever o excerto essencial, pela sua atualidade (com ares de inovação àquele tempo): “A meu ver, a União responde pela colisão, dividindo-se as culpas, se for o caso. Ainda quando não fique provada a responsabilidade pessoal ou individual do motorista, ela responde pela qualidade e pela conservação de seu equipamento.” Interpretando o art. 194 da Constituição de 1946 (“As pessoas jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis pelos danos que os seus funcionários, nessa qualidade, causem a terceiros.”) e não obstante a resistência da doutrina e da jurisprudência brasileiras de então, o Ministro Baleeiro afirmou: “(...) eu me inclino a admitir aquilo que os franceses chamam de ‘responsabilité du faits des choses’ — responsabilidade inerente à coisa. Quem se utilizou em seu proveito, em sua conveniência, ou em seu prazer, de alguma coisa suscetível de perigos e danos, deve pagar por isso. (...)” No mérito, o Recurso Extraordinário foi provido à unanimidade, para reconhecimento da responsabilidade exclusiva da União pelo evento. No mesmo sentido foi o voto do Ministro Baleeiro no RE n. 61.387/SP, Relator o Ministro Evandro Lins, julgado em 29 de maio de 1968, ao acompanhar o Ministro Themistocles Cavalcanti, Relator para o acórdão. Responsabilidade civil do Estado. Condição funcional do agente No RE n. 68.691/MG, Relator o Ministro Luiz Gallotti, julgado em 5 de junho de 1970, discutiu-se a ocorrência ou não de responsabilidade civil do Estado em caso de homicídio perpetrado por delegado. O STF, seguindo o voto do Relator, decidiu pela não-ocorrência da responsabilidade civil do Estado, porque concluiu ter ficado provado que o crime não se vinculou à condição funcional do réu. 98 Ministro Aliomar Baleeiro O Ministro Aliomar Baleeiro ficou vencido porque levou em consideração a “natureza especial do cargo de delegado, que o acompanha onde ele [o agente investido] vai. Ele é uma autoridade pública”. Serviço público Nos ERE n. 74.717/GB, Relator o Ministro Rodrigues Alckmin, julgados em 19 de março de 1975, foi discutido se acaso imóvel desapropriado fora destinado à finalidade de utilidade pública que ensejara a desapropriação, qual seja, a abertura de uma via pública. O prédio fora entregue a uma loteria. Pretendia-se, assim, retrocessão ou indenização. O Relator entendeu que, se o imóvel fora destinado a um fim de utilidade pública, ainda que diferente daquele constante do decreto expropriatório, o caso não seria de retrocessão ou indenização. O Ministro Aliomar Baleeiro votou vencido. Importa, aqui, registrar a compreensão de serviço público do Ministro Baleeiro. Acreditava que o serviço público era matéria insuscetível de definição apenas pela experiência histórica, “pois a mesma atividade, num país e numa época, foi serviço público, e depois deixou de ser, e vice-versa”. E concluiu de modo bastante prático: “Serviço público é aquilo que a lei declara e institui como serviço público.” No entanto, sustentou que seria “nefasta, perniciosa, imoral” a lei que dissesse que loteria é serviço público, mas que, ainda assim, seria lei. O Ministro Cordeiro Guerra, por sua vez, historiou a legislação de loteria no Brasil. Explicou que a loteria é uma derrogação de norma penal. Aventou qual seria a natureza da loteria, inclusive a de serviço público concedido ou explorado diretamente pelo Estado (como preferiu). Logo, finalizou: “não se pode dizer que o Estado não tenha dado uma utilização de interesse público ao prédio desapropriado, já que, na melhor doutrina, a loteria é um serviço público”. A jurisprudência mais recente do STF considera que a exploração de loteria constitui um ilícito penal. Portanto, a teor “do disposto no art. 22, inciso I, da Constituição, lei que opera a migração dessa atividade do campo da ilicitude para o campo da licitude é de competência privativa da União”96. 96 ADI n. 2.948/MT, Relator o Ministro Eros Grau, julgada em 3 de março de 2005. 99 Memória Jurisprudencial FEDERALISMO Princípio da simetria A Constituição de 1967, seja em seu texto originário (art. 18897), seja na redação da Emenda Constitucional n. 1, de 1969 (art. 20098), impunha aos Estados a incorporação das suas normas ao direito constitucional estadual. Essa determinação constitucional pretérita, que em muito enfraquecia o federalismo brasileiro, foi denominada “princípio da simetria”99. O Ministro Aliomar Baleeiro, em alguns julgados, criticou severamente a simetria imposta na ordem constitucional pretérita. Na Representação n. 864/GB, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgada em 11 de abril de 1973, o STF discutiu a constitucionalidade ou não de dispositivo constitucional estadual que determinava que o Governador e o ViceGovernador tomariam posse perante o Tribunal Regional Eleitoral se acaso a Assembléia Legislativa não estivesse reunida. A Representação sustentava que a solução estadual deveria ser correlata à do art. 76 da Constituição de 1967, com a redação da Emenda Constitucional n. 1, de 1969100, ou seja, a posse deveria ocorrer perante o Tribunal de Justiça, não perante um órgão do Poder Judiciário federal, de atribuições constitucionalmente delimitadas e de competência especial. O Ministro Baleeiro votou pela improcedência da Representação: “Para mim, uma Carta Política de Estado-Membro só viola a Constituição Federal quando, expressa ou implicitamente, desafia dispositivo desta última ou alguns dos princípios cardeais do regime. Se pensarmos o contrário, melhor seria que o Congresso Nacional incumbisse o Ministério da Justiça, ou o do Interior, ou mesmo o Dasp, de redigir e imprimir uma Constituição-modelo, ou padrão, 97 “Os Estados reformarão suas Constituições dentro em sessenta dias, para adaptálas, no que couber, às normas desta Constituição, as quais, findo esse prazo, considerar-se-ão incorporadas automaticamente às cartas estaduais.” 98 “As disposições constantes desta Constituição ficam incorporadas, no que couber, no Direito Constitucional legislado dos Estados.” 99 Sobre o princípio da simetria, inclusive defendendo a sua permanência na Constituição de 1988, vide Nelson Oscar de Souza, Manual de Direito Constitucional. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998. pp. 114 a 117. 100 “O Presidente tomará posse em sessão do Congresso Nacional e, se este não estiver reunido, perante o Supremo Tribunal Federal (...)” 100 Ministro Aliomar Baleeiro que os Deputados estaduais preencheriam com o nome do Estado, datariam e assinariam. Na pior hipótese, poupar-se-ia o tempo por demais escasso da Procuradoria-Geral da República e o nosso.”101 Prevaleceu, no entanto, o entendimento do Ministro Thompson Flores, para quem o dispositivo estadual impugnado implicava submeter Tribunal Federal à legislação estadual. Ademais, competia — como ainda compete — à União legislar sobre Direito Eleitoral. Apontava, assim, ofensa ao art. 8º, XVII, a e b, da Constituição de 1967, com a redação da Emenda Constitucional n. 1, de 1969. Essa argumentação era — e segue — plausível. Ainda assim, não prejudica a argumentação do Ministro Baleeiro contra a simetria. É curioso destacar, ainda, que, durante os debates, o Ministro Baleeiro chamou o Ministro Thompson Flores de “simetrista”, e completou: “Não tenho esta tendência.” No RE n. 71.016/PR, Relator o Ministro Antonio Neder, julgado em 19 de setembro de 1974, discutiu-se questão previdenciária estadual: se acaso teria direito à pensão viúva de um magistrado que não se inscrevera como contribuinte da previdência estadual nem lhe pagara nenhuma parcela de contribuição. O Relator votou pela não-concessão da pensão, que implicaria “benevolência sem par”, o que — sustentou — não teria guarida na Constituição de 1967. O Ministro Baleeiro acompanhou o Relator, afirmando: “Assim, se a Constituição e o direito ordinário do Paraná instituem um sistema de previdência, acompanhando, aliás, propósitos e altos ideais que a Constituição Federal insinua, neste caso, têm que fazer como a Constituição quer. E, se ela não quer que a pensão seja de graça, estabelece que não se criará ônus sem que se criem as respectivas fontes. Se ela diz que o sujeito interessado contribuirá, a regra se aplica, também, ao Estado. O Paraná não pode dar presentes, não pode fazer benevolência a ninguém. Por mais penosa e simpática que seja a situação da viúva, não pode ela locupletar-se com o dinheiro do Estado do Paraná.” 101 Na Representação n. 670/GB, Relator o Ministro Pedro Chaves, julgada em 8 de junho de 1966, o Ministro Baleeiro já advertia para o cuidado com que se deve examinar a constitucionalidade de legislação estadual: “Partindo dessas convicções e também da de que a declaração de inconstitucionalidade de leis estaduais, para intervenção federal, deve ser pronunciada com cautela, prudência e parcimônia ainda maiores do que as recomendadas para as outras inconstitucionalidades, sobretudo em se tratando de matéria de interesse interno e peculiar dos Estados sem qualquer atrito com as competências e atribuições da União (...)” 101 Memória Jurisprudencial No entanto, antes de assim votar, o Ministro Baleeiro criticou a simetria: “(...) a mim me parece que a Constituição estadual, pelo regime que está em vigor hoje no País, tem que ser, como aqui se decretou várias vezes, com meu voto contrário, uma cópia-carbono da Federal. Lembro-me do eminente Ministro Leitão de Abreu, de machado em punho, cortando a Constituição do Rio Grande do Sul. Mal ficou o pobre do tronco. E eu votei contra. Pois bem, o artigo 200 da Emenda n. 1 era a fortaleza em que se acastelavam os de ponto de vista contrário ao meu. A Constituição Federal, no artigo 200, quer que tudo que esteja nela se considere, automaticamente, parte integrante das Constituições estaduais. (...)” Ironicamente, prevaleceu o voto do Ministro Leitão de Abreu. Entendia ele que não era possível responsabilizar o funcionário pela sua não-inscrição e pelo não-recolhimento das contribuições. Na Representação n. 826/MT, Relator o Ministro Barros Monteiro, julgada em 21 de outubro de 1970, o STF declarou a inconstitucionalidade de diversos dispositivos da Constituição mato-grossense então vigente, que se afastavam do “paradigma federal”. Por exemplo: a Constituição do Mato Grosso vigente àquele tempo exigia o voto da maioria absoluta dos membros da Assembléia Legislativa para a declaração da procedência de acusação contra o Governador do Estado. O STF entendeu que a cláusula estadual da maioria absoluta afastava-se do paradigma federal, qual seja, a maioria de dois terços para a mesma declaração. O Ministro Baleeiro votou vencido, sustentando: “Com a vênia de tão esmagadora maioria, não recebo a representação. Creio que o figurino não é tão apertado, tão rígido que não permita pequenas variações em quantidade, largura e colorido. Acho que seria lícito ao Estado estabelecer um quorum menor.” Em diversos outros julgados, o Ministro Baleeiro criticou e advertiu quanto ao uso exagerado do poder de declarar inconstitucionais as leis políticas dos Estados. Na Representação n. 898/RS, Relator o Ministro Luiz Gallotti, julgada em 25 de abril de 1974, afirmou: “Acredito que a Constituição não deve ser levada a esse extremo de se exigir dos Estados quase que uma verdadeira cópia xerox da Constituição Federal.” Caso extremo consta da Representação n. 892/RS, Relator o Ministro Thompson Flores, julgada em 15 de agosto de 1973, em que o STF declarou 102 Ministro Aliomar Baleeiro inconstitucional a expressão “sofrer acidente ou”, constante de norma constitucional estadual correlata ao art. 184, parágrafo único, da Constituição de 1967, porque seria “acréscimo inadmissível ao texto federal”, cujo teor era o seguinte: “Se o Presidente da República, em razão do exercício do cargo, for atacado de moléstia grave que o inabilite para o desempenho de suas funções, as despesas de tratamento médico e hospitalar correrão por conta da União.” O Ministro Baleeiro votou vencido: “(...) Acho que o mesmo motivo, que obriga o Tesouro a pagar as despesas médicas e hospitalares, se aplica, até com mais razão, às do acidente. Um chefe de Estado, no exercício de suas funções, pode sofrer desastre aéreo, ou levar um tiro, etc. (...)” Outro exemplo de uso rigoroso da simetria é a Representação n. 755/RJ, Relator o Ministro Adaucto Cardoso, julgada em 14 de maio de 1969, em que foram declarados inconstitucionais diversos dispositivos da Constituição do Estado do Rio de Janeiro. O Ministro Baleeiro votou vencido em diversos pontos da Representação. Um dos dispositivos fulminados requeria fossem comprovados à Assembléia Legislativa — por meio de títulos e documentos — os notórios conhecimentos jurídicos, econômicos e financeiros de quem o Governador pretendesse nomear para o Tribunal de Contas. O dispositivo foi fulminado porque a comprovação documental refugia ao modelo federal. O Relator retificou o seu voto após a manifestação do Ministro Baleeiro, que discorreu sobre o “notável saber”, inclusive lembrando casos em que cidadãos sem formação jurídica tiveram assento no Supremo Tribunal Federal e na U. S. Supreme Court. Ficaram vencidos. Na Representação n. 764/ES, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgada em 6 de março de 1968, o STF, seguindo o voto do Relator, declarou inconstitucionais dispositivos da Constituição capixaba que excluíam os órgãos administrativos do Poder Legislativo estadual do crivo do Tribunal de Contas, permitiam ao Tribunal de Contas propor à Assembléia Legislativa a criação ou a extinção de cargos e a fixação dos respectivos vencimentos, mas por meio do Poder Executivo, entre outras inovações que escapavam aos princípios da Constituição de 1967. Nos debates, o Ministro Baleeiro esclareceu o seu voto: “Em matéria de fiscalização e controle financeiro, não ficara adstrito a seguir, vírgula por vírgula, letra a letra, o que se contém na Constituição Federal. A meu ver, o que a Constituição Federal impõe ao Estado e ao Município, em matéria de controle financeiro, como princípio básico do regime, é a eficácia desse controle. Nenhum Estado 103 Memória Jurisprudencial pode organizar-se sem garantir aos seus cidadãos um rigoroso, honesto e efetivo controle do emprego dos dinheiros públicos.” Concluiu que a maneira de fazê-lo, desde que efetivo, eficaz, ficava à decisão estadual. Nem sequer precisaria ser na forma de um Tribunal de Contas. Exemplificou com a possibilidade de instituir um órgão unipessoal, o chamado Comptroller and Auditor General, havido nos Estados Unidos, na Inglaterra, na Suécia, no Chile, em países do Pacífico, etc. Na Representação n. 861/MG, Relator o Ministro Oswaldo Trigueiro, julgada em 23 de agosto de 1972, o STF decidiu sobre a constitucionalidade ou não de diversos artigos da Constituição do Estado de Minas Gerais. Aqui, o Ministro Baleeiro conseguiu afastar o raciocínio simetrista. O inciso I do art. 10 da Constituição mineira vedava ao Estado e aos Municípios “instituir ou aumentar tributo sem que a lei o estabeleça ou cobrá-lo sem a prévia autorização orçamentária”.102 Argumentava-se, em síntese, que o modelo constitucional federal não mais contemplava o princípio da anualidade — que existia na Constituição de 1946 —, constante da parte final do dispositivo estadual em causa. O Ministro Baleeiro sustentou que não havia impedimento constitucional de um Estado adotar, para si próprio, uma limitação maior do que a correlata aplicável à União. Explicou o princípio da anualidade (“é bom que se garanta a todos contra surpresas dos legisladores”103) e fez forte crítica ao parâmetro de controle da Emenda Constitucional n. 1, de 1969, pertinente ao ponto discutido: “Este dispositivo — art. 153, § 29 — data venia dos eminentes constitucionalistas do Governo Militar de setembro de 1969, é um disparate. Acredito que não tenham culpa disso os signatários da Emenda 1, de 1969, porque não são juristas. Algum leguleio remendou os textos do Professor Pedro Aleixo e reduziu-os a isso que está aí. Se lermos este artigo em sã consciência, não vamos saber quais os outros casos em que a Constituição autoriza a cobrar tributos depois de 31 de janeiro. Parece que o autor que escreveu este artigo confundiu tributo com preço.” 102 Grifamos. 103 Prosseguiu: “Cada contribuinte faz um plano para um ano, mas pode ser surpreendido e ter um prejuízo que seria sua ruína, com impostos não previstos no orçamento. Por outro lado, a coletividade quer conceder os tributos em função dessa despesa global correspondente a específicos serviços públicos programados para o ano imediato.” Vale referir, ainda, a explicação do Ministro Baleeiro constante dos ERE n. 61.474/ SP, de sua relatoria, julgados em 11 de dezembro de 1968. Contou que a mens legislatoris do princípio da anualidade foi “no sentido de que a exigência de tributo era condicionada 104 Ministro Aliomar Baleeiro Insistiu que “a Constituição estadual pode dar mais segurança, mais energia, mais amplitude a uma garantia da Constituição Federal”. O inverso é que não seria possível, “restringindo a garantia individual e ampliando o arbítrio do Fisco”. O Ministro Baleeiro fez uma ressalva, qual seja, a exigência de autorização orçamentária não poderia ser imposta pela Constituição estadual aos Municípios: “O Município, no Brasil, é pessoa de Direito Público e tem autonomia para cobrar seus impostos. E o Estado não lhe pode tirar nada disso.” O dispositivo estadual aludido foi declarado constitucional no seu todo. Não prevaleceu, portanto, a simetria104. Enfim, vale mencionar, porque curiosa, a Representação n. 823/GB, Relator o Ministro Adalicio Nogueira, julgada em 26 de novembro de 1970. Nela, o STF discutiu a constitucionalidade ou não de emenda constitucional estadual editada por Governador com base no Ato Institucional n. 5, de 1969. A Representação foi julgada improcedente. O Ministro Baleeiro sustentou, acompanhando o Ministro Eloy da Rocha, que o Ato Institucional n. 5, de 1969, deu aos Governadores apenas competência ordinária, ou seja, para editar normas infraconstitucionais. No entanto, a emenda impugnada limitara-se a incorporar à Constituição estadual o que o art. 200 da Constituição de 1967, com a redação da Emenda Constitucional n. 1, de 1969, já mandava incorporar. Logo, não haveria o que corrigir. Concluiu, então: “Não discutimos problemas teóricos e sim problemas concretos, reais.” à lei e ao orçamento, um e outra e não um ou outra”. Explicou que o orçamento não substitui a lei material: não é lei, apenas tem forma de lei. “Sancionado formalmente como as leis, seguindo a numeração destas, todavia não se confunde com a lei no sentido substancial. Sua tramitação é diferente pelos regimentos parlamentares e até por disposições constitucionais que lhe estabelecem o restrito conteúdo e lhe vedam qualquer matéria outra além da autorização das receitas e despesas, operações de crédito para o déficit ou aplicação para o saldo (CF de 1946, art. 73; CF de 1967, art. 63).” Lembrou que a reforma constitucional de 1926, entre outros objetivos, visou a acabar com as “caudas orçamentárias”. Desde então, por disposição constitucional expressa, o orçamento “só pode ser um ato-condição que prevê receita e fixa despesa, sem conter nada mais senão isso”. Concluiu, então, que o orçamento “condiciona a execução das leis tributárias, mas não pode definir fato gerador de tributo, estabelecer-lhe base de cálculo nem fixar-lhe a alíquota ou prorrogar a lei caduca que fixara para o exercício anterior”. A lei, no caso, não produz efeito sem que o ato-condição o determine. Ainda assim, o atocondição não substitui a lei, não supre a sua falta. 104 A Constituição mineira vigente, em seu art. 152, § 2º (acrescentado pela Emenda Constitucional n. 41, de 8 de novembro de 2000), prevê limitação constitucional ao poder de tributar, que não consta da Constituição de 1988: “Não será admitida, no período de noventa dias que antecede o término da sessão legislativa, a apresentação de projeto de lei que tenha por objeto a instituição ou a majoração de tributo estadual.” A norma surte efeito prático similar ao do antigo princípio da anualidade. Vale observar que se dirige, apenas e tão-somente, à Fazenda Pública estadual, não à municipal. 105 Memória Jurisprudencial Ainda hoje, sob texto constitucional que não mais impõe simetria aos Estados, vez ou outra são proferidas decisões judiciais, como que por inércia, declarando a inconstitucionalidade de dispositivos constitucionais estaduais ao argumento de que se afastam do paradigma federal. Outros casos em que o Ministro Baleeiro votou vencido afastando a simetria: Representação n. 770/GB, Relator o Ministro Djaci Falcão, julgada em 26 de fevereiro de 1969 (sobre reorganização do Ministério Público estadual e da Procuradoria-Geral do Estado); Representação n. 796/SP, Relator o Ministro Adaucto Cardoso, julgada em 10 de junho de 1970 (sobre a participação da Assembléia Legislativa na escolha de Reitor de Universidade estadual)105; Representação n. 824/ES, Relator o Ministro Djaci Falcão, julgada em 10 de junho de 1970. “Peculiar interesse local” O Ministro Aliomar Baleeiro, em diversos julgados, cuidou da autonomia municipal. Em seus votos, fomentou a discussão do peculiar interesse local, bem assim o estudo da dimensão da autonomia dos municípios. Na Representação n. 654/BA, Relator o Ministro Vilas Boas, julgada em 14 de abril de 1966, foi discutido se acaso o serviço público de água e esgotos estava no âmbito de competência do Município de Salvador. O Ministro Aliomar Baleeiro sustentou que a cláusula do “peculiar interesse” constante do inciso II do art. 28 da Constituição de 1946 deveria ser compreendida em conexão com a alínea b do mesmo inciso II, isto é, peculiar interesse municipal quanto “à organização dos serviços públicos locais”. Em outras palavras: se o serviço público considerado fosse estritamente local, ele estaria, sim, circunscrito ao peculiar interesse. O Ministro Baleeiro historiou, então, o serviço em causa. Destacou que a sua prestação exigia esforço e estrutura que escapavam ao âmbito — e, por isso, à competência — do município. Destacou que era necessário buscar a água em outras áreas, extrapolando, portanto, a competência municipal. Lembrou que esse também era o caso da cidade do Rio de Janeiro, entre outras. Assim, o STF reputou constitucional lei estadual que autorizou o Estado da Bahia a organizar, em convênio com o Município de Salvador, o abastecimento de água da cidade. Nesse sentido votaram o Relator e o Ministro Baleeiro. 105 Sustentou o Ministro Baleeiro neste feito: “Diante de duas interpretações perfeitamente possíveis (...) prefiro a que resguarda o princípio fundamental da Constituição, que é o da existência de um regime federativo neste País.” 106 Ministro Aliomar Baleeiro Na Representação n. 675/SP, Relator o Ministro Lafayette de Andrada, julgada em 1º de junho de 1966, o STF declarou inconstitucional lei estadual que concedia aos contribuintes recurso à Câmara Municipal contra os atos do Prefeito. O Ministro Baleeiro votou vencido. Distinguiu o caso vertente daqueles outros relativos a recursos dos atos do Prefeito à Assembléia Legislativa. Aí, sim, haveria ofensa à autonomia do município. Destacou que a situação dos autos era diversa: tratava-se de recurso de um órgão municipal para outro. Ademais, prosseguiu, não haveria que objetar quanto à criação de hierarquia entre os Poderes Legislativo e Executivo municipais. Lembrou que isso já ocorria quando do processo de impeachment do Prefeito, quando da prestação de contas da Prefeitura à Câmara de Vereadores. Criticou exageros relativamente à autonomia municipal: “É uma autonomia menos política e mais administrativa.” A seguir, registrou: “É possível que, no começo, as municipalidades da Península Ibérica tivessem sentido maior, na época em que elas e o rei eram as duas e únicas pessoas de Direito Público. Não havia nada mais, porque ainda não surgira o Estado-Membro. Depois disso, surgiram os Estados e não havia mais razão para a larga autonomia, uma vez que logo já víamos nascer a federação, no Ato Adicional de 1834, fazendo surgir daí a figura da província, que absorveu parte da autonomia municipal.” Na Representação n. 834/MA, julgada em 18 de março de 1971, o Ministro Baleeiro, Relator, deu aplicação ao entendimento majoritário. No RMS n. 11.291/SP, Relator o Ministro Gonçalves de Oliveira, julgado em 12 de junho de 1963, o STF afastou legislação municipal que dispunha sobre horário de atendimento bancário. O Relator entendeu competir à União legislar sobre instituições de crédito, câmbio, etc. Ademais, a lei federal dispunha sobre a matéria, qual seja, a Consolidação das Leis do Trabalho, em seu art. 224. Este entendimento foi confirmado no RE n. 77.254/SP, Relator o Ministro Xavier de Albuquerque, julgado em 20 de fevereiro de 1974. Prevaleceu o entendimento do Ministro Djaci Falcão, que sustentou competir à União legislar sobre política de crédito, câmbio, etc., bem assim sobre Direito do Trabalho (“A matéria atinente à duração do trabalho, pela sua importância não só quanto à proteção ao empregado mas também em razão dos reflexos na ordem econômica, deve ser regulada pela legislação federal.”). No RE n. 79.253/SP, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 11 de outubro de 1974, o STF decidiu a mesma matéria em conformidade com os precedentes já aludidos. Importa registrar que o Ministro Baleeiro assentou a sua 107 Memória Jurisprudencial convicção no desenvolvimento de outra linha de argumentação: analisou se a matéria estava ou não no âmbito da autonomia municipal, assegurada no que concernia ao “peculiar interesse” da administração própria do Município106. Sustentou que “peculiar”, na cláusula constitucional, deveria ser entendido como “exclusivo” ou “preponderante” interesse. Assim, nenhum outro ente poderia disputar com a municipalidade a competência para dispor sobre o horário da entrega do leite, da coleta de lixo, do acendimento das lâmpadas públicas, etc. No entanto, prosseguiu o Ministro Baleeiro, o “peculiar interesse local” deveria, sim, ceder ao “maior interesse do Estado-Membro ou da União”. Afirmou-o, mas registrou crítica: “(...) Depois que a nossa República passou a chamar-se de ‘federativa’, por amarga ironia a autonomia local — seja a do EstadoMembro, seja a do Município — vem sendo metida num colete de aço, que o legislador federal pode apertar com larga discrição.” Prosseguiu logo adiante: “A atividade bancária, pela sua conexão com problemas de moeda, crédito, inflação, câmbio, balanço de pagamentos, etc., está comandada discricionariamente por órgão da União, o Banco Central. O horário dos bancos, que não é assunto exclusivo do Direito Trabalhista, deve ser isócrono no País, em cujo território as empresas desse gênero se expandem em vasta rede de estabelecimentos ou agências que, pelo telefone ou telex, se comunicam com as matrizes e lhes cumprem instruções e ordens, muitas das quais derivadas do Banco Central. (...)” A seguir, concluiu: “Nenhum estabelecimento da mesma rede bancária nacional poderá efetuar um pagamento por meio de outro estabelecimento congênere na praça de Pindamonhangaba, às 16h15, porque a edilidade não quer. O interesse nacional mais relevante do Brasil todo curvar-se-á àquilo que o próspero município paulista erigiu em seu ‘peculiar interesse’.” Reiterou o seu entendimento no RE n. 80.081/PR, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 10 de dezembro de 1974. A questão, vez ou outra, ainda surge no STF, que mantém a sua jurisprudência107. Importa destacar, aqui, o cuidado do Ministro Baleeiro em examinar a 106 Cf. art. 15, II, da Constituição de 1967, com a redação da Emenda Constitucional n. 1, de 1969. A Constituição de 1988 afirma competir aos municípios “legislar sobre assuntos de interesse local” (art. 30, I). 107 Por exemplo, o RE n. 118.363/PR, Relator o Ministro Célio Borja, julgado em 26 de junho de 1990. 108 Ministro Aliomar Baleeiro matéria sob a ótica do “peculiar interesse local”. Ainda que não o tenha reconhecido nos julgados referidos (fixação de horário bancário em lei municipal), a ele dedicou atenção, o que, lamentavelmente, pouco se faz hoje em dia, seja na doutrina, seja na jurisprudência. Mesmo sob uma Constituição democrática, a autonomia municipal — bem assim a estadual — segue “metida num colete de aço”. 108 É curioso observar que a expressão utilizada pelo Ministro Baleeiro — “peculiar interesse local” — conjugava a expressão do constitucionalismo pretérito com a do atual. Vaticinava. De toda sorte, infelizmente, a dimensão do município há muito foi perdida por um progressivo amesquinhamento da autonomia municipal109. Também sobre autonomia municipal, com importantes considerações do Ministro Baleeiro: RMS n. 13.270/SP e RMS n. 13.822/SP, ambos relatados pelo Ministro Aliomar Baleeiro e julgados em 18 de agosto de 1966. Enfim, vale destacar que o Ministro Baleeiro, já sob a Constituição de 1967, defendia: “o município não é criatura do Estado, porque sua criação e autonomia decorrem da própria Constituição Federal”. (RE n. 77.817/SP, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 7 de maio de 1974) Supremacia do Direito Federal No RMS n. 14.624/SP, Relator o Ministro Adalicio Nogueira, julgado em 20 de setembro de 1966, o STF, seguindo voto do Ministro Aliomar Baleeiro, que lavrou o acórdão, deu pela inconstitucionalidade da taxa de matadouro então cobrada pelo Município de São Paulo sobre animais ou carnes e produtos de origem animal já inspecionados pela União. Decidiu-se pela exclusão de inspeção municipal quando já houvesse inspeção federal. 108 Sobre peculiar interesse, vale conferir obra clássica: LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto. O município e o regime representativo no Brasil. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997. pp. 79 a 126. 109 Na Representação n. 654/BA, Relator o Ministro Vilas Boas, julgada em 14 de abril de 1966, o Ministro Baleeiro reconheceu que a competência decorrente do peculiar interesse é limitada: “Mas a verdade é que o nosso município tem apenas aquela competência limitada que está na Constituição de 1891, ‘autonomia em relação ao seu peculiar interesse’. Esse ‘peculiar interesse’, é indefinível e cada lei orgânica estende para mais ou para menos. Em regra, o mais forte, o Estado, leva sempre vantagem...” A lei orgânica referida era estadual: dos Estados para os municípios. Havia exceções: sob a Constituição de 1967, os municípios gaúchos, bem assim os de Curitiba e Salvador já elaboravam as suas próprias leis orgânicas (ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes de. Competências na Constituição de 1988. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2000. p. 113). 109 Memória Jurisprudencial O Ministro Baleeiro afirmou que admitia a taxa federal nos casos em que se tratasse de controle levado a efeito sobretudo no interesse do comércio interestadual ou internacional, como, por exemplo, o controle sanitário, higiênico ou da eficiência industrial. Lembrou, ainda, que a Constituição reservava — e reserva — à União, o controle do comércio interestadual e internacional110. A seguir, esclareceu sobre quando haveria peculiar interesse municipal: “(...) O que se ressalva ao município é seu controle, de caráter local, quando as carnes se destinam única e exclusivamente ao consumo local, quer quanto ao comércio, quer quanto à industrialização dessas carnes na área urbana ou suburbana, inclusive nos açougues, veículos, etc., porque, então, há ‘peculiar interesse’ dos municípios.” No RE n. 62.830/MG, julgado em 8 de abril de 1969, relativo à mesma espécie de exação, o Ministro Aliomar Baleeiro, Relator, reafirmou a supremacia do Direito Federal sobre o local quando União e Estado, ou ela e município, forem igualmente competentes para um só serviço. Sustentou, ainda, que “o peculiar interesse não serve de capa para reinspecionar à entrada o que já foi inspecionado e certificado em boas condições sanitárias, numa duplicação de serviços que não disfarça a gula tributária”.111 Também sobre taxa de matadouro e decidido no mesmo sentido: ERE n. 62.800/MG, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgados em 8 de novembro de 1973. 110 Constituição de 1946, art. 5º, XV, k, e Constituição de 1988, art. 22, VII. 111 Confirmado em grau de embargos: ERE n. 62.830/MG, Relator o Ministro Eloy da Rocha, julgados em 14 de dezembro de 1972. 110 Ministro Aliomar Baleeiro MANDADO DE SEGURANÇA Contra lei em tese No RE n. 58.692/SP, Relator o Ministro Vilas Boas, julgado em 29 de novembro de 1965, o STF enfrentou problema relativo à incorporação de faixa de um município a outro. Foi discutido se acaso havia, na espécie dos autos, mandado de segurança impetrado contra lei em tese. No particular, respondendo negativamente, vale transcrever excerto do voto do Ministro Aliomar Baleeiro: “No caso, como já se expôs, a lei não tem caráter de lei. É lei no nome. Ela, afinal, contém uma decisão política de separar uma parte de um território de um município, não regulando nenhuma situação geral nem impessoal, com o caráter de lei no sentido material. Seria, aqui, mais um ato, a que o eminente Ministro Hahnemann Guimarães chamou de administrativo, e que, a mim parece, além de administrativo, também é político, e que usou o veículo ou forma de lei formal. (...) Como inúmeras vezes o Congresso Nacional regula várias situações subjetivas ou individuais, concedendo, por exemplo, pensão a uma viúva de um velho servidor público, não há, aí, nenhuma lei, no sentido material, mas apenas um ato administrativo, uma concessão que a Nação faz a um velho servidor do País.” O recurso não foi conhecido e, portanto, foi mantida a ordem concedida na instância a quo, anulando a referida incorporação. Tribunal de Contas. Legitimidade ativa para impetrar mandado de segurança No RE n. 74.836/CE, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 7 de junho de 1973, o STF discutiu a legitimidade ativa de Tribunal de Contas estadual para impetrar mandado de segurança contra ato do Governador do respectivo Estado. O Ministro Aliomar Baleeiro votou vencido: “É o direito subjetivo o que se protege pelo mandado de segurança, e o Tribunal de Contas não tem esses direitos subjetivos. O que há é um conflito constitucional, e ele é um órgão integrado no sistema de freios e contrapesos. Então, tem que vir por um daqueles caminhos que apontei: ou pedir a intervenção federal, e se torna um 111 Memória Jurisprudencial problema político, ou vir ao Procurador-Geral da República, para representação por inconstitucionalidade do ato, e será também outro problema político.” Prevaleceu o voto do Ministro Rodrigues Alckmin, que lembrou haver partes em sentido formal sem personalidade jurídica — citou, como exemplos, a massa falida, a herança e o espólio. Acrescentou, ainda, que a Constituição admite o Tribunal de Contas como sujeito passivo em mandado de segurança. Concluiu, então: “Não se vê, pois, razão para que se lhe negue a qualidade de parte formal ativa, desde que demonstre interesse em estar em juízo.” Lembrou, a seguir, que a Corte já admitira mandado de segurança para que um órgão público despersonalizado defendesse um seu “direito funcional de natureza política”. Esse seria o direito objeto da impetração. Em outras palavras: assegurar o exercício de função constitucionalmente deferida ao Tribunal de Contas. 112 Ministro Aliomar Baleeiro PROPRIEDADE DE TERRA. PRESUNÇÃO EM FAVOR DO ESTADO No RE n. 51.290/GO, Relator o Ministro Evandro Lins, julgado em 24 de setembro de 1968, o Ministro Aliomar Baleeiro, ao acompanhar o Relator, proferiu breve, mas rico, voto relativamente ao domínio de terras no Brasil: “As terras do Brasil foram objeto de conquista e posse por Pedro Álvares Cabral, para o Rei de Portugal. Elas passaram a ser uma fazenda do Rei, ficando no domínio real até a Independência, quando foram transferidas para o Patrimônio Nacional, lá permanecendo todo o tempo do Império, até que o art. 64 da Constituição de 1891 as distribuiu aos Estados em cujos limites se encontravam. Então, os Estados, como sucessores da nação brasileira, e a nação brasileira, como sucessora do patrimônio pessoal do Rei de Portugal, não necessitam trazer nenhum título. O título é a posse histórica, o fato daquela conquista da terra. A terra, no Brasil, originariamente era pública. O Rei desmembrou pedaços, áreas enormes, as chamadas sesmarias, e doou-as. Houve esse processo até quase a Independência. Depois da Independência, estabeleceu-se que não poderiam ser mais objeto de doações ou concessões. Deveriam ser vendidas. Ora, o Rei de Portugal não dava terras. Ele fazia uma espécie de concessão aos sesmeiros, para a sua efetiva utilização econômica. O que queria era fundar um império. Queria que o sujeito trouxesse dinheiro, homens, ferramentas, animais, lavrasse a terra, valorizasse-a, com o que o Rei receberia seus impostos, tanto que reservava certos direitos regaleanos. Basta o fato de não terem cumprido suas obrigações — como, geralmente, não cumpriam — para com a Coroa portuguesa, para que caíssem em comisso, por diferentes maneiras. O Estado de Goiás não precisava provar nada. A presunção é que a terra é dele. O particular é que tem de provar, por uma cadeia sucessória, que as terras foram desmembradas do patrimônio público. Não há nenhuma dúvida a respeito disso.” No RE n. 76.896/PR, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 31 de maio de 1974, o Ministro Baleeiro voltou a discorrer sobre o domínio de terras no Brasil. Contou que o Governo do Império dava terras ao lado de estradas para incentivar cometimentos ferroviários e outros, aí incluída uma estrada ligando São Paulo ao Rio Grande do Sul, passando pelo Paraná. O Governo Provisório da República ratificou o Ato Imperial, mas a Revolução de 1930 declarou as terras de propriedade do Estado. “Elas nunca tinham sido do Estado, porque, no Regime Imperial, pertenciam ao Império e, antes de ser promulgada a Constituição de 1891, o Governo Provisório ratificou a concessão (...)”, registrou, ainda. 113 Memória Jurisprudencial PROCESSO LEGISLATIVO Lobby Na Representação n. 909/RJ, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgada em 7 de maio de 1975 (cujo acórdão foi lavrado pelo Ministro Rodrigues Alckmin), o Ministro Baleeiro — em voto vencido — discorreu sobre o lobby: “O fenômeno do lobbying, aliás, regulamentado pelo Congresso dos EE.UU., é apenas o reconhecimento de que qualquer grupo social tem legitimidade para fazer chegar aos olhos e aos ouvidos dos legisladores o apelo de seus direitos e interesses. Enquanto o lobbying não se degrada em tentativa de corrupção ou de coação, nenhum argumento ético se lhe pode opor, embora isso não tenha sido bem compreendido pelos brasileiros insuficientemente informados a respeito daquela prática.” De fato, o lobby, como convencimento argumentativo, fundado em debate racional e transparente, é inerente à própria democracia. Por outro lado, justamente porque não foi bem compreendida em seus sentido e práticas originais, a palavra lobby adquiriu sentido pejorativo nos meios brasileiros. Como referido pelo Ministro Baleeiro, o problema não é o lobby, mas, sim, a sua deturpação em tentativa de corrupção ou de coação. Fora disso, trata-se de instrumento legítimo. No Congresso Nacional, o assunto é objeto do PL n. 6.132, de 1990: “Dispõe sobre o registro de pessoas físicas ou jurídicas junto às Casas do Congresso Nacional, para os fins que especifica, e dá outras providências.” Veto parcial sobre palavras No RE n. 64.624/SP, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 18 de março de 1969, debateu-se interessante questão decorrente de veto parcial manifestado sobre palavras específicas dentro de um determinado dispositivo normativo. A recorrente argumentava que o quantum tributário que lhe era exigido não era devido porque se fundava em lei estadual publicada em 30 de dezembro de 1963, mas não vigente ao tempo do fato gerador. A cláusula de vigência da lei em questão dispunha: “Esta lei entrará em vigor (...vetado...) a sua publicação.” Isso porque o Poder Executivo vetara as palavras “em 90 dias após”, como permitido pela Constituição de 1946. Com base na redação remanescente, a Fazenda estadual entendia que a lei havia entrado em vigor na data da sua publicação (31 de dezembro de 1963). 114 Ministro Aliomar Baleeiro O Ministro Baleeiro não concordou, ao argumento de que o texto ficou sem sentido. A Ementa do julgado é didática: “Se o veto mutilou a lei, tirando-lhe qualquer sentido ou nexo, de modo que não se lê nela quando entrará em vigor, aplica-se o art. 1º da Introdução ao Código Civil”, vale afirmar, 45 dias depois de oficialmente publicada a lei. Ademais, acrescentou o Ministro Baleeiro, a legislação em causa não cumpria o princípio da anualidade: “a majoração decretada depois da aprovação do orçamento não era exigível nos primeiros meses de 1964 — no período anterior à Emenda n. 7”. O caso é curioso e didático porque exemplifica as confusões que advinham do modelo pretérito do veto, aquele em que se admitia fossem colhidas palavras soltas no texto normativo, o que não admite a Constituição vigente, a teor do § 2º do seu art. 66: “O veto parcial somente abrangerá texto integral de artigo, de parágrafo, de inciso ou de alínea.” Vício de iniciativa. Aumento de despesa Na Representação n. 727/RS, Relator o Ministro Prado Kelly, julgada em 12 de abril de 1967, o STF examinou a constitucionalidade de diversos dispositivos do Código de Organização Judiciária do Estado do Rio Grande do Sul. O Ministro Aliomar Baleeiro votou vencido relativamente à criação de tabelionatos de oficiais de registros públicos, “cargos que não pesam ao Tesouro, em vencimentos, sabido que os respectivos serventuários são remunerados pelas partes”. Sustentou que a vedação de iniciativa parlamentar quanto à criação de cargos públicos com aumento de despesa tem por finalidade “prevenir o aumento de despesa pública, pelo receio de que os parlamentares reincidam no vezo de certa generosidade para com os agentes do Estado”. Logo, ainda que não decorrente de prévia iniciativa do governador, o Ministro Baleeiro não reputou inconstitucional a lei estadual que criou serventias sem ônus para o Estado. Na Representação n. 610/SP, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgada em 28 de setembro de 1966, o STF fulminou lei estadual que concedeu aumento salarial por meio de equiparações. O governador havia vetado o respectivo projeto, mas a Assembléia Legislativa derrubou o veto. O Ministro Baleeiro destacou o porquê de haver — quer nos sistemas parlamentaristas, quer nos sistemas presidencialistas — cada vez mais restrições à iniciativa de despesas: 115 Memória Jurisprudencial “(...) Em ambos os sistemas políticos, cabe ao Executivo dinamizar o Governo, solicitando os meios financeiros ao Parlamento, que, historicamente, se presume o defensor do bolso dos contribuintes. E desde que o sufrágio universal tenta o parlamentar a provocar dispêndios, as próprias Assembléias se autolimitam, do que é exemplo expressivo o da Câmara dos Comuns, da Inglaterra, onde nenhum lord ou deputado aumenta um penny sequer à proposta orçamentária. (...)” Explicou, ainda, a diferença havida entre os dois sistemas: (1) no parlamentarismo, pela integração de Poderes, o Gabinete somente gasta naquilo que o Parlamento quer, e esse somente quer algum fim por meio do Gabinete, na medida em que o Executivo decorre da maioria havida na Câmara dos Comuns112; e (2) no presidencialismo, pela divisão e independência dos Poderes, pode haver permanente dissídio entre o Congresso e o Executivo. E completou: “Mas remédio para isso não se busca na farmácia do Supremo Tribunal Federal.” O Ministro Baleeiro concluiu pela inconstitucionalidade da lei impugnada, “mas só pela falta de iniciativa do governador”. A alegada falta de recursos pareceu irrelevante ao Ministro Baleeiro, que deixou de apreciá-la, “por ser o outro vício suficiente para recebimento da representação”. No entanto, o Ministro Baleeiro registrou que não a receberia se o governador houvesse sancionado o texto incriminado, porque estaria sanado o vício pela anuência do governador ao abuso da Assembléia, posição essa que reflete a Súmula n. 5 do STF113. Citou doutrina em sentido diverso — Carlos Medeiros, Caio Tácito e outros114. A jurisprudência subseqüente do STF parece ter superado a Súmula n. 5115. 112 Em outra Representação, a de n. 687/GB, Relator o Ministro Adalicio Nogueira, julgada em 25 de agosto de 1966, o Ministro Baleeiro já havia se manifestado em igual sentido: “A evolução do regime parlamentar, dando ao parlamento a hierarquia maior entre os poderes, ou mesmo negando a própria divisão da harmonia e independência dos poderes, tolhe a iniciativa em matéria financeira. É uma regra que tem várias fundamentações e que são absolutamente necessárias neste momento.” 113 “A sanção do projeto supre a falta de iniciativa do Poder Executivo.” 114 Na melhor doutrina mais recente, vide Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Do processo legislativo, 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. pp. 214-221. 115 Representação n. 890/GB, Relator o Ministro Oswaldo Trigueiro, julgada em 27 de março de 1974, de cuja ementa se extrai o seguinte excerto: “A sanção não supre a falta de iniciativa, ex vi do disposto no art. 57, parágrafo único, da Constituição, que alterou o direito anterior.” Mais recentemente, na ADI n. 266/RJ, Relator o Ministro Octavio Gallotti, julgada em 18 de junho de 1993, afirmou-se: “Esse verbete, aprovado na vigência da Constituição de 1946, subsistiu na prática da de 1967, com a ressalva de não ser aplicável ao caso de projeto ou emenda causadores de aumento de despesa, dada a proibição terminante introduzida pelo parágrafo único do art. 57 daquela segunda Carta (a de 1967), que encontra correspondência no art. 63 da atual.” Daí o “parece ter superado”. 116 Ministro Aliomar Baleeiro No mesmo sentido: RE n. 67.836/SP, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 9 de maio de 1973. Circunstância próxima é a da emenda parlamentar. Daí perguntar-se: acaso ela pode ampliar o número de cargos inicialmente previstos ou majorar vencimentos além do previsto em projeto de lei de iniciativa reservada ao Poder Executivo? Na Representação n. 670/GB, Relator o Ministro Pedro Chaves, julgada em 8 de junho de 1966, o STF entendeu que sim. O Ministro Relator afirmou: “Já temos decidido em criação de cargos, em que o Executivo propôs a criação de vinte e o Legislativo elevou para vinte e três ou vinte e quatro cargos, que não é só o Executivo que pode ouvir e sentir as necessidades do Estado; o Legislativo também.” O Ministro Baleeiro votou vencido em parte. Sustentou que, cabendo à Assembléia Legislativa o poder de legislar, a restrição quanto à iniciativa para criação de cargos e aumentos de vencimentos não comportaria ampliação. Mas não acreditava — registrou — que, em havendo a iniciativa, ficasse a Assembléia de mãos livres para emendar o Projeto do Executivo nas matérias aludidas. Concluiu, então: “Se assim fosse, o dispositivo austero não teria a mais mínima eficácia.” 116 Também votou vencido no mesmo tema no RMS n. 15.212/SP, Relator o Ministro Gonçalves de Oliveira, julgado em 23 de agosto de 1967. A matéria, hoje, tem definição clara no art. 63, I, da Constituição de 1988, que não admite aumento da despesa prevista nos projetos de iniciativa exclusiva do Presidente da República, salvo nos casos dos projetos de lei orçamentária e de diretrizes orçamentárias. 116 O Ministro Baleeiro reafirmou o seu entendimento na Representação n. 700/SP, Relator o Ministro Victor Nunes, julgada em 3 de maio de 1967. Disciplinado e leal à jurisprudência do STF, afirmou: “Acontece, entretanto, que fui vencido e já externei meu pensamento de que meu individualismo não vai ao ponto de fazer prevalecer minha opinião pessoal, se o Plenário desta Casa, reiteradamente, mantém tese oposta.” Concluiu logo a seguir: “O importante é que haja unificação do direito federal e da Constituição deste País.” 117 Memória Jurisprudencial DIREITO PENAL Detração No RE n. 75.404/GB, Relator o Ministro Oswaldo Trigueiro, julgado em 13 de março de 1973, o STF decidiu que não se deduz da pena privativa de liberdade o tempo de prisão preventiva ou provisória decorrente de outro processo, inexistindo conexão ou continência. É a chamada “detração”, originalmente prevista no art. 34 do Código Penal, hoje disciplinada, em termos similares, no art. 42 do mesmo Código, com a redação da Lei n. 7.209, de 11 de julho de 1984. O Ministro Aliomar Baleeiro votou vencido, defendendo fosse feita, sim, a dedução referida, ainda que a prisão decorrente de outro processo não derivasse de fato conexo ou continente ao então considerado. Afirmou, então: “(...) o direito positivo não proíbe essa posição. Não exige, mas não veda. E é um princípio geral de que a prisão anterior se computa na pena. O princípio geral se aplica. Somos legisladores, no caso concreto, e não encontro proibição disso no direito positivo. O recorrente já está corrigido (...)” Direito Penal mínimo No RE n. 68.015/GB, Relator o Ministro Luiz Gallotti, julgado em 5 de novembro de 1969, discutiu-se a ocorrência ou não da prescrição da ação penal em função da pena fixada na sentença. O Relator acolhera pedido de reexame da Súmula n. 146 (“A prescrição da ação penal regula-se pela pena concretizada na sentença, quando não há recurso da acusação.”) formulado pela Procuradoria-Geral da República, “pensando na impunidade que ela tem trazido a alguns dos grandes crimes contra o patrimônio público”. O Ministro Aliomar Baleeiro criticou duramente o sistema penal brasileiro. Fez, também, considerações que integram o que os criminalistas têm chamado de “Direito Penal mínimo”: “(...) A mim, parece-me que a impunidade decorre da sobrevivência de normas processuais litúrgicas e obsoletas e de organização judiciária ineficaz, ao lado dum Código Penal Draconiano para a consciência jurídica de nossos dias.” Após comentar a agilidade e a flexibilidade do processo criminal norteamericano, reclamou: “Aqui, a via crucis policial arrasta-se por meses, ou, como aconteceu nestes autos, por anos. Outros tantos, na fase judicial.” 118 Ministro Aliomar Baleeiro Aludiu, então, o fundamento político e filosófico da prescrição: “não há fomento de utilidade social em punir-se o crime já esquecido, além de outras razões pragmáticas”. No caso concreto, os “(...) Recorridos delinqüiram há 12 anos e não foram presos durante esse tempo, em cujo decurso não apresentaram novas manifestações de periculosidade. Que proveito tira a sociedade em trancafiá-los (...) ?” Concluiu citando Holmes: “a vida do Direito é experiência e não lógica”. O Relator retificou o seu voto para acompanhar o Ministro Baleeiro na preliminar, mas não no mérito (“Ainda acredito na pena.”), por dois motivos: (1) o recurso foi interposto em permissivo inadequado ao caso; (2) o Código Penal revogou a Súmula n. 146. No RE n. 75.330/GB, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 12 de junho de 1973, o STF julgou caso de réu que, alcoolizado, na noite de Natal, furtara bicicleta velha, de exíguo valor, mas “logo restituída sem maior prejuízo para o dono”. Ao reconhecer o direito ao sursis em sede de habeas corpus, o Relator afirmou: “Para mim, há um direito subjetivo do réu a essa benignidade.” No Habeas Corpus n. 43.834/GB, Relator o Ministro Adalicio Nogueira, julgado em 13 de dezembro de 1966, o Ministro Aliomar Baleeiro examinou a adequação da pena imposta à pessoa do réu. Citando Anatole France, lembrou caso literário similar ao dos autos. Um indivíduo fora condenado por insultar policial. Após sair da prisão, não mais conseguiu sustento, em razão do que concluiu que seria melhor retornar ao cárcere. Então, voltou a enfrentar o guarda e o insultou com as mesmas palavras. Porém, desta vez, o guarda deu de ombros. O Ministro Baleeiro conduziu o julgamento para a tão-só imposição de uma pena de multa majorada. 119 SEGUNDA PARTE Direito Tributário Ministro Aliomar Baleeiro CONTRIBUIÇÃO DE MELHORIA Raros são os processos que controvertem a contribuição de melhoria, tributo de prática acanhada no Direito brasileiro. Em debate, quando do julgamento do RE n. 60.253/SP, Relator o Ministro Eloy da Rocha, julgado em 15 de maio de 1968 (relativo a questão outra), o Ministro Victor Nunes afirmou não compreender “por que razão os poderes públicos em nosso País não se utilizam da contribuição de melhoria”, ao que respondeu o Ministro Aliomar Baleeiro: “Lobo não devora lobo.” Ainda assim, merecem registro comentários do Ministro Baleeiro sobre essa espécie tributária. No RE n. 75.769/MG, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 21 de setembro de 1973, o STF, seguindo o voto do Relator, decidiu que contribuição de melhoria e taxa de calçamento não se confundem. Criticou, ainda, precedentes invocados nos autos, que incorreram em “equívoco grosso”, a saber, o de supor que a contribuição de melhoria não era tributo. “Até Homero cochilava.” No RE n. 74.910/RS, Relator o Ministro Bilac Pinto, julgado em 30 de outubro de 1974, o STF derrubou uma “taxa de conservação de estradas”. Considerou-se que o fato gerador — ou a base de cálculo em outros casos — coincidia com o do imposto territorial. O Ministro Baleeiro acompanhou a divergência lembrando também haver, in casu, elementos que seriam próprios a uma contribuição de melhoria pelo custo, não contemplada pela ordem constitucional pátria. O acórdão foi lavrado pelo Ministro Oswaldo Trigueiro. Casos similares já haviam sido resolvidos no RE n. 76.807/SP, Relator o Ministro Oswaldo Trigueiro, julgado em 4 de setembro de 1974 (taxa de conservação cobrada pelo Município paulista de Pontes Gestal) e no RE n. 77.181/SP, Relator o Ministro Bilac Pinto, julgado em 4 de setembro de 1974 (taxa de conservação cobrada pelo Município paulista de Olímpia). 123 Memória Jurisprudencial CONTRIBUIÇÕES PARAFISCAIS Natureza tributária Consta do RE n. 59.415/GB, Relator o Ministro Vilas Boas, julgado em 17 de maio de 1966, voto do Ministro Aliomar Baleeiro afirmando a natureza tributária das contribuições previdenciárias. É certo que a questão hoje é tranqüila. No entanto, já foi objeto de severa polêmica. Assim, vale transcrever excerto do voto aludido: “(...) creio que as contribuições de previdência têm base no art. 157, XVI, da Constituição [de 1946], e se revestem de caráter fiscal ou, mais exatamente, parafiscal. O neologismo não mascara o caráter tributário dessas contribuições, e já houve controvérsias famosas entre o Professor Morselli e o Professor Merigot, o primeiro considerando que era um tipo de Finanças completamente diferente daquelas de caráter puramente fiscal: são de solidariedade humana, éticas, mas também fiscais e, sendo fiscais, acredito que estão sujeitas ao princípio de legalidade do art. 141, § 34, da Constituição: devem ser criadas por lei.” No RMS n. 18.742/GB, Relator o Ministro Themistocles Cavalcanti, julgado em 4 de junho de 1968, o STF discutiu a natureza jurídica da taxa de renovação da marinha mercante. Pretendia-se, na ação, a desoneração de minério de ferro, relativamente a fatos geradores de 1965. O regime do imposto único excluiria a tributação. No entanto, o Relator sustentou que se tratava de “mera imposição parafiscal, e assim excluída da categoria do imposto”. Mantinha, portanto, a tributação. Contudo, prevaleceu, no caso concreto, o entendimento do Ministro Baleeiro. Aventou que poderia se tratar de uma contribuição de intervenção no domínio econômico fundada no art. 157, § 9º, da Constituição de 1967. No entanto, lembrou, o dispositivo referido não vigorava ao tempo do fato gerador e da impetração. Ademais, sustentou que a parafiscalidade nada teria de diverso da fiscalidade, exceto a delegação ao órgão que financia. Ora seria imposto, ora seria taxa, conforme beneficiasse a quem a pagasse ou simplemente a provocasse (hipótese em que configuraria taxa) ou isso não aconteceria (hipótese em que configuraria imposto com aplicação especial e delegação ao órgão encarregado de aplicar a receita). No caso dos autos, concluiu ocorrer a segunda hipótese, ao que reconheceu a ilegitimidade da exigência relativamente aos mineradores e aos exportadores de minerais. No RE n. 75.063/GB, Relator o Ministro Rodrigues Alckmin, julgado em 26 de setembro de 1973, o STF voltou a discutir a natureza jurídica da taxa de 124 Ministro Aliomar Baleeiro renovação da marinha mercante. O Relator reconheceu que a realidade antecedeu à formulação jurídica mais precisa dos textos da Constituição de 1967 e da Emenda Constitucional n. 1, de 1969, ao estabelecer contribuição especial — que não configurava imposto — e do qual não se libertavam os exportadores de minérios, porque não se tinha, aí, gravame excluído pela legislação própria do imposto único sobre minerais. Sustentou tratar-se de “intervenção no domínio a fim de renovar, ampliar e recuperar a frota mercante nacional e de desenvolver a indústria de construção naval no País”. Entendeu, assim, correta a taxa em causa. Prevaleceu, uma vez mais, o entendimento do Ministro Baleeiro: “Eu me reporto ao meu voto no RMS 18.742, no qual, pela circunstância de os fatos geradores serem anteriores à Constituição de 67, não podia a situação jurídica ser regulada por esta Constituição. (...)” O Ministro Baleeiro, considerando que os fatos geradores contemplados eram anteriores à Constituição de 1967, afirmou que voltaria a discutir a matéria quando do julgamento do RE n. 75.972/SP, Relator o Ministro Thompson Flores, que, com efeito, veio a ser julgado em 10 de outubro de 1973. O STF, no referido feito, decidiu que o Adicional ao Frete para a Renovação da Marinha Mercante não era imposto, mas, sim, contribuição de intervenção no domínio econômico — uma nova espécie tributária admitida pela Constituição de 1967, com a redação da Emenda Constitucional n. 1, de 1969 — e, portanto, não estava sujeito às imunidades constitucionais (como sustentava a pessoa jurídica recorrente). O Ministro Aliomar Baleeiro votou vencido, sustentando, também, a natureza tributária do adicional, mas sem nele reconhecer uma nova espécie tributária. Ao seu entender, o adicional teria natureza de imposto: “(...) a contribuição parafiscal, ou especial, classifica-se como tributo, pelo seu caráter coativo; e não se distingue da fiscalidade senão pela vinculação a um fim e a delegação ao órgão público favorecido, no caso a Sunama.” Concluiu logo adiante: “Substancialmente, ela é taxa, se aproveita a quem a paga; imposto em caso contrário.” Portanto, o Ministro Baleeiro entendeu haver, in casu, imunidade em favor da recorrente. Por outro lado, excluiu majoração do adicional promovida por meio de decreto-lei, não obstante a matéria não ter sido prequestionada: “Mas creio que, fora das exceções da CF nos arts. 21, I, II, V e § 2º, I; 153, § 29, o decreto-lei não é idôneo para instituir ou majorar 125 Memória Jurisprudencial tributo, a tanto não chegando a nova cláusula ‘inclusive normas tributárias’.”117 Alguns Ministros votaram não enfrentando o particular (majoração de tributo por meio de decreto-lei) precisamente porque não foi prequestionado. Foram os casos dos Ministros Djaci Falcão e Eloy da Rocha. O Ministro Baleeiro insistiu, sustentando a possibilidade de a Corte manusear argumentos constitucionais outros, além daqueles já constantes dos autos: “(...) quando se discute violação da Constituição, dilata-se o âmbito da controvérsia e, então, tudo que é conexo com a tese deve ser encarado.” O Ministro Baleeiro acabou deixando para discutir esse particular em momento mais oportuno. Mais recentemente, o STF tem entendido pela “possibilidade de confirmação da decisão recorrida por fundamento constitucional diverso daquele em que se alicerçou o acórdão recorrido e em cuja inaplicabilidade ao caso se baseia o recurso extraordinário”.118 O Ministro Baleeiro tornou a discutir a natureza jurídica das contribuições no RE n. 75.838/PE, Relator o Ministro Oswaldo Trigueiro, julgado em 12 de março de 1974. Tratava-se de decidir sobre o gozo ou não de imunidade ao salário-educação. No entanto, como a questão também podia ser resolvida por meio do reconhecimento de uma isenção, o Ministro Baleeiro ressalvou o seu ponto de vista para outros casos e acompanhou o Relator (que reconhecia a imunidade). O já referido RE n. 75.972/SP também foi aplicado pelo Ministro Baleeiro nos seguintes Recursos Extraordinários: RE n. 77.928/SP, RE n. 78.137/SP, RE n. 78.182/PB, RE n. 78.639/SP, RE n. 78.645/SP, RE n. 78.651/SP, RE n. 78.854/SP, RE n. 78.991/SP, RE n. 79.193/SP e RE n. 79.194/SP. Irredutibilidade de vencimentos de magistrado e competência para instituir contribuições sobre eles No RE n. 69.678/GB, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 14 de outubro de 1970, o STF, seguindo o voto do Relator, decidiu pela 117 Note-se: a Constituição de 1967 admitia que o decreto-lei disciplinasse “finanças públicas” (art. 58, II). A Emenda Constitucional n. 1, de 1969, acrescentou ao permissivo constitucional a fórmula “inclusive normas tributárias” (art. 55, II — conforme renumeração). Ainda assim, o Ministro Baleeiro manteve entendimento no sentido de não ser dado ao decreto-lei instituir ou majorar tributos. Vide, a propósito, o tópico “Controle de constitucionalidade de decreto-lei. Outras questões” do Capítulo “Controle difuso e em concreto de constitucionalidade”. 118 RE n. 298.694/SP, Relator o Ministro Sepúlveda Pertence, julgado em 6 de agosto de 2003. 126 Ministro Aliomar Baleeiro constitucionalidade da incidência do imposto de renda sobre o vencimento dos magistrados, não havendo, nisso, ofensa ao princípio da irredutibilidade dos vencimentos dos juízes, que “exclui apenas impostos especiais ou discriminatórios, que incidam somente sobre eles ou os onerem mais do que aos outros contribuintes da mesma categoria econômica”. Em seu voto, o Ministro Baleeiro fez minuciosa resenha doutrinária e jurisprudencial da matéria, inclusive com atenção ao Direito comparado. Afirmou que a sujeição dos magistrados ao imposto de renda nas mesmas bases aplicadas a todos que recebem salários fixos — públicos ou privados — obedece à regra da generalidade, e isso pertence ao estatuto do cidadão e contribuinte. Reconheceu que os magistrados brasileiros recebiam “salários ridículos”, mas ponderou: “Tudo isso deve ser corrigido quanto antes, evitando causas constrangedoras como esta ou agonias silenciosas de cidadãos que dedicaram ao serviço da Nação quase toda a vida útil. Mas o problema é do Congresso e do Presidente da República. Ao juiz não cabe o papel de postulante na Praça dos 3 Poderes.” No RE n. 70.009/RS, Relator o Ministro Barros Monteiro, julgado em 29 de novembro de 1973, o STF decidiu que a imposição de contribuição para fins previdenciários e assistenciais, de caráter geral e não discriminatório, sobre a remuneração de magistrado é constitucional e não ofensiva à garantia da irredutibilidade de vencimentos. O Relator ficou vencido e lavrou o acórdão o Ministro Xavier de Albuquerque. O Ministro Baleeiro também votou pela manutenção da contribuição e ponderou: “Devo dizer que não estou muito tranqüilo com a minha consciência. Acho que quem põe filhos no mundo deve tomar a responsabilidade de mantê-los. Não é possível que a comunidade vá agüentar os filhos dele. Considero a família muito agradável, mas é o luxo mais caro que um cidadão pode ter. Ele deve pagar por esse luxo, também, para ter os prazeres do convívio familiar, o consolo, a esperança na velhice.” O Ministro Baleeiro aventou, ainda, uma questão que foi citada pelo então Procurador-Geral da República, Professor José Carlos Moreira Alves: um Estado teria competência (no modelo da Constituição de 1967, art. 21, § 2º) para instituir um serviço parafiscal? Não opinou porque a questão não fora prequestionada119. 119 A Constituição de 1988 confere, expressamente, em seu art. 149, § 1°, competência aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios para a instituição de contribuição, cobrada de seus servidores, para o custeio, em benefício destes, do regime de previdência de que trata o art. 40 do texto constitucional. 127 Memória Jurisprudencial CONTRIBUINTE EM DÉBITO. ILICITUDE DE CONSTRANGER SUAS ATIVIDADES EM RAZÃO DO DÉBITO. ACESSO AO PODER JUDICIÁRIO No RE n. 63.026/SP, Relator o Ministro Amaral Santos, julgado em 25 de abril de 1968, decidiu-se que não é lícito à autoridade proibir o contribuinte em débito de adquirir estampilhas, despachar mercadorias nas alfândegas e exercer as suas atividades profissionais. O Tribunal acompanhou o voto do Ministro Aliomar Baleeiro. Tratava-se de examinar a sobrevivência ou não do Decreto-Lei n. 5, de 13 de novembro de 1937, e do Decreto-Lei n. 42, de 6 de dezembro de 1937, que, indiretamente, restringiam a atividade econômica dos contribuintes em débito para com a Fazenda Pública, impedindo-os de comprar selos, despachar mercadorias, etc., se, antes de discutir em juízo, não fizessem depósito da soma reclamada pelo Erário. O Ministro Baleeiro explicou: “Por outras palavras, a ditadura de 1937, nos albores de sua inauguração, instituiu no Brasil o regime da regra solve et repete, provavelmente por imitação do Direito italiano, que, àquele tempo, foi fonte de inspiração do novo ‘Estado Autoritário’: o contribuinte deverá pagar e depois acionar a União para anulação de débito e repetição do tributo indevidamente pago.” Destacou que, paradoxalmente, a regra foi introduzida na Itália, em 1865, como medida liberal, porque os contribuintes italianos, até então, somente poderiam suplicar em contencioso administrativo composto pelos próprios funcionários do Estado, que não gozavam das garantias dos magistrados de carreira. A regra decorreria da auto-executoriedade própria aos atos administrativos. Mais tarde, a jurisprudência italiana passou a admitir a relativização da regra sempre que a demanda do contribuinte se mostrasse, ictu oculi, plenamente fundada. Prosseguiu, referindo que o regime brasileiro foi infenso ao solve et repete desde o Império. A própria Ditadura Vargas, após adotá-lo, recuou, disciplinando “o executivo fiscal em moldes menos ásperos”. Finalmente, o § 4º do art. 141 da Constituição de 1946 introduziu cláusula até então inédita na esfera constitucional: “A Lei não poderá excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão de direito individual.” Lembrou, ainda, a garantia do mandado de segurança em favor de direito líquido e certo. “Uma e outra foram conservadas, intactas, na Constituição de 1967.” Reputou que ambos os Decretos-Leis referidos estorvavam a defesa em Juízo. Concluiu, enfim, que eles perderam vigência (não foram recepcionados por normas constitucionais supervenientes). 128 Ministro Aliomar Baleeiro Nos debates, o Ministro Baleeiro fez rápido retrospecto do aumento da carga tributária desde a República Velha. Observa-se, aqui, que se trata de tema sempre atual. Cogitou sobre a influência do solve et repete no índice italiano de fraudes fiscais (“Lazatti chegou a dizer que o italiano frauda não por amor à arte, mas por amor à vida.”). Com efeito, o Ministro Baleeiro, no RE n. 63.026/SP, desenvolveu voto que já havia proferido no RE n. 63.047/SP, Relator o Ministro Gonçalves de Oliveira, julgado em 14 de fevereiro de 1968. Nesse, o Relator declarou inconstitucional o Decreto-Lei n. 5, de 1937, no que interditava o contribuinte em débito de transacionar com a Fazenda Pública, porque constituía bloqueio de atividades lícitas. O Ministro Baleeiro acompanhou o Relator porque “o regime do DL n. 5, indiretamente, estabelecia o solve et repete, mas a legislação posterior revogou tudo isso, inclusive o próprio Código Tributário Nacional, que não se refere às restrições daquele diploma”. No mesmo sentido o RE n. 63.042/SP e o RE n. 64.054/SP. 129 Memória Jurisprudencial IMPOSTO INDIRETO. REPETIÇÃO DE INDÉBITO Em diversos julgados, ao aplicar a Súmula n. 71 do STF (“Embora pago indevidamente, não cabe restituição de tributo indireto.”), o Ministro Aliomar Baleeiro manifestou desconforto em relação à regra da não-repetição de tributo indireto120. No RE n. 45.977/ES, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 27 de setembro de 1966, o STF abriu exceção à Súmula aludida. Tratava-se de ação de repetição de indébito ajuizada por exportador de café capixaba para reaver o que havia pago a título de taxa de fomento da produção agrícola e industrial cobrada pelo Estado do Espírito Santo. O Ministro Baleeiro lembrou que o STF já havia reconhecido a inconstitucionalidade da taxa em causa, porque “mascara imposto interestadual de exportação, vedado pelo art. 27 da Carta de 1946 e pela anterior.” Passou, então, a agitar a questão relativa à Súmula n. 71. De início, lembrou que os “financistas ainda não conseguiram (...) um critério seguro para distinguir o imposto direto do indireto.” Explicou o porquê de não haver um critério seguro: “O mesmo tributo poderá ser direto ou indireto, conforme a técnica de incidência e até conforme as oscilantes e variáveis circunstâncias do mercado, ou a natureza da mercadoria ou a do ato tributado. (...)” A seguir, criticou a jurisprudência do STF: “À falta de um conceito legal, que seria obrigatório ainda que oposto à evidência da realidade dos fatos, o Supremo Tribunal Federal inclina-se a conceitos econômico-financeiros baseados no fenômeno da incidência e da repercussão dos tributos indiretos, no pressuposto errôneo, data venia, de que, sempre, eles comportam transferência do ônus do contribuinte de iure para o contribuinte de facto. Então, haveria locupletamento indébito daquele às expensas deste, motivo pelo qual deveria ser recusada a repetição. É o suporte pretendidamente lógico da Súmula 71.” 120 Por exemplo, o RE n. 43.301/PR, Relator o Ministro Pedro Chaves, julgado em 29 de março de 1966, o RE n. 43.961/PR, Relator o Ministro Hahnemann Guimarães, julgado em 22 de março de 1966, o RE n. 59.058/SP, Relator o Ministro Pedro Chaves, julgado em 17 de maio de 1966 (decisão modificada em grau de embargos: ERE n. 59.058, Relator o Ministro Amaral Santos, julgados em 25 de setembro de 1968). O Ministro Baleeiro votou vencido no RE n. 61.017/GB, Relator o Ministro Adalicio Nogueira, julgado em 13 de junho de 1967. 130 Ministro Aliomar Baleeiro No caso dos autos, o tributo incidia somente sobre as operações de venda para outros Estados. Àquele tempo, ao menos cinco Estados concorriam intensamente no mercado cafeeiro: São Paulo, Minas Gerais, Paraná, Bahia e Espírito Santo. Daí a conclusão do Ministro Baleeiro: “Se o Espírito Santo exige irracionalmente de seus produtores de café um tributo inexistente nos outros Estados competitivos, há discriminação prejudicial àqueles produtores, porque o preço — para cada tipo de mercadoria e em cada momento — tende a ser o mesmo para todos os competidores. Não é possível, então, ao vendedor espírito-santense exigir mais para seu café, sob pretexto de que paga taxa de que estão livres paulistas, baianos e mineiros, pois o comprador tem onde comprar pela cotação do dia na Bolsa de Mercadorias. Ele não se comove porque o Espírito Santo impõe à sua produção uma taxa inconstitucional e ilegítima, desarmando-a na competição interestadual.” Assim, “o peso da taxa fica nos ombros do produtor ou comerciante espírito-santense” porque a eles não é dado transferir o ônus do tributo para os seus compradores: se o fizessem, perderiam competitividade relativamente aos demais Estados produtores. O Relator ainda registrou: “Mas não se pode negar a nocividade do ponto de vista ético e pragmático duma interpretação que encoraja o Estado mantenedor do direito a praticar, sistematicamente, inconstitucionalidades e ilegalidades na certeza de que não será obrigado a restituir o proveito da turpitude de seus agentes e órgãos. Nada pode haver de mais contrário ao progresso do Direito e à realização da idéia-força da Justiça.” O Ministro Baleeiro votou — e foi acompanhado à unanimidade dos seus pares da Segunda Turma — no sentido de manter o acórdão recorrido que determinara a repetição do indébito, até porque “não houve, no caso concreto, locupletamento do contribuinte de iure, matéria, de fato, julgada pela Corte local, que interpretou Direito do Estado”. Em caso rigorosamente igual, “isto é, a mesma lei e o mesmo negócio econômico e jurídico”, o Ministro Baleeiro votou vencido nos ERE n. 47.624/ ES, Relator o Ministro Oswaldo Trigueiro, julgados em 17 de maio de 1967, mas cujo julgamento fora iniciado em 21 de setembro de 1966, isto é, ainda antes do RE n. 45.977/ES. Insistiu nos debates: “Não houve repercussão para os compradores — houve no sentido inverso, para os vendedores.” 131 Memória Jurisprudencial No RE n. 61.664/MG, julgado em 21 de maio de 1968, o Ministro Baleeiro, Relator, reiterou o seu voto no RE n. 45.977/ES. Tratava-se de frigorífico que buscava a repetição de valores recolhidos a título de taxas do Estado de Minas Gerais reputadas inconstitucionais. O STF, seguindo o entendimento do Ministro Baleeiro, deu ganho de causa ao frigorífico porque: (1) não houve venda de gado, mas, sim, tão-só transferência de gado entre fazendas do mesmo frigorífico; (2) em mercado competitivo como é o da carne, o tributo pago não pode ser recuperado por meio de repasse ao preço, que é o mesmo inclusive para aqueles que não sofreram a exigência impugnada; (3) o mercado de carne, àquele tempo, era tabelado. O Relator arrematou: “(...) Isto não é matéria de alta indagação, não é matéria transcendente. É como dizer o óbvio, por exemplo, a chuva cai do céu. Não se precisa provar isso, porque é evidente que a chuva cai do céu. (...)” No RE n. 65.654/RJ, Relator o Ministro Barros Monteiro, julgado em 12 de agosto de 1969, relativo à repetição de tributo declarado inconstitucional, o Relator invocou o entendimento do Ministro Aliomar Baleeiro para conhecer e dar provimento ao recurso. O Relator destacou que o Estado recorrido não contestou a assertiva da recorrente — empresa alimentícia — de que não houve repercussão do imposto pago, porque os produtos alimentares não eram, àquele tempo, de livre mercado, mas, sim, estavam sujeitos ao tabelamento da Lei Delegada n. 4, de 26 de setembro de 1962. O Ministro Baleeiro rejubilou-se com o voto do Relator, aventou casos outros em que poderia vir a afastar a Súmula n. 71, por exemplo, as mercadorias estacionais ou sazonais. Após a época própria de grande procura, ficam indiferentes para o público e viram saldos em liquidação. O STF, em 3 de outubro de 1969, aprovou a Súmula n. 546, verbis: “Cabe a restituição do tributo pago indevidamente quando reconhecido por decisão que o contribuinte de iure não recuperou do contribuinte de facto o quantum respectivo.” Dentre os precedentes citados que levaram à edição da Súmula, estavam o já referido RE n. 45.977/ES e os ERE n. 58.660/SP, Relator o Ministro Amaral Santos, julgados em 10 de abril de 1969, embargos esses que foram conhecidos e providos justamente por divergir a decisão embargada daquela proferida no RE n. 45.977/ES. O Relator comparou ambos os julgados: “As hipóteses são idênticas: em um e outro caso ficara provado, e reconhecido pela Justiça local, que o contribuinte não recuperara o imposto. Na hipótese dos autos, a prova da não-recuperação se fizera por perícia.” 132 Ministro Aliomar Baleeiro A Súmula n. 546 também foi embasada no RE n. 58.290/SP, Relator o Ministro Luiz Gallotti, julgado em 17 de junho de 1966. Contudo, trata-se de caso julgado sem a análise econômica defendida pelo Ministro Baleeiro e amparado, em verdade, no reconhecimento de haver a parte autora — uma cervejaria — obtido mandado de segurança contra a incidência reclamada. A propósito, vejase a seguinte colocação do Relator: “(...) Assim, a parte tinha motivo justo para não se considerar devedora do imposto e para não incorporá-lo ao preço da mercadoria; tinha motivo para contar com a restituição, uma vez que estava protegida por decisão com trânsito em julgado.” Ficou, assim, superada a Súmula n. 71. No mesmo sentido, o RE n. 68.091/SP, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 13 de novembro de 1969. Nesse julgado, o Relator lembrou que a tese constante do RE n. 61.664/MG estava consagrada nos arts. 165 e 166 do CTN. Nos ERE n. 71.414/SP, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgados em 15 de abril de 1974, o Ministro Baleeiro comentou a Súmula n. 546. Lembrou que “a Súmula 71 negava, em termos absolutos, qualquer repetição de tributo havido como indireto, quaisquer que fossem as circunstâncias”, o que, por vezes, gerava iniqüidades, “porque produzia o locupletamento indébito do Fisco, a despeito da impossibilidade manifesta de repercussão”. Explicou, então, que a Súmula n. 546 veio “exatamente para dar margens à apreciação das circunstâncias de cada caso concreto, segundo o art. 166 do Código Tributário Nacional”. No RE n. 77.853/PR, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 7 de junho de 1974, o STF reconheceu a impossibilidade de transferência do ônus fiscal para os consumidores de cerveja, em razão do que admitiu a repetição do imposto exigido indevidamente: “Num mercado financeiro inflacionado, com juros de mais de 18%, só um louco imobilizaria o arisco capital de giro durante 2 anos, para reavê-lo com juros moratórios de 6% a. a. e todas as vicissitudes duma demanda contra litigante mais poderoso, como é o Fisco. A cerveja é produto altamente competitivo, sobretudo se levarmos em conta que os pequenos produtores lutam pela sobrevivência, esmagados entre duas grandes fábricas de ação nacional — Brahma e Antártica —, antigas, com vastos capitais, know how consagrado e receptividade dos consumidores. Ora, esses dois poderosos grupos não estavam sujeitos a exigência ilegal do Estado do Paraná e poderiam vender por preço menor, que, então, se impunha à fábrica modesta. (...)” 133 Memória Jurisprudencial IMUNIDADE. CONTRIBUINTE DE DIREITO E CONTRIBUINTE DE FATO No RE n. 67.547/SP, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 7 de outubro de 1969, discutiu-se a incidência ou não de impostos nas vendas de mercadorias a pessoas jurídicas de direito público, dada a imunidade recíproca de que essas gozam. O Ministro Baleeiro lembrou que “a repercussão de um imposto pelo acréscimo de seu valor ao preço é um fenômeno de ordem econômica que obedece a uma lei natural e científica”. Prosseguiu: “nós sabemos que o contribuinte de iure, quase sempre, aumenta o preço, porque não irá desfalcar-se de seu dinheiro”. Então, quem paga é a pessoa jurídica de direito público adquirente (contribuinte de fato). Assim, se o contribuinte de direito pede o mandado de segurança para excluir uma tributação de imposto de consumo baseado na imunidade do comprador (contribuinte de fato), não se concede porque ele não tem interesse, anotou. Por outro lado, cabe o mandado de segurança às unidades administrativas imunes — e às empresas beneficiadas por isenção — contra imposto de consumo exigido de fabricantes (ou outros contribuintes de direito) pelos fornecimentos que lhes façam. O Ministro Baleeiro manifestou-se no mesmo sentido nos seguintes julgados: RE n. 67.628/SP, RE n. 67.657/SP, RE n. 67.683/SP, RE n. 67.748/SP, RE n. 68.144/SP, RE n. 68.450/SP, RE n. 68.873/GB e RE n. 68.913/SP. No mesmo sentido foram decididos recursos extraordinários relativos a mandados de segurança impetrados por Caixas Econômicas. Àquele tempo, entendeu-se que elas teriam imunidade porque não tinham finalidade bancária: “são órgãos de fomento à poupança popular, não têm finalidade bancária, ainda que empreguem processos bancários”, afirmou o Ministro Aliomar Baleeiro no RE n. 68.538/SP, Relator o Ministro Eloy da Rocha, julgado em 3 de dezembro de 1969 (o Relator para o acórdão foi o Ministro Barros Monteiro, a quem o Ministro Baleeiro acompanhou). Isso não obstante o disposto no § 3º do art. 170 da Constituição de 1967: “A empresa pública que explorar atividade não monopolizada ficará sujeita ao mesmo regime tributário aplicável às empresas privadas.”121. O Ministro Baleeiro citou, ainda, o célebre precedente de 1819 da U. S. 121 Corresponde ao § 2º do art. 173 da Constituição de 1988: “As empresas públicas e as sociedades de economia mista não poderão gozar de privilégios fiscais não extensivos às do setor privado.” Seguindo o mesmo raciocínio, o STF reconheceu a imunidade do Instituto Brasileiro do Café – IBC, por exemplo, no MS n. 18.809/DF e no MS n. 18.991/DF, ambos relatados pelo Ministro Aliomar Baleeiro e julgados em 16 de outubro de 1974. 134 Ministro Aliomar Baleeiro Supreme Court, lavrado pelo Chief Justice John Marshall, McCulloch vs. Maryland, justamente relativo a uma instituição financeira federal. O precedente sustenta que o poder de tributar envolve o poder de destruir, em razão do que não podem os entes federados tributarem-se reciprocamente122. Vale referir as seguintes palavras do Ministro Baleeiro: “(...) que quis a Constituição, quando estabeleceu o princípio da imunidade recíproca? De certo, a preservação do funcionamento de uma das unidades do sistema federativo. A União não pode ser embaraçada no funcionamento dos seus serviços públicos, no exercício das suas atribuições, por um tributo do Estado. Reciprocamente, o Estado também não pode ser embaraçado por um tributo federal. Quem pode tributar um pode tributar cem. Se a União pode tributar um por cento, pode tributar cem, como tributa, às vezes, trezentos por cento. É um meio eficaz para destruir a sobrevivência de outra esfera de governo.” Daí a conclusão que deu à espécie dos autos: “(...) Pouco importa que a lei número tal, de 58, tenha dito que contribuinte de iure é o produtor. O que importa, no caso, é o contribuinte de facto, a fim de assegurar-se objetivo da Constituição. É ele quem vai suportar, no seu patrimônio, o desfalque que representa o imposto de consumo.” Por outro lado, no RE n. 68.344/SP, Relator o Ministro Barros Monteiro, julgado em 13 de novembro de 1969, o Ministro Aliomar Baleeiro havia cogitado ressalvar os casos em que a entidade pública é a vendedora e, portanto, ela própria o contribuinte de direito que repassa o ônus do tributo a terceiro (“repercussão”). No caso vertente, tratava-se do Serviço Funerário do Município de São Paulo: No mesmo sentido, o MS n. 19.097/DF, Relator o Ministro Oswaldo Trigueiro, julgado em 16 de outubro de 1974 (cujo acórdão também foi lavrado pelo Ministro Aliomar Baleeiro). Neles, o Ministro Baleeiro recordou “que o IBC age, aí, não como empresa pública, mas como autarquia, que funciona como uma instrumentalidade técnica do Governo Federal para a política do café, produto, como se sabe, que tem como maior vendedor a União Federal. Ninguém ignora a importância que tem o café na balança de pagamentos, de sorte que a própria estabilidade da moeda, internamente ou no comércio internacional, depende do volume das operações do café. O instituto é o órgão que faz o equilíbrio estatístico, regulando o consumo interno. Enfim, tem várias funções de interesse do Governo Federal. Dessarte, aí, estariam os Estados interessados tentando tributar uma atividade federal, ou um serviço público federal, de vital importância para a vida do País.” 122 Cita-o, também, em diversos outros julgados, por exemplo, os ERE n. 68.215/SP e o RE n. 69.506/SP. 135 Memória Jurisprudencial “Tenho impressão de que, no caso, talvez fosse cabível a tributação porque, embora o serviço funerário do Município seja o contribuinte de iure, na realidade, pela repercussão, o ônus vai suportado ‘pelo dono do defunto’, isto é, por quem paga o caixão. Nesses casos, tenho sempre sustentado que a imunidade do sujeito passivo de iure não subsiste, porque ele não suporta o ônus. Todavia, como dei provimento a um agravo de São Paulo, oriundo da mesma controvérsia, guardo-me para estudar o assunto mais demoradamente, quando os autos me vierem às mãos.” Nos Embargos (da União) ao RE n. 68.215/SP, Relator o Ministro Barros Monteiro, julgados em 9 de setembro de 1970, relativos, justamente, ao Serviço Funerário do Município de São Paulo, que alegava ter imunidade ao imposto de consumo de mercadorias adquiridas para o seu próprio uso, o Ministro Baleeiro — tomando em consideração o art. 166 do CTN, que “reconhece o fenômeno econômico da transferência do imposto” — sustentou que seria inconstitucional exigir tributo cujo contribuinte de fato fosse pessoa jurídica de direito público, porque, na hipótese, a exigência teria como conseqüência “prática, imediata e insofismável” a quebra do princípio da imunidade recíproca123. No caso concreto, o Ministro Baleeiro entendeu não ocorrer transferência, porque se tratava de serviço monopolizado e porque admitia que o Poder Público fornecesse enterro aos pobres, mas cobrasse um pouco mais daqueles que pudessem pagar. Ressalvou que, “em se tratando de um comércio ou indústria em que o Estado venda no mercado de concorrência ou de competição imperfeita (...) não se aplica a imunidade recíproca”. Em outras palavras, e a contrario sensu, ressalvou os casos em que se tratasse de coisa que comportasse “o fenômeno da transferência, por exemplo, aluguéis de apartamentos que o Serviço Público põe em mãos de particulares”124. Enfim, o Ministro Baleeiro ficou vencido (assim também o Relator e o Ministro Amaral Santos). Prevaleceu o voto do Ministro Thompson Flores, para quem importava, apenas e tão-somente, quem a lei considerou como contribuinte. A ele não impressionava “o fato da repercussão invocada 123 Durante os debates, disse, ainda, o Ministro Baleeiro: “não se pode criar uma ficção de direito de que quem vai suportar determinado tributo é o contribuinte de iure, quando, na realidade, vai ser o contribuinte de fato, se, com isso, anula-se imunidade fiscal recíproca”. 124 O Ministro Luiz Gallotti, então, indagou: “o município não poderá cobrar imposto predial sobre o imóvel de um particular alugado a uma entidade estadual ou federal?” A indagação remete à dificuldade de distinguir tributos diretos e indiretos. Ora, o IPTU é tributo direto por excelência, mas é perfeitamente possível considerá-lo quando da fixação do valor do aluguel (e, portanto, repercuti-lo). Ademais, não é raro o IPTU constar — de modo discriminado — da conta do aluguel. Seja como for, essa compreensão das coisas consta do próprio exemplo dado pelo Ministro Aliomar Baleeiro ao fazer a ressalva aludida. 136 Ministro Aliomar Baleeiro pelo eminente Ministro Aliomar Baleeiro, fenômeno econômico e não jurídico, e do qual não há habilitação de ninguém”. Em julgamentos subseqüentes, o Ministro Baleeiro ressalvou o seu ponto de vista e seguiu o precedente plenário125. No RE n. 69.506/SP, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 10 de setembro de 1970, o Relator também aplicou o precedente plenário, mas ressalvou o seu ponto de vista pessoal (“Se a Pessoa de Direito Público transfere o gravame fiscal, seja como contribuinte de iure, seja como contribuinte de facto, ao consumidor final, não há razão para invocar imunidade.”126) e explicou: “Se, depois, na Lei 3.520 e noutras, estatuiu que não haverá repercussão, nem por isso esta deixará de ocorrer. Apesar de o Estado poder muito, ainda não pode revogar as leis da oferta e da procura. Se quiser manter um mercado de competição perfeita, e, às vezes, imperfeita, essas leis inexoráveis operarão seus efeitos a despeito das leis normativas. Um desses efeitos é a transferência dos tributos chamados, por isso mesmo, de ‘indiretos’. O CTN o reconhece expressamente nos arts. 165 e 166. O STF, in Súmula n. 71 e 546.” A seguir sintetizou o problema: “Importa saber não como o legislador federal escolheu o sujeito passivo do Imposto de Consumo, mas se, pela maneira escolhida, o tributo vai onerar efetivamente outra Pessoa de Direito Público, suprimindo-lhe parte dos recursos disponíveis para custeio de seus serviços públicos. A realidade e não ficção jurídica escolhida pelo legislador como técnica de consecução de seus objetivos. (...)” No mesmo sentido vale referir ressalva do Ministro Baleeiro constante do RE n. 75.505/PR, Relator o Ministro Oswaldo Trigueiro, julgado em 20 de fevereiro de 1973: “(...) o imposto, pelo legislador, se presume indireto pela sua natureza, repercute sobre os consumidores, e a imunidade recíproca 125 RE n. 69.429/SP, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 10 de setembro de 1970, ERE n. 68.903/SP, Relator o Ministro Thompson Flores, julgados em 3 de março de 1971, ERE n. 69.116/SP, Relator o Ministro Bilac Pinto, julgados em 22 de abril de 1971. Votou vencido em grau de embargos nos seguintes julgados: ERE n. 68.887/SP, Relator o Ministro Djaci Falcão, julgados em 18 de março de 1971, ERE n. 67.549/SP, ERE n. 67.683/ SP, ERE n. 68.094/SP, ERE n. 68.450/SP, ERE n. 68.884/SP, ERE n. 68.890/SP e ERE n. 68.893/ SP, todos relatados pelo Ministro Eloy da Rocha e julgados em 26 de maio de 1971. 126 Essa afirmação parece responder à cogitação feita pelo Ministro Aliomar Baleeiro no RE n. 68.344/SP. 137 Memória Jurisprudencial não pretende beneficiar o particular, e sim a instituição pública. Mas o inverso não é exato. E, data venia da jurisprudência hoje pacífica do Supremo Tribunal, se, por acaso, a pessoa de direito público, a autarquia, o órgão público ou semipúblico, centralizado ou não, ao invés de vendedor fosse comprador, acho que a lei que obrigasse esse órgão a pagar seria inconstitucional.” No RE n. 76.826/RJ, Relator o Ministro Xavier de Albuquerque, julgado em 5 de dezembro de 1974, o STF decidiu que a isenção de que goza o comprador, contribuinte de fato, não exclui a obrigação tributária do vendedor, contribuinte de direito. O Ministro Baleeiro votou vencido, aplicando à isenção o mesmo raciocínio que dispensava à imunidade recíproca: “Continuo convencido, data venia, de que a imunidade recíproca do art. 19, III, a, da Emenda 1/69 cobre a Pessoa de Direito Público, como contribuinte de facto dos impostos exigidos aos que lhes vendem coisas, porque o fim da Constituição é preservar o patrimônio, rendas e serviços duma pessoa de Direito Público contra a tributação de outra, inclusive quando isso ocorre pelo fenômeno da repercussão dos impostos ditos ‘indiretos’. O mesmo raciocínio aplica-se às Pessoas isentas, no caso uma empresa mista federal monopolística do maior interesse político e econômico da Nação.”127 No RE n. 70.572/BA, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 28 de setembro de 1971, era recorrente promitente compradora de imóvel de autarquia. Já estava, a recorrente, na posse do imóvel. O STF decidiu se acaso permanecia a imunidade do imóvel em causa ao imposto predial. O Relator colocou em dúvida a natureza autárquica da pessoa jurídica envolvida. Mas considerou que esse aspecto era matéria de fato e de direito local. Afirmou que o particular não teria legitimidade para invocar a imunidade recíproca, instituída que é pela Constituição em favor de uma pessoa jurídica de direito público contra imposto de outra: “O direito subjetivo é do ente público e não se pode investir no papel de seu cavaleiro andante, no ordálio, o particular acaso indiretamente interessado num privilégio que não lhe é reservado, porque legislado apenas para comando das relações intergovernamentais.” 127 O julgado em causa, que envolveu interesse da Petrobrás, foi muitíssimo discutido. Nos debates, há diversas intervenções do Ministro Baleeiro. 138 Ministro Aliomar Baleeiro Criticou a Súmula n. 74: “O imóvel transcrito em nome de autarquia, embora objeto de promessa de venda a particulares, continua imune de impostos locais.” Sustentou que, à luz da ordem constitucional então vigente, “(...) a imunidade da autarquia não é irrestrita, mas condicionada à preservação de suas finalidades essenciais. Dentre essas, não se inclui a de comprar casas para vendê-las a funcionários, atividade que não se insere entre as essenciais de um Montepio (...)”. Disse mais: para o Ministro Baleeiro, a Súmula n. 74 estaria superada desde a Emenda Constitucional n. 18, de 1965. O Ministro Amaral Santos sustentou que a imunidade recíproca tutela, em primeiro lugar, o cidadão. Se o ente público descuida da imunidade e descarrega o ônus correspondente sobre o particular, esse pode utilizar os meios próprios, judiciais e extrajudiciais, para restaurar o seu direito. Pontuou, então: “A razão da imunidade, em benefício dos entes públicos, também o é, por via de repercussão, em benefício dos particulares, que são a causa da existência do ente público. O Estado é meio, não é fim, salvo para aqueles que o endeusam como finalidade da existência do corpo social.” Aplicou a Súmula n. 74. O Ministro Baleeiro ainda insistiu: “Em resumo, esse imóvel, em cuja posse e gozo está a recorrente, está vendido, e por uma ficção de direito, ao invés da hipoteca, fez-se promessa de venda. (...) No sistema do Direito brasileiro, basta a posse, para existir tributação. A imunidade recíproca é estabelecida no interesse da pessoa de direito público, a fim de que sobreviva à agressão fiscal de outras pessoas de direito público. (...)” O Relator ficou vencido. Lavrou o acórdão o Ministro Amaral Santos. Pouco tempo depois, no RE n. 69.781/SP, Relator o Ministro Barros Monteiro, julgado em 26 de novembro de 1970, o STF entendeu, à unanimidade de votos, não mais vigorar a Súmula n. 74, inclusive com voto do Ministro Amaral Santos, que votou com o Relator afirmando fazê-lo “com certas restrições”. A Ementa do julgado em causa — também relativo ao imposto predial — assim reza: “Se, pelo art. 34 do vigente Código Tributário Nacional, o contribuinte de tal imposto não é somente o proprietário do imóvel, o titular do seu domínio útil, ou o seu possuidor a qualquer título, não mais vigora a Súmula n. 74, segundo a qual o imóvel transcrito em nome de autarquia, embora objeto de promessa de venda a particulares, continua imune de impostos locais.” 139 Memória Jurisprudencial Note-se: é, justamente, o último argumento do Ministro Baleeiro. No RE n. 68.748/SP, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 9 de dezembro de 1969, ficou assente que o tributo incide sobre coisas adquiridas por ente público para revenda a terceiros (contribuintes de fato): “(...) A Recorrente não provou, nem mesmo alegou que os 10 automóveis se destinassem a seu próprio serviço, ou seja, o de suas finalidades essenciais, como órgão de fomento da poupança e da previdência. A própria natureza dos Volkswagen, carros pequenos e de uso pessoal, mostra que eles se destinam, como é notório, à revenda financiada a terceiros, que não devem ser exonerados do imposto de consumo. A imunidade no caso iria locupletá-los em detrimento da União (...)” No RE n. 68.886/GB, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 9 de dezembro de 1969, foi reconhecida a imunidade em favor do então Instituto Nacional de Previdência Social na aquisição de terrenos para construções destinadas à política habitacional da União. Ademais, a tributação pretendida não comportava transferência para futuros adquirentes, que viessem a ser contribuintes de direito. O Relator concluiu o seu voto afirmando: “Se a Constituição tem, entre suas atribuições, o fim de resolver o problema habitacional, força é reconhecer-lhe a amplitude dos meios.” No mesmo sentido: RE n. 70.268/GB, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 27 de agosto de 1970. No RE n. 78.619/RN, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 3 de setembro de 1974, relativo à imunidade de instituição assistencial ao IPI, o Ministro Baleeiro voltou a insistir que “a imunidade, como princípio constitucional e de acordo com o art. 166 do Código Tributário, pressupõe a realidade cientificamente apurada do fenômeno da repercussão”. E criticou: “Acho que a lei não pode revogar um princípio constitucional básico, estrutural, porque a sobrevivência da República, que hoje se chama federativa, embora seja menos federativa que a anterior, tem como um dos alicerces o princípio da imunidade recíproca. (...) Não é só isso. O legislador ordinário, a nosso ver erroneamente, há 15 anos, vem interpretando os princípios constitucionais de imunidade, no sentido de que ela é endereçada ao contribuinte de iure com inteira exclusão do contribuinte de facto.” 140 Ministro Aliomar Baleeiro PEDÁGIO. ASPECTOS HISTÓRICOS No RE n. 41.517/RJ, Relator para o acórdão o Ministro Carlos Medeiros, julgado em 31 de março de 1966, o STF reputou inconstitucional a Taxa de Conservação de Estradas cobrada pelo Município de Magé, do Estado do Rio de Janeiro. Ficou vencido o Relator, Ministro Victor Nunes, que — tolerando a “redação defeituosa da lei” — aplicava a Súmula 348 do STF (“É constitucional a criação de taxa de construção, conservação e melhoramento de estradas.”), bem assim o Ministro Hermes Lima. O Ministro Aliomar Baleeiro — com a autoridade de quem foi constituinte — proferiu voto por demais informativo sobre o histórico do pedágio como taxa na Constituição de 1946. Afirmou que o art. 27 da Constituição de 1946 “foi concebido, na parte final, para permitir taxas favoráveis à conservação de estradas”. O art. 27 da Constituição de 1946 tinha a seguinte redação: “É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios estabelecer limitações ao tráfego de qualquer natureza por meio de tributos interestaduais ou intermunicipais, ressalvada a cobrança de taxas, inclusive pedágio, destinadas exclusivamente à indenização das despesas de construção, conservação e melhoramento de estradas.” Contou, ainda, que a ressalva final foi obtida pelo Deputado Gastão Englert em favor dos municípios gaúchos que “cobravam pedágios e também módicas taxas sobre propriedades rurais à margem das estradas”. Ademais, buscava-se criar um anteparo à resistência do Conselho Nacional do Petróleo, cujo então presidente “devotava horror sagrado ao pedágio”. Alterou-se, então, o texto das Constituições anteriores no que toca à “proibição dos impostos ou tributos que, de modo geral, recaíam sobre tráfego de veículos e pessoas”. Enfim, vale registrar que a Constituição de 1988, no inciso V do seu art. 150, dispõe que é vedado aos entes federados “estabelecer limitações ao tráfego de pessoas ou bens por meio de tributos interestaduais ou intermunicipais, ressalvada a cobrança de pedágio pela utilização de vias conservadas pelo poder público”. Logo, a contrario sensu, pedágio é tributo (da espécie taxa). 141 Memória Jurisprudencial TRIBUTAÇÃO EM BRASÍLIA. PERÍODO DE TRANSIÇÃO. APLICAÇÃO DA LEGISLAÇÃO GOIANA No RE n. 62.378/DF, julgado em 21 de março de 1969, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, o STF reputou constitucional o art. 50 da Lei n. 3.751, de 13 de abril de 1960, que “Dispõe sobre a organização administrativa do Distrito Federal.”, inclusive no que aplicável à legislação tributária. O dispositivo impugnado assim dispunha: “Serão observadas, no que forem aplicáveis, até que o Poder competente delibere a respeito, as leis, decretos, (vetado), atualmente em vigor na área do Distrito Federal.” Teve-se, in casu, solução de emergência, que encontrava precedentes em reformas passadas do sistema tributário. Ademais, em relação ao princípio da anualidade, a tributação exigida estava autorizada pelo orçamento goiano. O Ministro Baleeiro afastou a tese da sentença, segundo a qual “nada impede que uma taxa seja cobrada antes da instalação de um serviço público”, ao argumento de que, antes mesmo da inauguração de Brasília, existia o serviço de eletricidade, ainda que de modo improvisado. 142 Ministro Aliomar Baleeiro IMPOSTO TERRITORIAL URBANO: PROGRESSIVIDADE. BIS IN IDEM E BITRIBUTAÇÃO No RE n. 69.784/SP, Relator o Ministro Djaci Falcão, julgado em 5 de março de 1975, o STF decidiu sobre a constitucionalidade de legislação do Município paulista de Americana que estabelecia progressividade do imposto territorial urbano em razão do nível de utilização do imóvel considerado. A Corte decidiu pela inconstitucionalidade da progressividade em causa. Votou vencido o Ministro Aliomar Baleeiro. Prevaleceu o voto do Relator, para quem, “ao contrário dos impostos pessoais, em que se ponderam as condições individuais do contribuinte, os impostos reais se baseiam unicamente no valor da matéria tributável”. Acrescentou que o art. 33 do CTN estatuiu de modo rígido o valor venal do imóvel como base de cálculo do tributo em causa, “não levando em conta as condições pessoais do contribuinte”. Entendeu não haver dissenso com o RMS n. 16.798/SP, Relator o Ministro Victor Nunes, julgado em 12 de dezembro de 1966, porque o art. 202 da Constituição de 1946 (“Os tributos terão caráter pessoal sempre que isso for possível, e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte.”) não mais vigorava. O Ministro Aliomar Baleeiro exarou alentado voto, em que destacou a relevância do caso porque a decisão teria influxo sobre quatro mil municípios. Retomou o já aludido precedente do Ministro Victor Nunes sobre o mesmo município, em que se lê: “(...) Pode ser injusto o critério de variação do imposto territorial urbano em Americana, adotado pela Lei Municipal 614/64, mas a verdade é que ele se baseou em dados objetivos, tendo em vista uma finalidade social relevante.” O Ministro Baleeiro destacou que o voto do Ministro Victor Nunes não fazia referência ao art. 202 da Constituição de 1946. Ademais, citando Rubens Gomes de Souza, acrescentou que — vigente ou não o referido dispositivo ao tempo daquele julgado (o art. 202 da Constituição de 1946 foi revogado pela Emenda Constitucional n. 18, de 1965) — ele não teria nenhuma influência na causa, “porque apenas programático”. Disse mais: “(...) Suprimido aquele dispositivo, não há uma palavra (...) a proibir que o legislador decrete, em caráter progressivo e pessoal, qualquer tributo ou que se conserve com esse caráter um imposto anterior à Emenda 18, de 1965. (...)” 143 Memória Jurisprudencial Referiu, então, o caso do IPI, progressivo no que toca a determinados produtos (como o cigarro, tributado por alíquotas crescentes conforme o preço) e pessoal no que toca a outros (como os produtos supérfluos ou de luxo). Ademais, quando a Constituição quer proibir a progressividade, ela expressamente estatui a uniformidade das alíquotas. E, no que toca ao imposto territorial urbano, afirmou: “Nada veda, na Constituição Federal ou no Código Tributário Nacional, a progressividade do Imposto Territorial Urbano. Pelo contrário, a analogia, a doutrina e a tradição aconselham que assim seja, como instrumento de Política Legislativa e de Política Fiscal para combate ao latifúndio (ou mesmo ao parvifúndio), acessibilidade dos terrenos às construções para habitação, guerra à especulação que os retêm para captação da chamada renda ricardiana, etc.”128 Contou que Rui Barbosa, já em 1891, “defendia a tributação enérgica dos lotes baldios e das casas arruinadas, em prol da construção de novos edifícios e aproveitamento racional da terra urbana”. Destacou que o argumento torna-se ainda mais forte em ordem constitucional que expressa a função social da propriedade. O Ministro Baleeiro também lembrou que o imposto territorial rural tornouse fortemente progressivo como meio de reforma agrária e extinção do latifúndio, o que, inclusive, ensejou fosse transferido para a competência federal. Com a progressividade, a lei buscou compelir os proprietários a edificar ou vender os terrenos, “sem retê-los em busca de lucros às expensas das obras públicas e do crescimento demográfico da cidade”. Mais adiante explicou: “(...) Nenhum financista moderno deixa de mencionar as funções extrafiscais do imposto, levando-as, como exercício do poder fiscal não para obter receitas mas para coibir atitudes individuais tidas como anti-sociais. (...)” 128 Referência a David Ricardo e à sua explicação da especulação imobiliária, mais adiante examinada no mesmo voto do Ministro Aliomar Baleeiro: “Nas cidades, a princípio, todos querem o centro. Depois, vão aceitando os lotes mais distantes e assim sucessivamente. Os proprietários dos lotes bons, pela situação, existência de serviços públicos, proximidade em relação ao comércio, escolas, transportes, etc., gozam de um oligopólio — ou mercado de pouquíssimos vendedores —, e assim podem impor preços cada vez maiores. Eles se locupletam com o crescimento demográfico, que agrava a procura das habitações, e com a expansão dos serviços públicos, que melhoram os bairros novos.” Daí a contribuição de melhoria, mencionou, a seguir, o Ministro Baleeiro. Voltou a discorrer sobre especulação imobiliária no RE n. 77.991/SP, de que foi Relator, julgado em 16 de abril de 1974. 144 Ministro Aliomar Baleeiro Insistiu, uma vez mais, citando o Ministro Victor Nunes, que “o adicional de Americana pode ser injusto talvez, mas não é inconstitucional”. Quanto à “justiça”, afirmou: “A justiça é uma idéia-força, no sentido de Fouillé, mas varia no tempo e no espaço, senão de indivíduo. Fixa-a o legislador e o juiz há de aceitá-la como um autômato. Inúmeros acórdãos do Supremo Tribunal Federal declaram que lhe não é lícito corrigir a justiça intrínseca em lei, substituindo-se às escolhas do legislador.” Com isso, defendeu, repele-se o imposto evidentemente confiscatório, o que não seria o caso da legislação de Americana, que não seria “nem mesmo drástica ou exagerada”. As alíquotas praticadas pela municipalidade em causa variavam, em seis faixas, de 1% a 1,6%. Poderia ter adotado uma única alíquota, inclusive maior, por exemplo, de 2%. Relevou, a seguir, a distinção entre tributos reais e pessoais: “Não há imposto sobre a coisa, mas imposto sobre a coisa porque alguém ganhou a coisa, vendeu-a, importou-a, exportou-a, contratou-a, ou dela é dono ou possuidor. Se o imposto é calculado objetivamente pela coisa, sem considerar o contribuinte, temos tributo real. Se é considerado o contribuinte, por suas condições individuais, temos tributo pessoal. Qualquer tributo pode ser personalizado, e Vauthier, há um século, escreveu um livro para provar que todo imposto pode ser cobrado em base progressiva (L. V. VAUTHIER, ‘De L’Impôt Progressif, étude sur l’application de ce mode de prélèvement à un impôt quelconque’ (Paris, 1851).” Concluiu que o adicional era um bis in idem sobre o imposto territorial urbano, legítimo, portanto, e “que não se confunde com a inconstitucional bitributação, essa caracterizada pela concorrência de governos diversos, um dos quais apenas será o competente”129. 129 No RE n. 77.131/AM, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 18 de setembro de 1974, o Ministro Baleeiro voltou a explicar a diferença entre ambos: “Tenho como certo que, se a bitributação (a exigência do mesmo tributo por duas competências diferentes) é sempre inconstitucional no Brasil, o bis in idem no sentido de decretação do mesmo imposto duas vezes pelo governo competente, pode ser constitucional em muitos casos, ainda que represente, quase sempre, uma política legislativa má.” Vale referir o caso concreto então decidido: “No caso dos autos, o Amazonas mascarou de taxa uma segunda aplicação do ICM, que, somada à 1a, ultrapassa o teto máximo fixado pelo Senado. Esse fim inconstitucional é o motivo da falsa taxa.” Lembrou, também, por amor à discussão: se acaso fosse taxa, ainda assim estaria a ferir a Constituição, porque tomou como base de cálculo a mesma do ICM. 145 Memória Jurisprudencial Enfim, vale registrar, o texto constitucional originário de 1988 expressamente previu a progressividade do IPTU como instrumento para promover o adequado aproveitamento do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado (cf. art. 182, § 4º, II, da Constituição de 1988). No que toca ao IPTU com finalidade fiscal, o STF seguiu entendendo — no regime constitucional originário de 1988 — que “não é admitida a progressividade fiscal do IPTU, quer com base exclusivamente no seu art. 145, § 1º, porque esse imposto tem caráter real que é incompatível com a progressividade decorrente da capacidade econômica do contribuinte, quer com arrimo na conjugação desse dispositivo constitucional (genérico) com o art. 156, § 1º (específico)”130. No entanto, com a Emenda Constitucional n. 29, de 13 de setembro de 2000, a Constituição passou a admitir a progressividade do IPTU em razão do valor do imóvel, bem assim a diferenciação de alíquotas de acordo com a localização e o uso do imóvel (cf. art. 156, § 1º, I e II, acrescentados pela Emenda Constitucional n. 29, de 2000). 130 RE n. 153.771/MG, Relator o Ministro Moreira Alves, julgado em 5 de setembro de 1997. 146 Ministro Aliomar Baleeiro IMPOSTO SOBRE A TRANSMISSÃO INTER VIVOS Evasão lícita No RE n. 63.486/SP, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 29 de novembro de 1967, admitiu-se como “lícito ao contribuinte mobilizar as máquinas e equipamentos, para vendê-las separadamente do imóvel, como os vendeu”. O Ministro Baleeiro explicou: “A evasão, no caso, foi lícita. Houve o que escritores ingleses e americanos chamam loop hole ou lacuna da lei fiscal, aproveitável pelo contribuinte, dado que o crédito tributário é sempre uma obrigação ex lege.” Em outras palavras, reconheceu ocorrer, no caso, mera elisão fiscal. E concluiu criticando o imposto sobre a transmissão inter vivos: “Por outro lado, essa evasão não está longe do fim do legislador, que, hoje, reconhecendo o caráter anti-econômico e irracional do antigo imposto de transmissão imobiliária inter vivos, tal como era decretado, sujeitou a alíquota respectiva à aprovação do Senado, que a fixou em 1%, reduzindo-a à décima parte. O interesse econômico do aproveitamento ótimo da utensilhagem nacional privada, tirandoa das mãos inábeis para as mais hábeis, desaconselha um tributo que dificulta essas transferências, onerando o capital na fase da iniciativa e do risco. E em Direito Tributário, mais do que em qualquer outro, há lugar e proveito social na pesquisa da ratio juris.” Fato gerador e preservação de conceitos do Direito Privado No RE n. 31.320/GB, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 6 de junho de 1966, o STF deixou assente que o fato gerador do imposto de transmissão inter vivos somente se realiza com “(...) o negócio jurídico pelo qual alguém transfere a outrem o domínio sobre imóveis. Não está nesse caso a promessa de venda de imóvel nem a cessão dos direitos resultante dessa promessa, que é mera obrigação pessoal.” O Ministro Baleeiro afastou a interpretação econômica do Direito Fiscal, aquela que despreza conceitos de Direito Privado. Com efeito, neste exato sentido vieram a dispor, poucos meses depois, os arts. 109 e 110 do CTN. No mesmo sentido, o RE n. 38.029/GB, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 7 de junho de 1966. 147 Memória Jurisprudencial Isenção relativamente ao Banco do Brasil Nos ERE n. 53.339/PE, Relator o Ministro Vilas Boas, julgados em 10 de março de 1966, o STF abriu exceção à Súmula n. 79 (“O Banco do Brasil não tem isenção de tributos locais.”) ao decidir que “há de distinguir entre as atividades bancárias daquele órgão [o Banco do Brasil] e aquelas em que ele atua como delegado da União (quando goza de imunidade)”. O Ministro Baleeiro acompanhou o Relator. Nos ERE n. 31.452/MG, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgados em 3 de agosto de 1966, o STF aplicou a Súmula n. 79. Tratava-se da exigibilidade ou não do imposto de transmissão inter vivos na aquisição de imóvel pelo Banco do Brasil para a instalação de uma agência. O Relator ficou vencido sustentando o entendimento de que a questão não poderia ser resolvida com a generalidade da Súmula. Isso porque, até a fundação do Banco Central, o Banco do Brasil, sem embargo dos seus negócios, era, também, autoridade monetária e de crédito, bem assim tesoureiro, delegado e executor de várias funções públicas da União. Portanto, o Banco do Brasil funcionava como instrumento de tais serviços públicos federais. Daí a conclusão: “Entendo que a tributação admissível é só aquela que recai exclusivamente sobre os negócios de depósitos, cobranças, descontos e operações bancárias de caráter comercial com particulares. A compra de imóvel interessa a esses negócios, mas também ao serviço público do Banco, que prepondera em suas atividades.” Lavrou o acórdão o Ministro Oswaldo Trigueiro. No mesmo sentido, com votos vencidos ou registro de ressalvas do Ministro Baleeiro: ERE n. 35.717/GB, Relator o Ministro Pedro Chaves, julgados em 22 de junho de 1966, ERE n. 30.627/GB, Relator o Ministro Oswaldo Trigueiro, julgados em 3 de agosto de 1966, RE n. 48.978/MG, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 23 de agosto de 1966 (relativo a imposto de transmissão inter vivos e cujo acórdão foi lavrado pelo Ministro Adalicio Nogueira), ERE n. 30.166/GB, Relator o Ministro Victor Nunes, julgados em 15 de setembro de 1966 (relativos a imposto predial). 148 Ministro Aliomar Baleeiro IMPOSTO DE TRANSMISSÃO CAUSA MORTIS Fato gerador. Momento do cálculo. Norma estadual supletiva No RE n. 45.511/MG, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 27 de setembro de 1966, o STF discutiu qual a base de cálculo a considerar para a cobrança do imposto de transmissão causa mortis: a avaliação do acervo — quando da abertura do inventário — ou a da data da abertura da sucessão — que se dá antes, com o óbito. É verdade que o fato gerador do tributo em causa é a morte. Ainda assim, o Recurso foi provido para que a base de cálculo fosse o valor encontrado na avaliação decorrente da abertura do inventário, porquanto, do contrário, haveria locupletamento “de modo indébito” dos herdeiros — negligentes ou maliciosos — que não promovessem desde logo a abertura do inventário. No caso vertente, havia norma estadual expressa nesse sentido (e nenhuma norma geral sobre a matéria). Ao que concluiu o Ministro Baleeiro: “Desde que não há norma geral de Direito Financeiro (...) sobre a matéria, é de necessária aplicação a disposição estadual que a supre (...). No caso, a lei estadual impôs a estimativa do tempo da avaliação.” O entendimento em causa reflete a Súmula n. 113 (“O imposto de transmissão ‘causa mortis’ é calculado sobre o valor dos bens na data da avaliação.”), Súmula essa que foi reexaminada e mantida pelo STF no RE n. 59.397/ PR, Relator o Ministro Gonçalves de Oliveira, julgado em 17 de abril de 1968. No mesmo sentido, o RE n. 58.956/SP e o RE n. 61.242/SP, ambos relatados pelo Ministro Gonçalves de Oliveira e julgados na mesma oportunidade. O Ministro Aliomar Baleeiro lembrou o quanto costuma se estender no tempo um inventário. Em sentido similar: RE n. 61.592/BA, RE n. 64.839/PR e RE n. 64.966/PR. No RE n. 62.550/PR, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 20 de novembro de 1968, ficou assente que: “Não é razoável a interpretação que manda aproveitar a avaliação do inventário do cônjuge pré-morto para o pagamento do imposto de herança devido pelos herdeiros do supérstite, se, no espaço de tempo entre os dois óbitos, houve forte depreciação do poder aquisitivo da moeda nacional.” No mesmo sentido foi o RE n. 73.600/PR, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 17 de agosto de 1973. Vale referir o registro feito pelo Relator: 149 Memória Jurisprudencial “Outro seria meu voto, se o Recorrido houvesse demonstrado que Paraná exige multa compensatória ou correção monetária pela demora do recolhimento do imposto após prazo contado da avaliação ou mesmo o previsto no art. 467 do CPC, para encerramento do inventário.” No RE n. 69.553/BA, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 15 de maio de 1970, foi afirmado que o fato gerador do tributo em causa é instantâneo, ocorrendo com o evento morte, conforme a legislação civil pertinente, aplicável por força dos arts. 109 e 110 do CTN. Estado a que cabe a cobrança do tributo No RE n. 58.356/GB, Relator o Ministro Hermes Lima, julgado em 28 de setembro de 1966, o STF aplicou a Súmula n. 435 (“O Imposto de Transmissão Causa Mortis, pela transferência de ações, é devido ao Estado em que tem sede a companhia.”). O Ministro Aliomar Baleeiro votou vencido. Sustentou que o § 3º do art. 19 da Constituição de 1946 era obscuro, ambíguo: “§ 3º O imposto sobre transmissão causa mortis de bens incorpóreos, inclusive títulos e créditos, pertence, ainda quando a sucessão se tenha aberto no estrangeiro, ao Estado em cujo território os valores da herança forem liquidados ou transferidos aos herdeiros.” Em assim sendo, “(...) o sentido literal é claudicante, de onde presumir-se que não estão claros e definidos o sentido e o fim exato do dispositivo.”131 Recordou que o Senador Ismar Góes Monteiro, que havia sido interventor em Alagoas, justificou a emenda que levou à redação final do § 3º no “(...) fato de pessoas enriquecerem nos pequenos Estados, graças às empresas aí fundadas, e mudarem-se depois para as grandes cidades de outros Estados, onde vão gozar dos ócios da velhice ou buscar melhores recursos médicos. Aí morrem e aí se inventariam os bens incorpóreos, com prejuízo do Estado pobre da situação das sociedades anônimas.” 131 Vide, a propósito, o tópico “Elementos úteis para identificação da mens legislaroris” do Capítulo “Hermenêutica”. 150 Ministro Aliomar Baleeiro Criticou o entendimento de que a transferência a que se referia a norma constitucional fosse a prevista na então vigente legislação das sociedades anônimas. Isso porque o dispositivo constitucional “é por demais genérico, abrangendo todos e quaisquer bens incorpóreos e não apenas os títulos registráveis.” O entendimento criticado deixaria a tributação com o Estado onde fosse feito o registro da transferência, isto é, no mais das vezes, a Guanabara, onde estavam sediadas muitas das empresas brasileiras. Lembrou que o Direito brasileiro já admitia ações endossáveis, com efeitos desde logo — mesmo antes do registro do endosso —, como, por exemplo, poderiam ser apenhadas ou dadas em caução pelo adquirente ou endossatário. Fez, então, interpretação sistemática do Direito pátrio. É o óbito do acionista que transfere a propriedade das ações ao herdeiro. O registro em livro próprio é mera formalidade declaratória — não constitutiva — do direito de propriedade. Destacou, ainda, que o Código Civil de 1916 apontava o último domicílio do defunto como o lugar de abertura da sucessão. Conjugou, então, a Constituição de 1946 e o Código de Processo Civil de 1939: “(...) se o art. 19, § 2º, fala do território onde serão ‘liquidados’ os valores da herança, temos de recorrer ao art. 499, do CPC, cujo objetivo fiscal é manifesto: ‘Art. 499. Encerrado o inventário, proceder-se-á à liquidação para o pagamento do imposto de transmissão causa mortis observado o que dispuser a respeito a legislação fiscal.’ Aí encontramos o que promana da interpretação sistemática de todo o nosso Direito.”132 Isso posto, afastou outras normas do caso concreto, explicando o porquê: “Em nosso tempo, prepondera a autonomia da lei fiscal em relação ao Direito Comum.” Registrou, ainda: “Toda Constituição se anima de certa filosofia social e visa a alcançar certos objetivos políticos, que, em momentos de inspiração jurídica, um povo acredita os melhores para os seus destinos. Quem ler os volumosos Anais da Constituinte de 1946 observará que, ao 132 Grifo no original. 151 Memória Jurisprudencial lado da redemocratização do País, os membros daquela Assembléia estavam preocupados com a preservação da unidade nacional, temendo que o esplêndido desenvolvimento industrial do Brasil no Sul e sua estagnação no Norte e, sobretudo, no Nordeste viesse a engendrar, cedo ou tarde, uma crise trágica, como a Guerra da Secessão nos Estados Unidos. Vários expedientes políticos foram introduzidos na Constituição para conjurar-se esse risco e corrigir-se o desequilíbrio econômico das regiões e dos Estados. Os Estados menores foram beneficiados por maior representação na Câmara dos Deputados. Percentagens substanciais das receitas tributárias da União foram reservadas ao Nordeste, à Amazônia e à Bacia do rio São Francisco. (...) Logo, sem a mais remota sombra de dúvida, a Constituição tem como diretriz deliberada e consciente, no pressuposto de ser a melhor para a concórdia e felicidade da Nação, uma política de beneficiamento e compensação das áreas empobrecidas dos Estados mais atrasados, onde rareiam capitais e, em conseqüência, também rareiam investimentos e sociedades anônimas.” Fez tais considerações para concluir que a Súmula n. 435 do STF “opõe-se a esta orientação porque fiel ao espírito de certa emenda nascida em caso insignificante”, qual seja, atender a um determinado Estado (Alagoas) em umas poucas ações de um espólio específico (Cônego Benigno Lira). E, ao final, arrematou: “(...) O caso é de filosofia social ou política da Constituição, que deve inspirar intérpretes e aplicadores, como ratio juris. (...)” Enfim, o Ministro Baleeiro votou vencido pelo conhecimento e provimento do Recurso Extraordinário, isto é, sustentou o entendimento de que o tributo cabia ao Estado em que se deu o inventário e a partilha. O acórdão foi lavrado pelo Ministro Evandro Lins. No RE n. 58.402/SP, julgado em 6 de dezembro de 1966, o Ministro Aliomar Baleeiro (Relator) — após ressalvar o seu entendimento pessoal — aplicou, por analogia, a Súmula n. 435. Tratava-se de sucessão aberta em São Paulo. Foram arrolados créditos provenientes de promessas de compra e venda de terrenos loteados e situados no Rio Grande do Sul: “(...) Situados os bens no Rio Grande do Sul, onde se fizeram os contratos de promessa de venda e onde se tornarão efetivos, àquele Estado e não a São Paulo, segundo o entendimento do Supremo Tribunal Federal, caberá o imposto. Ali, no Rio Grande do Sul, serão liquidados e transferidos os bens. (...)” 152 Ministro Aliomar Baleeiro Não obstante, no RE n. 53.812/MG, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 22 de abril de 1968, o entendimento do Ministro Baleeiro prevaleceu. Também sustentou a tese no RE n. 73.576/MG, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 25 de setembro de 1973 — em que pese não ter havido, no caso vertente, ocorrência da hipótese de incidência do tributo, mas, sim, doação de ações, por ato entre vivos, em partes iguais, a filhos. Por sua vez, a Constituição de 1988 é bastante clara no particular, dispondo, no inciso II do § 1º do seu art. 155, que o imposto sobre transmissão, “relativamente a bens móveis, títulos e créditos, compete ao Estado onde se processar o inventário ou arrolamento (...)”133 Incidência sobre transmissão de jazida No RE n. 76.279/MG, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 11 de dezembro de 1973, o STF afirmou a correção jurídica da incidência do imposto de transmissão causa mortis sobre a transmissão — causa mortis — dos direitos de lavra de jazida mineral. O Ministro Baleeiro consignou: “(...) Importa, como é óbvio, o fato gerador, que, no caso dos autos, até por definição, é a transmissão ‘mortis causa’ dos direitos de lavra de certa jazida, e não esta em si, ou a exploração dela, nem os minerais acaso dela extraídos ou comercializados.”134 Portanto não havia que cogitar, in casu, sobre imunidade. Vê-se, aí, a objetividade do Direito Tributário. 133 Grifamos. 134 Grifo no original. 153 Memória Jurisprudencial IMPOSTO ÚNICO SOBRE MINERAIS Voto divergente de Súmula. Recepção ou não de legislação por aspecto formal No RE n. 39.296/MG, Relator o Ministro Victor Nunes, julgado em 3 de fevereiro de 1966, o STF aplicou as Súmulas n. 118 e 306. Esta diz que “As taxas de recuperação econômica e de assistência hospitalar de Minas Gerais são legítimas quando incidem sobre matéria tributável pelo Estado.” Aquela deixa assente que “Estão sujeitas ao imposto de vendas e consignações as transações sobre minerais que ainda não estão compreendidos na legislação federal sobre o imposto único.” Na espécie dos autos, o Relator entendeu que a imposição funcionava como adicional ao imposto de vendas e consignações, cuja incidência sobre minerais era considerada legítima pelo STF em período anterior à regulamentação do imposto único do art. 15, III, da Constituição de 1946. Assim, o Relator votou pela correção jurídica da taxa impugnada, combinando ambos os verbetes aludidos. O Ministro Aliomar Baleeiro divergiu ao argumento de que a superveniência da Constituição de 1946 vedou aos Estados e aos Municípios a aplicação de impostos de sua competência sobre fatos geradores direta ou indiretamente previstos no art. 15, inciso III e § 2º, do texto constitucional (produção, comércio, distribuição, consumo, entre outros, de minerais). Afirmou reconhecer a recepção do Código de Minas no que estabeleceu um imposto único sobre minerais, mas não no que toca à possibilidade de Estados e Municípios instituírem tributos na matéria. O STF vinha entendendo que, enquanto não fosse editada a lei federal pertinente — que, registre-se, já existia quando do julgamento em causa —, os Estados e os Municípios poderiam seguir tributando minerais. Isso porque o teto de tributação havido no Código de Minas (alíquota de 8%) derivava da soma de alíquotas máximas para a União (3%) e para os Estados e Municípios (5%). O Ministro Victor Nunes, então, afirmou que o Ministro Aliomar Baleeiro estava impugnando a Súmula n. 118. O Ministro Baleeiro confirmou a divergência com a Súmula n. 118 (“A decisão regimental permite que cada juiz, de acordo com a sua consciência, possa conservar a sua opinião pessoal. Por isso divirjo.”), mas não com a tese defendida na Súmula n. 306, também citada pelo Ministro Victor Nunes: “(...) não é inconstitucional uma taxa falsa, mas que, na realidade, encobre o imposto de competência do Estado que a decretou. O nome não tem importância; o que tem importância é o fato gerador.” 154 Ministro Aliomar Baleeiro A questão levantada pelo Ministro Baleeiro cingia-se aos minerais nos fatos sujeitos ao imposto único a teor do art. 15, inciso III e § 2º, da Constituição de 1946. Com efeito, o inciso I do art. 4º do CTN veio a pontuar que “A natureza jurídica específica do tributo é determinada pelo fato gerador da respectiva obrigação, sendo irrelevantes para qualificá-la: (...) a denominação e as demais características formais adotadas pela lei;” Nisso estavam de acordo os Ministros Victor Nunes e Aliomar Baleeiro. Ainda assim, na questão de fundo, prevaleceu a jurisprudência já firmada no seio do STF. O caso é curioso. Trata-se, também, de saber se acaso houve ou não a recepção de uma legislação anterior cuja competência legislativa passou a ser somente da União. Em princípio, somente incompatibilidades materiais determinam a não-recepção da legislação anterior. Aspectos formais, em regra, não obstam a recepção, de modo a não haver vazio legislativo. Em última análise, o Ministro Baleeiro defendeu a cessação imediata da competência legislativa dos Estados e Municípios no que toca à tributação de minerais. Havia, no caso, uma possível e razoável exceção à regra da ocorrência da recepção independentemente de elementos formais. Com efeito, o fundamento constitucional para o exercício da competência tributária por parte dos Estados e Municípios juridicamente deixou de existir, passando, em sua integralidade, à União. Em seu voto — vencido — como Relator no RE n. 47.211/SP, julgado em 23 de agosto de 1966, o Ministro Baleeiro fez minuciosa resenha da matéria. Na mesma assentada também ficou vencido no RMS n. 16.319/MG. Ambos os acórdãos foram lavrados pelo Ministro Adalicio Nogueira. No RE n. 45.032/MG e nos ERE n. 37.798/MG, a incidência da taxa de recuperação econômica de Minas Gerais foi reputada inconstitucional (por adentrar no âmbito de tributo de outro ente federado). No mesmo sentido foi a decisão proferida no RE n. 68.636/GB, Relator o Ministro Antonio Neder, julgado em 18 de março de 1975. Em seu voto, o Ministro Aliomar Baleeiro chamou de “paralogismo terrível” a jurisprudência do STF que admitiu a cobrança estadual enquanto a União não legislasse sobre o imposto único de sua competência. E contou: “A coisa foi de tal ordem que, quando se redigiu o projeto do Código Tributário, o que se fez primeiro foi colocar um artigo que acabasse com aquela interpretação.” 155 Memória Jurisprudencial O Ministro Baleeiro estava a se referir ao art. 8º135 ou ao § 2º do art. 74136 do CTN (provavelmente ao primeiro, em razão da expressa referência que a ele fez, por exemplo, no RE n. 65.839/MG e no RE n. 70.138/GB). O Ministro Baleeiro votou vencido, negando a competência de Estados e Municípios para a tributação em causa, no RE n. 52.851/ES e no RE n. 61.778/SP. No RE n. 62.487/MG, Relator o Ministro Themistocles Cavalcanti, julgado em 1º de outubro de 1968, o Ministro Baleeiro foi Relator para o acórdão porque considerou que a tributação sobre serviços pertence ao Município, hipótese em que a taxa em causa é inconstitucional, mas admitiu a legitimidade da cobrança estadual sobre a parcela referente a materiais nas empreitadas (hipótese em que correspondia ao imposto de vendas e consignações). Súmula n. 140. Imunidade. Lubrificante. Taxa de previdência social. Similitude com questão recente No RE n. 40.142/GB, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 20 de março de 1966, o STF aplicou a Súmula n. 140 (“Na importação de lubrificantes, é devida a taxa de previdência social.”). O Ministro Baleeiro, conformando-se à Súmula n. 140, deu provimento ao Recurso para cassar a segurança concedida a uma empresa importadora de óleo mineral lubrificante. A primeira parte do § 2º do art. 15 da Constituição de 1946 dispunha que “A tributação de que trata o n. III terá a forma de imposto único que incidirá sobre cada espécie de produto.” A questão que levou à edição da Súmula n. 140 era a de saber se a fórmula “A tributação (...) terá a forma de imposto único” também excluía — além dos impostos que não fossem o imposto único — a tributação de minerais por espécies tributárias outras, como, por exemplo, a taxa de previdência social. Aspecto interessante a ser destacado é a similitude da questão em causa com aquela relativa à incidência ou não da Cofins sobre o faturamento das empresas de combustíveis. O STF, no RE n. 227.832/PR, Relator o Ministro Carlos Velloso, julgado em 1º de julho de 1999, firmou entendimento no mesmo sentido 135 “O não-exercício da competência tributária não a defere a pessoa jurídica de direito público diversa daquela a que a Constituição a tenha atribuído.” 136 “O imposto incide, uma só vez, sobre uma das operações previstas em cada inciso deste artigo, como dispuser a lei, e exclui quaisquer outros tributos, sejam quais forem sua natureza ou competência, incidentes sobre aquelas operações.” 156 Ministro Aliomar Baleeiro da Súmula n. 140, isto é, o § 3º do art. 155 da Constituição de 1988137 não impede a incidência da Cofins sobre o faturamento de tais empresas. Note-se: o § 3º aludido empregou o gênero “tributo” após mencionar a espécie “imposto” (a Emenda Constitucional n. 20, de 15 de dezembro de 1998, substituiu o vocábulo “tributo” por “imposto”). Possivelmente, em matéria de Cofins, o Ministro Baleeiro viesse a externar a mesma contrariedade. Em igual sentido — aplicando a Súmula n. 140 — também foram os votos do Ministro Baleeiro nos RREE n. 40.644/SP, 41.731/GB, 60.410/GB, 60.651/SP, 60.730/GB e 61.143/GB. Súmula n. 91: imposto único vs. imposto de indústrias e profissões, bem assim taxas No RE n. 47.278/SP, Relator o Ministro Pedro Chaves, julgado em 12 de abril de 1966, o STF aplicou a Súmula n. 91 (“A incidência do Imposto Único não isenta o comerciante de combustíveis do Imposto de Indústrias e Profissões.”). O Ministro Aliomar Baleeiro votou vencido. Após lembrar que, historicamente, o imposto único substitui aos demais das diferentes competências constitucionais, sustentou que o inciso III do art. 15 da Constituição de 1946 “(...) refere-se inequivocamente a impostos sobre ‘produção, comércio, distribuição...’ Ora, comércio e distribuição são profissões ou fatos geradores do imposto de indústrias e profissões. Se esse dispositivo os reserva à União, abrindo uma exceção no imenso campo das profissões e indústrias (entendida esta palavra no sentido clássico e, portanto, amplo), então, exclui a tributação municipal nesse setor de comércio, produção e distribuição de combustíveis e lubrificantes.”138 No RE n. 70.138/GB, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 25 de agosto de 1970, o Relator registrou que aquela jurisprudência do STF caducou a partir da vigência da Lei n. 4.425, de 8 de outubro de 1964, que regulamentou o imposto único sobre minerais. No caso concreto, decidiu-se pela exclusão do 137 “À exceção dos impostos de que tratam o inciso II do caput deste artigo e o art. 153, I e II, nenhum outro tributo poderá incidir sobre operações relativas a energia elétrica, serviços de telecomunicações, derivados de petróleo, combustíveis e minerais do País.” (cf. redação da Emenda Constitucional n. 3, de 17 de março de 1993). 138 Grifamos. 157 Memória Jurisprudencial imposto de indústrias e profissões. No entanto, foi mantida exigência de taxa de incêndio, ao seguinte entendimento: “Além de não ser imposto sobre produção, etc., de minerais, mas remuneração de serviços potenciais, essa taxa, hoje, está amparada pela Súmula n. 549.” Imposto único, taxa de despacho aduaneiro e imposto de consumo No RE n. 61.092/PE, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 4 de abril de 1967, foi admitida a incidência da taxa de despacho aduaneiro cobrada pela União de uma empresa mineradora porquanto, no caso, não se tratava de atividade do minerador, mas, apenas e tão-somente, de importação de implementos para sua atividade. No RE n. 61.377/PE, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 24 de setembro de 1968, ficou assente que o Código de Minas não se referia aos impostos de consumo sobre equipamentos importados pelo minerador. No RE n. 74.617/RN, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 27 de abril de 1973, o Relator, aplicando precedentes, entendeu correta a incidência do ICM sobre telhas e tijolos — como produtos industrializados que são —, embora resultantes do emprego de minerais sujeitos ao imposto único na fase de extração e tratamento. No mesmo sentido, o RE n. 76.056/PR, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 17 de agosto de 1973. Os precedentes demonstram, com clareza, o caráter objetivo da incidência única, isto é, ela beneficiava — especificamente — a atividade de mineração, mas não atividades outras das empresas mineradoras, inclusive a importação (ainda que de implementos necessários à atividade de mineração). No mesmo sentido, o RE n. 67.743/SP, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 7 de outubro de 1969. No RE n. 69.671/GB, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 15 de dezembro de 1970, o STF discutiu se a sujeição de mármore e granito serrados e polidos por beneficiamento mecânico excluiria a incidência de tributos outros, notadamente o IPI e o ICM. O Relator respondeu afirmativamente, ao entendimento de que a Constituição “ordena seja realmente único o imposto único”. No entanto, a Corte decidiu — seguindo voto do Ministro Barros Monteiro — ser imprópria a via do mandado de segurança para discutir matéria de fato complexa como a em causa (“saber-se se se trata de simples beneficiamento do produto ou de industrialização do mesmo, a determinar o pagamento do imposto correspondente”). Na mesma assentada, foi julgado o RE n. 69.222/PE, Relator o Ministro Barros Monteiro, em que também votou vencido o Ministro Baleeiro. 158 Ministro Aliomar Baleeiro No RE n. 76.865/SP, Relator o Ministro Oswaldo Trigueiro, julgado em 16 de novembro de 1973, o STF entendeu que o ICM incidia sobre cal virgem ou hidratada. O Ministro Baleeiro votou vencido, ao entendimento de que não havia, in casu, industrialização, mas, sim, simples processo de beneficiamento de que não resultava modificação essencial na identidade do mineral. Logo, somente o imposto único incidiria. No RE n. 78.724/SP, julgado em 11 de junho de 1974, nos ERE n. 75.477/SP, julgados em 5 de setembro de 1974, e no RE n. 80.275/SP, julgado em 18 de fevereiro de 1975, o Ministro Baleeiro, Relator, ressalvou o seu ponto de vista e aplicou o entendimento firmado. Imposto único e Taxa do Fundo de Investimento Minero-metalúrgico No RE n. 65.839/MG, Relator o Ministro Luiz Gallotti, julgado em 22 de maio de 1969, e no RE n. 66.390/MG, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 3 de dezembro de 1969, relativos à Taxa do Fundo de Investimento Minerometalúrgico, o Ministro Baleeiro votou apontando: (1) ofensa à tributação única, configurando, portanto, bitributação inconstitucional; (2) coincidência com o imposto federal de consumo, isto é, com o imposto sobre produtos industrializados; (3) exultação financeira de Minas Gerais, que manteve um tributo cumulativo, “ao passo que o Imposto do Consumo, desde 1950, deixou de ser cumulativo, atingindo apenas o valor acrescido”. E concluiu: “Não há economia que resista a esse delírio fiscalista na mais insensata política tributária.” Sobre a matéria, também vale conferir o voto vencido do Ministro Baleeiro no RMS n. 17.443/MG, Relator o Ministro Victor Nunes, julgado em 25 de setembro de 1968. 159 Memória Jurisprudencial IMPOSTO DE INDÚSTRIAS E PROFISSÕES Correlação com o imposto de serviços No RE n. 45.204/SP, Relator o Ministro Themistocles Cavalcanti, julgado em 21 de maio de 1968, o STF deixou assente que o antigo imposto de indústrias e profissões pressupunha uma atividade autônoma. Do voto do Relator extrai-se o seguinte excerto: “O contribuinte será o advogado, o engenheiro, o médico, o estabelecimento comercial, industrial ou bancário, mas não o que trabalha como empregado dessas empresas.” O Ministro Aliomar Baleeiro votou vencido. Argumentou que o fato gerador do imposto em questão era “qualquer atividade exercida com o propósito de remuneração”, de modo que “o funcionário público ou o funcionário de uma empresa, enfim, o trabalhador, sob regime de remuneração, estava sujeito a esse imposto.” Explicou, ainda, o porquê da abrangência do seu entendimento: “‘indústria’ é qualquer atividade, aptidão, ou engenho com o propósito de auferir remuneração”. O debate em questão mantém interesse. O próprio Ministro Baleeiro o advertia: “Este debate ainda tem fomento de utilidade, porque esse imposto, hoje, passou a chamar-se ‘de serviços’, e sob essa nova forma pode ainda a matéria vir a ser trazida ao Supremo Tribunal Federal.” Com efeito, a legislação do atual ISS — Lei Complementar n. 116, de 31 de julho de 2003 — é clara sobre a matéria, dispondo, no inciso II do seu art. 2º, que o tributo em causa não incide sobre “a prestação de serviços em relação de emprego, dos trabalhadores avulsos, dos diretores e membros de conselho consultivo ou de conselho fiscal de sociedades e fundações, bem como dos sócios-gerentes e dos gerentes-delegados”. Elemento espacial do fato gerador No RE n. 51.352/CE, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 27 de setembro de 1966, o STF reputou exigível o imposto de indústrias e profissões de empresa domiciliada em outro Estado se acaso mantém depósito e agente no Município e nele vende e fatura produtos. 160 Ministro Aliomar Baleeiro Vale transcrever o seguinte excerto do voto do Relator: “(...) a Prefeitura pode tributar empresa domiciliada fora do Estado, se no território municipal tem depósito, vende, fatura, passa recibo e paga imposto de vendas ao Estado onde se integra esse Município. A competência geográfica ou ratione loci é deste, pouco importando igual tributação no Município da sede da empresa.” Portanto, o fato gerador configurava-se — do ponto de vista espacial — no lugar em que se dava o desempenho de uma indústria ou de uma profissão. Tinha, assim, competência tributária ativa o município em que a indústria ou a profissão era exercida. Com efeito, a Lei Complementar n. 116, de 2003, relativa ao ISS, disciplina minuciosamente a matéria em seus arts. 3º e 4º. Isenção heterônoma No RE n. 45.316/SP, Relator o Ministro Adalicio Nogueira, julgado em 7 de novembro de 1967, o STF aplicou a Súmula n. 81 (“As cooperativas não gozam de isenção de impostos locais, com fundamento na Constituição e nas leis federais.”). O Ministro Aliomar Baleeiro acompanhou o Relator, mas fez uma ressalva em relação ao imposto de indústrias e profissões: “Eu me coloco naquela corrente que teve como porta-bandeira, neste Tribunal, o eminente Ministro Orozimbo Nonato, o qual reconhecia à União a possibilidade de isentar de impostos estaduais e municipais quando houver um ‘interesse comum’ (Constituição de 1946, art. 31, parágrafo único), tese que prevaleceu na Constituição de 1967.” Com efeito, o dispositivo constitucional referido tinha a seguinte redação: “Os serviços públicos concedidos não gozam de isenção tributária, salvo quando estabelecida pelo Poder competente ou quando a União a instituir, em lei especial, relativamente aos próprios serviços, tendo em vista o interesse comum.” Fez igual referência no RE n. 46.960/MG, de que foi Relator, julgado em 27 de setembro de 1966, e no RMS n. 17.504/SP, também de sua relatoria e julgado em 21 de maio de 1968. Voltou ao tema nos ERE n. 61.116/MG, Relator o Ministro Baleeiro, julgados em 26 de fevereiro de 1969. Citou O Federalista e afirmou que a possibilidade poderia decorrer, inclusive, de poder implícito da União. 161 Memória Jurisprudencial As assim chamadas “isenções heterônomas” estão vedadas pelo inciso III do art. 151 da Constituição de 1988: “É vedado à União: (...) instituir isenções de tributos da competência dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios.”139 Nos dias atuais, é discutida a possibilidade de concessão de isenções heterônomas em tratados internacionais. Nesses, a União não agiria como ente federado: não produziria lei federal. Aqui, a União manifestaria vontade pelo ente total, pelo Estado Federal como um todo: produziria lei nacional140. Com efeito, a isenção heterônoma em tratados internacionais parece um outro caso de “interesse comum” dos entes federados, como aquele referido pelo Ministro Baleeiro. Operações realizadas em outros municípios As operações realizadas em outros municípios não são abrangidas pelo imposto de indústrias e profissões (RE n. 68.941/PR, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 15 de maio de 1970). No mesmo sentido, o RE n. 75.110/BA, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 27 de abril de 1973 (“Não pode abranger operações realizadas em outro município, ainda que iniciadas pela aceitação de pedidos transmitidos pela filial situada no território do tributante, mas despachadas e faturadas diretamente pela fábrica em Estado diferente.”). Relações comerciais intermunicipais. Falta de norma geral. Eqüidade No RE n. 65.780/RJ, Relator o Ministro Amaral Santos, julgado em 5 de novembro de 1969, o STF discutiu a incidência do imposto de indústrias e profissões nas relações comerciais intermunicipais em face da inexistência de norma geral disciplinando o assunto. No caso vertente, examinou-se legislação local — do Município fluminense de Campos — que determinava a tributação pelo valor da mercadoria. 139 Há duas exceções a esta regra na Constituição de 1988: o art. 155, § 2º, XII, e (ICMS), e o art. 156, § 3º, II (ISS). 140 É o que defende, por exemplo, José Souto Maior Borges (Isenções em tratados internacionais de impostos dos Estados-Membros e Municípios in Estudos em homenagem a Geraldo Ataliba, vol. 1, São Paulo: Malheiros, 1997. pp. 177 e 178). A propósito, vide o voto do Ministro Nelson Jobim na ADI n. 1.600/UF, Relator o Ministro Sydney Sanches, julgada em 26 de novembro de 2001. 162 Ministro Aliomar Baleeiro O Ministro Aliomar Baleeiro, ao debater com o Relator do feito, sustentou que, na falta de norma geral disciplinando a matéria, dever-se-ia buscar uma construção jurisprudencial. Invocou o art. 114 do CPC então vigente, que permitia ao juiz — na falta de norma aplicável e quando autorizado — decidir por eqüidade141. O Ministro Baleeiro lembrou que, em Direito Tributário, o CTN dá, em seu art. 108, autorização para tanto142. Concluiu, assim, pela validade da tributação até o limite do custo das mercadorias. Aduziu que a expressão “valor” é indefinida em economia. Somente haveria inconstitucionalidade relativamente à incidência que excedesse o limite deduzido da Constituição, qual seja, o custo das mercadorias. Em outras palavras, a parte inconstitucional seria aquela que excedesse o custo. Defendeu, portanto, uma declaração de inconstitucionalidade em parte (aquela que excedesse o custo)143. O Ministro Eloy da Rocha apresentou voto vista neste exato sentido. Entre outros, foi acompanhado pelo Ministro Aliomar Baleeiro. O Relator ficou vencido. No mesmo sentido, o RE n. 67.637/MG; também sobre a falta de norma geral para a mesma espécie tributária o RE n. 78.906/BA. 141 Norma hoje constante do art. 327 do Código de Processo Civil: “O juiz só decidirá por eqüidade nos casos previstos em lei.” 142 No RE n. 74.762/SP, julgado em 18 de junho de 1973, o Ministro Aliomar Baleeiro, Relator, cogitou aplicar o mesmo entendimento: “É verdade que o juiz não pode corrigir a iniqüidade da lei fora dos casos de eqüidade ou interpretação razoável. Mas é verdade também que o Código Tributário Nacional admite expressamente a eqüidade (art. 108, IV), que, no caso, poderia ser a dispensa do acréscimo, segundo precedentes do Supremo Tribunal Federal.” Estava a se referir a acréscimos excessivos em dívidas para com a Fazenda Pública. Sugeriu, então: “Se os nobres juízes assim pensarem, de acordo com o art. 114 do Código de Processo Civil, darei provimento em parte, por eqüidade, para cancelamento do acréscimo nas certidões de fls. 114 a 124. Se as dívidas já estão oneradas de multa superior ao imposto — mais de 100%, portanto —, acho extorsivo o acréscimo de 50% sobre o total, ou seja, outros 100% sobre o tributo.” A sugestão não foi acolhida. 143 Em outras palavras, uma declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto. Vide, a propósito, o tópico “Declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto” do Capítulo “Controle Concentrado e em Abstrato de Constitucionalidade”. 163 Memória Jurisprudencial IMPOSTO DE VENDAS, IMPOSTO DE CONSUMO, ETC. Adicional ao imposto de consumo No RE n. 69.123/SP, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 12 de maio de 1970, o Relator deixou assente que um adicional “é simples majoração do imposto ao qual ele se aplica”, em razão do que se sujeita às regras do imposto por ele majorado, inclusive às relativas à não-cumulatividade própria ao imposto de consumo, a teor da Constituição de 1967, que adotou a técnica do valeur ajoutée. In casu, a conclusão robusteceu-se em razão de uma decisão jurisdicional administrativa. O Ministro Baleeiro registrou que uma tal decisão integra como norma complementar o conceito legal de “legislação tributária” dos arts. 96 e 100, II, ambos do CTN. No mesmo sentido, com voto do Ministro Baleeiro: RE n. 69.172/SP e RE n. 75.934/GB. Configuração de produto industrializado No RE n. 59.776/PE, Relator o Ministro Evandro Lins, julgado em 5 de dezembro de 1967, o STF admitiu que o charque e os peixes secos sofrem industrialização que lhes modifica propriedades físicas e químicas. O Ministro Aliomar Baleeiro destacou, ainda, que não seria concebível que a incorporação maciça de sal e a sujeição da carne ou do peixe ao calor prolongado do sol ou de estufas — tornando-os hostis à proliferação de microorganismos — deixasse de alterar as características físicas e químicas de tais alimentos. No RE n. 69.828/PA, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 11 de dezembro de 1970, o STF decidiu que o peixe vivo, ornamental, pescado, criado, selecionado e condicionado em água com adição de oxigênio e tranqüilizantes nos envoltórios plásticos, para exportação por via aérea, é produto industrializado e, portanto, imune ao ICM. Segundo o Ministro Baleeiro, o feito refletia a hostilidade dos EstadosMembros à política constitucional de desoneração das exportações com o objetivo de equilibrar o balanço de pagamentos. Afirmou que o constituinte alçou isso a interesse nacional e não apenas federal. E apontou dados que demonstrariam o acerto das medidas tomadas para tanto: o volume de exportações foi a US$ 1,5 bilhão, com um saldo positivo de US$ 300 milhões. Afirmou que as imunidades são auto-executáveis por seu conteúdo e natureza. 164 Ministro Aliomar Baleeiro Sustentou mais: “(...) o conceito de produtos industrializados (...) tanto pode ser jurídico, porque resultante da definição ou enumeração legal, quanto apenas tecnológico ou econômico. A lei poderá reputar ‘industrializado’ produto que a tecnologia não considera como tal. Mas o legislador ordinário não pode negar a condição de ‘industrializado’ à mercadoria que, do ponto de vista tecnológico, deve ser considerada dessa maneira. As palavras, na Constituição, têm o sentido que geralmente o povo lhes dá.” Disse, ainda, que, na legislação tributária brasileira, “o conceito jurídico de industrialização é mais largo do que o conceito tecnológico dessa operação econômica”. O Ministro Baleeiro destacou que, no caso, tinha-se uma piscicultura altamente especializada e requintada, que ia desde a pesca selecionada e a recriação dos peixes até o especial acondicionamento dos exemplares — manutenção de temperatura ideal, adição de oxigênio, acréscimo de tranqüilizante, medidas essas necessárias à exportação —, o que configurava, sim, industrialização e, portanto, imunidade. No RE n. 74.893/RS, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 27 de abril de 1973, o Tribunal reconheceu a imunidade do fumo em folha para exportação, porque — na medida em que ele é destalado, fermentado, esterilizado e acondicionado — configura, sim, produto industrializado. Lembrou, uma vez mais, que a imunidade em causa é self enforcing. Registrou, ainda, lembrança da sentença: o caso é análogo ao RE n. 67.993/SP, Relator o Ministro Amaral Santos, julgado em 16 de setembro de 1969, em que foi reconhecida a imunidade do chá em folhas para exportação. No mesmo sentido foi o voto do Ministro Baleeiro no RE n. 77.328/RS, Relator o Ministro Xavier de Albuquerque, julgado em 6 de março de 1975 (o Relator ficou vencido, tendo sido lavrado o acórdão pelo Ministro Rodrigues Alckmin). No RE n. 73.655/PR, Relator o Ministro Bilac Pinto, julgado em 7 de junho de 1973, o Ministro Aliomar Baleeiro votou vencido quanto à configuração do algodão em plumas como produto industrializado. O Ministro Baleeiro sustentava que o produto configurava, sim, produto industrializado, porque resultante de “operações mecânicas mediante as quais sofre limpeza de resíduos vegetais inúteis e que o desvalorizam, separandose dela, ao mesmo tempo, por meio de máquinas (...) as partes que apresentam préstimo econômico para outras indústrias”. Lembrou que o STF, por analogia, já considerara “como produtos industrializados outras mercadorias que sofreram mecânica, física ou quimica165 Memória Jurisprudencial mente um processo inicial de aperfeiçoamento que os torna acessíveis a mercados fechados à matéria bruta”. Fez, então, um rol exemplificativo de tais produtos: açúcar preto, tortas de sementes oleaginosas, farelo de algodão, madeira serrada ou esquartejada, linter do algodão, óleos vegetais brutos, camarão cozido, tábuas, peixes vivos em água do habitat com acréscimo de oxigênio e tranqüilizantes, carne frigorificada, torta e farelo de amendoim, e o próprio algodão em pluma144. Citou, então, o art. 46, parágrafo único, do CTN, aplicável ao IPI: “considera-se industrializado o produto que tenha sido submetido a qualquer operação que lhe modifique a natureza ou a finalidade, ou o aperfeiçoe para o consumo”. Afirmou mais: “basta esse parágrafo único do art. 46 do CTN, para que se não possa duvidar de que o algodão em pluma entra na categoria dos produtos industrializados”. Sustentou, por fim, que a ratio iuris da Constituição seria “incentivar as exportações, como base do equilíbrio do balanço de pagamentos, e incorporar o valor do trabalho nacional aos produtos exportados”. Ademais, o que a Fazenda Pública “deixa de receber no produto industrializado recupera no incremento de seu produto bruto interno e na renda de seus cidadãos”, ambos sujeitos à tributação federal, estadual e municipal, direta ou indiretamente145. O Ministro Baleeiro votou vencido, quanto à mesma matéria, também no RE n. 77.101/PR, Relator o Ministro Oswaldo Trigueiro, julgado em 4 de setembro de 1973. Aplicou o entendimento plenário no RE n. 79.264/PB, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 27 de agosto de 1974. No RE n. 76.513/BA, Relator o Ministro Antonio Neder, julgado em 5 de junho de 1974, o STF entendeu que o ICM incidia sobre fibra de sisal destinada à exportação, por não ser produto industrializado. Prevaleceu o voto do Ministro Oswaldo Trigueiro. O Ministro Aliomar Baleeiro votou vencido (“Acho que qualquer processo que crie um produto intermediário, transformando a matéria-prima ainda em estado in natura, já lhe dá a qualificação de industrializado.”). 144 O voto faz minuciosa referência aos precedentes em que os produtos referidos foram reputados industrializados. 145 O Relator ficou vencido quanto ao não-conhecimento do Recurso. O Ministro Aliomar Baleeiro conhecia do Recurso — entre outros motivos — porque tinha ciência de julgados anteriores do STF de que divergia o acórdão recorrido. Mas, no mérito, ficou vencido, juntamente com o Ministro Luiz Gallotti. 166 Ministro Aliomar Baleeiro Exigência antecipada de tributo. Fato gerador presumido No RE n. 61.060/RN, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 7 de março de 1967, o STF decidiu pela possibilidade de exigência prévia de tributo quando o contribuinte é ambulante: “Pode [o ente competente] exigir o pagamento prévio do imposto quando o contribuinte é ambulante, feirante, enfim, mercador sem estabelecimento fixo e certo.” No RE n. 60.275/PB, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 3 de abril de 1968, o STF manteve acórdão que julgara indevida a arrecadação prévia do imposto de vendas. Foi reputada razoável a interpretação de que o imposto em causa “tributa o negócio jurídico efetivo de uma venda ou consignação”. No RE n. 77.462/MG, Relator o Ministro Bilac Pinto, julgado em 27 de fevereiro de 1975, o Ministro Aliomar Baleeiro, em voto vencido, advertiu contra a generalização (vulgarização) da substituição tributária: “A generalização da prática da ‘substituição’ de contribuinte pelo ‘responsável’ pode constituir má-política fiscal, estorvando o comércio do importador, produtor e grossistas, que necessitarão de maior capital ou maior apelo ao crédito. Mas para isso não há remédios nos Tribunais. Os contribuintes ajustem contas com seus representantes parlamentares ou com os seus partidos nas próximas eleições.” Mais recentemente, o STF tem admitido o recolhimento antecipado de diversos tributos (aí incluído o ICMS). É o que se dá, por exemplo, nas chamadas substituições tributárias “para frente”. Fato gerador No RE n. 31.737/SP, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 21 de junho de 1966, o STF decidiu que o fato gerador do Imposto de Vendas era a compra e venda de mercadorias, isto é, coisa material — corpórea — e móvel, feita por produtor ou comerciante (inclusive o industrial), o que excluía, no caso dos autos, a energia elétrica. O Relator lembrou que corroborava o entendimento adotado a constatação de que a jurisprudência não capitulou no conceito de furto a apropriação dolosa de energia elétrica, “até que o legislador criou a figura específica e expressa”. No RE n. 61.114/SP, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 26 de setembro de 1967, o STF decidiu que o imposto de vendas não cabe na operação esporádica de venda de veículo usado. No mesmo sentido: RE n. 62.491/SP e RE n. 62.531/SP. 167 Memória Jurisprudencial No RE n. 63.096/SP e no RE n. 63.097/SP, ambos relatados pelo Ministro Aliomar Baleeiro e julgados em 21 de novembro de 1967, o STF tornou a decidir que o automóvel usado não está sujeito ao imposto de consumo, mas está, sim, sujeito à taxa de despacho aduaneiro, se trazido do exterior. Há diversos outros julgados no mesmo sentido. Saída No RE n. 68.024/RJ, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 18 de novembro de 1969, o STF deliberou quanto à incidência do ICM sobre o preparo de concreto no local da obra por firma especializada que fornecera pedra e areia e recebera o cimento do proprietário da construção. O Ministro Baleeiro conheceu do recurso ao entendimento de que não havia, in casu, reexame de fatos ou de cláusulas contratuais, mas, sim, conceituação jurídica de uma situação não controvertida quanto à sua materialidade. Admitiu ocorrer, na espécie dos autos, uma subempreitada por empresa especializada. Sustentou que a subempreitada é uma empreitada no sentido do Código Civil146, o que não poderia ser alterado pela lei tributária147. Decidiu-se, então, pela incidência do Imposto de Vendas apenas sobre os materiais fornecidos. Seguindo o mesmo raciocínio, no RE n. 74.696/SP, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 5 de junho de 1973, o STF decidiu pela exclusão do ICM em situação algo parecida (preparo de blocos e lajeotas no próprio canteiro da obra, empregados exclusivamente nessa). No modelo do CTN e do Decreto-Lei n. 406, de 1968, o ISS era devido ao município, mas deduzia-se da base de cálculo o valor dos materiais que o construtor adquirisse de terceiros e fornecesse à obra. Portanto, a contrario sensu, “incluíase no preço tributável pelo ISS os materiais que o próprio construtor produziu, quer dentro, quer fora da obra”, sustentou o Ministro Baleeiro. Aduziu que, mais tarde, o Decreto-Lei n. 834, de 8 de setembro de 1969, modificou a disciplina da matéria e submeteu ao ISS os materiais produzidos pelo construtor ou prestador de serviços dentro da obra e nela empregados e sujeitou ao ICM os produzidos fora do local da prestação de serviços, embora aí os aplicasse. 146 Código Civil de 1916, arts. 1.237 e seguintes. Vide, também, Código Civil de 2002, arts. 610 e seguintes. 147 CTN, art. 110. 168 Ministro Aliomar Baleeiro Concluiu, então, que a produção no local da prestação de serviços para utilização nesses não implica a saída de mercadorias em relação ao estabelecimento produtor ou vendedor: “Vale dizer, não ocorreu o fato gerador do ICM.” Afirmou não lembrar de caso rigorosamente igual, mas recordou como precedente “extremamente semelhante” o antes comentado RE n. 68.024/RJ. Nos ERE n. 75.026/RS, Relator o Ministro Xavier de Albuquerque, julgados em 11 de dezembro de 1974, o STF deixou assente que, para a incidência do ICM, não bastava o simples deslocamento físico da mercadoria do estabelecimento comercial, industrial ou produtor: “Faz-se mister que a saída importe num negócio jurídico ou operação econômica.” O Relator ficou vencido. Prevaleceu o voto do Ministro Cordeiro Guerra que, em verdade, acompanhou minucioso voto do Ministro Baleeiro. O Ministro Baleeiro resumiu o caso vertente nos seguintes termos: “(...) Empresa que, de um estabelecimento que lhe foi alugado, e, portanto, é como se fosse seu, produz móveis para empregar noutro estabelecimento seu, o hotel que está construindo por sua conta em terreno de sua propriedade. (...)” Finalizou citando Rubens Gomes de Souza: “Se admitirmos inteligência contrária, o ICM recai sobre o comodato, sobre a saída que o ladrão deu à mercadoria roubada, ou aquela que resultou de ter sido jogada no caminhão do lixo, como exemplifica Rubens G. Souza, o produto avariado. Recebo os embargos.” Questões diversas ICM. A ele não se sujeita o leiloeiro. RE n. 70.023/PE. ICM. Cooperativas. Voto do Ministro Baleeiro em que se lê: “Nos exercícios a que se refere a impetração, vigorava, até 15 de março de 1967, a Emenda 18/65, e, depois, até 17-10-69, a CF de 1967. Esses dois diplomas (como a CF de 1946 em relação ao IVC) limitavam o ICM às operações ‘realizadas por produtores, industriais e comerciantes’. Essas três categorias econômicas e mais nenhuma outra.” A possibilidade de o legislador ordinário equiparar qualquer outra àquelas três categorias “só se tornou constitucionalmente possível depois da Emenda 1/69, que, no artigo 23, § 4º, estatuiu que lei complementar poderá instituir outras categorias de contribuintes do ICM. Antes, não e não”. E concluiu: “À luz desses dois textos constitucionais, o art. 58, § 1º, do CTN, e o art. 2º do AC 27 são esparradamente inconstitucionais.” (RE n. 169 Memória Jurisprudencial 74.377/SP, Relator o Ministro Xavier de Albuquerque, julgado em 24 de abril de 1974). O Relator ficou vencido. Prevaleceu o voto do Ministro Thompson Flores, que, em verdade, acompanhou o Ministro Baleeiro. Para tanto, inclusive, retificou a sua primeira manifestação, adequando-a aos termos do voto do Ministro Baleeiro. Em julgado posterior, qual seja, o RE n. 74.439/SP, Relator o Ministro Thompson Flores, julgado em 10 de abril de 1975, o STF admitiu a incidência do ICM sobre cooperativas a partir da vigência do Decreto-Lei n. 406, de 1968. O Ministro Baleeiro, coerente com o seu voto no RE n. 74.377/SP, admitindo a incidência em causa somente a partir de 30 de outubro de 1969, data da Emenda Constitucional n. 1, ficou vencido. Cogitou, ainda, sobre tese levantada pelo Ministro Eloy da Rocha, a saber: as cooperativas praticam ato de circulação de mercadorias? “Talvez não.” Também votou vencido no RE n. 78.427/MG, Relator o Ministro Xavier de Albuquerque, julgado em 10 de abril de 1975. ICM. Inconstitucionalidade de lei estadual que limita a 80% o crédito pela saída de mercadorias em certo período. Criação, por via oblíqua, de empréstimo compulsório estranho à competência estadual. RE n. 70.204/SC, RE n. 70.336/ SC, RE n. 70.931/SC e RE n. 71.093/SC. ICM e IPI. Não-cumulatividade. “o princípio da não-cumulatividade ou do ‘valor agregado’ é comum ao IPI e ao ICM. O que é válido para aquele, sob esse ponto de vista, é também para este” (RE n. 79.601/RS). Vale registrar que não via com bons olhos a cumulatividade: “Não há economia que resista a esse delírio fiscalista na mais insensata Política Tributária.” (RE n. 65.839/MG) ICM. Venda com desconto. Exclusão de multa. (RE n. 70.537/RS) Imposto de vendas e consignações. Não incide sobre vendas esporádicas de materiais imprestáveis, muito menos sobre o papel — imune — devolvido por jornais às fábricas que o aproveitam como matéria-prima de novo papel. (RE n. 67.095/SP) Imposto de vendas e consignações. Navio na condição de bem móvel. (RE n. 63.283/SP) Imposto de vendas e consignações. Remessa de mercadorias por uma firma a sua filial em outro Estado. Transferência não tributável. Equilíbrio federativo. Pagamento prévio do tributo. Outras questões. RMS n. 14.794/RS, RMS n. 15.231/PR, RMS n. 16.243/PR, RMS n. 16.244/PR, RMS n. 16.567/PR, RMS n. 16.867/PR, RMS n. 17.359/PR e RMS n. 17.932/PR. Imposto de venda e imposto de exportação. Limites. RMS n. 16.206/SP. 170 Ministro Aliomar Baleeiro TAXA E PREÇO PÚBLICO Taxa de melhoramento dos portos No RE n. 74.674/SP, no RE n. 74.816/SP, no RE n. 75.342/SP e no RE n. 75.343/SP, todos relatados pelo Ministro Thompson Flores e julgados em 19 de setembro de 1973, o STF declarou a constitucionalidade da taxa de melhoramento dos portos. Reconheceu que a ela estavam sujeitos inclusive os contribuintes que gozassem de imunidade ou de isenção genérica. O Ministro Aliomar Baleeiro votou vencido. Criticou severamente a Súmula n. 550 (“A isenção concedida pelo art. 2º da Lei 1.815/1953 às empresas de navegação aérea não compreende a taxa de melhoramento de portos, instituída pela Lei 3.421/1958.”), bem assim as suas principais referências, quais sejam, o RMS n. 12.899/SP e o RMS n. 13.341/SP, ambos relatados pelo Ministro Victor Nunes e julgados em 22 de julho de 1964148. Lembrou que as taxas não podem tomar como base de cálculo a que tenha servido para a incidência de imposto. In casu, sustentava coincidência com uma das bases de cálculo tradicionalmente fixadas para o imposto de importação: alíquota sobre o valor comercial da mercadoria, o que bastaria para que fosse declarada inconstitucional. Também criticou a Procuradoria-Geral da República: “No afã de salvar a taxa claudicante (...) em alguns dos casos, entende que ela é ‘preço público’”. O Ministro Baleeiro contraditou, então, que a taxa de melhoramento dos portos, porque cobrada coercitivamente, não poderia nunca se identificar com preços. O Relator afastou a inconstitucionalidade ao argumento de que não se confundem os fatos geradores do imposto de importação e da taxa de melhoramento dos portos: “Naquele decorre da entrada de mercadoria estrangeira no território nacional; na última, o que prevalece é a movimentação no porto. E tanto pode ela vir do exterior ou não.” Quanto à base de cálculo, considerou que a do imposto seria o valor externo do produto importado e a da taxa seria o valor comercial da mercadoria. 148 “Tenho Victor Nunes no mais alto apreço intelectual e conheço sua obra notável no aperfeiçoamento dos métodos de trabalho do STF. Mas, perdoai-me S. Exa., não estava nos seus dias mais felizes.” O Ministro Victor Nunes havia considerado que a exação em questão poderia se comportar ora como imposto, ora como taxa. 171 Memória Jurisprudencial Por sua vez, o Ministro Rodrigues Alckmin entendeu que a referida “taxa” seria, em verdade, um sobre-preço ou um aumento de preço dos serviços de capatazias, porque a movimentação de cargas nos portos constitui, precisamente, serviço de capatazia remunerado com preço ou tarifa149. Nos debates, o Ministro Baleeiro replicou: “Então, capatazia será preço na base de tonelagem. Mas se é coativa e tem como base a mesma alíquota sobre o valor da mercadoria, ela se equipara ao imposto de importação. Acontece sempre que, ao invés de ser calculada por alíquota específica, é calculada por alíquota ad valorem.” O Ministro Baleeiro votou vencido na matéria nos seguintes julgados: RE n. 74.972/SP, RE n. 75.326/SP, RE n. 75.339/SP, RE n. 75.344/SP, RE n. 75.437/SP, RE n. 75.573/SP, RE n. 75.969/SP, RE n. 75.970/SP, RE n. 76.091/SP, RE n. 76.092/SP, RE n. 76.140/SP, RE n. 76.248/SP, RE n. 76.342/GB, RE n. 76.381/SP, RE n. 76.502/SP, RE n. 76.503/SP, RE n. 76.632/SP, RE n. 76.793/SP, RE n. 76.794/SP, RE n. 76.831/SP, RE n. 76.842/SP e RE n. 76.926/SP. O Ministro Baleeiro ressalvou o seu ponto de vista e aplicou o precedente plenário nos seguintes julgados: RE n. 77.646/SP, RE n. 77.748/SP, RE n. 77.832/SP, RE n. 77.902/SP e RE n. 77.904/SP. Taxa do serviço de retransmissão de imagens e de manutenção de torre de canais de televisão No RE n. 75.024/SP, Relator o Ministro Luiz Gallotti, julgado em 6 de junho de 1974, o STF discutiu a natureza da taxa do serviço de retransmissão de imagens e de manutenção da torre de canais de televisão cobrada pelo Município paulista de Quatá. O Relator entendeu haver, in casu, serviço de retransmissão de televisão remunerado por preço público. O Ministro Aliomar Baleeiro abriu a divergência sustentando que a taxa de Quatá não era um preço público. Explicou que o preço público não comporta coação direta ou indireta, porque resulta de “exploração comercial ou industrial ou dominial compatível com a livre iniciativa particular, quase sempre de coisas materiais”. A seguir, acrescentou: 149 O Ministro Baleeiro não tinha simpatia pela expressão “tarifa”, que considerava simples tradução do Inglês rate, bem assim pela possível confusão com a aduaneira. Preferia “preço público” (voto do Ministro Baleeiro no RMS n. 15.487/GB, Relator o Ministro Evandro Lins, julgado em 10 de fevereiro de 1966). 172 Ministro Aliomar Baleeiro “Ora, o que se cobra em Quatá é um serviço que a União concede e regula, proibindo exações aos usuários[150]. A tributação sobre tal serviço é da competência da União sempre que a transmissão ultrapassa os limites dum Município, como acontece no caso dos autos. O preço público pressupõe voluntária aquisição da coisa ou voluntária utilização do serviço. (...) Mas, no caso concreto, o indivíduo é obrigado por lei a pagar a taxa se tiver TV, conecte-a ou não à rede servida pela torre, queira ou não fazê-lo.” Concluiu, então, que a taxa era inconstitucional por defeito de competência, porque era cobrada por ente federado que não prestava o serviço e que nem sequer tinha competência constitucional para prestá-lo. Finalizou afirmando que a solução estaria com o legislador federal, que poderia “criar uma taxa específica e destinar o produto dela ao município que mantiver a torre de retransmissão”. Nos debates, o Ministro Baleeiro lembrou que o não-exercício da competência tributária não a defere a pessoa jurídica de direito público diversa daquela que a Constituição a tenha atribuído (art. 8º do CTN). Em seu voto e nos debates, o Ministro Baleeiro muito elogiou o recorrente, “que resolveu gastar dois ou três mil cruzeiros (...) para não pagar cinco cruzeiros por mês. Precisamos de homens como esse no Brasil”. O sobrenome do recorrente era “Schiavo”, ao que afirmou o Ministro Baleeiro: o recorrente desmentiu o nome, “como homem livre num país livre”. Lavrou o Acórdão o Ministro Rodrigues Alckmin, que acompanhou o entendimento do Ministro Baleeiro. 150 Nos debates, o Ministro Baleeiro explicou: “Pelo art. 6º do Código Brasileiro de Telecomunicações, a União proíbe a cobrança de taxas por esses serviços.” 173 Memória Jurisprudencial TAXA DE SEGURANÇA E EXAÇÕES CORRELATAS No RE n. 72.374/ES, Relator o Ministro Luiz Gallotti, julgado em 10 de novembro de 1971, o STF examinou taxa de segurança especial do Estado do Espírito Santo, cujo fato gerador era a utilização efetiva, pelo comércio, indústria, bancos e residências, dos serviços de segurança especiais, prestados pela Secretaria de Segurança do Estado. O Relator resolveu o caso concreto apoiado em doutrina de Aliomar Baleeiro, que mostrava como uma severa conceituação das taxas era — e é — indispensável à salvaguarda de certos princípios de limitação constitucional ao poder de tributar. Assim, enquanto pelas taxas o indivíduo obtém serviço que lhe é útil, pessoal e individualmente, o Estado, ao contrário, procura, pelo imposto, os meios de satisfazer despesas necessárias da administração ou indispensáveis ao bem comum. Referiu, ainda, a pergunta de Baleeiro: “(...) Dar-se-á que, com o correr do tempo, haja variado o conceito de taxa, de sorte que, contemporaneamente, tenha perdido o caráter de compensação ou contraprestação entre o contribuinte e o Fisco? Em absoluto, responde, isso não aconteceu, pois não só as recentes reedições de obras de escritores já consagradas entre as duas grandes guerras mantêm pacificamente o caráter de contraprestação, mas este elemento essencial figura na edição de obras aparecidas depois da última guerra.” O Ministro Gallotti sustentou que o policiamento comum, que protege a generalidade das pessoas, não se enquadra no conceito de poder de polícia do art. 78 do CTN. Ademais, em se tratando de serviços públicos, são necessários: (1) utilização, efetiva ou potencial; (2) especificidade; e (3) divisibilidade. Narrou, então, o exemplo dado por Baleeiro: “(...) Se um Banco, ou um Segurador de Bancos contra assaltos e roubos, pede a permanência dum policial armado em seu recinto, é legítima a cobrança da taxa para cobertura do custo respectivo, desde que decretada em lei (...)” Em conformidade com tais princípios, a taxa em causa foi reputada inconstitucional. Esse entendimento foi reafirmado nos ERE n. 72.898/MG, Relator o Ministro Luiz Gallotti, julgados em 24 de abril de 1974, em que foi declarada inconstitucional Taxa de Expediente instituída por Minas Gerais e cobrada sobre atos de autoridades policiais relacionados com o funcionamento de cinemas. 174 Ministro Aliomar Baleeiro No RE n. 77.815/SP, no RE n. 77.940/SP, no RE n. 77.954/SP e no RE n. 77.985/SP, todos relatados pelo Ministro Luiz Gallotti, e também julgados em 24 de abril de 1974, o STF examinou a taxa de fiscalização e serviços diversos, cobrada a cinemas pelo Estado de São Paulo. O Relator reportou-se ao voto que proferiu nos ERE n. 72.898/MG. No mesmo sentido, os ERE n. 77.975/SP, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgados em 11 de dezembro de 1974. O Ministro Baleeiro votou com o Relator em todos os feitos aludidos. Os seus votos dedicam especial atenção ao poder de polícia, para distingui-lo do policiamento ostensivo: “Se o Estado pode cobrar taxa porque mantém policiais que, eventualmente, podem ser úteis a conter uma desordem, aliás raríssima no cinema, também deveria cobrar de todos os transeuntes, de todos os moradores, de todos os viajantes, de todas as criaturas humanas, enfim, que, pelo menos teoricamente, se presumem com direito ao socorro da rádio-patrulha. Discriminar contra o cinema, porque congrega centenas e às vezes um milhar de pessoas, não seria justo, porque as igrejas, as reuniões políticas, as praias de banho, as estações ferroviárias e rodoviárias, as ruas comerciais, os colégios e ginásios, as filas de compradores, os supermercados, etc., sobretudo nos sábados, provocam aglomerações de indivíduos. (...) O precedente do RE 72.374/ES configura divergência, porque lá a taxa é de polícia e exigida das casas de diversão também. O fato de o Espírito Santo cobrá-las também de bancos, lojas e residências não cria situação especial, porque a taxa de São Paulo é dirigida também a outras atividades. O ponto básico não é que se cobre a taxa de uma ou de várias categorias profissionais, mas que se cobre delas somente quando o serviço fica à disposição de todos os membros da comunidade, sem exceção de um só. No caso dos autos, não há taxa, mas bitributação com o imposto de serviços do município. Cria-se uma formalidade para servir de pretexto à falsa taxa.” No mesmo sentido, o RE n. 77.817/SP, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 7 de maio de 1974. O Relator reconheceu, uma vez mais, que, no caso, havia apenas policiamento genericamente prestado a toda a população e custeado pelos impostos, “sem utilização especial e divisível por parte do sujeito passivo”. Ademais, lembrou, o licenciamento de cinemas era da competência municipal por disposição expressa da então vigente Lei Orgânica dos Municípios do Estado de São Paulo. Explicou, ainda, que o poder de polícia deve enquadrar-se na área da competência do Poder que pretende recolher a taxa. 175 Memória Jurisprudencial Via, nisso, reflexo da cláusula due process of law, isto é, um standard de flexibilidade em equilíbrio com o poder de polícia. Admitiu que o cinema poderia comportar poder de polícia (salvo filmes obscenos, eróticos ou detrimentosos a crianças e adolescentes, o que, no entanto, constituía atividade do serviço federal de censura). Enfim, não era — e não é — tarefa do policiamento comum, ostensivo ou não. Concluiu mencionando a posição do município na federação brasileira: “o município não é criatura do Estado, porque sua criação e autonomia decorrem da própria Constituição Federal”. No mesmo sentido, com votos do Ministro Baleeiro: RE n. 78.146/SP, RE n. 78.205/SP, RE n. 78.219/SP, RE n. 78.274/SP, RE n. 78.525/SP, RE n. 78.526/SP, RE n. 79.711/SP e RE n. 80.135/SP. 176 Ministro Aliomar Baleeiro REFERÊNCIAS INTERESSANTES RELATIVAS A MANIFESTAÇÕES DO MINISTRO ALIOMAR BALEEIRO O Capítulo que ora se inicia colige diversos julgados que trazem manifestações importantes ou curiosas do Ministro Aliomar Baleeiro, seja do ponto de vista jurídico, seja do ponto de vista fático. Tais julgados seguem sistematizados em um “índice”, de modo a: (1) permitir o encontro fácil de matérias diversas; bem assim (2) simplificar o início de pesquisas mais profundas sobre determinados temas que escapam ao foco do presente trabalho (mas que não são menos importantes do que aqueles já desenvolvidos). Claro, há, aqui, menções a algumas questões jurídicas já superadas, que, ainda assim, são potencialmente úteis na solução de problemas atuais. Assuntos diversos Abuso de direito processual. Perdas e danos em favor do devedor executado. Não-configuração do abuso. RE n. 62.339/GO. Ação popular. Não cabe para declarar a inconstitucionalidade de lei em tese. RE n. 65.838/MG. Ação popular. Nela não cabe condenação em honorários. Analogia com o mandado de segurança, não obstante opinião em contrário de Hely Lopes Meirelles. RE n. 70.679/RJ. No RE n. 78.831/SP, o Ministro Baleeiro afirmou: “A ação popular constitui juridicamente um direito do cidadão e, moralmente, um dever do membro da comunidade. O interesse social é incentivá-la e não estorvá-la com ameaça de condenação vultosa, porque os negócios públicos, em geral, excedem as dimensões dos privados.” Concluiu logo adiante: “Não me parece, contudo, que, pelo próprio caráter inconfundível da ação popular, a recíproca seja admissível. Se vitoriosa a ação, o réu deve pagar a verba honorária, porque ou cometeu ilícito ou a causa aproveitou ao patrimônio público.” Acidente de trabalho. Competência, honorários, duplicidade de indenização, desentendimento entre empregador e segurador, e diversas outras questões. RE n. 34.242/RS; RE n. 38.899/SP, RE n. 44.519/SP, RE n. 45.805/RS, RE n. 46.002/GB, RE n. 46.390/SP, RE n. 47.326/GB, RE n. 49.510/GB, RE n. 60.644/GB, RE n. 60.950/RS, RE n. 61.613/SP, RE n. 62.345/GB, RE n. 62.382/SP, RE n. 62.498/SP, RE n. 62.631/PB, RE n. 63.614/GB, RE n. 64.553/SP, RE n. 64.569/SP, RE n. 64.588/MG, RE n. 65.429/SP, RE n. 65.534/RS, RE n. 65.594/MG, RE n. 65.988/SP, RE n. 66.241/SP, RE n. 68.994/PE, RE n. 69.026/PE, RE n. 70.364/GB, RE n. 70.500/RJ, RE n. 75.557/SP, RE n. 76.030/SP, RE n. 76.095/SP, RE n. 76.173/RJ, RE n. 78.393/PE, RE n. 78.814/SC, RE n. 79.198/GB, RE n. 80.699/SP, RMS n. 18.357/SP e RMS n. 18.392/SP. 177 Memória Jurisprudencial Adoção. Não há nulidade na adoção feita por quem ainda não atingiu a idade mínima. Forma de manifestação da vontade de adotar. Evitar “interpretação bizantina e incompatível com o caráter benéfico e social do instituto”. Simplificação do formalismo. Aspectos históricos do instituto. RE n. 60.117/BA. Advogado. Com a quitação da anuidade para com a OAB antes do julgamento, não se justifica a anulação do processo. RE n. 60.296/RS. Alimentos. Mínimo vital (“aquele que é indispensável ao indivíduo para se manter em pé”). Atualização. Cláusula rebus sic stantibus. Voto vencido do Ministro Baleeiro em que defendia a aplicação de correção monetária para os alimentos já concedidos em ação anterior assim como se admite em matéria tributária (RE n. 41.370/SP). Em sentido similar quanto à tese da correção: RE n. 46.258/SP. Há diversos outros votos seus no mesmo sentido. Alimentos. Prisão. RE n. 63.815/SP. Analogia. Art. 4º da LICC. Aplicação, por analogia, dos juros fixados em lei para concordata às dívidas de massa falida. RE n. 67.687/SP. Anulação de registro. Disputa por bebê entre mãe solteira e casal que o havia registrado como seu. “A mãe combinou com o amado que este poria a criança no alpendre e ela o recolheria.” Houve desajuste de tempo e a avó entregou a criança a outro casal. Voto do Ministro Baleeiro em que cita, de início, história bíblica de Salomão que, ao julgar disputa como a dos autos, pediu a espada, mandando que partissem ao meio a criança, dando metade a cada litigante. Decidiu, ao final, em favor da mãe de sangue, identificada porque foi aquela que não aceitou o critério do Rei e pediu que o menino fosse poupado e entregue à adversária. Presume-se que a criança estará melhor com a mãe de sangue. “Quaisquer que fossem os pecados da Recorrente, sua corajosa atitude, depois da compreensível vacilação de início, leva a crer que cumprirá dignamente os deveres da maternidade. E na lei há remédio para o caso de falhar.” RE n. 69.837/GO. Aposentadoria. Contagem de tempo. Lei municipal que mandava contar em dobro, para o fim de aposentadoria, o tempo de mandato exercido como vereador e deputado estadual ou federal. Voto do Ministro Baleeiro: “(...) a legislação toda citada pode ser merecedora de reservas, do ponto de vista ético. Pode ser uma péssima política, mas não é inconstitucional.” A votação foi dividida: seis Ministros declararam a inconstitucionalidade da lei municipal; cinco rejeitaram a argüição; dois Ministros estavam licenciados, um ausente justificadamente e um impedido. Portanto, a teor da regra do full bench, a argüição foi rejeitada. RE n. 58.957/SP. Aposentadoria. Revisão dos proventos dos inativos nas mesmas bases dos vencimentos dos ativos. RE n. 71.483/DF, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, 178 Ministro Aliomar Baleeiro julgado em 31 de agosto de 1973, em que o Relator contestou a decisão tomada nos ERE n. 67.004/PR, Relator o Ministro Amaral Santos, julgados em 10 de junho de 1970. Perguntou o que queria a Constituição e respondeu: “Que os proventos de aposentadoria e os vencimentos dos ativos não mingüem porque a moeda se deteriorou pela inflação. Enfim, que se lhe garanta a mensalidade com a mesma eficácia de compra.” E concluiu: “Aliás, se, em cada ano, der aos inativos menos 10% do que o reconhecido aos ativos, em pouco tempo estes ficarão reduzidos a pouco mais de zero aumento.” Prevaleceu o voto do Ministro Rodrigues Alckmin, para quem a integralidade dos proventos não significa que os aumentos dos ativos devam ser estendidos aos inativos. No mesmo sentido, também com votos vencidos do Ministro Baleeiro: RE n. 72.483/SP, RE n. 73.570/GB e RE n. 77.894/PE. No RE n. 75.799/SP, Relator o Ministro Rodrigues Alckmin, e no RE n. 77.305/SP, Relator o Ministro Oswaldo Trigueiro, ambos julgados em 19 de fevereiro de 1974, o Ministro Baleeiro acompanhou o Relator porque a gratificação concedida aos ativos impunha “determinados requisitos e condições, como, por exemplo, não aceitar o titular atividades privadas etc., condições essas que não mais poderiam ser atendidas por aqueles que já estavam na inatividade”. Feito em que o Ministro Baleeiro ressalvou o seu ponto de vista: RE n. 76.192/PR. Ato Institucional n. 1, de 1969. No RE n. 77.639/RJ, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 16 de abril de 1975, o STF examinou o não-pagamento de funcionário que teve os seus direitos políticos suspensos pelo Ato Institucional n. 1, de 1969, mas que não foi demitido. A demissão somente foi formalizada pelo Ato Complementar n. 78, de 1970, fundado no Ato Institucional n. 5, de 1968 (“No período semi-ditatorial, a partir do AI-5, o Executivo poderia baixar o AC 78, não há qualquer dúvida, operando este seus efeitos dali para o futuro. Direito é o que vigora, de fato, num país, em certo momento.”). Reconheceu, assim, haver direito aos pagamentos não efetuados antes do referido Ato Complementar. “(...) um poder de fato, uma ditadura (...) quando estabelece um ato em que se institucionaliza (e houve o AI-5), diz como e até que limite é que vai exercitar seu poder discricionário, absoluto, puro e simples. Mantendo esse Ato, como manteve, a Constituição de 1967, ela se autolimitou. Sobreviveu a Constituição de 1967, a despeito do AI-5, em tudo aquilo que não foi expressamente reservado no texto daquele ato infeliz — talvez necessário —, inclusive os direitos adquiridos, as situações jurídicas perfeitas, tudo!” O Ministro Baleeiro sustentou, enfim, a impossibilidade de aplicar retroativamente o Ato Complementar n. 78, de 1970 (“Ele não foi demitido por nenhum ato formal. Cassaram-lhe os direitos políticos e não lhe pagaram mais o salário.”). Auxiliar de consulado. Mera prestação de serviço que não tem caráter de permanência. RE n. 39.044/GB. 179 Memória Jurisprudencial Auto de prisão em flagrante. Policiais assinando como testemunhas. Voto vencido do Ministro Baleeiro entendendo haver nulidade porque, in casu, havia particulares que poderiam ter assinado. RE n. 77.214/RS. Aval não se confunde com fiança e não depende de outorga uxória. Na execução de promissória não protestada, os juros moratórios contam-se da citação. RE n. 50.869/RS. Celeridade. Devolução dos autos ao Juízo de origem por simples despacho do Relator. RE 58.589/MG. Cheque visado (o emitente permanece responsável ainda que entre em concordata o Banco que o visou) e cheque marcado (designação de data aceita pelo sacador exonera o emitente). RE n. 60.502/SP. Competência da Justiça brasileira em conhecimento marítimo. RE n. 33.686/GB. Competência de foro. Caixa Econômica Federal. Processo que tramitou na Justiça Comum. A Caixa se cobrou e ficou satisfeita. Não haveria fomento de utilidade em anular o processo para recomeçá-lo na Justiça Federal. RE n. 60.592/PI. Competência. Peculato. Compete à Justiça Estadual julgar funcionários estaduais que se apossaram de taxa federal cuja arrecadação tocava, por convênio, ao Estado, porque a União se ressarcirá dos cofres estaduais. RE n. 74.943/SE. Concurso público. Não há direito subjetivo à nomeação se, feitas as nomeações na ordem de classificação, esgotou-se o prazo de validade do concurso. RE n. 75.681/RJ. Condomínio. Extinção. Se acaso nenhum condômino quer adjudicar a coisa indivisível, deverá ser vendida no todo. Contraria a lei a venda da parte de um dos condôminos, contra a vontade dele, mormente quanto interdito. RE n. 59.658/GB. Constituição de 1946. Art. 144 (“A especificação dos direitos e garantias expressas nesta Constituição não exclui outros direitos e garantias decorrentes do regime e dos princípios que ela adota.”). Dispositivo similar ao § 2º do art. 5º da Constituição de 1988. Voto do Ministro Baleeiro no sentido de que o dispositivo não é auto-executável, pressupondo um direito civil a ser legislado pela União. RE n. 59.871/RS. Correção monetária. Economia e celeridade do próprio processo. Lei de aplicação imediata. Invocação do RE n. 62.731/GB. Sugestão do Ministro Baleeiro não acolhida. RE n. 63.091/RS. Corretor de títulos. É responsável pelos atos de seus operadores, bem assim por investimentos temerários estranhos às orientações do seu cliente. RE n. 70.762/GB. 180 Ministro Aliomar Baleeiro Decreto. Delegação legislativa. Fixação de salário. Decreto desprovido de base legal ou com base em norma legal genérica que não fixa “standards jurídicos claros, expressos, definidos”. RE n. 63.357/PA. “Delírio da prova” (citando o Ministro Orozimbo Nonato). Voto vencido do Ministro Baleeiro. A documentação dos autos leva à conclusão de que uma mulher teria casado aos cinco anos de idade (“A prova no Direito tem de ser lógica. Não é possível admitir-se que essa senhora se casou com cinco anos.”). Levantou-se dúvida se acaso seria a mesma pessoa, o que não se admitiu reexaminar no Recurso Extraordinário. RE n. 51.003/SP. Desapropriação. Edifício recém-acabado. “Um edifício pronto é como uma empresa em pleno e próspero funcionamento, aquilo que os americanos chamam de going concern, e vale mais do que uma empresa ainda em organização e instalação, que gasta pesadamente em capital e não aufere lucros nessa fase.” Se a avaliação se fez pelo valor atual menos a depreciação, não se justifica a adição do going value. RE n. 76.735/SP. Desquite. Caracterização do abandono do lar. Voto vencido do Ministro Baleeiro ao entendimento de que viviam “como cão e gato”, não se podendo amarrar duas pessoas que não querem viver juntas. Ao marido cabia fixar a residência do casal. Se a mulher não o acompanhou, caracterizou-se o abandono do lar. RE n. 49.170/BA. Direito à defesa técnica. Voto vencido do Ministro Baleeiro em que defendeu “como uma das garantias dos direitos individuais a defesa com direito a advogado, sobretudo no flagrante”. Refere precedente da U. S. Supreme Court. RE n. 68.699/MG. Direito do consumidor. Formalismo processual. Voto vencido do Ministro Baleeiro no sentido de: (1) relevar a impropriedade da ação intentada (cominatória, que foi entendida como cabível somente para as obrigações de fazer e não fazer, não para as obrigações de dar); e (2) reconhecer o direito de o assinante de jornal ter o seu exemplar colocado em sua porta ou correio (“Tenho a impressão que o contrato de assinatura de jornal não é apenas o de dar um exemplar da edição de cada dia, senão também o de colocar o exemplar na porta do assinante ou no correio, até onde possa alcançar o assinante.”). A Corte julgou o autor carecedor da ação proposta (RE n. 61.068/SP). Em outros casos, quando intentada ação ordinária, o STF confirmou a condenação da empresa jornalística. Vejam-se os seguintes julgados de que constam manifestações do Ministro Baleeiro: RE n. 62.748/SP, RE n. 62.942/SP, RE n. 62.954/SP, RE n. 63.034/SP, RE n. 63.132/SP, RE n. 63.159/SP, RE n. 63.301/SP, RE n. 63.502/SP, RE n. 63.651/SP, RE n. 63.685/SP, RE n. 63.701/SP, RE n. 63.784/SP, RE n. 63.843/SP, RE n. 63.880/SP, RE n. 64.113/SP, RE n. 64.557/SP, RE n. 64.566/SP, RE n. 64.853/SP, RE n. 66.102/SP e RE n. 70.325/SP. 181 Memória Jurisprudencial Dissídio jurisprudencial. Voto do Ministro Baleeiro aceitando a tese do Ministro Luiz Gallotti no sentido de conhecer do recurso extraordinário quando notório o dissídio, ainda que não demonstrado. RE 59.417/BA. Doação com encargo não cumprido pela União (construção de ferrovia). Locupletamento injustificado. RE n. 37.983/GB. Embargos declaratórios. A que servem. “O secundário e não o principal, o resultado mesmo do julgamento. Corrigir a decisão ‘escura, duvidosa ou contraditória’, como ensinava o velho Ramalho, e não a justiça ou a injustiça da sentença.” RE n. 62.410/MG. Estrangeirismo. Uso e conseqüências penais. “Editor-Chefe” e “Redator-Chefe”. RE n. 75.329/GB. Excesso de execução porque penhorados bens divisíveis em valor total igual ao décuplo da dívida. RE n. 35.597/MG. Extorsão indireta. Voto vencido do Ministro Aliomar Baleeiro (“erro de técnica legislativa e de Política Criminal”). RHC n. 46.876/GB. O entendimento foi vitorioso no RHC n. 47.906/GB. Falência. Interpretação restritiva do Ministro Baleeiro de modo a evitá-la em benefício da sociedade. RE n. 60.499/MG. Homicídio culposo ou homicídio doloso. Motorista embriagado. Culpa consciente, não dolo eventual. HC n. 46.791/RS. Honorários: “o advogado faz jus à totalidade dos honorários se lhe é retirado o mandato sem justo motivo”. RE n. 60.021/PR. Ilhas pluviais. A que ente federado elas pertencem. RE n. 60.813/RJ. Impeachment. Prefeito. Admitiu-se que a maioria de dois terços fosse tomada sobre a base de oito, de um total de dez vereadores, porque um havia falecido e outro estava em licença, ambos sem substitutos, ainda que fosse computado o voto do presidente da sessão de julgamento (vice-prefeito). RE n. 68.449/RN. Inconstitucionalidade de decreto. Possibilidade de sua declaração quando o regulamento exorbita a lei. RE n. 58.797/RJ. Iniciativa legislativa privativa de tribunal. Não existe a inconstitucionalidade formal alegada, por falta de iniciativa do tribunal, se esse afirma que não ocorreu uma sua omissão de iniciativa. RE n. 70.612/PR. Intervenção federal. Em razão de demora no pagamento de indenização devida pelo Estado de São Paulo, o Ministro Amaral Santos aventou intervenção federal. O Ministro Baleeiro afirmou que seria “(...) matar um mosquito com um 182 Ministro Aliomar Baleeiro canhão de 12 polegadas.” E completou: “A realidade é que não se cumpre, porque não se vai decretar uma intervenção federal em São Paulo porque o Governo deixou de pagar uma indenização. Sabemos o abalo que provocaria uma intervenção em São Paulo. Mesmo sob a Constituição de 1891, nunca foi decretada. A intervenção era para nós do Norte, da Bahia, do Ceará...”. RE n. 65.837/SP. Jogos criminalizados. Não há direito líquido e certo a alvará de permissão. RMS n. 15.107/MG e RMS n. 18.304/SP. Instituto de previdência. Exame e fiscalização de livros e documentos. RE n. 46.803/GB e RE n. 53.085/GB. Lei de usura. Vigente, e seu art. 8º impede que custas e honorários sejam cumulados com cláusula penal que, por sua vez, não pode exceder de 10%. RE n. 79.174/GB. Locação. Art. 516 do Código Civil de 1916. Se o locador não se preveniu por meio de cláusula contratual que excluísse a indenização de benfeitorias úteis ou proibisse a alteração da estrutura e partes do prédio não autorizadas, deverá pagá-las ao locatário. RE n. 69.292/SP. Locação. Sublocações anteriores. Consentimento tácito. RE n. 60.093/RJ e RE n. 60.167/GB. Locação. É real, e não pessoal, o direito de preferência do locatário à compra do imóvel locado. Voto do Ministro Baleeiro resenhando diversos precedentes. RE n. 59.640/SP. Locação. Incêndio. Art. 1.208 do Código Civil de 1916. Presunção de culpa. RE n. 72.411/SP. Locação. Manutenção da Súmula n. 444 (“Na retomada para construção mais útil, de imóvel sujeito ao Decreto 24.150, de 20-4-1934, a indenização se limita às despesas de mudança.”). Voto do Ministro Baleeiro apontando o desajuste da legislação relativamente à realidade social do tempo. RE n. 58.842/SP. Locação. Motivo alegado para retomada (“não é possível psicanalizar o locador comerciante que alega necessitar do prédio para seu uso”). RE n. 47.476/CE. Locação. Multa. Utilização do imóvel para fim outro que não o alegado. Não-cabimento quando a notificação foi realizada por quem não tinha poderes para fazê-la. RE 59.185/MG. Locação. Prazo para desocupação. RE n. 46.672/RJ e RE n. 61.103/RS. 183 Memória Jurisprudencial Locação. É possível a retomada quando para uso de sociedade anônima cujo sócio majoritário é o proprietário do imóvel. RE n. 60.258/SP, RE n. 60.781/RN e RE n. 62.147/GB. Em sentido similar: RE n. 61.973/SP e RE 62.326/RS. Analogamente: RE n. 63.149/GB e RE n. 63.182/GB. Loteamento. Boa-fé dos adquirentes. RE n. 65.366/PE. Mandato irrevogável. Estipulação bilateral. Especificação minuciosa da coisa a ser permutada. Cláusula de irrevogabilidade constante de escritura pública. RE n. 50.052/BA. Manutenção de direito adquirido em face da superveniência de nova Constituição. RE n. 34.881/GB. “Morgado”. Fideicomisso. RE n. 73.212/GB. Pátrio poder. Em princípio prevalece o pai, salvo se acaso disso decorrer prejuízo ao menor, “única pessoa que se deve levar em conta”. No caso concreto, a menor tinha quase dezesseis anos, em razão do que deveria ser ouvida. “Há razões do coração que a própria razão desconhece.” RE n. 61.887/SP. Perda de patente. Oficial aviador da FAB. Não fica incapacitado de exercer profissão de piloto comercial. Decisão ensejada por argumentos do Ministro Baleeiro. RMS n. 17.461/DF. Polícia noturna de Município. Organização paramilitar. Inconstitucionalidade. Voto vencido do Ministro Baleeiro: “Serve para pessoas que, como eu, às vezes se esquecem de fechar a porta; (...)”. RMS n. 18.894/PE. Posse. Imissão. Se não a tinha o alienante, não cabe nela se imitir o adquirente. RE 39.395/MG. Posse. Reintegração. Savigny e von Ihering. Proteção da posse evidente, ostensiva. “De um ponto de vista filosófico, político, acho que se deveria permitir, na possessória, o conhecimento do assunto do petitório, porque, afinal, vai devolver-se essa posse ao recorrido, para, depois, tomar-se dele a mesma posse, já que não tem o domínio. Será perda de tempo e de dinheiro. Acho que o primeiro objetivo, um dos maiores objetivos da Justiça no Brasil, em qualquer parte do mundo, é que seja rápida. Se leva cinco, dez ou vinte anos, é uma Justiça injusta. (...)” RE n. 63.080/MG. Posse. Ação de imissão na posse. Seu cabimento contra terceiro que detém a coisa nomine proprio. RE n. 68.325/GB. Prescrição. Adjudicação de bens de menores absolutamente incapazes a tutor. RE n. 62.863/SP. Princípio da insignificância. Voto vencido do Ministro Baleeiro. RE n. 65.620/GB (“não aplicar pena alguma se o valor da coisa furtada é mínimo”). 184 Ministro Aliomar Baleeiro Processo penal. Defesa efetiva, não meramente formal. RE n. 61.487/MG. Procuradores autárquicos. Equiparação de vencimentos aos do Ministério Público da União. RE n. 52.277/GB. Prodigalidade. Doação de apartamento à companheira, construção de nova casa, presentes dados (papagaio, sagüi, máquina de costura, etc.). Nãoconfiguração. RE n. 62.662/SP. Promessa de compra e venda. A admissão do atraso impõe ao promitente vendedor interpelar o promitente comprador. Voto vencido do Ministro Baleeiro em que se lê: “Quando um país tende a afrouxar a eficácia jurídica das obrigações, reiterando na sua jurisprudência, na sua legislação, na sua interpretação, esses favores desmensurados para os devedores, pode ser diagnosticada uma fase de decadência.” RE n. 63.129/SP. Voto vitorioso no RE n. 66.690/SC (“Se não houve tolerância reiterada por parte do credor, não há, nesse caso, necessidade de notificação, tanto mais quando a citação para a causa constitui a melhor das interpelações.”). No mesmo sentido: RE n. 66.998/MG, RE n. 68.090/SP, RE n. 68.351/PR, RE n. 69.423/SC, RE n. 68.981/MG e RE n. 79.776/RJ. Promissória. Nome do tomador em branco. Terceiros de boa-fé e de máfé. RE n. 60.501/MG. Rebus sic stantibus. Protege contrato de prestações sucessivas recíprocas, que não foram compensadas pelo recebimento antecipado do capital. Sua origem no Conselho de Estado francês. Fornecimento de gás durante a I Guerra Mundial (elevação do preço do carvão). Subscrição de ações em troca do fornecimento de jornal. Similitude com outros contratos (cadeiras cativas em estádios, jazigos perpétuos, etc.). Processo inflacionário já em curso durante a contratação (“Se a recorrente calculou mal seu investimento, deve queixar-se de si própria e não da construção de Brasília, fato previsível, porque previsto e ordenado na Constituição Federal.”). Histórico da desvalorização da moeda. RE n. 62.933/SP. No mesmo sentido: RE n. 64.692/SP. Não cabe cogitar da cláusula “(...) num contrato de execução em prazo breve, em que não se pode falar em imprevisibilidade, nem em pagamentos periódicos sucessivos.” RE n. 75.511/PR. No mesmo sentido, o RE n. 71.443/RJ. Reconvenção. Pode ser conhecida se contida inequivocamente nos termos da contestação, embora esta não mencione a palavra reconvenção. O sistema do CPC não é formalístico. RE n. 70.951/GB. Registro Torrens. Falta de intimação do Ministério Público e outras questões. RE n. 49.158/GO, RE n. 60.455/GO, RE n. 61.634/GO e RE n. 70.647/GO. Responsabilidade civil. Acidente de automóvel. Não se limita ao dolo ou à culpa grave. RE n. 67.313/GB. 185 Memória Jurisprudencial Responsabilidade civil. Dano estético. RE n. 75.675/SP. Responsabilidade civil. Fixação do quantum é matéria de fato que não pode ser reapreciada em recurso extraordinário. RE n. 51.110/SP. Responsabilidade civil. Indenização deve ser calculada pelo salário mínimo ao tempo da execução. RE n. 51.484/GB. “O direito é construído sobre o mito da invariabilidade do valor da moeda, o que nunca ocorreu, nem mesmo quando ela era de ouro.” RE n. 59.954/GB e RE n. 68.978/GB. Responsabilidade civil. Indenização por danos materiais e morais decorrentes da perda de filho. RE n. 59.940/SP. Responsabilidade civil. Preposto. RE n. 70.417/GB. Responsabilidade civil. Presunção de culpa da ferrovia e outras questões. RE 53.014/GB (confirmado, depois, em grau de Embargos), RE n. 65.040/GB, RE n. 65.242/GB, RE n. 75.422/SP e RE n. 75.887/GB. Responsabilidade civil. Quem turba ou esbulha a posse de outrem não pode ser indenizado por acidente sofrido na propriedade alheia. RE n. 64.851/GB (“Se eu entro, digamos, por uma cancela — todos sabemos que, no Brasil, as cancelas não têm cadeado —, num terreno alheio, e um boi me dá uma chifrada, não posso alegar que a cancela podia ser aberta com facilidade.”). Sedução ou corrupção de menores. RE n. 67.034/MG. “Sentença trôpega” (“O caso é embaraçoso.”). RE n. 67.033/MA. Sociedade de economia mista. Caracterização. Voto vencido do Ministro Baleeiro. RE n. 72.306/GB. Sociedade de pessoas. Sociedade de capitais. Sociedades mistas. RE n. 67.458/GB. Subsídio mensal. Importância da sua concessão àqueles que exerceram altos cargos públicos. Exemplos históricos. Voto do Ministro Baleeiro na Representação n. 893/AL. Sucessão. Art. 10 da Lei de Introdução ao Código Civil. Sentido e interpretação. RE 59.871/RS. Súmula n. 20 (“É necessário processo administrativo, com ampla defesa, para demissão de funcionário admitido por concurso.”). RE n. 49.845/SC. Súmula n. 152 (“A ação para anular venda de ascendente a descendente, sem consentimento dos demais, prescreve em quatro anos, a contar da abertura da sucessão.”). Sua superação segundo a leitura que o Ministro Baleeiro fez de julgamento em que se admitiu a ação antes da morte do ascendente vendedor (morte essa que era pressuposta pela Súmula). Posteriormente, foi expressamente revogada pela Súmula n. 494. RE 59.417/BA. 186 Ministro Aliomar Baleeiro Súmula n. 275 (“Está sujeita a recurso ex officio sentença concessiva de reajustamento pecuniário anterior à vigência da Lei 2.804, de 25 de junho de 1956.”). RE n. 34.588/MG, RE n. 35.645/MG e RE n. 38.162/CE. Súmula n. 279. Reexame de provas ou erro na qualificação jurídica das provas (“quando se discute o valor jurídico das provas e não estas”). RE n. 60.626/GB. Vide, também, o RE n. 61.741/PR. Terrenos de Marinha. Porto da Bahia de Todos os Santos. Controvérsia sobre o domínio dos terrenos acrescidos pela construção de docas. Inexistência de domínio, mas apenas direito de uso por parte da concessionária. ERE n. 56.732/BA e ERE n. 74.999/BA. Título de crédito. Abstração e autonomia. RE n. 46.760/PB. Torpeza recíproca. Nenhum dos parceiros da torpitude pode exigir, com fundamento nela, indenização do outro. RE n. 61.826/PR. Usucapião. Caso em que a falta de transcrição do registro não obsta o reconhecimento do usucapião. RE n. 49.813/PB. Usucapião. Sua admissibilidade antes do Código Civil. Escorço histórico. ERE n. 61.508/BA. Usurpação de nome. Aurélio Buarque de Holanda. Depreciação de verbete. RE n. 77.029/GB. Venda de ascendente a descendente. É nula — e não apenas anulável — quando realizada sem o consentimento dos demais descendentes (interpretação do art. 1.132 do Código Civil de 1916). RE n. 51.523/GB. Verba de representação que deputados estaduais votaram em benefício próprio. Anulação em ação popular. RE n. 70.013/SP. Vizinhos. Janela. Contagem do prazo para exigir que se desfaça. Art. 576 do Código Civil de 1916 (vide arts. 1.301 e 1.302 do Código Civil de 2002). “(...) admissível a fixação da data inicial do prazo a partir da conclusão da obra toda e não do trecho onde foram deixadas as aberturas de mais de 10 x 20 cm.” (interpretação razoável nos termos da Súmula n. 400). RE n. 58.455/RS. Na mesma linha: RE n. 63.424/SP e RE n. 73.363/GB. Direito Tributário Alíquota de tributo. Possibilidade de sua modificação por ato administrativo dentro dos limites legais. Alíquota zero. Voto do Ministro Baleeiro em que se lê: “(...) não tenho dúvida alguma de que, no sistema brasileiro, é possível um órgão imediato, como é o Conselho de Política Aduaneira, alterar a tarifa 187 Memória Jurisprudencial para mais ou para menos, dentro dos limites mínimo e máximo. (...) Mas, no caso concreto, o legislador estabeleceu ‘livre’, quer dizer, zero. Então argumenta o fisco: zero é uma alíquota. Não, zero não é alíquota, é um coeficiente para calcular uma fração de alguma coisa. Não há mínimo nem máximo. O mínimo é zero e o máximo é zero. É o meu ponto de vista. (...)” RE n. 66.567/SP (voto condutor do Ministro Baleeiro: o recurso não foi conhecido porque “nu de fundamentação”) e RE n. 73.290/SP, Relator o Ministro Rodrigues Alckmin (voto vencido do Ministro Baleeiro). O leading case da matéria é o RMS n. 18.191/SP (voto vencido do Ministro Baleeiro). No RE n. 78.441/SP, o Ministro Baleeiro insistiu: “Ainda não me convenci de que possa existir matematicamente alíquota zero. Nada, ou zero, não pode ser parte a ser retirada de alguma coisa. Zero não é parte ou fração, mas nada de nada.” Logo adiante sustentou: “Juridicamente, se há alíquota zero, existe impossibilidade material e lógica de nascerem a obrigação fiscal e o conseqüente crédito tributário, porque lhes faltam elementos essencialíssimos — a base de cálculo e o quantum exigível.” O entendimento do Ministro Baleeiro prevaleceu neste feito. Alíquota de tributo. Possibilidade de sua modificação por ato administrativo dentro dos limites legais. Standard jurídico dentro do qual pode o Poder Executivo modificar alíquotas. “Fora daí o Executivo não pode. Tem que seguir a regra geral de que o imposto é fixado pelo Congresso.” Necessidade de motivação (RE n. 69.486/SP). No mesmo sentido, relativamente à Cacex: RE n. 70.475/SP e RE 72.966/SP. Em circunstância similar, também exigindo motivação: RE n. 69.319/SP. Nele, o Ministro Baleeiro afirma: “O discricionarismo administrativo não se confunde com o arbítrio, que só o legislador possui dentro dos limites da Constituição. Os órgãos administrativos, mesmo quando armados de funções normativas (...), exercem suas atribuições dentro dum quadro de estrita legalidade. O ato administrativo nunca pode exceder os limites da lei. Não vale o ato administrativo ilegal.” No mesmo sentido, em grau de embargos: ERE n. 74.028/SP. Bem trazido do estrangeiro. RE n. 36.428/GB, RE n. 37.960/GB, RE n. 39.834/PB, RE n. 41.726/SP, RE n. 50.373/SP, RE n. 52.891/SP, RE n. 61.013/GB e RE n. 61.372/SP. Cláusula de nação mais favorecida. RMS n. 18.297/SP, RE n. 67.516/SP, RE n. 67.518/SP, RE n. 68.477/SP e RE n. 69.530/GB. Conceitos financeiros. Distinção entre receita e movimento de fundos. RE n. 58.975/GB. Contrabando. Diferença entre fraude penal e fraude fiscal. Voto vencido do Ministro Baleeiro, acompanhando a divergência aberta pelo Ministro Adaucto 188 Ministro Aliomar Baleeiro Cardoso no sentido de que “a lei restringe os efeitos administrativos autônomos às coisas apreendidas, excluindo deles as pessoas”. RE n. 62.577/SP. Custas. Natureza. Voto vencido do Ministro Baleeiro levantando dúvida acerca da natureza tributária das custas no Direito brasileiro. “Era mais uma situação pessoal e patrimonial do monarca, que reservava a si a função de julgar e cobrava. Quando ele ficou muito ocupado, criou funcionários, criados — a palavra ‘ministro’ significa criado — e a esses auxiliares, esses criados, que faziam a justiça para ele — os juízes —, passou a dar-lhes o gozo de uma renda. Era o sistema de paga na época. O Governo não podia ter a máquina de funcionalismo que tem hoje. Havia um caráter pessoal e privativo.” Sustentou que as custas seriam uma espécie de direito regalengo ou reguengo que o monarca estabelecia e conferia a um particular. Representação n. 891/GB e Representação n. 895/GB. Empréstimo compulsório. Natureza tributária (“tributo com promessa de restituição”). RE n. 64.419/MG, RMS n. 15.641/MG, RMS n. 15.705/MG, RMS n. 16.143/MG, RMS n. 16.396/PR e RMS n. 16.553/MG. Execução fiscal. Salvo prova de fraude, arrematante não é sucessor ou substituto solidário de contribuinte, mormente se o preço da arrematação cobre de sobra a dívida fiscal. RE n. 60.390/PB. Fato gerador permanente. Fato gerador instantâneo. Efeito do ato do lançamento. RMS n. 16.062/SP. GATT. Taxa de despacho aduaneiro. No RE n. 69.234/SP, o Ministro Baleeiro propôs a revisão das Súmulas n. 130 e 131 do STF, que admitem exigível a taxa de despacho aduaneiro mesmo em relação às mercadorias abrangidas pelo GATT. Sustentou haver incongruência da Corte em função da Súmula n. 308 (“A taxa de despacho aduaneiro, sendo adicional do imposto de importação, não incide sobre borracha importada com isenção daquele imposto.”). Lembrou que a jurisprudência do STF considera a taxa de despacho aduaneiro como um adicional ao imposto de importação, em razão do que aquela deveria seguir o mesmo regime desse. Logo, a taxa deveria ser excluída quando o imposto fosse excluído, o que não fazem as Súmulas n. 130 e 131. A proposta de revisão não foi acolhida, e o caso concreto foi resolvido com a aplicação das Súmulas n. 130 e 131. Imposto de indústrias e profissões. Não se computam as transferências de mercadorias para venda em filiais em outros municípios. RMS n. 17.134/SP, RMS n. 17.168/SP, RMS n. 17.309/SP, RMS n. 17.823/SP e RMS n. 18.515/SP. Imposto de lucro imobiliário (“resíduo de uma legislação relativa a tributo defunto”). RE n. 64.488/SP, RE n. 64.538/SP, RE n. 64.548/SP, RE n. 189 Memória Jurisprudencial 64.593/SP, RE n. 64.596/GB, RE n. 64.939/SP, RE n. 65.025/SP, RE n. 65.031/SP, RE n. 65.084/SP, RE n. 65.097/SP, RE n. 65.142/SP, RE n. 65.742/SP e RE n. 68.148/SP. Imposto de lucro imobiliário. Isenção. Herança ou doação. RE n. 41.874/GB. Imposto de lucro imobiliário. Avaliação judicial em se tratando de terrenos não sujeitos a valor locativo antes da obra. RE n. 57.238/SP, RE n. 64.732/SP, RE n. 65.149/SP, RE n. 65.271/SP e RE n. 65.272/SP. Imposto de renda. Adicional sobre reservas e lucros em suspenso ou não distribuídos. Isenção. “(...) quem traça a política legislativa fiscal é o Congresso, e este, bem ou mal, por proposta do Executivo, resolveu manter uma política fiscal de incentivo ao aumento de capital das empresas, mediante reavaliação do ativo e incorporação das reservas.” RE n. 60.532/MG. Imposto de renda. Criado em cauda do Orçamento. RMS n. 15.826/SP. Imposto de renda. Indenização. Se os títulos oferecidos sofreram desconto do imposto na fonte, por sua natureza jurídica e não pela capacidade tributária do beneficiário da prestação, esse tem direito a suplemento que restabeleça a integridade do valor devido. RE n. 45.780/SP e RE n. 59.954/GB. Imposto de renda. Fundos escriturados em conta à disposição de matriz no estrangeiro: “em alguns países, nos Estados Unidos, por exemplo, os lucros não distribuídos estão sujeitos a uma nova tributação. E, em certas circunstâncias, ela pode ser de boa política fiscal, para remédio da recessão”. RE n. 52.634/GB. Imposto de renda. Voto do Ministro Baleeiro que examina: analogia no Direito Tributário, conceitos de renda e de lucro. RE n. 63.217/GB. Imposto do selo. Imunidade. Evolução da matéria. RE n. 61.451/SP, RE n. 62.054/GB, RE n. 62.611/PR, RE n. 64.225/SP, RE n. 64.226/SP, RE n. 64.634/SP, RE n. 64.938/SP e RE n. 65.101/SP. Imposto do selo. Não cabe relativamente à escritura definitiva de compra e venda que ratifica uma anterior de cessão de direitos. RE n. 65.409/SP. Isenção em operação de repatriação de capital investido no Brasil. RE n. 37.984/SP. Isenção. Irrevogabilidade. Art. 178 do CTN (quando concedida por prazo certo ou quando concedida em função de determinadas condições). No caso vertente, segundo voto vencido do Ministro Baleeiro: “A isenção é tão franca quanto a Zona: basta que o interessado produza, no interior da Zona Franca, mercadorias manufaturadas das tabelas da legislação do IPI.” Concluiu: “Reconheço que o legislador foi precipitado ao prometer uma vantagem 190 Ministro Aliomar Baleeiro enorme, como a isenção dum imposto cuja alíquota vai a 300%. Mas não pode recuar, prejudicando quem, seduzido por essa isca farta, investiu licitamente dinheiro na fábrica. Revogar retroativamente a isenção raia pela inconstitucionalidade.” RE n. 73.164/AM. No mesmo sentido, o RE n. 79.512/SP. ISS. Não é legítimo sobre operações bancárias. RE n. 77.183/SP. Legislação tributária. Circular ministerial integra o conceito de legislação tributária, mas está adstrita à lei e não pode distinguir onde ela não distingue. RE n. 70.269/SP. Multa fiscal punitiva. Irresponsabilidade solidária do sucessor. São de responsabilidade pessoal do antecessor: art. 133 combinado com os arts. 106, 112, 134 e 137, todos do CTN. RE n. 76.153/SP. No mesmo sentido o RE n. 77.471/SP. Produtos industrializados destinados ao exterior. Imunidade em benefício de todo e qualquer produto industrializado destinado ao exterior (art. 24, § 5º, da Constituição de 1967), e não apenas daqueles tributados pelo ICM, sem prejuízo de a lei “determinar que fiquem livres desse imposto outros produtos não industrializados, isto é, primários ou semi-acabados”. O Ministro Baleeiro ainda explicou: “(...) a Constituição Federal de 1967, diversamente da anterior, se preocupou mais com o econômico do que com o político e, em matéria tributária, sobrepôs o interesse nacional à autonomia local.” RE n. 67.963/SP, RE n. 67.964/SP, RE n. 67.996/SP, RE n. 68.083/SP, RE n. 68.194/SP e RE n. 68.198/SP. Sobre madeira serrada (alguns com voto vencido do Ministro Amaral Santos): RE n. 68.604/PR, RE n. 69.023/PR, RE n. 70.213/SC, RE n. 70.671/PR e RE n. 71.834/PR. Sócios. Responsabilidade tributária. Arts. 134 e 135 do CTN. Voto do Ministro Baleeiro em que sustenta que “sociedade de pessoas”, no art. 134 do CTN, são as em nome coletivo e outras semelhantes que não se enquadram nas categorias de sociedades anônimas ou por quotas de responsabilidade limitada. As sociedades por quotas de responsabilidade limitada são mistas e não de pessoas, que não se constituem exclusivamente intuito personae. RE n. 70.870/SP. Súmula n. 83 (“Os ágios de importação incluem-se no valor dos artigos importados para incidência do imposto de consumo.”). RE n. 31.754/SP, RE n. 31.860/SP, RE n. 32.339/SP e RE n. 32.439/GB. Súmula n. 318: “É legítima a cobrança, em 1962, pela Municipalidade de São Paulo, do imposto de indústrias e profissões, consoante as Leis 5.917 e 5.919, de 1961 (aumento anterior à vigência do orçamento e incidência do tributo sobre o movimento econômico do contribuinte).” Voto vencido do Ministro Baleeiro contra a sua aplicação no RE n. 60.056/SP. Conformando-se à jurisprudência da Corte: RE n. 60.229/GB. 191 Memória Jurisprudencial Súmula n. 544. Isenção tributária concedida sob condição onerosa não pode ser livremente suprimida. RE n. 69.186/MG. No mesmo sentido: RE n. 69.700/SP. Taxa e preço público. Relações privadas. Privilégios portuários não podem assumir o caráter dos direitos realengos da época colonial. RE n. 69.937/RJ. Taxa e preço público. Referência à polêmica de configuração de taxa ou de preço público quando, por exemplo, é obrigatória a conexão da casa à rede de distribuição de água. RE n. 72.810/PE. 192 Ministro Aliomar Baleeiro FRASES “(...) Toda lei exige interpretação e adaptação aos fatos. Não podemos metê-los num leito de Procusto, para acomodá-los à lei. A norma é que, em cada caso, há de afeiçoar-se à realidade da vida, e é por isso que se atribui ao Juiz a missão de legislador do caso concreto.” (RE n. 38.644/MG) “(...) não é possível psicanalizar o locador comerciante que alega necessitar do prédio para seu uso (...)” (RE n. 47.476/CE) “(...) a recorrente pretende locupletamento indébito, com jactura da recorrida — o que é repugnante ao Direito em todos os tempos e sob todos os céus.” (RE n. 52.376/GB) “Só por espírito de formalismo e, às vezes, por gula de custas, são expedidas precatórias para avaliação de ações noutros Estados, pois ninguém ignora que, em se tratando de sociedades anônimas abertas e com cotação em Bolsa de Valores, o valor delas se estabelece por uma simples certidão a ser apreciada pelo juiz do inventário.” (RE n. 58.356/GB) “(...) vivacidade condenável da linguagem dos Recorrentes (...)” (RE n. 62.264/GO) “A causa é interessante e nos proporciona um festival de eloqüência forense gaúcha.” (RE n. 64.463/RS) “(...) apesar de os acórdãos terem sido redigidos à mão —, e não gosto de ler julgados à mão, na época em que se vai à lua —, eu os li (...) Li a petição do advogado, que é uma maravilha, não direi de sofisma, mas de paralogismo, para justificar a chamada contradição. (...) De modo que, após uma meditação longa do caso e após a leitura que fiz, com muito prazer, dos votos dos eminentes Colegas, e daquela que não fiz com tanto prazer, porque manuscritas, das peças dos magistrados de Minas Gerais, mantenho o meu voto (...)” (RE n. 62.410/MG) “Como dizia a Constituição argentina: em relação aos atos que a lei não proíbe, o cidadão só deve contas a Deus.” (RE n. 63.216/SP) “(...) quanto maior o peso sobre o réu, tanto mais larga se lhe deve assegurar a defesa garantida pela Constituição.” (RE n. 63.223/SP) “A pecha de inconstitucionalidade não pode ser irrogada em termos indefinidos e vagos.” (RE n. 63.357/PA) Em processo em que se discutia a concessão de adicionais, contando, além do serviço efetivamente prestado ao Estado do Rio de Janeiro, também o mesmo período de tempo paralelo em que os recorridos serviram como membros do Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil, o Ministro Baleeiro afirmou: 193 Memória Jurisprudencial “Prefiro errar em favor dos contribuintes. Não há dúvida, ponho o erro em favor dos contribuintes e do Povo do Estado do Rio.” (RE n. 63.831/RJ) “Sinceridade é matéria de fato, que não pode ser reapreciada no recurso extraordinário, se a Justiça local a deu como provada.” (RE n. 64.255/GB). No mesmo sentido: RE n. 64.820/GB e RE n. 70.438/GB. “É segredo de Polichinelo que a inflação entre 1965 e 1966 se agravou em mais de 30%.” (RE n. 66.090/GB) “Se gerações de juízes pensaram assim, eu é que devo estar errado.” (RE n. 68.483/GB) “Parece que há um equívoco, mas, se por acaso aconteceu, eu estava errado. Não foi a primeira vez que errei e afirmo a V. Exa. que, se tiver vida e saúde, continuarei errando de longe em longe, porque não tenho o dom da infalibilidade.” (ERE n. 69.304/MG) “De mim, sempre aderi à corrente de pensamento que, com C. Maximiliano, Orozimbo e outros de prol, entenderam que, desde 1891, por força dos chamados ‘poderes implícitos e resultantes’, era lícito à União isentar e reduzir impostos estaduais e municipais como medida de regulação e meios para os fins cometidos pela Constituição ao Governo Federal. Quando a Constituição quer os fins, dá implicitamente os meios. E os registros de comércio são assuntos ou fins entregues pela União à competência federal.” (RE n. 65.898/SP, RE n. 65.986/SP, RE n. 66.007/SP e RE n. 66.334/SP) “O legislador, em geral, emprega a palavra no sentido técnico, mas não na Constituição. Na Constituição permite-se que as palavras sejam usadas numa acepção mais vulgar. Mas, em regra, as palavras do legislador são aquelas que, no conjunto da lei, tenham sempre o mesmo sentido.” (RE n. 71.267/DF) “A Constituição que não se transforma, que não se adapta às circunstâncias e às necessidades da vida, será cortada por alguém.” (RE n. 72.021/CE) “Não tenho dúvida de que a lei que corrige outra é lei nova, que dispõe para o futuro (...)” (RE n. 74.733/MG) “(...) Dou apreço enorme à liberdade de manifestação de pensamento e acredito que ela deve ter, por parte do Supremo Tribunal Federal, interpretação cada vez mais larga, a exemplo da interpretação que a Corte Suprema dos Estados Unidos deu sempre à Emenda n. 1, aliás muito menos explícita do que a nossa Constituição. (...)” (RE n. 75.329/GB) 194 Ministro Aliomar Baleeiro “Não há posição mais contrária à letra de lei do que aquela que viola frontalmente a Constituição, aceitando a vigência de texto reconhecido inconstitucional por esta Corte.” (RE n. 77.047/MG) “Houve, pois, pruridos legislativos do direito do pessoal para corrigir lacunas e vaguezas do sôfrego legislador por Decretos-leis não meditados.” (RE n. 78.890/SP) “(...) pé de galinha não mata pinto.” (RE n. 79.294/SP) “O meu individualismo não é tão grande que não possa subordiná-lo à opinião da maioria, embora haja alguns pontos em que não possa fazê-lo (...)” (Representação n. 657/RN) “(...) Em Direito, toca ao pleonasmo falar-se em exceção taxativa. Todas são. Logo, não podem ser dilatadas além do que está expresso. (...)” (Representação n. 902/SP) “(...) Todas as classificações que tenho visto, feitas por luminares da ciência, são arbitrárias, aproximativas, e têm fronteiras de confusão.” (Representação n. 751/GB) “Li, como regra de Hermenêutica, que, quando o texto é incongruente, não se deve admitir erro na Constituição ou na lei, como não se deve admitir erro da Rainha da Inglaterra. (...)” (Representação n. 861/MG) “Acho que essa função política do Supremo Tribunal Federal [resolver conflitos] é mais importante do que todas as demais.” (Representação n. 718/RN) O Supremo como “Terceira Câmara do Congresso”. (RMS n. 17.443/MG) “É preciso dar um pouco de alma à Constituição e tirar dela todas as conseqüências que estão implícitas.” (RMS n. 18.129/RS) 195 Ministro Aliomar Baleeiro REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes de. Competências na Constituição de 1988. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2000. ALVES, José Carlos Moreira. “Homenagem ao Exmo. Sr. Ministro Aliomar Baleeiro” in Diário da Justiça de 30 de maio de 1975. 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Os serviços de água e esgotos pertencem ao município. 2) Não é inconstitucional lei que autorize o Estado, em convênio com o município, a organizar o abastecimento de águas da cidade. 3) Representação julgada improcedente. VOTO O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Sr. Presidente, é preciso, como preliminar, aceitar o fato de que o Município de Salvador — bem merece a ponderação do brilhante advogado, meu conterrâneo, da tribuna — é um município diferente. Não apenas porque foi o primeiro município brasileiro, fundado para capital, mas por ter sido fundado para capital é que é um município diferente, que nunca pôde ter sua autonomia completa. Quando de sua criação, Tomé de Souza trouxe uma carta de foral em que era o município profundamente limitado porque, como capital da colônia, deveria dar assistência a todas as outras capitanias, por ser o núcleo mais forte. O caráter do Município de Salvador não era o mesmo de todos os outros municípios de todo o Brasil. Aliás, quer-me parecer que essa noção muito ampla de autonomia municipal é um tanto anacrônica, embora eu já tenha sido um apaixonado dela em outros tempos de minha vida. O Sr. Ministro Carlos Medeiros: Data venia, temos de defendê-la porque está na Constituição. Somos o órgão dessa defesa. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: A maneira de expor o meu pensamento é tão pessoal e minha que, embora agradecendo a colaboração inestimável do eminente colega, peço vênia para continuar assim mesmo. O município português tinha um feitio próprio, de tradição romana, e, se não me falha a memória, o nosso eminente antecessor, o sábio Ministro Castro Nunes, teceu na sua obra sobre o “Estado Federado”, o contraste com o município anglo-saxônico, transplantado para os Estados Unidos, que dele não se ocupa na Constituição porque o considera uma verdadeira instrumentalidade do Estado. Mas a verdade é que a história do município brasileiro fez com que, a princípio, crescesse muito, porque, ao invés de ser um pequeno povoado, como os de Portugal, passou a ser um núcleo de uma área imensa. E, no nosso Estado, o nobre advogado sabe que há municípios de vinte mil quilômetros quadrados, maiores do que o Estado de Israel. 201 Memória Jurisprudencial Porém, com o tempo, isso mudou. Depois do Ato Adicional e da Lei de Interpretação, foi o município esmagado pela província. Na Constituição de 1891, no art. 68, reduziu-se àquela coisa diluída, difusa, um tanto disforme, de “peculiar autonomia, quanto ao seu peculiar interesse”, cláusula que está aí, igual aos arts. 28 e 29 da Carta de 1946. O Sr. Ministro Carlos Medeiros: Data venia, a Constituição de 1934 foi positiva: discriminou a competência tributária. V. Exa. sabe disso melhor do que eu. E a Constituição de 1946 instituiu a discriminação do art. 29, da forma precisa. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Eu não queria tomar o tempo da Egrégia Corte. O município teve sempre autonomia financeira, nessa fase da colônia. Eclipsou-se sob a Constituição de 1824. Voltou a ter receitas próprias, independente de outorga do Estado, a partir da Constituição de 1934. Havia duas competências tributárias em Portugal e, portanto, no BrasilColônia e da Coroa, ou do Rei, que era mais dominial: as terras do rei, as propriedades do rei, o direito ao dízimo do peixe, tanto do gado, tanto da vinha e outras coisas mais. É a competência tributária das prefeituras, que deu até, no meu entender, origem a alguns dos tributos até hoje existentes no Brasil: as sisas avoengas, antecedentes do imposto de vendas. Existiam as sisas comuns e as sisas dos bens de raiz, isto é o nosso imposto de transmissão inter vivos. Porque a verdade é que, desde a República, ou melhor, desde o Ato Adicional, desde a Lei de Interpretação, os municípios definhavam, estagnavam. Desde que veio a República, não tiveram competência tributária própria, em 1891. Foi só em 1934 que voltaram a ter alguns impostos. Em 1946, houve um movimento de reivindicação municipal do qual devem ter clara memória os Ministros Hermes Lima e Prado Kelly, movimento a que o Professor Orlando Carvalho chamou “Revolução Municipalista de 1946”. Mas a verdade é que o nosso município tem apenas aquela competência limitada que está na Constituição de 1891, “autonomia em relação ao seu peculiar interesse”. Esse “peculiar interesse” é indefinível e cada lei orgânica o estende para mais ou para menos. Em regra, o mais forte, o Estado, leva sempre vantagem... As leis orgânicas cortam e recortam, sempre restringem essa autonomia em vários pontos, inclusive a Lei Orgânica do Estado da Bahia, com as limitações à capacidade de tributar, determina os estipêndios máxime em certos campos, etc. De modo que, para mim, a cláusula de peculiar interesse deve ser compreendida em conexão (ela está no art. 28 da Constituição) com a letra b desse mesmo 202 Ministro Aliomar Baleeiro art. 28, isto é, o “peculiar interesse” municipal quanto “à organização dos seus serviços públicos locais”. Está na Constituição. É exatamente essa a expressão. Ora, precisaremos saber se esse serviço de águas da Bahia é um serviço estritamente local, e, como tal, circunscrito ao “peculiar interesse” da Cidade de Salvador. Tenho minhas dúvidas quanto ao fato. Há mais de cem anos, o Conselho Municipal de Salvador fez uma concessão a uma companhia particular de águas, a de Queimado, para manter o serviço de encanamento de águas e outros tantos chafarizes. A Companhia de Queimado foi a primeira que estendeu tubos de água na Bahia. Veio o Imperador à Bahia inaugurá-los e existia, ainda há pouco tempo, na represa de Queimado, uma placa comemorativa. O nobre advogado sabe disso e não há baiano que não o saiba. Ora, essa companhia foi declinando até que o município assumiu o controle dos serviços de água. No primeiro terço deste século, a água da Bahia chegou a uma situação de carência, de escassez, de completa anarquia dos serviços. O eminente Ministro Hermes Lima colaborou, se não me engano, no governo Góis Calmon, que, vendo o estado catastrófico em que estava o serviço de águas na Bahia — água que dantes ia a sobrados de cinco pisos e que, naquela época, não ia sequer ao térreo —, contratou com o escritório técnico Saturnino de Brito um plano de modernização do serviço, dado que as instalações feitas no município pela Companhia de Queimado datavam do outro século. Em 1901 até 1905, do plano de melhoria foi encarregado o sábio Teodoro Sampaio, grande geólogo, etnólogo, cartólogo, entendido em línguas tupis-guaranis, etc. O Governador Góis Calmon começou essas obras, e o sucessor dele, Vital Soares, as prosseguiu. O município deu-se por satisfeito, porque estava na pior situação financeira. Até uma época muito recente, o Município de Salvador tinha apenas uma relativa autonomia. Não elegia o seu prefeito, que era nomeado pelo governador. Essas obras já estavam em curso e adiantadas quando veio a Revolução de 1930. Depois, a crise econômica devastadora dos anos trinta. O Governador Juraci Magalhães atacou a parte final das obras e pôde inaugurar a represa de Ipitanga, dentro de Salvador. Porém, o plano Saturnino de Brito era para 25 anos, porque se sabia que, com o crescimento vegetativo da população, aquela rede nova não serviria para a população no ano de 1955. Foram feitas novas represas e abandonadas aquelas que vinham do tempo da Companhia de Queimado. 203 Memória Jurisprudencial Passaram-se os 25 anos e não foram tomadas providências para continuar a ampliação da rede de águas, já ameaçada de entrar em colapso, novamente, aos quatro ou cinco anos, quando o Estado passou a atacar a etapa atual. Foi-se buscar água no Rio Joanes, que não fica mais dentro do Município de Salvador. Vem, então, o novo aspecto do problema, o qual não escapou à perspicácia do eminente Relator. Não é um assunto de interesse local, privativo do Município de Salvador, mas do interesse de todos os municípios do Recôncavo Baiano. Os eminentes Ministros têm todos na memória o golfo que nós chamamos o Recôncavo Baiano, onde estão localizados vários municípios. É claro que não se pretende, penso eu, atender a todos os municípios desse Golfo Baiano, mas apenas aos mais vizinhos de Salvador, entre os quais Mata de São João, Pojuca e outros que estão sendo criados, como Candeias, perto do Município de Salvador. Há necessidade de buscar água em outros municípios, que não o de Salvador. O problema, portanto, não é do “peculiar interesse” de Salvador, mas um problema de direito intermunicipal, interlocal, que compete ao Estado resolver pelo mesmo princípio de paralelismo que à União compete resolver os problemas de interesse interestaduais. É o mesmo caso que se dá com a cidade do Rio de Janeiro, capital do Estado da Guanabara, que já não tem condições de buscar água dentro do seu território; há necessidade de trazê-la de Barra Mansa, em outro Estado, o que está prejudicando os interesses locais deste último município. O fato não é raro no Brasil. Quando um município cresce, tem de recorrer às fontes dos municípios vizinhos. É o mesmo caso, que já foi várias vezes lembrado nesta Casa, do problema de águas da região do Colorado, em choque com a Califórnia e o Arizona, que deu lugar a uma das mais complicadas, demoradas e tremendas questões nos Estados Unidos, com processos que têm toneladas de papel. De modo que, para mim, em primeiro lugar, não há um “interesse peculiar” do Município de Salvador. Há um interesse estadual, porque congrega também interesses que tocam a autonomia de 3, 4 ou 5 outros municípios baianos. Em segundo lugar, não quero me deter na questão da possibilidade de o ProcuradorGeral da República dar parecer pela procedência. Ele cometeria até uma falta contra a sua consciência, se não sustentasse ponto de vista senão aquele que sua convicção havia gerado. Ele não pode retirar a representação, mas pode manifestar-se contra ela. Enfim, não é um “interesse peculiar” do Estado. A meu ver, há uma situação complexa de direito, com raízes no Direito Administrativo, porque houve, realmente, uma cessão, talvez até algo semelhante à concessão, um contrato do município com o Estado, classificável no Direito Administrativo. O Estado investiu ali tudo quanto hoje representa valor no serviço de águas. Do que o município 204 Ministro Aliomar Baleeiro possuía, em 1924, não há mais nada. Os tubos são novos, as represas são novas, as adutoras são novas, os edifícios-sede da administração são novos. A meu ver, não poderíamos, numa ação que está limitada, como essa, a uma questão de Direito Constitucional, entrar na massa de fatos deste caso. Teríamos aí problemas de ordem administrativa, contratual ou semi-contratual de toda a espécie, para os quais o processo declaratório e sumaríssimo da representação não é o adequado. Por essas razões, considero improcedente a representação. REPRESENTAÇÃO 861 — MG Argüição de inconstitucionalidade de preceitos da Constituição do Estado de Minas Gerais (Emenda Constitucional n. 1, de 1°-10-70). Julgada procedente em parte, declarando-se inconstitucionais os seguintes dispositivos: a) alínea a do art. 103, parágrafo único; b) parágrafo único do art. 104; c) art. 218; d) art. 221; e) parágrafo único do art. 227; f) art. 228. VOTO O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Presidente): Tenho voto, e peço licença para fundamentá-lo, porque este é assunto que me vem preocupando há vinte anos ou mais, desde a Constituição de 46. Por acaso, fui eu quem apresentou a redação do art. 141, § 34, que acabou prevalecendo, porque tive o apoio, entre outros, do Sr. Nereu Ramos, que era Líder da Assembléia, e também do Sr. Souza Costa, o qual lembrou que, no regime anterior, o art. 27 do Código de Contabilidade já dizia que os impostos criados em lei deviam ser condicionados a uma autorização orçamentária. Esse princípio, antes de expresso no art. 27 do Código de Contabilidade, figurava em quase todos os tratadistas brasileiros que se ocupavam do assunto: Senador Castro Carreira, na História Financeira e Orçamentária do Brasil; Agenor de Roure, no Orçamento Brasileiro; Ruy Barbosa, em mais de uma oportunidade; Carlos Maximiliano, nos Comentários à CF de 1891, e outros mais. A tese do Ministro e Professor de Direito Financeiro Bilac Pinto é que, se a Constituição estabeleceu uma forma diferente da consagrada no art. 141, § 34, da CF de 1946, exigindo apenas que o imposto seja decretado antes do início do exercício (o que, no direito positivo atual brasileiro, é 1º de janeiro), não poderia o 205 Memória Jurisprudencial Estado de Minas Gerais autolimitar-se mais, e então restabelecer a regra de 1946, art. 141, que aliás foi reproduzida ipsis literis na Constituição de 67, art. 150, § 29, depois que a mutilou a Emenda n. 18, de 1965. O Ministro Bilac Pinto sabe o apreço que tenho pelas suas opiniões, principalmente aquelas no campo tributário, mas em geral temos divergido aqui no Supremo, com muita tristeza para mim, pois o fato de estarmos em divergência me põe em dúvida a respeito da segurança da minha opinião. O Sr. Ministro Luiz Gallotti: V. Exa. permite? A Súmula 66 diz: “É legítima a cobrança do tributo que houver sido aumentado após o orçamento, mas antes do início do respectivo exercício financeiro.” Isso mostra que a Constituição de 1969 o que fez foi consagrar o entendimento do Supremo Tribunal. Então o Supremo firma um entendimento antes da Constituição de 1969: quando esta Constituição o consagra, o Supremo abandona o seu entendimento? O Sr. Ministro Oswaldo Trigueiro (Relator): Não, estamos reconhecendo a compatibilidade da Constituição estadual com o princípio federal. O Sr. Ministro Luiz Gallotti: O Estado pode alterar um princípio constitucional da União? Temos que olhar o direito do Estado, não só o dos indivíduos. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Presidente): Vamos aos argumentos. O assunto é tão grave, tão importante na história do País, que não é demais pensarmos demoradamente nisso. O Sr. Ministro Eloy da Rocha: A lei orçamentária, pela Constituição Federal, deverá ser votada até trinta dias antes do encerramento do exercício financeiro. Pela Constituição de Minas Gerais, não será possível, no mês de dezembro, editar lei que institua ou aumente tributo. O Sr. Ministro Oswaldo Trigueiro (Relator): É possível. Apenas não é possível a cobrança no exercício imediato. O Sr. Ministro Eloy da Rocha: Pela Constituição Federal, será possível, para efeito de cobrança ainda no exercício imediato. Pela Constituição estadual, não. Essa restrição, em matéria tributária, não existe na Constituição Federal. O Sr. Ministro Oswaldo Trigueiro (Relator): Não há restrição federal ao poder do Estado nesse particular. O Sr. Ministro Bilac Pinto: Sr. Presidente, gostaria também de aduzir algumas considerações. 206 Ministro Aliomar Baleeiro Compreendo o ponto de vista de V. Exa. e sei que uma construção doutrinária, que não é só brasileira, é de quase todos os países que têm um regime orçamentário, sempre foi no sentido da necessidade da inclusão da lei criadora de um tributo na sua votação anterior e até da sua inclusão no Orçamento. Como decorrência desse princípio, surgiu a teoria de que a lei criadora do tributo era uma lei imperfeita. Ela podia existir, mas não ser posta em execução em cada exercício se não entrasse no Orçamento. Não há dúvida nenhuma de que, do ponto de vista do constituinte, era uma segurança muito maior a exigência da inclusão no Orçamento, em cada exercício, da norma fiscal criadora do tributo. Nesse passo, acho que a crítica de V. Exa. à norma da Emenda Constitucional n. 1 está correta do ponto de vista doutrinário. Quer dizer, esse sistema é superior àquele que foi incluído na Constituição. Mas estamos diante de uma Constituição que mudou o regime. O princípio da anualidade ficou inteiramente abalado, porque a lei fiscal passou a independer de ser incluída no Orçamento, de ser mencionada no Orçamento. E é dentro desse sistema que raciocino que a Constituição mineira, realmente, é inconstitucional, porque não conforme ao modelo federal. O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Ainda uma observação, Sr. Presidente. A Súmula 66, que li, está apoiada em acórdãos anteriores à Constituição de 1969. O eminente Ministro Eloy da Rocha mostrou que o que a Constituição de 1969 fez foi consagrar esse entendimento do Supremo Tribunal Federal. O Sr. Ministro Oswaldo Trigueiro (Relator): Em Minas, prevalece esse princípio. Lá não se pode cobrar imposto que não tenha sido incluído na previsão orçamentária. O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Desde que não se tenha incluído no Orçamento, não permite a cobrança. É o contrário do que diz a Súmula, reproduzida pela Constituição de 1969. Essa Constituição, no art. 200, manda que as disposições constantes dela sejam incorporadas, no que couber, ao Direito Constitucional legislado dos Estados. O eminente Ministro Eloy da Rocha mostrou que a Constituição de 1969 mudou a de 1967 para consagrar a Súmula 66 do Supremo Tribunal. O Sr. Ministro Thompson Flores: Mudou a redação. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: O eminente Ministro Thompson Flores tocou no ponto exato. 207 Memória Jurisprudencial Sr. Ministro Luiz Gallotti, vamos discutir o argumento de V. Exa., em todas as suas conseqüências lógicas. O que V. Exa. diz é que o Supremo Tribunal Federal se arrisca a maltratar a Constituição Federal, depois que ela adotou uma interpretação consagrada na sua Súmula 66. Esta Súmula, se me não engano, foi calcada em acórdãos proferidos somente no regime da Constituição de 1946. Aquela Constituição, expressamente, dizia, no seu art. 141, § 34: “Nenhum tributo será exigido ou aumentado sem que a lei o estabeleça; nenhum será cobrado em cada exercício sem prévia autorização orçamentária, ressalvada, porém, a tarifa aduaneira e o imposto lançado por motivo de guerra.” A redação mudou, mas a essência é a mesma, seguindo a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que, naquele regime consolidou a Súmula 66, que, data venia, não me parece compatível com o dispositivo de 1946, que li. Se V. Exa. acha que a Súmula 66 interpretou fielmente a Constituição, então não mudou, ficou na mesma: é o art. 141, § 34, tal como o entendera o Supremo quando admitiu a cobrança de tributo posterior ao orçamento, desde que antes do início do exercício. O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Então vamos abandonar a Súmula, depois que a Constituição de 1969 a consagrou? O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: A Súmula pode ser mudada a qualquer momento, por proposta de quatro Ministros. O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Mas isso não foi feito. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Com todo respeito à geração de Ministros que me precederam neste Tribunal — e V. Exa. sabe a veneração que tenho por todos eles e como venho procurando zelar pela sua glória, determinando várias medidas administrativas para perpetuar sua memória e a contribuição que deram ao progresso do Direito brasileiro — e com todo respeito pessoal a V. Exa., a quem já fiz a justiça de dizer que tem sido um dos poucos Ministros que têm dado maior apreço ao Direito Tributário, nos seus vinte e três anos gloriosos nesta Casa, data venia, a Súmula 66 é uma traição à letra e ao espírito da Constituição de 1946. Perpetuar então um aleijão... O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Aquilo que ela diz que o Estado pode fazer, estamos dizendo que não pode. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Vamos raciocinar um pouco, porque há um outro problema: talvez eu não possa aceitar in totum o voto do Ministro Oswaldo Trigueiro. Estava iniciando meu voto dizendo que, desde o art. 27 do Código de Contabilidade, e até antes dele, na opinião de vários mestres, como Rui 208 Ministro Aliomar Baleeiro Barbosa, Castro Carreira, Aureliano Leal, Agenor de Roure, Carlos Maximiliano, era tranqüilo que o imposto deveria ter prévia autorização no Orçamento. Rui é típico: sem autorização orçamentária, não se pode cobrar tributo. É um princípio que parte de um ponto lógico, racional, histórico — o contribuinte, pelo seu representante, dá seu imposto ao Governo, em função de um fim que o Governo lhe propõe. O Poder Executivo propõe ao Legislativo, em bloco, um complexo de serviços públicos, um plano de trabalho para um ano. O Presidente da República manda a mensagem orçamentária ao Congresso, neste ou em qualquer país realmente democrático, propondo, em conjunto, todo um plano de trabalho para o ano imediato e diz: para realizar esses serviços públicos, com tais objetivos e metas, preciso da quantia de tanto, a ser retirada do povo brasileiro, pelos seguintes tributos, nas seguintes bases... Se os representantes do povo brasileiro concordam com o plano do Governo e lhe dão aprovação, eles concedem as receitas. Não concedem em branco, como um cheque, apenas assinado. Eles concedem, em limites definidos para um fim específico, aquela receita que consta de um plano chamado orçamento. É por isso que Jèze, citado ainda há pouco pelo eminente Ministro Bilac Pinto, começa seu livro sobre orçamento dizendo: “O orçamento é um plano do Governo”. No direito atual, o orçamento não é apenas aquele escudo em defesa do contribuinte, não é algema que se punha nos reis para não gastarem na dissipação e nas guerras dinásticas. É um plano do governo, ao qual o Parlamento dá a sua autorização. Diz-se mesmo: se o Parlamento recusar a aprovação, estamos na revolução. Isso foi trasladado para o Direito brasileiro. Em 1946, foi o que se votou, aos socos do Sr. Nereu Ramos na mesa, e com o apoio do Sr. Souza Costa, que era mais moderado. “Quero, dizia o Sr. Nereu Ramos, batendo a mão na mesa, quero que o orçamento condicione a cobrança dos impostos decretados em leis anteriores a ele.” E ele representava o pensamento da maioria, nessa matéria, com o apoio da oposição. Todos esses debates na Constituinte foram resumidos no livro do Desembargador José Duarte sobre a Constituição de 1946. O Supremo Tribunal Federal, sem quebra daquele respeito a que já me referi, cometeu um erro grave, interpretando mal a Constituição, para convalidar ato do Governo, que criou o imposto entre o dia 1º e o último dia de dezembro, já depois de aprovado o orçamento. O Sr. Ministro Luiz Gallotti: V. Exa. sabe que resisti muito a isso. Mas agora estamos em face de um preceito constitucional que repetiu as palavras da Súmula. 209 Memória Jurisprudencial O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Presidente): Data venia, a Súmula não traz documento de préstimo. O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Se o Supremo Tribunal teve esse entendimento antes de a Constituição consagrá-lo, vai abandoná-lo agora, quando a Constituição o consagrou? O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Presidente): Estamos aqui para melhorar a Constituição. O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Para melhorar a Constituição, não. Então, V. Exa. está mostrando que quer alterar a Constituição. Mas nós não temos poderes para isso. Se pudesse, alteraria. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Presidente): Srs. Ministros, o Supremo Tribunal Federal, data venia, errou. Defendi sempre o ponto de vista de que devemos ser os primeiros a desejar uma crítica às decisões do Supremo Tribunal Federal. Se há uma coisa em que falhamos é não termos provocado, dos juristas, das universidades, das Ordens de Advogados e dos cidadãos, uma crítica permanente às nossas opiniões e aos nossos trabalhos. O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Mas crítica é tardia, vem depois que a opinião do Supremo Tribunal Federal foi adotada pela Constituição. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Presidente): Se a Constituição copiou o Supremo Tribunal Federal numa de suas orientações infelizes, nunca seria demais que se corrigisse a interpretação duvidosa. O Sr. Ministro Luiz Gallotti: V. Exa. está corrigindo a Constituição? O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Presidente): Não estou corrigindo. Estou interpretando a Constituição. Sr. Ministro Luiz Gallotti, não apenas V. Exa., mas vários Ministros deram a boa interpretação, contra o voto do sábio mestre Hahnemann Guimarães, que foi quem começou essa corrente aqui. Posso afirmar que há 5 ou 7 julgados, de 1961 e 1962, que deram uma boa interpretação. Lembro-me desse fato por um motivo: estando eu ainda no Rio de Janeiro e já a capital em Brasília, escrevi uma carta ao Ministro Ari Franco, de quem era amigo e colega na Faculdade da Universidade da Guanabara, mostrando meu interesse no assunto e dizendo que não tinham sido divulgados esses acórdãos. S. Exa. enviou-me as cópias das notas taquigráficas e até hoje ainda as arquivo. O ponto que se discute aqui jaz em que, se há essa garantia da Constituição, que não é apenas do indivíduo, é bom que se garanta a todos contra surpresas dos legisladores. 210 Ministro Aliomar Baleeiro Cada contribuinte faz um plano para um ano, mas pode ser surpreendido e ter um prejuízo que seria sua ruína, com impostos não previstos no orçamento. Por outro lado, a coletividade quer conceder os tributos em função dessa despesa global correspondente a específicos serviços públicos programados para o ano imediato. É uma garantia do regime, contra uma administração aujour le jour. Se a Constituição diz que nosso regime é democrático, se diz que este País é uma República Federativa, se diz que, além daqueles direitos e garantias expressos, são ainda admitidos, ainda, outros direitos e garantias de acordo com o sistema e os princípios que a Constituição adota, art. 153, último parágrafo, não há dúvida de que a regra boa é a da anualidade dos impostos. Este dispositivo — art. 153, § 29 — data venia dos eminentes constitucionalistas do Governo Militar de setembro de 1969, é um disparate. Acredito que não tenham culpa disso os signatários da Emenda 1, de 1969, porque não são juristas. Algum leguleio remendou os textos do Professor Pedro Aleixo e reduziu-os a isso que está aí. Se lermos este artigo em sã consciência, não vamos saber quais os outros casos em que a Constituição autoriza a cobrar tributos depois de 31 de janeiro. Parece que o autor que escreveu este artigo confundiu tributo com preço. O artigo, continuo a repetir com todo o respeito, é um enigma, a menos que se busque interpretação tal que ele alcance sentido lógico, e é o que estou tentando agora. Li, como regra de Hermenêutica, que, quando o texto é incongruente, não se deve admitir erro na Constituição ou na lei, como não se deve admitir erro da Rainha da Inglaterra. Devemos procurar-lhe interpretação que tenha lógica. E lógica é a tese, que temos aqui, do Ministro Oswaldo Trigueiro contraditada pelo Ministro Bilac Pinto: a Constituição estadual pode dar mais segurança, mais energia, mais amplitude a uma garantia da Constituição Federal. O que não pode é excluí-la, fazendo o inverso, isto é, restringindo a garantia individual e ampliando o arbítrio do Fisco. Minas Gerais não poderá dizer, por exemplo, que o imposto criado antes do dia 1º de janeiro pode ser cobrado no mesmo exercício, porque isso contraria fundamentalmente princípio básico — não apenas o que está escrito na Constituição, mas o porquê da Constituição, enfim na ratio juris. Minas fez o contrário, como acentuou o Ministro Oswaldo Trigueiro: deu mais ênfase. Era um direito do Estado de Minas Gerais fazer isso com o que é dele. Aquela Constituição é do Estado, representa a vontade do povo mineiro. 211 Memória Jurisprudencial Num momento de inspiração solene, de inspiração jurídica, Minas tem o direito de não querer adotar sistema ditatorial no seu sistema financeiro, e, de acordo com sua gloriosa tradição, e podia fazê-lo, mas não podia fazer o inverso, permitindo a cobrança editada depois de 1º de janeiro, porque isso feria de frente a Constituição Federal. Que o Estado de Minas Gerais não podia fazer isso não há a menor dúvida, e, quanto a isso, estou com o Ministro Oswaldo Trigueiro. Minha divergência com V. Exa., Sr. Ministro Oswaldo Trigueiro, é a seguinte: o Estado pode restabelecer a autorização orçamentária prévia a tributos estaduais, mas não sei se poderia restabelecê-la para os tributos municipais. O Sr. Ministro Oswaldo Trigueiro (Relator): Essa é outra questão. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Presidente): Mas a regra Mineira é genérica para Estados e municípios. O Sr. Ministro Djaci Falcão: “É vedado aos Estados e Municípios...” O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Presidente): Nos Estados Unidos, poderia, porque, lá, o município não é pessoa jurídica, nascida da Constituição, mas apenas sub-ramos das Constituições estaduais, subprodutos destas. O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Melhor será ficarmos com a Súmula, depois que a Constituição de 1969 a consagrou. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Presidente): O município, no Brasil, é pessoa de Direito Público e tem autonomia para cobrar seus impostos. E o Estado não lhe pode tirar nada disso. Há uma Súmula do Supremo que diz que Minas não poderia limitar a majoração dos impostos municipais ao máximo de 20% em cada exercício, porque estaria violando a competência que a Constituição dava expressamente ao município e que era a essência da autonomia municipal. Acompanho, por isso, o voto do eminente Ministro Oswaldo Trigueiro, data venia dos demais Srs. Juízes que pensam de modo contrário, na parte relativa aos Estados, mas, por enquanto, não o faço em relação aos municípios. Os Estados não podem limitar a autonomia tributária dos municípios. Se os municípios quiserem, poderão admitir esse princípio. Mas nem a Lei Estadual Orgânica dos Municípios poderia fazê-lo, parece-me. Esse é o meu voto. 212 Ministro Aliomar Baleeiro REPRESENTAÇÃO 864 — GB Relator: O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro Relator para o acórdão: O Sr. Ministro Thompson Flores Representante: Procurador-Geral da República — Representada: Assembléia Legislativa do Estado da Guanabara Declaração de inconstitucionalidade do § 6º, parcialmente, do art. 42 da Constituição da Guanabara, com a redação da Emenda n. 4, de 30-10-1969. II - Posse do Governador e do Vice-Governador. Atribuindo-se ao TRE, quando reunida não estiver a Assembléia Legislativa, parte do parágrafo 6º do art. 42, citado, completo com o art. 8º, XVII, b, da Constituição Federal, e destoa do seu símile, art. 76. III - Representação julgada procedente. Votos vencidos. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em Sessão Plenária, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por maioria de votos, julgar procedente a Representação. Brasília, 11 de abril de 1973 — Eloy da Rocha, Presidente — Thompson Flores, Relator p/ o acórdão. RELATÓRIO O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: O eminente Ministro Xavier de Albuquerque, na qualidade de Procurador-Geral da República, acolhendo representação do Procurador Regional Eleitoral, Dr. Nuno Santos Neves, encaminhou-a ao Supremo Tribunal Federal, a fim de ser declarada a inconstitucionalidade do art. 42, § 6º, da Constituição da Guanabara. Argumenta S. Exa.: “O dispositivo impugnado tem a seguinte redação: ‘§ 6º O Governador e o Vice-Governador tomarão posse perante a Assembléia Legislativa ou, se esta não estiver reunida, perante o Tribunal Regional Eleitoral, prestando o seguinte compromisso: (...).’ 213 Memória Jurisprudencial Dando à Assembléia Legislativa a atribuição de receber o compromisso de posse do Governador e do Vice-Governador, a norma estadual transferiu a incumbência ao Tribunal Regional Eleitoral, no caso de recesso parlamentar. Acontece, porém, que o Tribunal Regional Eleitoral é órgão do Poder Judiciário federal, de atribuições constitucionalmente delimitadas e de competência especial estabelecida nos termos da lei, conforme rezam o art. 137 e seus incisos da Constituição. Logo, se nem no elenco constitucional daquelas atribuições, nem na competência estabelecida pela lei federal foi incluída a tomada de compromisso dos governantes eleitos, afigura-se inquestionável o vício constitucional de norma estadual que elastece a função do Tribunal Eleitoral, com lhe transferir a incumbência de dar posse aos mandatários do Estado, ainda que no impedimento da Assembléia Legislativa. Se indispensável a nomeação de um órgão para assumir o mister, na impossibilidade de o fazer a Assembléia Legislativa, haver-se-á de adotar solução semelhante à do modelo federal, do qual se vê que, no recesso do Congresso Nacional, a posse do Presidente e do Vice-Presidente da República se dá perante o Supremo Tribunal Federal (art. 76 da Constituição). Transposta a hipótese para o plano estadual, resulta ser o Tribunal de Justiça o órgão substituto da Assembléia Legislativa para dar posse aos mandatários estaduais, sem ensejo para a escolha a que recorreu a Constituição da Guanabara.” II - A augusta Assembléia Legislativa da Guanabara prestou informações por via de ofício do nobre Presidente Paschoal Cittadino, às fls. 31-33. Esclarece S. Exa: “Como esclarecimento preliminar, desejo salientar que a Emenda n. 4, de 30 de outubro de 1969, a qual alterou a Constituição do Estado da Guanabara, cujo dispositivo é atacado nesta Representação, foi promulgada pelo Exmo. Sr. Governador do Estado, em face do recesso em que se encontrava esta Assembléia Legislativa, imposto pelo Ato Complementar n. 47, de 7 de fevereiro de 1969. A posse do Governador eleito, perante o Tribunal Eleitoral, na Guanabara, foi tornada imperativo legal pela Lei 3.752, de 14 abril de 1960, também denominada ‘Lei Santiago Dantas’. Efetivamente, a segunda parte do art. 6º dessa Lei Federal ordenava, in verbis: ‘O Governador eleito assumirá o cargo perante o Tribunal Regional Eleitoral.’ (Documento n. 1). Dessa forma foi empossado o ex-Governador Carlos Lacerda, sem qualquer impedimento. 214 Ministro Aliomar Baleeiro Provavelmente, em decorrência daquele preceito legal, o qual deu conseqüência a um fato jurídico-eleitoral, a Assembléia Constituinte adotou o princípio, incorporado-o à Constituição promulgada em 27 de março de 1961, cujo § 3º, do art. 27, assim ficou redigido: ‘O Governador e o Vice-Governador tomarão posse perante a Assembléia Legislativa, ou, se esta não estiver reunida, perante o Tribunal Regional Eleitoral, prestando o seguinte compromisso: (...)’ (os grifos não estão no original). (Documento n. 2). Promulgada a Constituição do Brasil, de 1967, o seu art. 188 mandava os Estados adaptarem suas Constituições às suas normas. Obediente, a Assembléia Legislativa do Estado da Guanabara promulgou, em 13 de maio de 1967, a nova Constituição adaptada, mantendo, no entanto, a mesma redação e igual princípio da anterior, insertos, já agora, no § 6º, do art. 39 (documento n. 3). Sucederam os acontecimentos de 1968, culminados com a promulgação do Ato Institucional n. 5, de 13 de dezembro, cujo art. 2º possibilitava o decreto do recesso do Congresso, das Assembléias Legislativas e das Câmaras Municipais. Foi, então, decretado o recesso do Legislativo da Guanabara, pelo AC 47, de 1969. Durante o recesso, foi promulgada a Constituição da República Federativa do Brasil, com a Emenda n. 1, determinando o seu art. 200 que as suas disposições ficariam, no que coubesse, ‘incorporadas ao direito constitucional legislado dos Estados’. Em face do recesso imposto à Assembléia Legislativa, o Exmo. Governador do Estado promulgou a Emenda n. 4, de 30 de outubro de 1969, adaptando a Constituição estadual às normas da Constituição da República, mantendo, porém, a redação anterior no texto do § 6º, do art. 42, agora atacado nesta Representação. O respeito à norma antiga decorreu, com certeza, do entendimento de que não se tratava, in casu, de princípio constitucional obrigatório.” III - O parecer do eminente Procurador-Geral da República, Professor Moreira Alves, opina nos seguintes termos, às fls. 67/70: “A nosso ver, é inequívoca a inconstitucionalidade argüida. Com efeito, e em se tratando de Justiça Federal, determina a Emenda Constitucional n. 1, em seu artigo 137, que a competência dos juízes e dos Tribunais Eleitorais será estabelecida em Lei e, portanto, em Lei Federal, incluídas as atribuições expressamente consignadas no citado artigo. 215 Memória Jurisprudencial Ora, nem nas atribuições constitucionais, nem nas que lhe são deferidas pela lei federal vigente (a Lei 4.737/65, que instituiu o Código Eleitoral em vigor), dá-se à Justiça Eleitoral competência para dar posse a eleitos. Sua competência, quer em face da Constituição, quer do Código Eleitoral, se exaure com a diplomação. Assim, e não podendo a legislação estadual — ainda que se trate de Constituição do Estado — elastecer a competência de juízes ou Tribunais Eleitorais, manifesta-se patente a inconstitucionalidade dos termos impugnados na presente representação. No caso, como se salientou na inicial, à fl. 3 dos autos, ‘Se indispensável a nomeação de um órgão para assumir o mister, na impossibilidade de o fazer a Assembléia Legislativa, haver-se-á de adotar solução semelhante à do modelo federal, do qual se vê que, no recesso do Congresso Nacional, a posse do Presidente e do Vice-Presidente da República se dá perante o Supremo Tribunal Federal (art. 76 da Constituição). Transposta a hipótese para o plano estadual, resulta ser o Tribunal de Justiça o órgão substituto da Assembléia Legislativa para dar posse aos mandatários estaduais, sem ensejo para a escolha a que recorreu a Constituição da Guanabara.’ Por outro lado, a Lei Santiago Dantas não afasta o vício de inconstitucionalidade ora ressaltado. Dispunha ela, em seu artigo 6º: ‘A Assembléia Legislativa se instalará por convocação e sob a presidência do Presidente do Tribunal Regional Eleitoral, em local previamente designado nos dez dias que se seguirem à data da diplomação, e procederá à eleição da Mesa. O Governador eleito assumirá o cargo perante o Tribunal Regional Eleitoral.’ Como se vê de seus termos, são princípios excepcionais, aplicáveis, apenas, para disciplinar a transição do antigo Distrito Federal para Estado da Guanabara, na inexistência de Constituição estadual. Não são, portanto, princípios permanentes, mas, por essência, temporários. Aliás, ainda que assim não fosse, a legislação federal posterior, ao disciplinar exaustivamente a competência dos Juízes e Tribunais Eleitorais, e, ao determinar que ela se exaure com a diplomação dos eleitos, teria revogado aquela lei episódica.” É o relatório. 216 Ministro Aliomar Baleeiro VOTO O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): Doutra feita, já comentei a frondosa jurisprudência do Supremo Tribunal Federal em matéria de inconstitucionalidades. Parece que não exagero afirmando que, em nenhum país do mundo, um tribunal declarou inconstitucionalidades com a assiduidade e a pertinácia com que procede esta Corte excelsa. Certamente, o Supremo Tribunal Federal, nos últimos 25 anos, já decretou algumas vezes mais inconstitucionalidades do que a Corte Suprema dos EU em quase dois séculos de funcionamento. Se, em parte, como já ponderou o eminente Ministro Oswaldo Trigueiro, isso se explica pela rigidez e minúcia de nossa Constituição, que, em matéria de Emendas e substituições, só foi excedida pela da França, todavia o fenômeno representa o pior dos atestados passados à consciência jurídica do povo brasileiro. II - Para mim, uma Carta Política de Estado-Membro só viola a Constituição Federal quando, expressa ou implicitamente, desafia dispositivo desta última ou algum dos princípios cardeais do regime. Se pensarmos o contrário, melhor seria que o Congresso Nacional incumbisse o Ministério da Justiça, ou o do Interior, ou mesmo o Dasp, de redigir e imprimir uma Constituição-modelo, ou padrão, que os Deputados estaduais preencheriam com o nome do Estado, datariam e assina-riam. Na pior hipótese, poupar-se-ia o tempo por demais escasso da Procuradoria-Geral da República e o nosso. III - Não vejo ofensa grave da Constituição da Guanabara à Federal pelo fato de a primeira determinar que, se estiver em recesso a Assembléia, o Governador tome posse e preste juramento perante o Tribunal Regional Eleitoral, em grande parte composto de magistrados e juristas estaduais ou com jurisdição no Estado. Dir-se-á que o Estatuto Político de um Estado cometeu uma tarefa a um órgão da Justiça Federal. Este não se diminuiu por isso, mas, ao contrário, ficou prestigiado. Não se recusou a fazê-lo, desde a instalação daquele Estado. IV - Ou o Tribunal Regional Eleitoral se compraz ou não se compraz em aceitar o encargo e realizar a solenidade. Se recusar-se, por amor à simetria institucional, o Governador, se estiver em recesso a Assembléia, prestará o compromisso perante o Tribunal de Justiça e, se sofrer do feiticismo formal, o reiterará quando se reabrir a Câmara local. É óbvio que isso não precisa ser regulado expressamente na Constituição. Afinal, tudo se resume num cerimonial sem maiores conseqüências. A rainha da Inglaterra faz o juramento nas mãos do Chefe da Igreja Anglicana em presença dos Lordes, que, hoje, quase que já não têm poderes políticos. O Presidente dos EU jura sobre a Bíblia nas mãos do Chief Justice, ao ar livre, no inverno rijo de janeiro, com risco de pneumonia para os representantes dos três Poderes da 217 Memória Jurisprudencial majestosa República. Mas, se as circunstâncias exigem cerimonial mais simples e expedito, procedem como o Presidente Lyndon Johson, em 1963, que, em pleno vôo, ao lado do esquife do Presidente Kennedy, proferiu as palavras sacramentais diante dum João Ninguém adrede convocado para receber o compromisso durante a viagem. V - Pedindo antecipada vênia aos eminentes Juízes que não participam deste meu modo de ver o caso, e também o fazendo ao douto Procurador-Geral da República, julgo improcedente a representação. VOTO O Sr. Ministro Carlos Thompson Flores: Senhor Presidente, o eminente Ministro Aliomar Baleeiro rejeita a argüição de inconstitucionalidade. S. Exa. acha que compete ao Tribunal Regional Eleitoral dar posse? O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): Se o Tribunal Regional Eleitoral concorda em receber, está válido o juramento. Se o Governador não quiser ir lá, vai ao Tribunal de Justiça. Se esse não quiser recebê-lo, ou não estiver reunido, irá à Câmara. Não se viola nenhum artigo da Constituição Federal e não acontece nada. O Sr. Ministro Carlos Thompson Flores: Data venia, permita-me V. Exa. dissentir. Seria sujeitar Tribunal Federal, como é o Regional Eleitoral, a disposições da lei estadual, pelo Estado mesmo elaboradas, o que contravém ao sistema constitucional e, em especial, seu art. 8º, XVII, a e b. A similitude transcrita no parecer me parece perfeita. Nos casos do Presidente da República e do VicePresidente, a competência seria do Supremo Tribunal Federal. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): Não é inconstitucional, por isso. O Procurador argúi uma inconstitucionalidade da Constituição do Estado, que atribuiu uma função ou um ato a um órgão da Justiça Federal. Que acontece? Ou ele aceita ou não. Se aceita, tudo estará tranqüilo. O Sr. Ministro Oswaldo Trigueiro: Mas, se é inconstitucional, a aceitação não corrige o vício. Se há inconstitucionalidade, a vontade do governador não pode prevalecer. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): Creio que não há inconstitucionalidade. O Sr. Ministro Oswaldo Trigueiro: A representação existe para evitar este gênero de conflito; no caso, para evitar que o Governador fique de Herodes a Pilatos, sem saber perante quem tomar posse. 218 Ministro Aliomar Baleeiro O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): Ele toma posse perante o Tribunal Regional Eleitoral. Se este não quiser dá-la, vai ao Tribunal de Justiça. Se o Tribunal se recusar, toma posse perante a Câmara. Ele assume até perante o contínuo. O máximo que pode acontecer é ser ele considerado Governador de fato, e funcionar o Governo. A hipótese não é impossível. Deve ter acontecido em vários Países. O Sr. Ministro Oswaldo Trigueiro: Não estamos examinando a conveniência. O problema é de constitucionalidade. Pode a Constituição do Estado ampliar ou restringir a competência de um Tribunal Federal? O Sr. Ministro Eloy da Rocha (Presidente): A Constituição Federal dispõe, no art. 137, que “A lei estabelecerá a competência para os juízes e Tribunais Eleitorais, incluindo entre as suas atribuições (...)”. Essa lei só poderá ser federal. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): O ato não tem conseqüências. O Sr. Ministro Oswaldo Trigueiro: Essa indagação é secundária. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): Tenho profunda repugnância em declarar inconstitucional artigos de uma Constituição, salvo quando estão frontalmente em choque com determinados dispositivos da Constituição Federal ou quando rompem com aqueles princípios básicos do sistema, que estão sendo adotados desde o preâmbulo até mesmo o art. 153. Não me pareceu ser dessas hipóteses o caso dos autos. O Sr. Ministro Carlos Thompson Flores: Peço vênia para ficar de acordo com o parecer da Procuradoria. Entendo que uma lei estadual — e também se fosse uma lei municipal — não pode atribuir competência a Tribunal federal, tal como o Tribunal Regional Eleitoral. Para guardar simetria, deveria estabelecer competência ao Tribunal de Justiça, se o quisesse fazer a outro Tribunal, jamais ao Tribunal Regional Eleitoral, porque Federal. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): Data venia, V. Exa. é simetrista. Não tenho essa tendência. O Sr. Ministro Carlos Thompson Flores: V. Exa., que é constitucionalista e foi constituinte de 1946, sabe que a Constituição é um sistema, e como tal merece ser considerado, entendido e interpretado. E aqui o fazemos todos os dias. Ora, o sistema, por si, ficaria, data venia, contrariado pela Constituição da Guanabara, nesse tocante. Em conclusão, Senhor Presidente, data maxima venia do eminente Relator e dos votos que o acompanharam, acolho a representação para declarar a inconstitucionalidade do preceito em comentário. 219 Memória Jurisprudencial VOTO O Sr. Ministro Raphael de Barros Monteiro: Sr. Presidente: Data venia do eminente Sr. Ministro Relator, acolho a argüição de inconstitucionalidade, pelas considerações aduzidas pelos meus eminentes colegas que votaram nesse sentido e à vista da observação de V. Exa. de que é preciso lei federal estabelecendo, de expresso, que a posse se dê perante o Tribunal Regional Eleitoral. Peço vênia para acrescentar que, diplomado o candidato, qualquer outro assunto a respeito refoge ao âmbito da Justiça Eleitoral, não podendo, por essa forma, a Constituição da Guanabara determinar, em absoluto, que a posse do Governador se dê perante Tribunal Regional Eleitoral. Com essas considerações, acompanho o eminente Sr. Ministro Thompson Flores, acolhendo a representação. VOTO O Sr. Ministro Djaci Falcão: Sr. Presidente, estou de acordo com o eminente Sr. Ministro Thompson Flores, julgando procedente a representação, sobretudo tendo em vista que se trata de matéria reservada à lei federal, como acentuou S. Exa. EXTRATO DA ATA Rp 864/GB — Relator: Ministro Aliomar Baleeiro. Relator para o acórdão: Ministro Thompson Flores. Representante: Procurador-Geral da República. Representada: Assembléia Legislativa do Estado da Guanabara. Decisão: Julgada procedente a Representação para declarar a inconstitucionalidade no § 6º do art. 42 da Constituição da Guanabara, com a redação da Emenda n. 4, de 30-10-69, das palavras “ou, se esta não estiver reunida, perante o Tribunal Regional Eleitoral”. Vencidos, o Relator e o Ministro Rodrigues Alckmim. Impedido, o Ministro Xavier de Albuquerque. Votou o Presidente. Plenário. Presidência do Ministro Eloy da Rocha. Presentes à sessão os Ministros Luiz Gallotti, Oswaldo Trigueiro, Aliomar Baleeiro, Djaci Falcão, Barros Monteiro, Thompson Flores, Bilac Pinto, Antonio Neder, Xavier de Albuquerque e Rodrigues Alckmin. Procurador-Geral da República, Dr. José Carlos Moreira Alves. Brasília, 11 de abril de 1973 — Álvaro Ferreira dos Santos, Vice-DiretorGeral. 220 Ministro Aliomar Baleeiro REPRESENTAÇÃO 909 — RJ Relator: O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro Relator para o acórdão: O Sr. Ministro Rodrigues Alckmin Representante: Procurador-Geral da República — Representados: Assembléia Legislativa do Estado da Guanabara e Governador do Estado da Guanabara Valor da causa. Intervenção do Estado no processo, para impugnar o valor declarado, autorizada por lei estadual (art. 37 do Decreto-Lei n. 110, de 11-8-69, do Estado da Guanabara). Inconstitucionalidade do dispositivo da lei estadual, que disciplinou matéria de natureza processual, estranha à competência do Estado. Legitimidade dos arts. 8º e 13 do Decreto-Lei n. 110, que fixam a base de cálculo da taxa judiciária. Representação julgada procedente em parte. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em Sessão Plena, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por maioria de votos, conhecer e julgar procedente, em parte, a Representação, para se declarar inconstitucional o art. 37 do Decreto-Lei n. 110, de 11-8-69, do Estado da Guanabara. Brasília, 7 de maio de 1975 — Djaci Falcão, Presidente — Rodrigues Alckmin, Relator p/ o acórdão. RELATÓRIO O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: 1. Acolhendo solicitação do Dr. Raymundo Gomes das Chagas, advogado, contador e economista, o Professor J. C. Moreira Alves, em. Procurador-Geral da República, submete ao STF uma representação do art. 119, I, l, da Emenda 1/69, a fim de que se declare a inconstitucionalidade dos arts. 8º, 13 e 37 do Decreto-Lei n. 110, de 11-8-69, do Estado da Guanabara. 2. Resumo as objeções do reclamante a cada um dos dispositivos impugnados: “Art. 8º Considera-se como valor do pedido a soma do principal, juros, multas, honorários e quaisquer outras quantias pretendidas pelas partes.” 221 Memória Jurisprudencial 3. A argüição da inconstitucionalidade do citado art. 8º — e que se estende aos outros dispositivos impugnados — é a violação do art. 8º, XVII, alínea b, da Emenda Constitucional n. 1/69, o qual atribui competência exclusiva à União para legislar sobre Direito Processual. Além disso, o suscitante, em relação ao art. 8º, sustenta a violação do § 29 do art. 153 da referida Emenda Constitucional n. 1 e de dispositivos da Constituição do Estado da Guanabara, assim também a bitributação com o Imposto de Serviços em relação à cláusula “honorários”. Estes seriam o fato gerador da taxa judiciária e daquele IS. Nada argumenta o recorrente sobre os arts. 13 e 37. 4. À fl. 20, o nobre Presidente da augusta Assembléia Legislativa da Guanabara, em suas informações, contesta a inconstitucionalidade com referência ao art. 8º e declara que lhe é impossível preparar a defesa da constitucionalidade dos arts. 13 e 37, por ausência de fundamentação do pedido exigível na ação direta de inconstitucionalidade, ex vi do art. 158, III, do CPC de 1939. Ressalta que os mesmos “versam matérias absolutamente dissidentes de conteúdo, de tal sorte que se torna impossível, por incongruente, a articulação de defesa comum”. 5. Em relação ao art. 8º, entende a contestante que, nele, a Guanabara não se imiscuiu no campo do Direito Processual, uma vez que se limitou a determinar a base de cálculo da taxa judiciária, matéria de competência estadual. Finalmente, repele a argüição de que, no tocante à parcela de honorários, haja dois tributos sobre o mesmo fato gerador — os honorários. Igualmente, combate a alegação de desrespeito ao princípio contido no § 29 do artigo 153 da Emenda Constitucional n. 1/69, porquanto Decreto-Lei tem força de lei, e, editado em 1969, nada impede que se aplique no exercício de 1973. 6. À fl. 38, determinei que fosse ouvido, também, o Exmo. Sr. Governador da Guanabara, como pedido na inicial da PGR. Este, em suas informações (fls. 41/64), levanta a preliminar de que a representação de inconstitucionalidade a que alude o art. 119, I, letra l, da Emenda Constitucional n. 1/69 se identifica com a que se refere o artigo 11, § 1º, c, da mesma Emenda, e que visa à intervenção federal. No mérito, ataca os fundamentos apresentados pela Representação e sustenta a constitucionalidade das disposições impugnadas. 7. Os arts. 13 e 37 são assim redigidos: “Art. 13. Nas ações relativas a locação, considera-se como valor do pedido: I - nas ações de despejo e nas de consignação de aluguéis, o valor dos aluguéis de um ano; 222 Ministro Aliomar Baleeiro II - nas ações renovatórias, inicialmente, o aluguel mensal que o autor oferece pagar, multiplicado por 24 meses. Se a decisão final fixar aluguel superior ao proposto na inicial, será devida a taxa calculada sobre a diferença entre o aluguel proposto e o fixado, relativa a 24 meses; III - nas ações de revisão de aluguel, a diferença de aluguel que o autor pleitear receber, multiplicada pelo número de meses do prazo que pretender que a revisão venha a durar; se não indicar prazo para a duração do aluguel pleiteado, a base do cálculo será de dois anos do valor desse aluguel.” (Redação dada pelo art. 1º do Decreto-Lei n. 283, de 26-12-69). “Art. 37. O Estado poderá ingressar em qualquer processo e impugnar o valor declarado pela parte para pagamento da taxa, requerendo inclusive na forma da legislação processual, o pagamento do que for devido.” 8. Quanto às informações do Governador da Guanabara, o Professor José Carlos Moreira Alves argumenta à fl. 67: “(...) basta atentar para o fato de que a representação mencionada no artigo 119, inciso I, letra l, tem como objeto, também, a declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal, inconstitucionalidade essa que, por motivos óbvios, não pode dar margem à intervenção federal nos Estados. Por outro lado, essas informações não ilidem a argumentação que desenvolvemos para manifestar-nos pela inconstitucionalidade do supracitado artigo 37, uma vez que, sob a alegação de estabelecer normas para a cobrança do tributo que lhe é devido, não pode o Estado-Membro (como salientamos no parecer, à fl. 37) ‘legislar sobre intervenção de terceiro na lide, matéria tipicamente processual, e, portanto, de competência exclusiva da União Federal’.” É o relatório. VOTO O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): I - O Professor J. C. Moreira Alves é o primeiro a reconhecer a inteira improcedência da Representação na parte relativa aos arts. 8º e 13 do Decreto-Lei n. 110, de 11-8-69, expedido pelo Governo da Guanabara. É esse também o meu voto, não acreditando que a frivolidade dos argumentos do honrado cidadão que a promoveu exija discussão maior. Reporto-me à contestação de augusta Assembléia. 223 Memória Jurisprudencial II - Resta o art. 37, que, segundo a douta Procuradoria-Geral da República, peca por incompatibilidade com o art. 8º, VIII, b, da Emenda 1, de 1969, isto é, com a competência do Congresso para legislar sobre Direito Processual. III - Preliminarmente e data venia da Procuradoria-Geral da República, confesso-me sensibilizado pelo argumento do nobre Presidente Levy Neves: se a Representação, segundo os mais doutos processualistas pátrios, assume o caráter de ação direta de inconstitucionalidade, há de ser cabal e racionalmente fundamentada. Seja por ação, seja por exceção, quem argúi o tema grave da inconstitucionalidade e pretende movimentar o congestionado mecanismo judiciário no laborioso processo de declará-la, tem o dever de motivar cumprida e logicamente sua tese. Não é admissível que qualquer cidadão, num impulso do melhor civismo, ou no de mau humor, ou de exibicionismo, com duas folhas de papel, sem fundamentação clara e convincente, pretenda que o Procurador-Geral da República se afaste de seus severos afazeres e ocupe o tempo precioso e escasso do Supremo Tribunal Federal para lhe mostrar a simplicidade ingênua de seus propósitos. Qualquer lei tem por si a presunção de constitucionalidade porque é feita de meditado estudo das Comissões Técnicas do Órgão legislativo com plena publicidade e sanção do Executivo, de sorte que qualquer cidadão zelozo pode enviar ao Parlamento sua oportuna crítica ou apenas pretender que se ouçam e atendam, na medida do possível, seus interesses legítimos. O direito de petição é ilimitado. Limitado, sim, é o dever de deferimento. O fenômeno do lobbying, aliás, regulamentado pelo Congresso dos EUA, é apenas o reconhecimento de que qualquer grupo social tem legitimidade para fazer chegar aos olhos e aos ouvidos dos legisladores o apelo de seus direitos e interesses. Enquanto o lobbying não se degrada em tentativa de corrupção ou de coação, nenhum argumento ético se lhe pode opor, embora isso não tenha sido bem compreendido pelos brasileiros insuficientemente informados a respeito daquela prática. Não é louvável que, ex post facto, os cidadãos despertem da indiferença em relação à coisa pública e hostilizem as leis contrárias a seus interesses ou opiniões, disparando tardiamente a representação de inconstitucionalidade. Se a prática se generalizasse e o STF tivesse de espancar as dúvidas sobre a constitucionalidade dos milhares de leis e decretos expedidos a cada ano pela fecundidade legiferante das instituições atuais, nenhum tempo lhe sobraria para o exercício de outras atribuições. Não se pode transformar em rotina o que foi concebido como remédio heróico para os casos graves de exceção. Destarte, preliminarmente, não tomo conhecimento da Representação na parte relativa ao art. 37, por estar nua, inteiramente nua de qualquer fundamentação. Como tal, 224 Ministro Aliomar Baleeiro data venia, não se pode aceitar que são extensivos ao art. 37 os argumentos esgrimidos contra o art. 8º, de conteúdo inteiramente outro. IV - Se for conhecida nessa parte, julgo-a improcedente, porque não me convenci de que o art. 37 do Decreto-Lei n. 110 da Guanabara houvesse usurpado a competência federal em matéria de Direito Processual. “Comprazem-se quase todos, juristas e amadores, em tecer filigranas doutrinárias em torno de artigos da lei básica, realizam verdadeiros jogos malabares de palavras, para convencer que um projeto deve cair por ser contrário ao espírito do Código de 1891”, escrevia Carlos Maximiliano, um dos maiores desta Casa, ainda no tempo da República Velha, e estabelecia a regra de prudência que, no século passado, formulara a Corte Suprema dos Estados Unidos: “Proclama-se a inconstitucionalidade apenas quando é absolutamente necessário fazê-lo para decidir a questão sub judice”. “Presumem-se constitucionais todos os atos do Congresso e do Executivo. Só se proclama, em sentença, a inconstitucionalidade, quando esta é evidente, fora de toda dúvida razoável” (C. Maximiliano, Comentários à Constituição do Brasil, ed. 1929, pp. 118, 122/3, n. 88-9). Torno a ler o dispositivo acuado: “Art. 37. O Estado poderá ingressar em qualquer processo e impugnar o valor declarado pela parte para pagamento da taxa, requerendo, inclusive, na forma da legislação processual, o pagamento do que for devido”. (Fls. 33/5) Torno a ler, ponho os óculos, e não vejo o fumo longínquo sequer da inconstitucionalidade. Que se diz ali? O Estado pode ingressar em qualquer processo (subentendido da competência da Justiça estadual) e impugnar o valor declarado pela parte para pagamento da taxa judiciária... Sempre foi assim. Não pode deixar de ser assim. Cabe-lhe esse tributo e não pode ficar tolhido de argüir a sonegação tentada pelo litigante. Inúmeras vezes, depois que em 1969 ficou estabelecida a inadmissibilidade de Recurso Extraordinário para as causas abaixo de 30 ou 60 salários, os recorrentes confessam tranqüilamente a própria torpitude, alegando que subestimaram o valor da causa — 10, 20 ou mais vezes maior — apenas porque não queriam pagar o quantum devido da taxa judiciária. Qualquer de nós já observou isso em inúmeros feitos. O art. 259 do CPC de 1973 estabeleceu vários critérios para o valor da causa, e o fez, em grande parte, para efeitos de alçada e competência. Mas isso 225 Memória Jurisprudencial não exclui o interesse legítimo de o Estado velar para que lhe seja paga a taxa realmente devida. Onde há um direito subjetivo há necessariamente um remédio processual que lhe serve de defesa. Está no Código Civil. Se o réu concorda com o autor, aceita-se o valor da causa, para efeitos de alçada e competência, mas não se elimina o legítimo direito de o Fisco cobrar a taxa que o litigante quer escamotear por qualquer artíficio ou expediente. A situação é a mesma do inventário, no curso do qual os herdeiros podem fazer seus arranjos de conveniência, sobre as avaliações, mas com elas não é obrigado a concordar o Estado no lançamento e na arrecadação do imposto causa mortis. Volto ao texto: O Estado poderá ingressar em qualquer processo “requerendo, inclusive, na forma da legislação processual, o pagamento do que for devido.” Requer e o juiz atende ou não. É, afinal, a essência do art. 37, que apenas repete o óbvio. Condiciona-se o ingresso à “forma da legislação processual”. E seria inconcebível que se declarasse inconstitucional o direito de o Estado requerer o que lhe fosse devido na forma da legislação processual. Data venia, seria um non sense decretar-se a inconstitucionalidade de dispositivo, a título de intrusão na competência federal para legislar sobre processo, exatamente porque tal dispositivo recomenda aos Procuradores do Estado que requeiram o que a este for devido “na forma da legislação processual”. V - Julgo improcedente também a Representação quanto ao art. 37. EXTRATO DA ATA Rp 909/GB — Relator: Ministro Aliomar Baleeiro. Representante: Procurador-Geral da República. Representados: Assembléia Legislativa do Estado da Guanabara e Governador do Estado da Guanabara. Decisão: Pediu vista o Ministro Xavier de Albuquerque, após o voto do Relator, que julgava improcedente a Representação quanto aos arts. 8º, 13 e 37 do Decreto-Lei n. 110, de 11-8-69, do Estado da Guanabara. Plenário. Presidência do Ministro Eloy da Rocha. Presentes à Sessão os Ministros Oswaldo Trigueiro, Aliomar Baleeiro, Djaci Falcão, Thompson Flores, Bilac Pinto, Antonio Neder, Xavier de Albuquerque, Rodrigues Alckmin e Cordeiro Guerra. Ausente, justificadamente, o Ministro Leitão de Abreu. Procurador-Geral da República, Professor José Carlos Moreira Alves. Brasília, 4 de dezembro de 1974 — Dr. Alberto Veronese Aguiar, Diretor do Departamento Judiciário. 226 Ministro Aliomar Baleeiro VOTO (Confirmação) O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): Permita-me, eminente Ministro Rodrigues Alckmin. O art. 37 diz que o Estado poderá ingressar em qualquer processo e impugnar o valor declarado pela parte para pagamento da taxa, requerendo, inclusive, “na forma da legislação processual”, o pagamento do que for devido. O Estado tem sempre um interesse jurídico no pagamento exato do imposto ou do tributo, que é a taxa, de sorte que, se, evidentemente, o litigante deu um valor ínfimo, distante da realidade, acho que é perfeitamente lícito que compareça o Procurador do Estado apenas para reclamar o pagamento exato, na forma processual e por meio expedito. O eminente Ministro Rodrigues Alckmin reconhece esse direito ao Estado, mas acha que ele não pode fazer isso expeditamente, dizendo o Procurador que aquela estimação é irrisória e que merece que o juiz reveja, de plano, ou até fazer uma diligência qualquer. Não. S. Exa. acha que o Estado deve, então, ir para as vias competentes, executivas ou o que sejam, para reclamar em separado a taxa que lhe é devida. Perdoe-me, nesta matéria, sou partidário de formas mais simples e expeditas até porque todo Direito Fiscal... O Sr. Ministro Rodrigues Alckmin: V. Exa. está adotando a forma mais complicada, e demonstrarei a V. Exa. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): O Direito Fiscal, quando tem disposições processuais, e as tem, procura sempre formas mais expeditas. Estou certo de que o Tribunal dará a solução mais razoável. Data venia, mantenho, por enquanto, meu voto. EXTRATO DA ATA Rp 909/GB — Relator: Ministro Aliomar Baleeiro. Representante: Procurador-Geral da República. Representados: Assembléia Legislativa do Estado da Guanabara e Governador do Estado da Guanabara. Decisão: Adiado o julgamento, por haver pedido vista o Ministro Rodrigues Alckmin, após os votos dos Ministros Xavier de Albuquerque e Cordeiro Guerra, que conheciam da Representação, também, quanto aos arts. 13 e 37, julgando-a, porém, improcedente, contra o voto do Relator, que não conhecia da Representação quanto aos citados arts. 13 e 37, e, se vencido, pela improcedência. Plenário, 26-2-75. 227 Memória Jurisprudencial Decisão: Após o voto do Ministro Rodrigues Alckmin conhecendo e julgando procedente, em parte, a Representação, para reconhecer a inconstitucionalidade do art. 37 do Decreto-Lei n. 110, de 11-8-69, do Estado da Guanabara, acompanhado pelo Ministro Cordeiro Guerra, que reconsiderou o seu voto primitivo, pediu vista o Ministro Leitão de Abreu. Plenário, 12-3-75. Decisão: Conhecida e julgada procedente, em parte, para se declarar inconstitucional o art. 37 do Decreto-Lei n. 110, de 11-8-69, do Estado da Guanabara, vencido o Relator quanto à preliminar e ao mérito. Votou o Presidente. Plenário. Presidência do Ministro Djaci Falcão. Presentes à sessão os Ministros Eloy da Rocha, Thompson Flores, Bilac Pinto, Antonio Neder, Xavier de Albuquerque, Rodrigues Alckmin e Leitão de Abreu. Ausente, justificadamente, o Ministro Cordeiro Guerra. Procurador-Geral da República, Professor José Carlos Moreira Alves. Brasília, 7 de maio de 1975 — Dr. Alberto Veronese Aguiar, Diretor do Departamento Judiciário. RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA 13.239 — SC Iniciativa do Executivo para criação de cargos: 1. É suprida e convalidada pela sanção (Súmula 5). 2. O estágio probatório não protege o funcionário contra a extinção do cargo, pois a tanto equivale a lei que declarou sem efeito outra criadora desse cargo (Súmula 22). VOTO O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): Este é mais um dos vários casos de leis de Santa Catarina, nestes 15 anos, impugnadas por inconstitucionalidade pela criação de cargos sem iniciativa do Poder Executivo, nem atribuição de recursos suficientes para custeio da despesa respectiva (Constituição estadual, arts. 27, III, e 38). No caso concreto, o Governador sancionou a lei e lhe deu execução, o que, a meu ver, sana para sempre a inconstitucionalidade — Súmula 5 —, data venia das opiniões respeitáveis que imprimem caráter pessoal a essa conformidade posterior e, em conseqüência, admitem venha a ser alegada a eiva pelos sucessores. A invocação do art. 38 não parece proveitosa ao recorrido, porque a Lei 2.490/ 1960 apontou os mesmos recursos indicados pelo próprio Governador no Projeto 228 Ministro Aliomar Baleeiro 251/60, de sua autoria: a dotação global da Secretaria para o Plano de Obras e o excesso de arrecadação no exercício (arts. 5º e 6º do Projeto 251/60, fl. 46). Todavia, nego provimento ao recurso ordinário, porque, declarando nula e de nenhum efeito a Lei 2.490/60; em verdade a Lei 2.680/61 teve apenas o efeito de revogá-la, suprimindo os cargos por ela criados, num dos quais fora provido o recorrente. A lei pode sempre extinguir cargos criados pela lei anterior — independentes, é claro, da Constituição — sem que os respectivos titulares tenham outros direitos senão os decorrentes da vitaliciedade ou do tempo de serviço, que os tornaram estáveis. Não há direito líquido e certo do recorrente, nomeado sem concurso e apenas com quatro meses de exercício, a permanecer nos quadros do funcionalismo depois de suprimido o cargo para o qual fora nomeado. Não tem préstimo a alegação de que não poderia ser exonerado ad nutum durante o estágio probatório. Sua situação é a da Súmula 22: “O estágio probatório não protege o funcionário contra a extinção do cargo”. Cabe-lhe, apenas, reclamar os vencimentos dos quatro meses pelos meios adequados, já que alega não ter recebido um tostão sequer pelo período em que servia. RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA 14.624 — SP Relator: O Sr. Ministro Adalicio Nogueira Relator para o acórdão: O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro Recorrentes: Frigorífico Armour do Brasil e Frigorífico Wilson do Brasil — Recorrida: Prefeitura Municipal de São Paulo Taxa Municipal de Matadouro — Torna-se ilegítima quando houver outra por inspeção federal que, com ela, faça bitributação. ACÓRDÃO Vistos e relatados estes autos de Recurso em Mandado de Segurança n. 14.624, do Estado de São Paulo, em que são recorrentes, primeiro, o Frigorífico Armour do Brasil e, segundo, o Frigorífico Wilson do Brasil, e recorrida a Prefeitura Municipal de São Paulo, decide o Supremo Tribunal Federal, por sua Segunda Turma, dar provimento ao recurso, contra o voto do Ministro Relator, de acordo com as notas juntas. Distrito Federal, 20 de setembro de 1966 — Hahnemann Guimarães, Presidente — Aliomar Baleeiro, Relator p/ o acórdão. 229 Memória Jurisprudencial RELATÓRIO O Sr. Ministro Adalicio Nogueira: O v. acórdão de fls. 258-262, prolatado pela Quarta Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo, expõe, lucidamente, a controvérsia: “Trata-se de mandado de segurança impetrado pelos frigoríficos Armour e Wilson, objetivando eximir-se da fiscalização prevista nas leis municipais regulamentadoras do comércio de carne e seus derivados, bem como da conseqüente cobrança das taxas previstas nessa mesma legislação, invocando eles o argumento de que a fiscalização desse comércio constitui atribuição privativa da União. Inicialmente, a decisão de primeira instância deixara de conhecer do mérito do pedido, por ter sido impetrado após 120 dias da ciência do ato impugnado. Todavia, esta Egrégia Câmara deu provimento ao recurso das impetrantes, para que o pedido fosse julgado pelo mérito. Pela municipalidade foi interposto recurso extraordinário que, inicialmente provido pela Egrégia Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, foi posteriormente repelido, na apreciação de embargos, que restabeleceram o acórdão desta Câmara. Em conseqüência, veio a ser proferida a sentença de fls. 219 e seguintes, cujo relatório adoto, e que findou por conceder a segurança. Recorreram o juízo, de ofício, e a municipalidade, voluntariamente. Os recursos tramitaram regularmente. A Procuradoria-Geral de Justiça é pelo provimento dos recursos. A decisão recorrida, data venia, está a merecer reforma. É certo que a Lei Federal n. 1.283, de 1950, depois de estabelecer que ao Ministério da Agricultura cabe a fiscalização de estabelecimentos destinados à matança de animais e a seu preparo ou industrialização para o consumo sem comércio interestadual ou internacional, dispôs que a fiscalização federal excluía a estadual e a municipal (arts. 4º e 6º, parágrafo único). Mas parece evidente que tal dispositivo não tem a virtude de impedir exerça o Município o seu poder de polícia, no atinente ao estado da carne distribuída aos consumidores, em seu território. Pois, como bem pondera Lopes Meirelles, pela facilidade de deterioração e formação de toxinas altamente nocivas, a carne, os ovos e o pescado exigem sério policiamento municipal (cf. Direito Municipal, 1ª Edição, vol. I, pág. 296). 230 Ministro Aliomar Baleeiro Não é por outro motivo que nossos tribunais vêm afirmando que ao Município cabe o poder de verificar se os produtos licenciados pela Administração federal, na zona de produção, ainda se acham nas condições sanitárias atestadas pelas autoridades federais (cf. Rev. Trib., 299/346, 311/390; adde Francisco Campos? Parecer na Rev. Trib., 312/88 e seguintes). Observe-se que a fiscalização federal se exerce nos estabelecimentos em que se faz a matança do gado, o preparo e industrialização da carne, e nos entrepostos, apenas quando estes e aqueles se dediquem, no total ou em parte, ao comércio interestadual ou internacional. A fiscalização de estabelecimentos restritos ao comércio intermunicipal ou municipal foi atribuído aos estados (Lei Federal n. 1.283, art. 4º, b). O Estado de São Paulo, de seu lado, atribuiu aos municípios a polícia dos gêneros alimentícios destinados ao abastecimento público local, inclusive a da carne (Lei Estadual n. 1, de 1947, art. 22, § 1º, XVII). Ora, é bem de ver que o estado dos gêneros destinados ao consumo local é matéria de peculiar interesse do municipio. Nem é por outro motivo que a municipalização do serviço de matança de gado tem sido regra constante no Brasil e no exterior (cf. O. A. Bandeira de Mello, Municipalização de Serviços Públicos, págs. 55 e seguintes). Esta é, data venia, a interpretação que põe a Lei Federal n. 1.283 a salvo do vício da inconstitucionalidade, conciliando-a com o princípio da autonomia municipal, que a Lei Fundamental consagra. É, portanto, a que deve ser acolhida, pois, ‘sempre que possível, adotar-se-á exegese que torne a lei compatível com a Constituição’ (Lucio Bittencourt, Constitucionalidade das Leis, pág. 118). Da licitude da fiscalização municipal resulta a da cobrança dos tributos, contra que se rebelam as impetrantes. Certo que estas também alegam que as taxas cobradas recaem não sobre a carne que abastece a Capital, mas sobre a destinada à industrialização e ao consumo da população de outros municipios. Todavia, pareceu à maioria que, nem mesmo sob tal fundamento, a segurança poderia ser concedida, tendo em vista a deficiência de provas que, a rigor, pela complexidade da matéria de fato, não poderiam mesmo ser produzidas em mandado de segurança. A este ponto ficou restrita a divergência surgida por ocasião do julgamento, entendendo o eminente Des. Ulysses Dória que os elementos constantes dos autos autorizavam a concessão da segurança para livrar as impetrantes da fiscalização e, conseqüentemente, das taxas atinentes às carnes destinadas à industrialização e ao consumo da população de outros municipios.” 231 Memória Jurisprudencial Os Frigoríficos, inconformados, interpuseram o presente recurso ordinário, que foi devidamente arrazoado pelas partes. A douta Procuradoria-Geral da República opinou, às fls. 300-302, pelo improvimento do recurso. É o relatório. VOTO O Sr. Ministro Adalicio Nogueira (Relator): Casos semelhantes ao presente têm sido, freqüentemente, trazidos à apreciação deste Egrégio Supremo Tribunal Federal. Querem os recorrentes furtar os seus estabelecimentos e instalações a qualquer espécie de fiscalização municipal, reguladora do comércio de carnes e seus derivados, porque entendem submeter-se, apenas, à federal, nos termos do art. 6º e seu parágrafo único da Lei Federal n. 1.283, de 18-12-50, subtraindo-se, assim, ao pagamento das taxas municipais pretendidas. A recorrida retruca que o exercício da fiscalização federal, em conformidade com aquela lei, não exclui a sua, resultante do seu poder de polícia, bem como de zelo da saúde da população local, em assunto do seu peculiar interesse; cabendo-lhe, assim, não só examinar as condições sanitárias das carnes distribuídas aos habitantes do Município de São Paulo, como cobrar as taxas decorrentes de sua atividade. Os recorrentes pretendem estribar-se na jurisprudência desta Excelsa Corte, invocando acórdãos que apóiam o seu ponto de vista. Mas, é mister considerar, atentamente, as várias hipóteses trazidas a julgamento, por vezes divergentes, nas várias faces que oferecem. Haja vista o v. acórdão, por certidão, às fls. 205-209, de que foi Relator o eminente Ministro Ribeiro da Costa, no Recurso Extraordinário n. 45.117, cuja ementa é a seguinte: “Livre exercício de atividade profissional. Regulação da lei federal. Peculiar interesse do Município. Monopólio de comércio. Garantias constitucionais.” (Fl. 208v.) Assim, por igual, o v. julgado proferido no Recurso Extraordinário n. 46.090, de que foi Relator o saudoso Ministro Ary Franco, em que se reconheceu à recorrida, Sociedade Anônima Frigorífico Anglo, o seu direito ao exercício do comércio de carne no Município de Santos, sem as restrições opostas pelo município ao livre exercício desse comércio, sendo-lhe, porém, ressalvado cobrar da citada recorrida os impostos municipais devidos (cert. de fls. 210-212v.). 232 Ministro Aliomar Baleeiro Vê-se, pois, dessas decisões, que elas visaram, predominantemente, a tese da liberdade de comércio, defendida pelas empresas, em face de quaisquer empecilhos criados pelas municipalidades. Todavia, a jurisprudência mais recente deste ínclito Colégio afina com as tendências propugnadas pelo Município de São Paulo e consagradas pelo v. acórdão recorrido. No julgamento do recurso extraordinário de São Paulo, n. 52.103, a que se deu provimento parcial unânime, o eminente Relator, Ministro Victor Nunes, reportando-se ao que se decidira anteriormente, na apreciação de outro, o de n. 48.128, de que também fora Relator, assim se exprimiu: “No julgamento do RE 48.198 (26-3-63), de que fui Relator, tendo sido apoiado pela Turma, procurei distinguir os dois aspectos. Depois de referir precedentes do Supremo Tribunal citados pela parte, observei: ‘em tais casos prevaleceu a tese de que não pode ser exigida segunda inspeção sanitária por parte do Municipio, depois de inspecionado o produto com resultado favorável, pelas autoridades federais, nos termos do Decreto 30.691, de 28-3-52’. (...) Parece-me, porém, que não basta uma simples remissão aos precedentes para julgar o presente caso. Receio que, da simples confirmação do acórdão recorrido e da sentença por ele mantida, pretenda a impetrante, tendo em vista a demasiada extensão do seu pedido e dos respectivos fundamentos, extrair conseqüências que não estejam no espírito das decisões desta Corte. Salvo engano, o que tem decidido o Supremo Tribunal é que não pode o município, contrariamente à lei federal, instituir monopólio de abastecimento de carne e derivados, como também não pode impor uma segunda inspeção sanitária, para licenciar à venda produtos já inspecionados favoralmente pelas autoridades federais competentes. Creio que a esses pontos está circunscrito o etendimento do Tribunal, sem, contudo, excluir, de modo total, os poderes dos municípios no tocante ao abastecimento das suas populações, à regulamentação do comércio local e à complementação das normas competentes e superiores de polícia sanitária e das profissões. Uma vez que a segurança, no caso presente, foi concedida com extensão muito maior, tenho por ofendido, nesta parte, o artigo 28 da Constituição Federal.” A ementa desse acórdão é do teor seguinte: “Não pode o Municipio exigir segunda inspeção sanitária para carnes e derivados já inspecionados favoravelmente pela autoridade federal competente. 233 Memória Jurisprudencial A prevalência da lei federal em matéria de polícia sanitária e das profissões não impede o exercício dos demais poderes do Município nem da sua competência concorrente, que é subordinada” (in DJ de 28-11-63, pp. 1224-1225). Assim, estou em que não se pode recusar à recorrida, Prefeitura Municipal de São Paulo, o seu poder de polícia e de inspeção sobre as atividades das recorrentes, no que tange ao abastecimento dos seus produtos à população local, auferindo, por isso, as taxas instituídas pelas leis municipais, porque a matéria entende, muito intimamente, com a saúde e o bem estar dos seus habitantes, assunto que está, indubitalmente, vinculado ao seu peculiar interesse. Nego provimento ao recurso. VOTO O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Sr. Presidente, acompanho o voto do eminente Relator. Mas quero deixar bem claro meu pensamento, ou tão claro quanto me seja possível. Não fiquei muito impressionado com o argumento de que a taxa municipal em questão, pelo fato de não corresponder sempre à prestação efetiva de um serviço, pudesse, por si só, ser inconstitucional ou ilegítima. Muito embora sempre houvesse defendido a necessidade jurídica e política de um conceito rígido de taxa — até para preservação do sistema federativo e da discriminação de rendas, que ele comporta —, sempre admiti que seria constitucional e legítima uma falsa taxa quando o imposto por ela mascarado fosse da competência do poder que a exige. Há vários julgados do Supremo Tribunal nesse sentido, inclusive em relação à Taxa de Recuperação Econômica de Minas Gerais, que, se não me engano, pela Súmula 306, fundada em vários acórdãos, foi considerada constitucional quando corresponde a um mascarado imposto da própria competência estadual. Afinal, nesse caso, há imposto da competência estadual irracionalmente batizado com o nome de taxa — erro técnico-financeiro, não, porém, inconstitucionalidade. Assim, dado que o município pode exigir de um frigorífico o imposto de indústrias e profissões, essa taxa, afinal, nada mais, nada menos, seria que modalidade espúria de cobrar imposto de indústrias e profissões, modalidade irracional, porque o mais prático é o município majorar o imposto o quanto tenha necessidade, em vez de recorrer a esses expedientes pueris. Mas invocou-se o art. 6º da Lei n. 1.283/50, que, estabelecendo uma fiscalização sanitária federal, exclui nova fiscalização pelo órgão local. 234 Ministro Aliomar Baleeiro Também uma das minhas convicções é a de que, nesse sistema, e mesmo na base histórica em que tal sistema federativo foi implantado no Brasil, deve prevalecer sempre a lei federal. Para mim, vale a limitação da lei federal, excluindo a limitação municipal, afastada, portanto, essa taxa. De sorte que, resumindo, meu voto é que, sempre que houver uma inspeção federal, torna-se ilegítima a taxa municipal que com ela faça bis in idem. Não admito taxa municipal a título de inspeção de condições sanitárias, de higiene, sempre que, para esse fim, já exista, especificamente, taxa federal. O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães (Presidente): Nesse sentido foi meu voto. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: E isso me parece que está bem claro, por exemplo, no que disse o eminente Ministro Victor Nunes no RE 52.103, em que, parece, faz-se referência ao RE 48.198 quando o município exige a taxa, porque faz uma inspeção especial, no interesse da população local, inclusive nos açougues e nos transportes para esses açougues, nos veículos fechados destinados a esse transporte. Nos Estados do Norte, sempre fiquei horrorizado com aquela maneira de se transportar carne em carros fechados, não refrigerados. Na Bahia, há certas moléstias que, como leigo, acho que decorrem um pouco disso. Também o que se vê nos Estados do Norte é a carne pendurada em ganchos, exposta ao sol, apanhando poeira e sujeita às moscas. Acho, portanto, que as autoridades municipais têm competência, e até única, para fiscalizar isso, que é de seu peculiar interesse. Quero deixar bem claro que acompanho o voto do eminente Relator, mas no sentido de que não admito a taxa quando a fiscalização funcionar em duplicado com outra de caráter federal e sob invocação dos mesmos serviços prestados. A duplicação do mesmo serviço é antieconômica e irracional, quando a fazem dois órgãos, como, desgraçadamente, ocorre no Brasil em muitos campos da atividade administrativa. Como disse, a inspeção federal exclui a municipal para o mesmo fim. Para evitar embargos de declaração é que quero deixar bem claro meu pensamento. O Sr. Ministro Adalicio Nogueira (Relator): Também não posso esquecer o interesse municipal. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Aí, com perdão do galicismo, há uma nuance, um matiz... O Sr. Ministro Adalicio Nogueira (Relator): V. Exa. há de notar, pelo menos de meu voto, que o assunto é delicado. Procurei encará-lo sob todas as faces, para dar uma decisão que não seja prejudicial nem a uns nem a outros. 235 Memória Jurisprudencial O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Quando se tratar, por exemplo, do controle sanitário, higiênico, da eficiência industrial, no interesse, sobretudo, do comércio interestadual ou internacional, só admito a taxa federal. O Sr. Ministro Adalicio Nogueira (Relator): Prevalece a taxa federal no caso. O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães (Presidente): Quando a carne se destina ao comércio interestadual e internacional. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Pelo art. 5º, XV, k, da Constituição, reservase à União o controle do comércio interestadual e internacional. O que se ressalva ao município é seu controle, de caráter local, quando as carnes se destinam, única e exclusivamente, ao consumo local, quer quanto ao comércio, quer quanto à industrialização dessas carnes na área urbana ou suburbana, inclusive seus açougues, veículos, etc., porque, então, há “peculiar interesse” dos municípios. VOTO O Sr. Ministro Vilas Boas: Entendo que a pretensão das empresas requerentes tem amparo na Lei 1.283. O pedido foi formulado nestes termos: “Por outro lado, esclarecem, também, que, relativamente às carnes vendidas in natura, no Município de São Paulo, e que passam pelo tendal, nunca deixaram de recolher a taxa respectiva, sendo que o ‘Wilson’ pagou à Prefeitura Cr$ 21.167.665,20 e a ‘Armour’ Cr$ 20.739.410,00”. Portanto, este está fora. A fiscalização da Prefeitura, pela distribuição de carne verde, funciona na Cidade de São Paulo e é legítima. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: As impetrantes pagam e não reclamam. O Sr. Ministro Vilas Boas: Elas têm todo o direito, em face do art. 6º da Lei 1.283. Assim, estou dando a segurança, nos termos formulados na petição inicial. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: O voto de V. Exa. está coincidindo com o meu. Eu não conhecia essa circunstância de fato. O Sr. Ministro Vilas Boas: Quanto à distribuição de carne para consumo local, elas têm recolhido a taxa, o que está, pois, fora de questão. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Então, concedo a segurança. O Sr. Ministro Vilas Boas: Quanto ao mais é que é pedido a segurança... O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Sempre que existir, efetivamente, a cobrança. O Sr. Ministro Vilas Boas: ... para essa cobrança discriminada. 236 Ministro Aliomar Baleeiro O Sr. Ministro Adalicio Nogueira (Relator): Quero ler o fecho do acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo, que diz o seguinte em relação a esse ponto: “Certo que estas (as impetrantes) também alegam que as taxas cobradas recaem, não sobre a carne que abastece a Capital, mas sobre a destinada à industrialização e ao consumo da população de outros municípios. Todavia, pareceu à maioria que, nem mesmo sob tal fundamento, a segurança poderia ser concedida, tendo em vista a deficiência de provas que, a rigor, pela complexidade da matéria de fato, não poderiam mesmo ser produzidas em mandado de segurança”. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Estabelece o princípio. O Sr. Ministro Vilas Boas: O meu critério é este: estou aplicando o art. 6º da Lei 1.283, que estabeleceu uma fiscalização exclusiva quanto àquela parte em que o município pode fiscalizar, isto é, quanto à distribuição de carne, verde ou fresca, o que as impetrantes não põem em dúvida, e tanto não põem em dúvida, que têm recolhido as taxas. Isso não é negado. O Sr. Ministro Adalicio Nogueira (Relator): O assunto é complexo para mandado de segurança. O Sr. Ministro Vilas Boas: Acima do interesse da cidade de São Paulo, estão os interesses do Brasil, porque a carne frigorificada é distribuída para o Brasil inteiro e não pode ser onerada com essa taxa. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Pode ser exportada, produzindo divisas. O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães (Presidente): Nesse sentido é a Lei 1.283. O Sr. Ministro Vilas Boas: É uma fiscalização inútil e até proibida pela lei. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: A Prefeitura Municipal de São Paulo pode obter toda a receita, sem nenhuma eiva de nulidade, majorando o imposto de indústrias e profissões. É o erro de insistir em expedientes condenáveis. O Sr. Ministro Vilas Boas: De sorte que dou provimento ao recurso nos termos em que formulado o pedido e, de acordo com o art. 6º da Lei 1.283, restabeleço a sentença de primeira instância. VOTO O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães (Presidente): Data venia do eminente Relator, acompanho o voto do Sr. Ministro Vilas Boas. Observou-se bem, no caso, como me parece, o disposto no art. 6º da Lei n. 1.283, de 18 de dezembro de 1950. Não é lícito ao município cobrar a taxa sobre inspeção de carnes já aprovada pelo órgão competente do Ministério da Agricultura. 237 Memória Jurisprudencial EXPLICAÇÃO O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Acho que devo retificar ou esclarecer mais ainda o meu voto. Como eu expus e com o adminículo que agora está fornecendo o eminente Ministro Vilas Boas, praticamente quero conceder a segurança. É caso de exclusão da taxa municipal pela existência do serviço federal, não recusando o impetrante o ônus do município nos serviços de puro caráter local. DECISÃO RMS 14.624/SP — Relator: Ministro Adalicio Nogueira. Relator para o acórdão: Ministro Aliomar Baleeiro. Recorrentes: Frigorífico Armour do Brasil (Advogado: Luiz Lopes da Costa) e Frigorífico Wilson do Brasil (Advogado: Nelson Planet Júnior). Recorrida: Prefeitura Municipal de São Paulo (Advogado: Antônio Inserra). Como consta da ata, a decisão foi a seguinte: a Turma, contra o voto do Ministro Relator, deu provimento aos recursos. Presidência do Ministro Hahnemann Guimarães. Tomaram parte no julgamento os Ministros Aliomar Baleeiro, Adalicio Nogueira e Vilas Boas. Ausente, justificadamente, o Ministro Pedro Chaves. Distrito Federal, 20 de setembro de 1966 — Guy Milton Lang, Secretário. MANDADO DE SEGURANÇA 15.886 — DF Relator: O Sr. Ministro Victor Nunes Requerentes: Fernando Lins Vidal e outros — Requerido: Presidente da República Reestruturação de quadros de autarquias do Ministério da Viação. Matéria constitucional. 1. Inconstitucionalidade de lei. Presunção de constitucionalidade. Recusa de aplicação de lei considerada inconstitucional pelo Executivo. Conseqüências, a esse respeito, da EC 16/65. Ato, no caso, anterior a essa emenda. 2. Efeito, no tempo, da declaração judicial de inconstitucionalidade. 238 Ministro Aliomar Baleeiro 3. Iniciativa do Procurador-Geral quanto à representação de inconstitucionalidade. 4. Procurador de autarquia. Efetivação mediante concurso de títulos (Lei 2.123/53). Sua admissibilidade pela jurisprudência do STF. Subsistência da citada lei, apesar de mantido o veto a dispositivo de projeto que dispunha no mesmo sentido. 5. Nenhum aumento de despesa resultante da eventual efetivação de procurador de autarquia, que já se encontrava no exercício interino do cargo, cuja supressão nem chegou a ser proposta. Procedência da segurança. 6. Improcedência do pedido, relativamente aos cargos de consultor jurídico, que foram suprimidos, porque, a juízo da maioria, havia matéria de fato controvertida quanto ao alegado aumento de despesa. 7. Considerações da minoria sobre o direito dos seus antigos ocupantes de serem considerados em disponibilidade, com vencimentos integrais, o que impediria a sua classificação em cargos de menores vencimentos. 8. Questão de ordem (no voto do Relator) sobre a proclamação do resultado, em face da presunção de constitucionalidade, favorecendo o governo em uma das questões, mas não na outra. RELATÓRIO O Sr. Ministro Victor Nunes: A Lei 4.449, de 28-10-64, dispôs sobre a situação do pessoal de quatro autarquias do Ministério da Viação e Obras Públicas: Departamento Nacional de Estradas de Ferro – DNEF, Departamento Nacional de Obras e Saneamento – DNOS, Departamento Nacional de Portos e Vias Navegáveis – DNPVN e Departamento Nacional de Obras contra as Secas – DNOCS. A presente impetração, contra ato do Excelentíssimo Sr. Presidente da República, tem por objeto mandar cumprir a Lei 4.449, de 28-10-64, “sem qualquer restrição ou ressalva” (fl. 28). São três os impetrantes: os dois primeiros, Fernando Lins Vidal e Hélio Cruz de Oliveira, qualificam-se, na inicial, “funcionários” do DNEF; o terceiro, Uriel de Resende Alvim, “Consultor Jurídico” do DNOS. Veremos, mais adiante, o que consta das informações oficiais a respeito da situação funcional da cada um. Os três impetrantes formularam seu pedido de execução irrestrita da Lei 4.449, de 1964, porque o Sr. Presidente da República negou aplicação, por 239 Memória Jurisprudencial inconstitucionalidade, a alguns dispositivos dessa lei, isto é, ao art. 1º e seus parágrafos, ao art. 2º e seu parágrafo único e ao 5º do art. 4º. Esses dispositivos, bem como o art. 3º, tinham sido vetados por S. Exa., e o Congresso Nacional manteve o veto quanto ao art. 3º, mas o rejeitou quanto aos demais. A recusa de cumprimento da lei, nas partes indicadas, foi precedida de parecer do Sr. Consultor-Geral da República (n. 184-h, de 7-5-65, DO de 22-6-65, p. 5615). S. Exa. sustentou, preliminarmente, a prerrogativa presidencial de negar aplicação às leis inconstitucionais, revendo seu ponto de vista anterior sobre o assunto; no mérito, argumentou que eram inconstitucionais os citados dispositivos: a) porque aumentaram a despesa, sem iniciativa do Executivo (art. 5º do AI n. 1); b) porque efetivaram funcionários interinos, sem concurso (art. 186 da CF). Nas informações, a administração procura robustecer a argumentação do ConsultorGeral, lembrando outros pronunciamentos judiciários, além dos que ele indicou, no sentido de que o Executivo pode negar-se a executar leis que considera inconstitucionais. Também afirma que resulta aumento de despesa da Lei 4.449 e que a efetivação dos interinos, sem concurso, pelo simples decurso do tempo, não é compatível com a Constituição. Os impetrantes, na inicial e em memorial posterior, discutem amplamente toda essa matéria. Negam a mencionada prerrogativa do Sr. Presidente da República e afirmam a constitucionalidade da lei. Uma vez rejeitado o veto, que também se fundava na inconstitucionalidade, o Chefe do Poder Executivo estaria adstrito ao cumprimento da lei, devendo recorrer ao Judiciário, se lhe quisesse negar a validade. A representação de inconstitucionalidade de lei em tese, que foi instituída em termos amplos pela Emenda Constitucional n. 16, de 1965, alargando e sistematizando o que dispunha o art. 8º, parágrafo único, da Constituição, teria tornado indiscutível esse ponto de vista. De outro lado, a vedação do aumento de despesa sem iniciativa do Executivo não seria aplicável às autarquias (RDA 32/305; RTJ 34/6) e, além disso, não houve, no caso, aumento de despesa. Esta última assertiva é apoiada em parecer do Professor Francisco Campos, de onde extraio esta passagem que sintetiza o seu pensamento: “Em se recusando o Congresso Nacional a alterar os Quadros do Pessoal das mencionadas autarquias — o que, no entender do Poder Executivo, se fosse feito ocasionaria redução de despesa (por exemplo, com a supressão dos cargos isolados de Consultores Técnicos, Consultores Jurídicos e Assistentes Jurídicos) —, entende o Poder Executivo ter havido na Lei 4.449, de 1964, um aumento de despesa em flagrante violação à regra do art. 5º do Ato Institucional. 240 Ministro Aliomar Baleeiro O raciocínio, posto nestes termos, peca, evidentemente, pelo absurdo com que foi formulado. Senão vejamos: rejeitando o anteprojeto do Poder Executivo e aprovando o substitutivo do Deputado Martins Rodrigues, afinal transformado na Lei 4.449, de 29-10-1964, o Congresso Nacional se limitou a conservar a situação preexistente. Assim, ao ratificar no art. 1º o parágrafo 1º dessa lei todos os Decretos federais com que antes foram aprovados os Quadros de Pessoal das aludidas autarquias, o Congresso Nacional apenas manteve o que já existia; não majorou a despesa; manteve-a, ao contrário, como é óbvio, no mesmo nível orçamentário previsto antes da edição da Lei 4.449, de 1964.” Quanto às reduções de vencimentos que pudessem ter sido feitas entre a criação das autarquias e a Lei 4.449, dizem os impetrantes que seriam arbitrárias: “Com efeito. Qual a lei que teria autorizado a redução de vencimentos do pessoal dessas entidades, no período que vai da sua criação à entrada em vigor da Lei 4.449? Nenhuma, “como reconheceu o próprio parecer do Consultor Geral ao fazer o histórico da situação. Recorde-se que é S. Exa. mesmo quem informa que, promulgada a Lei 4.345, o Ministro da Viação nomeou uma comissão para “integrar, na sistemática do serviço público, as quatro autarquias do Ministério”. E essa comissão “após meticuloso exame da tarefa a ser executada, concluiu que, por via legislativa, seria possível corrigir as anomalias encontradas naquelas quatro autarquias” (do parecer do ilustre Consultor Geral). Mais claro ainda, foi o relator do projeto da Lei na Comissão Mista do Congresso que deu parecer sobre o mesmo: “Foi criada, no Ministério da Viação, uma comissão destinada a estudar essa complicada regularização, cogitada no texto transcrito (refere-se ao art. 19 da Lei 4.345). O parecer da comissão foi no sentido de que a matéria não poderia ser regulada por decreto; devia ser feita mensagem ao legislativo, propondo uma solução através da lei”. O próprio Governo, como se vê, reconheceu expressamente, que o regime de classificação e vencimento do pessoal do DNEF e do DNOS só por via legislativa poderia ser corrigido. Donde se conclui que, qualquer ato executivo, praticado antes dessa lei, cuja necessidade o próprio governo proclamava, teria sido arbitrário e ilegal”. 241 Memória Jurisprudencial Argumentam, em seguida, que o art. 19 da Lei 4.345, de 1964, não autoriza tais reduções, pois a sua execução dependia da revisão dos quadros e das tabelas, e essa revisão o próprio Executivo entendeu que dependia de lei, tanto assim que enviou projeto à Câmara, o qual veio a ser modificado pelo Congresso. Dizem eles: “E a Lei 4.345, sem essa revisão, não era self executing. Em hipótese alguma poderia aplicar-se aos três impetrantes porque seu art. 26 dispôs: “Art. 26 – Não se aplicam as disposições desta lei, ressalvadas as dos art. 17 e 18, aos membros do Ministério Público e do Serviço Jurídico da União, de que trata a Lei 3.414, de 20 de junho de 1958, bem como aos Procuradores da Fazenda Nacional, das autarquias e demais equiparados”. E, conforme se verifica pela leitura do seu art. 33, não autorizou qualquer redução de despesa com o pessoal do serviço publico e autárquico: “Art. 33 – Os funcionários civis do Poder Executivo, inclusive os das Autarquias, que, em virtude da aplicação do disposto nesta Lei, venham a fazer jus, mensalmente, a um total de “vencimentos e vantagens inferior ao total de vencimentos e vantagens que já vinham percebendo por força da lei ou decisão judicial transitada em julgado, terão direito a um complemento igual ao valor da diferença entre os dois totais”. Portanto, se redução de vencimentos houve, nas autarquias em causa, ela terá sido, como se vê, manifestamente ilegal. E o Governo não pode invocar ilegalidades por ele cometidas para opor-se ao cumprimento de uma lei que veio, precisamente, corrigir essas irregularidades, (...)” Pela que consta da impetração e das informações, o histórico da Lei 2.449, nas partes de interesse para este julgamento, pode ser escalonado nas etapas que passo a recordar. I - Os quatro departamentos indicados de início foram transformados em autarquias por leis especiais, que regularam o regime do seu pessoal, a saber: DNEF, Lei 4.102, de 20-7-62; DNOS, Lei 4.089, de 13-7-62; NDPVN, Lei 4.213, de 14-2-63; DNOCS, Lei 4.229, de 1°-6-63. Em conseqüência dessas leis, os respectivos quadros de pessoal foram aprovados por decretos, entre eles, o Decreto 51.674, de 18-1-63, para o DNEF, e o Decreto 51.676, de 22-1-63, para o DNOS, que são as duas autarquias a que pertencem os impetrantes. 242 Ministro Aliomar Baleeiro II - Mudado o Governo, o Ministério da Viação discordou desses enquadramentos, que seriam, em parte, ilegais ou inconstitucionais e, em parte, perturbadores da boa administração, e providenciou uma série de medidas corretivas. III - Uma dessas medidas foi a aprovação, pelo Congresso, do art. 19 da Lei 4.345, de 26-6-64, que cuidava dos vencimentos do pessoal do serviço público federal. Esse dispositivo (Avulso de fl. 103-A, p. 8) subordinou a aplicação do reajustamento às autarquias e sociedades de economia mista subvencionadas pela União a uma revisão de quadros e tabelas. No § 2º dispôs que, com a execução do estabelecido no caput do artigo, ficariam revogados determinados dispositivos legais, todos referentes ao sistema de remuneração. IV - A seguir, o Governo expediu novos decretos sobre o pessoal das citadas autarquias, especialmente o Decreto 54.004, de 3-7-64 (normas gerais), o Decreto 54.266, de 8-9-64 (sobre o DNEF), e o Decreto 51.676, de 22-1-63 (sobre o DNOS). Mencionaremos, oportunamente, alguns dispositivos desses decretos. V - Não obstante isso, o Ministério entendeu que “somente por via legislativa será possível corrigir as anomalias verificadas”, justificando, assim, um projeto de lei que o Governo enviou à Câmara dos Deputados, o qual tomou o n. 6, de 1964 (Avulso de fl. 103-A, pp. 2 e 3). VI - Esse projeto, entretanto, foi rejeitado pelo Congresso, que, em substituição, aprovou o texto que veio a ser a Lei 4.449/64 e, a seguir, derrubou o veto que lhe foi oposto, salvo quanto ao art. 3º, como já foi referido anteriormente. VII - Por essa lei, afora outras disposições que serão oportunamente mencionadas, foram ratificados aqueles decretos anteriores à Lei 4.345/64, que tinham aprovado os quadros e tabelas das mencionadas autarquias, entre eles, o Decreto 51.674/63 (DNEF), com as retificações resultantes dos de n. 52.951/62 e 53.463/64; e o Decreto 51.676/63 (DNOS). Deixo de mencionar os outros, porque os impetrantes são funcionários somente dessas duas autarquias. VIII - Ao dispositivo que restabeleceu esses decretos, bem como a alguns outros da Lei 4.449/64, o Sr. Presidente da República negou aplicação, por considerá-los inconstitucionais. Esse é o caso, em suas linhas gerais, no que se refere aos textos normativos. Vejamos, agora, a situação funcional de cada um dos três impetrantes, que pleiteiam a irrestrita aplicação da Lei 4.449. Foi ela exposta nas informações oficiais e nas alegações das partes pela maneira que passo a resumir. a) O primeiro impetrante, Dr. Fernando Lins Vidal, é o Procurador interino de 3ª categoria do DNEF. Alega, em memorial, que seu direito a ser efetivado, mediante concurso de títulos, resulta da Lei 2.123, de 1º-12-53, complementada 243 Memória Jurisprudencial pela Lei 3.414, de 20-6-58 (como se decidiu no MS 13.773), já que essa legislação não foi revogada com a aprovação de veto no art. 3º da Lei 4.449. Esse artigo se limitava, redundantemente, a mandar aplicar a Lei 2.123. Por outro lado, sustenta a administração que a efetivação do primeiro impetrante naquelas condições só se poderia fundar no citado art. 3º da Lei 4.449, dispositivo que caiu por meio do veto. Também não lhe aproveitaria o art. 1º, § 3º, porque, embora se refira a procuradores, só cuida dos “ocupantes de classes singulares e séries de classes”, mandando enquadrá-los após cinco anos de exercício. Essa efetivação, aliás, a administração tem por inconstitucional, em face do art. 186 da CF. b) Os dois outros impetrantes, Dr. Hélio Cruz de Oliveira e Dr. Uriel de Resende Alvim, são Procuradores de 1ª categoria, efetivos, o primeiro do DNEF, e o segundo, do DNOS. Ocupavam cargos efetivos de Consultor Jurídico, nas suas autarquias, de acordo com as leis e decretos de enquadramento, que foram restabelecidos pela Lei 4.449. Pretendem voltar à sua situação anterior de Consultores Jurídicos. O parecer da douta Procuradoria-Geral é deste teor (fl. 114): “1. A impetração é dirigida contra ato do Senhor Presidente da República, que autorizou o descumprimento dos arts. 1º, 2º, 3º e § 5º, do art. 4º, da Lei 4.449/64, sob o fundamento do ter havido violação do art. 5º do Ato Institucional, visto ter sido aumentada a despesa sem iniciativa do Poder Executivo, e bem assim vulneração do disposto no art. 186 da Carta Magna, de vez que foram efetivados interinos em cargos de carreira. Alegam os impetrantes: a) o segundo motivo invocado para a negativa de cumprimento da lei (inconstitucionalidade da efetivação de interinos) não fora inserido na exposição encaminhada ao Congresso, na justificativa dos vetos opostos ao projeto, onde se argüiria, tão só, a violação ao art. 5º do Ato Institucional; b) inexiste a pretendida infringência ao art. 5º do Ato Institucional, eis que o Congresso Nacional se limitara a conservar a situação preexistente, mantendo a despesa prevista para o pessoal; c) nem o Ato Institucional, nem o art. 186 da Constituição Federal são aplicáveis às autarquias; e por último; d) não cabe ao Poder Executivo suspender a execução de lei por considerá-la inconstitucional. 2. Vieram as informações de f. 46 usque 112, nas quais o ilustre Consultor Jurídico, Dr. Helio Doyle, em substancioso trabalho, demonstra o descabimento da impetração, esclarecendo: 244 Ministro Aliomar Baleeiro a) caber ao Poder Executivo não executar lei inconstitucional, até final pronunciamento do Judiciário; b) ser a Lei 4.449/64 inconstitucional em parte, porque feridos o art. 5º do Ato Institucional e 186 da Lei Maior, visto que, inequivocamente, houve aumento de despesa e efetivação de interinos em cargos de carreira; c) serem os arts. 5º e 186, respectivamente, do Ato Institucional e da Lei Magna, aplicáveis aos autárquicos, servindo-se, para a composição do seu ponto de vista, de longa série de citações as mais provectas. Conclui por entender que ao dr. Fernando Lins Vidal falece qualquer direito de estar em Juízo, porque interino era e interino continuará, não sofrendo, por isso mesmo, qualquer alteração na sua situação; e que, quanto aos outros impetrantes, a postulação é improcedente. 3. No Recurso Extraordinário n. 55.718, citado nas informações (f. 57), como, de resto, em muitos outros, opinamos pela possibilidade de negar-se o Poder Executivo a cumprir lei que considere inconstitucional. E, assim sempre entendemos, porque o Executivo é, também, guardião da Constituição, à qual seu Chefe jurou respeito. Ora, na espécie sub juris, o Executivo defrontou-se com lei manifestamente inconstitucional e não a cumpriu, ensejando a impetração da presente segurança e propiciando ao Poder Judiciário a oportunidade de declarar-lhe a inconstitucionalidade, o que, fatalmente, ocorrerá, diante da brilhante exposição feita nas doutas informações, que integralmente adotamos. 4. Nosso parecer, por conseguinte, é contrario ao deferimento do pedido. Distrito Federal, 26 de outubro de 1965. Oswaldo Trigueiro – Procurador Geral da República.” Certidões oferecidas, posteriormente, pelos impetrantes, comprovam que, à data em que o Ministério da Viação empreendeu o reenquadramento do pessoal das mencionadas autarquias, o segundo e o terceiro impetrantes já contavam mais de vinte anos de serviço público. Está feito o relatório. VOTO O Sr. Ministro Victor Nunes (Relator): São apenas três os impetrantes deste mandado de segurança, mas a sua fundamentação foi deduzida em termos amplos, envolvendo toda a reorganização das quatro autarquias do Ministério da Viação mencionadas no relatório. 245 Memória Jurisprudencial Como a segurança é garantia de direito individual (CF, art. 141, § 24), devemos examinar de preferência a situação pessoal dos impetrantes, em face das leis e da Constituição. Mas, neste caso, há um fundamento geral que transcende desses limites e tem perfeita adequação: o de saber se o Executivo pode negar aplicação a uma lei por motivo de inconstitucionalidade, transferindo aos prejudicados o ônus de provocar o veredito judiciário ou se deve o Executivo cumprir a lei, digamos sob protesto, promovendo, ele próprio, a manifestação do Judiciário sobre a sua constitucionalidade. Os outros dois fundamentos genéricos do pedido (aumento de despesa e efetivação de funcionários interinos) podem ser examinados em função das situações individuais dos impetrantes. Mas o primeiro, por seu caráter prejudicial, tem de ser considerado nos termos amplos em que foi proposto. Sua relevância teórica e pratica é indiscutível, e foi ele suscitado, no caso que ora nos ocupa, pelo próprio Consultor-Geral da República, o eminente Dr. Adroaldo Mesquita da Costa. E S. Exa., para concluir em prol da prerrogativa presidencial de negar aplicação às leis que tem por inconstitucionais, retificou o ponto de vista contrário, que havia desenvolvimento em dois outros pareceres (021-H, DO de 22-6-64; 166-H, DO de 26-4-65). Sempre sustentei a opinião agora abonada por S. Exa., mas o tema vem, neste caso, ao Tribunal, sob um novo e importante aspecto, à vista da EC n. 16, de 1965, promulgada posteriormente ao seu parecer. Pelo seu art. 2º, o art. 101, I, letra k, da Constituição, passou a ter a redação seguinte: “Ao Supremo Tribunal Federal compete: I - processar e julgar originariamente: k) a representação contra inconstitucionalidade de lei ou ato de natureza normativa, federal ou estadual, encaminhada pelo Procurador-Geral da República”. Esse texto, que ampliou o que constava do Anteprojeto do Supremo Tribunal (Reforma Judiciária, I.N., 1965), introduziu em nosso direito positivo a inovação valiosíssima da representação de inconstitucionalidade de lei federal em tese, de iniciativa do Procurador-Geral. A medida constante do art. 8º, parágrafo único, que era restrita ao direito estadual e aos princípios fundamentais do art. 7º, n. VII, da Constituição, foi alargada para abranger quaisquer casos de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, federal ou estadual. Argumentam os impetrantes que, tendo sido aberta essa via direta para uma pronta decisão do Supremo Tribunal sobre uma lei que o Executivo tenha por inconstitucional, já não se lhe pode reconhecer a prerrogativa de negar cumprimento a essa lei, por autoridade própria, carregando ao prejudicado o incômodo e o dispêndio de suscitar a manifestação do Poder Judiciário. 246 Ministro Aliomar Baleeiro Os Presidentes norte-americanos muito têm contribuído, com suas iniciativas, parar firmar certas interpretações da Constituição, como se ensina nos compêndios universitários. Veja-se, por exemplo, o que dizem Ferguson e McHenry, The American System of Government, 7. ed., 1963, p. 65: “Os tribunais e o Congresso não têm o monopólio do direito de interpretar a Constituição. Há muito tempo, os Presidentes tem insistido em que a Carta Magna deve ser interpretada pelo que realmente traduz o seu texto, e suas opiniões frequentemente têm prevalecido”. A prática norte-americana, portanto, não é favorável a subordinar-se o Chefe do Executivo a um prévio pronunciamento do Judiciário em matéria de inconstitucionalidade de lei, embora, após a polêmica entre Jefferson e Marshall, tenha ficado consolidada a doutrina de que ao Judiciário cabe a palavra conclusiva ou derradeira. Nossa jurisprudência também tem sido hostil à tese dos impetrantes, reconhecendo ao Executivo a opção entre provocar a manifestação do Judiciário ou não cumprir a lei que repute inconstitucional, e ao Legislativo a de anular leis ofensivas da Constituição. Vejam-se estes pronunciamentos do Supremo Tribunal, ou de alguns de seus Ministros, quase todos mencionados no parecer do Consultor-Geral e nas informações do Governo: Rp 322 (1957), RTJ 3/760; RMS 4.211 (1957), RTJ 2/386; RMS 5.860 (1958); MS 7.234 (1960, RDA 59/338); Rp 512 (1962), DJ de 26-9-63, p. 910; RE 55.718 (1964), RTJ 32/134; RMS 14.557 (1965), RTJ 33/336. Em contrário, pode-se argumentar, de um lado, que esses precedentes são anteriores à modificação que a EC 16 introduziu no art. 101, I, k, da Constituição, e, de outro lado, que nos Estados Unidos não existe dispositivo equivalente. Realmente, a ampla representação de inconstitucionalidade, que nosso direito constitucional agora obriga, põe a questão sob uma nova luz, que me leva a não insistir nos votos proferidos anteriormente. A interpretação advogada pelos impetrantes tem uma sólida contextura lógica e contribui, notavelmente, para o aperfeiçoamento jurídico do nosso regime de poderes limitados e divididos, sobre a vigilância do Judiciário, que é o fiel da Constituição. Teremos, assim, um mecanismo coordenado e harmônico, no que respeita à inconstitucionalidade das leis. O Presidente da República manifestará o seu entendimento pelo veto e, se este for rejeitado, poderá reiterá-lo por meio da representação de inconstitucionalidade, a ser formulada pelo Procurador-Geral, titular de sua imediata confiança. O Congresso, por sua vez, dará o seu pronunciamento, primeiro, quanto votar o projeto e, depois, quando tiver de apreciar o veto. Finalmente, o Judiciário, guarda do equilíbrio dos Poderes, solucionará a controvérsia, pela voz do Supremo Tribunal, ao julgar a representação. 247 Memória Jurisprudencial Se é conclusiva, nessa matéria, a decisão do Supremo Tribunal, o lógico é que essa decisão seja provocada antes de se descumprir a lei. Anteriormente à EC 16/65, não podíamos chegar a essa conclusão por via interpretativa, porque havia um meio processual singelo e rápido que ensejasse o julgamento prévio do Supremo Tribunal, Mas esse obstáculo está arredado, porque o meio processual foi agora instituído no próprio texto da Constituição. Essa interpretação, aliás, dá novo vigor à presunção de constitucionalidade das leis, que já fora reforçada pelo art. 200 da Constituição, que remonta à Constituição de 1934, e pelo qual os Tribunais só podem declarar a inconstitucionalidade pelo voto da maioria absoluta dos seus juízes. Recorde-se ainda que já tínhamos herdado da jurisprudência norte-americana outro suporte para essa presunção: a regra de other clear ground, que manda evitar a declaração de inconstitucionalidade, quando a causa puder ser decidida por outros fundamentos. Com a nova interpretação, baseada na EC 16, que estou aderindo após madura reflexão, resulta que a lei, até ser declarada inconstitucional pelo Judiciário, será obrigatória não só para os particulares como também para os Poderes do Estado, o que confere ao regime de legalidade uma eficácia prática proporcionada à sua projeção teórica. Assim já tem votado o eminente Sr. Ministro Vilas Boas (RE 55.718, 26-11-64) e parece que o eminente Ministro Carlos Medeiros Silva votou de igual modo, recentemente, na 3ª Turma. O Sr. Ministro Carlos Medeiros: Se V. Exa. permite, darei esclarecimento a respeito desse voto. Realmente, como Relator do RMS 13.844, de São Paulo, a questão foi suscitada e o Tribunal de São Paulo havia reconhecido ao Sr. Governador a faculdade de repudiar cumprimento de certa lei, por julgá-la inconstitucional. Proferi desde logo o meu voto na Turma, não aceitando essa tese, mas, dada a relevância da matéria, os eminentes colegas, então presentes, propuseram que a matéria fosse submetida ao Pleno, e não houve, até este momento, oportunidade desse pronunciamento. Mas o meu voto já foi exarado e eu peço para ler a sua parte principal: Diz o acórdão de São Paulo, em sua fundamentação: “Não se discute a inconstitucionalidade da Lei 7.851, de 11-3-1963, mas sim, do meu Ato do Excelentíssimo Sr. Governador do Estado, que negou cumprimento ao art. 5º, nº III da referida lei. Ou, como salientou o impetrante, expressamente: “O thema decidendum não é a inconstitucionalidade da lei que o Executivo se nega a aplicar, e sim, a inconstitucionalidade dessa atitude negativa. Se o Judiciário entender inconstitucional o ato do Governador, a segurança deve ser 248 Ministro Aliomar Baleeiro concedida, pois houve violação a direito subjetivo, assegurado em lei, através de ato inconstitucional. Objeto da atuação jurisdicional não é, no caso, a lei que o Executivo entendeu inconstitucional, e sim, o ato constitucionalmente ilícito que o Governador praticou, deixando de aplicar a lei e avocando, para si, função que é da exclusiva competência da Assembléia, após pronunciamento do Judiciário” (fls. 11/12). E, sob o prisma acima, pode o Executivo deixar de cumprir a lei, sob alegação de ser a mesma inconstitucional? A questão não é nova. Luiz Eulálio de Bueno Vidigal teve oportunidade de escrever: “Se o ato legislativo não contraria à Constituição, ele não pode ser considerado ilegal, porque revoga qualquer lei anterior que se lhe contraponha. Se, ao contrário, ele é inconstitucional, é nulo e não pode, pó si só, ferir direitos particulares. Neste último caso, nada impede que a autoridade administrativa, reconhecendo-lhe a inconstitucionalidade, deixe de aplicá-lo” (Do Mandado de Segurança, pág. 124, § 69, ed. 1953) Francisco Campos (Direito Constitucional 1/442-443, ed. 1956) mostra que os Tribunais só opinam sobre a inconstitucionalidade das leis por ocasião de aplicá-las aos casos concretos; cada Poder, assim, tem a contar consigo mesmo para dirimir as questões relativas à sua competência; recusar, por conseguinte, ao Poder Executivo ou Legislativo a faculdade de interpretar a Constituição e em virtude de sua interpretação tomar decisões, seria instalar nos dois grandes motores da vida política do país ou do Estado, o princípio da inércia e da irresponsabilidade, paralisando o seu funcionamento por um sistema de frenação e obstrução permanentes (apud, ac. E. Supremo Tribunal Federal, RDA 59/351). Se o Poder Judiciário não é super Poder, mas se encontra no mesmo nível dos demais Poderes, nada impede que o Executivo e o Legislativo, no campo de sua competência, apreciem a norma legal, deixando de aplicá-la, quando a julguem inconstitucional. Isto porque, a lei inconstitucional “é absolutamente nula; não simplesmente anulável. A eiva de inconstitucionalidade a atinge no berço, fere-a ab initio. Ela não chegou a viver. Nasceu morta. Não teve, pois, nenhum único momento de validade” (Buzaid Da Ação Direta de Declaração de Inconstitucionalidade no Direito Brasileiro p. 128, § 58, ed. 1958). Perante os Tribunais, a questão tem sido focalizada, com certa freqüência, reconhecendo-se o direito do Executivo de deixar de aplicar a lei, sob alegação de sua inconstitucionalidade. 249 Memória Jurisprudencial Recentemente, a Egrégia Sexta Câmara Civil julgou: “Não compete exclusivamente ao Judiciário, embora sujeito ao seu controle final, o exame da constitucionalidade das leis, mas sim a todos os Poderes da República” (RT 323/341). E, o Supremo Tribunal Federal tem confirmado esse entendimento (RDA 42/230; 59/339; RTJ 2/386). A Folha de São Paulo, de 6-10-1963, noticiou o julgamento da Rep 512, do Estado do Rio Grande do Norte, na qual o E. Supremo Tribunal Federal, em V. julgado relatado pelo Ministro Pedro Chaves, decidiu: “é legítimo ao Executivo recusar-se a cumprir lei que considere inconstitucional.” E, então, o Tribunal de São Paulo aceitou a tese de que o Sr. Governador podia deixar de cumprir a lei, por entendê-la inconstitucional. Eu sempre pensei em contrário. Em 1951, quando tive a honra de exercer o cargo de Consultor-Geral da República, portanto Consultor do Excelentíssimo Sr. Presidente da República e dos Ministros de Estado, fui consultado sobre o assunto, porque o Presidente da República de então, em fevereiro daquele ano, manifestara ao Sr. Ministro da Justiça a propósito de não cumprir determinadas leis do Governo anterior. S. Exa. não se julgava comprometido com a sanção oposta a estes textos, pelo seu antecessor. Tive, então, oportunidade de emitir parecer, sustentando a tese de que o Presidente da República devia cumprir as leis, ainda que sancionadas pelo Governo anterior, ainda que S. Exa. entendesse que essas leis estavam maculadas da eiva de inconstitucionalidade. Esta tese, tive oportunidade, agora, de repetir, em ligeiro voto proferido na assentada de julgamento da Terceira Turma, que peço licença para reler, pois não é longo: “A doutrina de que o Poder Executivo pode negar cumprimento a lei, por julgá-la inconstitucional, não me parece bem fundada, data venia, dos eminentes jurisconsultos que sustentam aquela faculdade, ou direito, como opinam outros. Toda lei posta em vigor, mediante sanção ou promulgação, goza da presunção de constitucionalidade, porque tanto o Legislativo como o Executivo, quando de sua elaboração, têm oportunidade de se oporem ou de repudiarem os projetos eivados de vício de inconstitucionalidade — se não o fizeram, devem observá-la, e o Presidente da República presta o compromisso, no ato de sua posse, “de manter, defender e cumprir a Constituição da República, e observar as suas leis” (art. 83, parágrafo único, da Constituição). 250 Ministro Aliomar Baleeiro O Supremo Tribunal Federal tem admitido o repúdio de leis inconstitucionais, pelo Legislativo, especialmente na esfera estadual, porque o ato emana do próprio Poder que elaborou o texto e tem a prerrogativa da dar-lhe vigência, pela promulgação, rejeitando o veto do Executivo. Ao Judiciário, no nosso sistema constitucional, do tipo norte-americano, é essa a sua mais alta prerrogativa. Mas o Executivo, que não pode revogar a lei, elaborada pelo Legislativo, o que deve fazer, segundo o compromisso constitucional, é observá-la e expedir decretos e regulamentos para a sua fiel execução. Não pode desvincular-se, por ato unilateral, desse compromisso constitucional, mesmo que tenha argüido, por ocasião de veto, a inconstitucionalidade do projeto, desde que ele se transformou em lei, as reservas ficam no plano subjetivo, das opiniões pessoais, que não podem arredar o compromisso constitucional de observar as leis. Negando cumprimento ao texto legal, o que o Executivo faz é negarlhe vigência quando ele está em vigor por determinação do órgão constitucional competente, mediante sanção ou promulgação — é opor-lhe novo veto, fora do tempo, e agora ao texto legal. A doutrina do repúdio à observância da lei pode se tornar subversiva da ordem jurídica quando houver sucessão de chefe do Executivo, inconformado com atos de sanção de seu antecessor, por motivos meramente políticos e de caráter subjetivo. O remédio para situações anômalas ou prejudiciais ao interesse está na promoção do Legislativo, mediante mensagem do Executivo, solicitando a revogação do texto malsinado e demonstrando as razões do repúdio. E isso não oferece mais perplexidade ou o risco de delongas ante o processo legislativo vigente, de prazos fixos e fatais, tanto para a votação de Emendas Constitucionais, como de textos de leis ordinárias. E tanto era insegura a posição do Executivo, que a Emenda Constitucional foi promulgada para remediar situações críticas e tomou o n. 16, de 26-11-65. De fato, no art. 2 desse novo diploma constitucional, ao dar nova redação ao art. 101, I, letra h, incluiu-se na competência desse Egrégio Tribunal o julgamento de representação, do Procurador Geral da República, contra inconstitucionalidade de lei ou ato de natureza normativa federal ou estadual. A solução, agora, se afina com o sistema constitucional — ao Executivo inconformado caberá tomar a iniciativa diretamente junto ao Judiciário, para repudiar as leis inconstitucionais, por intermédio de seu representante qualificado. 251 Memória Jurisprudencial O que o chefe do Executivo do Estado recorrente deveria ter feito, no meu entender, era provocar Representação perante o Supremo Tribunal Federal (art. 7°, n. VII, b, da Constituição; Lei n. 4.337, de 1°-7-64), como tantas vezes tem ocorrido, em casos semelhantes. Ante o exposto e a relevância da matéria, voto no sentido de submeter o exame do caso ao Tribunal Pleno.” Queria fazer um aditamento às judiciosas e brilhantes considerações do eminente Relator. S. Exa. invocou autores americanos no sentido de legitimar-se a interpretação da Constituição por parte do Executivo. Mas uma coisa é interpretar a Constituição e outra é declarar a lei inconstitucional. Parece-me que aí há uma gradação. Repudiar a lei, eu, pelo menos, nas minhas leituras de direito constitucional americano, nunca encontrei uma afirmação positiva em que o Governo pudesse repudiar uma lei por inconstitucionalidade. Parece-me, data venia, que a invocação é um tanto genérica e imprecisa. No poder de interpretar a Constituição, não se deve entender, necessariamente ou implicitamente, o de repudiar lei por inconstitucionalidade. É o esclarecimento que desejava dar.” O Sr. Ministro Victor Nunes (Relator): Agradeço muito o esclarecimento do eminente Ministro Carlos Medeiros. S. Exa. já sustentou esse ponto de vista com brilho e proficiência na 3ª Turma. Apenas, tendo em vista uma observação lateral de S. Exa., quero explicar que a citação que fiz, do direito americano, foi para mostrar que não se encontra nos autores americanos, como doutrina assente, senão como opinião isolada, que o Presidente deva previamente exigir o pronunciamento do Judiciário antes de negar aplicação a lei que considere inconstitucional. O Sr. Ministro Carlos Medeiros: Então, não compreendi bem a observação de V. Exa. O Sr. Ministro Victor Nunes (Relator): O sentido era esse, e o entendimento geral é que aos três Poderes cabe interpretar a Constituição. É claro que a palavra final compete ao Judiciário, mas o Presidente, para agir, não depende do prévio pronunciamento do Judiciário. O Sr. Ministro Carlos Medeiros: Há alguns trechos constitucionais que são auto-executáveis. O Sr. Ministro Victor Nunes (Relator): Por outro lado, no direito americano não existe texto equivalente ao da redação que a Emenda Constitucional 16 deu a nossa Constituição. É, pois, o caso de dizermos, dentro da lógica do meu raciocínio: legem habemus. 252 Ministro Aliomar Baleeiro Prossigo na leitura do meu voto, Sr. Presidente: Sob outro aspecto, a interpretação a que estou aderindo não é obstada pelo princípio da retroatividade da declaração de inconstitucionalidade. Em primeiro lugar, esse princípio já tem suscitado dúvidas e abrandamentos na própria doutrina norte-americana que, nesta matéria, nos serve de inspiração. Em segundo, há constituições que só dão eficácia ex nunc, e não retroativa, à declaração de inconstitucionalidade. Haja vista a da Itália (art. 136) e a da Áustria (art. 140, n. 3). Esta última chega a permitir que a Alta Corte Constitucional prolongue, por prazo de até seis meses, a eficácia da lei declarada inconstitucional (texto em Mirkine-Guétzévitch, Les Constitutions Européennes, 2/526, 1/310; v. tb. Cleveland Maciel, A Obrigatoriedade da Lei e a Ordem Jurídica, 1961, pp. 19-20). O Supremo Tribunal já tem afirmado a regra da retroatividade (cf. RMS 14.691, 20-5-65), mas isso não é obstáculo, como dizíamos, à interpretação ora preconizada, porque a execução da lei, até o momento da declaração judicial de sua inconstitucionalidade, seria condicional, restabelecendo-se depois o status quo ante. Uma objeção poderia ser levantada sob outro ângulo, no que respeita à posição dos Governadores dos Estados, porque a representação de inconstitucionalidade é privativa do Procurador-Geral da República, que não é titular de sua confiança. Mas essa questão não oferece dificuldade maior, porque a praxe invariável dos Procuradores-Gerais, a propósito do art. 8º, parágrafo único, da Constituição, tem sido trazer ao julgamento do Tribunal, ainda que com parecer contrário, todas as representações de inconstitucionalidade apresentadas pelos Governadores. Nenhuma razão haveria para que mudassem de critério no que respeita à EC 16. Teríamos, assim, um rápido pronunciamento do Supremo Tribunal, tanto nas questões suscitadas pelo Presidente da República, como nas de iniciativa dos Governadores. Pelas razões expostas, acolho o primeiro fundamento da inicial, para deferir a segurança. Se a maioria entender de outro modo, prosseguirei no exame dos demais fundamentos. VOTO O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Sr. Presidente, durante muitos anos em minha vida, estive convencido de que não era lícito ao Presidente da República ou a Governador de Estado repudiar a execução de uma lei, sob alegação de que fosse inconstitucional. A minha convicção ficou abalada por um dos julgados deste Tribunal que sustentava tese contrária. São muitos. Eu me recordo de dois ou três, pelo menos, do eminente Ministro Candido Motta, em que S. Exa. citou, até, um tópico de Black, dizendo: “A lei inconstitucional é como uma lei nula”. E isso foi aplicado, pelo menos, a várias leis estaduais. 253 Memória Jurisprudencial Tinha impressão (por aí se vê como a memória nos trai) de que o eminente Ministro Carlos Medeiros, num parecer dado ao Estado de Santa Catarina, há cerca de três anos... O Sr. Ministro Carlos Medeiros: Mas eu propunha também que a Assembléia Legislativa revogasse a lei, como já tinha acontecido no Ceará e ocorreu, posteriormente, no Rio Grande do Norte — a Assembléia, não o Governo do Estado. O meu parecer está publicado. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Interpretei mal o pensamento de V. Exa, porque tinha na memória que V. Exa., apoiado num parecer do Professor Caio Tácito, havia sustentando essa tese. O Sr. Ministro Victor Nunes (Relator): Temos vários precedentes. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Tenho o apoio, agora, do eminente Ministro Victor Nunes, que, como todos sabemos, é a própria jurisprudência viva do Supremo Tribunal, andando pelas ruas. É pacífico que, nos últimos oito ou dez anos, o Supremo Tribunal Federal, iterativamente, tem reconhecido aos Governadores de Estado competência para não cumprir leis que, em sua consciência, em sua convicção, reputem inconstitucionais. Eu reagia, às vezes, desconfiado de mim mesmo, porque é notório que não morro de amores pelo regime presidencial, nem pela chamada teoria da harmonia e independência dos Poderes. Se dependesse de mim, o País teria outra forma de governo, e não teríamos governo como este, o presidencialista americano. O que vemos aqui é o irracionalismo do regime presidencial, que se está agravando, como se agravou em 1946, cuja Constituição, no art. 8º, dá competência ao Supremo Tribunal para declarar, de plano e em tese, a inconstitucionalidade de leis dos Estados. E, agora, a letra k do inciso I do art. 101, a que o art. 2º da Emenda Constitucional n. 16 deu nova redação, estendendo o dispositivo às leis federais. No momento em que se disse, no Brasil, que o Supremo Tribunal sofreu um capitis diminutio, ao contrário, ele estava adquirindo um poder que não tinha. Mas isso é uma controvérsia básica que diz respeito ao Supremo Tribunal nas suas funções políticas. O Sr. Ministro Victor Nunes (Relator): Dentro da índole do regime. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Mas, para que o Supremo Tribunal exerça as suas funções políticas, é necessário que ele faça seus julgamentos de valor e deixe de interpretar e aplicar a Constituição como nela está escrito. Ora, o eminente Ministro Victor Nunes, expondo seu magnífico voto, reportou-se àqueles precedentes americanos que, evidentemente, devem inspirar 254 Ministro Aliomar Baleeiro os nossos pronunciamentos. Tal inspiração já era recomendada no Decreto 898, de 1890, em que Campos Sales preconizava se aplicasse a jurisprudência da Suprema Corte dos Estados Unidos. S. Exa. lembrou que temos vários precedentes, nos Estados Unidos, de Presidentes hostis à judicial review da Corte Suprema: Thomas Jefferson, Andrew Jackson, Abraham Lincoln, Theodore Roosevelt e Franklin Delano Roosevelt. Esses foram dos maiores Presidentes que os Estados Unidos já conheceram. Projetaram-se fora dos limites da nação americana. Todos eles reivindicaram vivamente o direito de interpretar a Constituição. É sabido que, na Constituição dos Estados Unidos, não existe, expressamente, o poder de o Judiciário declarar inconstitucionais as leis. Isso é motivo de controvérsia até hoje, a despeito de 150 anos de prática, depois de 1803. Ainda menos o direito de declarar inconstitucional uma lei em tese. Ao contrário, a própria Corte Suprema sustenta que não é essa a sua missão. Ela só pode declarar a inconstitucionalidade em casos reais, nunca hipotéticos. É a jurisprudência que vem desde o começo do século XIX, no caso dos índios Cherokees contra o Estado da Geórgia. O Sr. Ministro Victor Nunes (Relator): Por isso eu insistia em que a nossa jurisprudência agora deve mudar, porque o nosso direito positivo diverge do norteamericano. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Agora me reporto ao eminente Ministro Victor Nunes, que fez muito bem em invocar direito americano. Direito é, sobretudo, experiência, não é lógica. O Sr. Ministro Victor Nunes (Relator): Mas a Emenda Constitucional n. 16 resultou, também, de uma experiência da vida pública. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: E nós teremos outras experiências, sobretudo os moços as terão, o que já não acontece comigo. O eminente Ministro Victor Nunes desenvolveu o seguinte raciocínio: depois da Emenda Constitucional n. 16, já não é lícito sustentar a tese de que o Poder Executivo pode repudiar a execução de uma lei que lhe pareça inconstitucional, porque há um meio próprio para isso. Na realidade, esse remédio não é tão pronto como o mandado de segurança. A representação, pelas normas que a regulam, na Lei de 1964, tem termos, tem prazo, ao passo que o mandado de segurança é muito mais rápido. O Sr. Ministro Victor Nunes (Relator): Não quero perturbar o raciocínio de V. Exa., mas... O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Ao contrário, V. Exa. me honra. O Sr. Ministro Victor Nunes (Relator): ...a meu ver — já sustentei isso no Tribunal —, a regulamentação que o Congresso fez do art. 8º, parágrafo único, 255 Memória Jurisprudencial foi em certo sentido, com permissão da palavra, uma exorbitância, porque a representação do art. 8º, parágrafo único, não é um processo judiciário comum. É uma prerrogativa político-constitucional do Supremo Tribunal Federal, vinculada à intervenção federal nos Estados. Assim como uma lei não poderia restringir, nessa matéria, as prerrogativas do Executivo ou do Congresso, também não o poderia quanto às prerrogativas do Supremo Tribunal. Aliás, o Supremo Tribunal sempre aplicou o art. 8º, parágrafo único, mesmo antes de haver lei que regulasse, porque não era necessária lei nenhuma para que o Supremo Tribunal exercesse aquela sua prerrogativa. Nenhum dispositivo de lei ordinária pode limitar nossas atribuições constitucionais, porque será dispositivo exorbitante dos poderes do legislativo. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Discutimos isso aqui ontem. Votei no sentido de conhecer como representação aquele mandado de segurança. Anteriormente à lei que regulou o processo de representação, o Supremo Tribunal tinha conhecido representações semelhantes, por iniciativa do Procurador-Geral da República, Professor Temistocles Brandão Cavalcanti. Se não me engano, o primeiro caso foi contra dispositivo da Constituição do Rio Grande do Sul, havido como inconstitucional, porque criava, na realidade, governo de gabinete. Fazia a nomeação do Secretário do Estado depender da aprovação da Assembléia. Mas o argumento do eminente Ministro Victor Nunes foi que, depois da Emenda Constitucional n. 16, não era mais possível isso. O Presidente tinha de tomar o caminho da representação e não o da defesa. Ora, ainda voltando ao direito americano, há algum modo geral de defesa, de provocar o pronunciamento de inconstitucionalidade de uma lei nos Estados Unidos? Primeiro, há defesa em qualquer processo. Quem quer que seja chamado aos Tribunais para fazer ou deixar de fazer uma coisa, pode opor a inconstitucionalidade da lei que se invoca — tanto um particular como o Presidente da República. Não há razão para que se tire do Presidente da República um direito que lhe é legítimo em relação a qualquer particular. E com os riscos políticos. O Presidente da República pode seguir esse caminho, mas, se não tiver maioria no Congresso, praticamente fica sem poder governar, como já aconteceu nos Estados Unidos e também no Brasil. Pode chegar até ao impeachment. O Presidente fica suspenso da função, ainda que só possa ser condenado pela maioria de dois terços. Segundo, há os chamados constitucional tests cases, vários processos que seriam como o mandado de segurança, mas cuja aplicação prática foi sendo construída durante mais de um século; terminou há oitenta anos. É o que chamamos no Brasil ação declaratória. O Presidente da República, na sua atitude, teria uma defesa que pode opor. Praticou o ato e assume o ônus de provocar o ProcuradorGeral da República no sentido de se declarar a inconstitucionalidade ou a constitucionalidade do ato. 256 Ministro Aliomar Baleeiro O Sr. Ministro Vilas Boas: É o que chamamos “pôr o carro adiante dos bois”. O Sr. Ministro Carlos Medeiros: O Presidente da República presta compromisso de cumprir a Constituição e as leis; o preceito está na própria Constituição. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: É uma circunstância. Cada um de nós nasce dentro da Constituição e tem que aceitá-la. O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Se o Presidente da República entende que, para obedecer à Constituição, deve descumprir a lei, estará cumprindo a Constituição... O Sr. Ministro Carlos Medeiros: Isso é uma opção de ordem subjetiva. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Em minha vida, já jurei a Constituição várias vezes: quando prestei compromisso como soldado e advogado, ao ser empossado como deputado, quando Secretário de Estado e aqui no Supremo Tribunal Federal. Se não tivesse prestado este compromisso, nem por isso deixaria de ter de respeitar a Constituição. Quem nasce no Brasil está sujeito à Constituição, mesmo que não queira. O Sr. Ministro Victor Nunes: V. Exa. me perdoe a insistência. Mesmo a ação declaratória de inconstitucionalidade, que há nos Estados Unidos, pressupõe um litígio específico. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: A coisa mais fácil nos Estados Unidos... Por exemplo, as ações de acionista... O Sr. Ministro Victor Nunes: Não se há de presumir que o Presidente da República simule demanda para trazer uma questão constitucional ao Supremo. Não existe no direito público americano o instituto que se criou no direito brasileiro, pelo art. 8º, parágrafo único, da Constituição, ampliado pela Emenda Constitucional n. 16. Essa diferença entre o direito positivo de um e de outro país é que me parece fundamental. Obriga-nos a ter doutrina diferente. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Sem nenhuma dúvida que o direito americano não é, na sua forma expressa, igual ao brasileiro. Nessa matéria se regula diversamente, porque, aqui, um Tribunal pode declarar a inconstitucionalidade da lei em tese, com determinado quorum, em certos casos, etc., e lá não há nada disso. Lá, ainda se controverte se não há usurpação da Corte Suprema ao declarar a inconstitucionalidade. Há mais de 160 anos discute-se isso nos Estados Unidos. Quero fixar a razão de ser do meu voto no seguinte ponto: a meu ver, e com todo o respeito que tenho pelas opiniões e pela atuação brilhante do eminente Ministro Victor Nunes, no caso, há, data venia, uma ligeira inconsistência, até no sentido peregrino da palavra, no sentido americano da palavra inconsistência. É que S. Exa., invocando a representação contra a inconstitucionalidade de uma lei 257 Memória Jurisprudencial federal, não pode excluir isso que se reconhecia como um direito do titular do Poder Executivo, antes da Emenda Constitucional n. 16. Por quê? Porque, depois de vigorar a Constituição de 1946 e depois de o Congresso Nacional regular a forma da representação por intermédio do Procurador-Geral do Estado para declarar a inconstitucionalidade de leis ou atos dos Estados — não obstante, desde há mais de quinze anos existir essa lei —, o Supremo Tribunal Federal, reiteradamente, como foi reconhecido por todos, em mandados de segurança, reconheceu o poder de o Governador repudiar a execução de leis inconstitucionais. O Sr. Ministro Carlos Medeiros: Mas, mediante lei das assembléias legislativas, data venia, é o caso do Ceará, o do Rio Grande do Norte e o de Santa Catarina. Não foi por autoridade própria que agiu o chefe do Executivo; o Governador pediu às assembléias que repudiassem os textos, e elas o fizeram. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Não, só nesses casos em que as assembléias, a meu ver, erroneamente, declaram nulas e de nenhum efeito as leis anteriores, não como nesses casos. O Sr. Ministro Carlos Medeiros: Foram esses os casos. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Há também outros casos em que as assembléias rejeitaram o veto do Governador, como é o caso deste mandado de segurança. O eminente Ministro Victor Nunes poderia socorrer-me. Não posso citar aqui, mas há, com certeza, acórdãos declarando que, mesmo no caso de o Poder Legislativo ter rejeitado o veto do Governador, ainda assim, era lícito ao Governador não cumprir a lei. O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Realmente, há. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Caio Tácito sustenta isso, baseado na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. O Sr. Ministro Carlos Medeiros: No caso do Rio Grande do Norte, o Governador Aluísio Alves pediu à Assembléia que revogasse a lei. O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: No caso do Ceará, também foi assim. O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Realmente, em casos como o do Ceará e o de Santa Catarina, a anulação se deu por lei, tendo sido, porém, inúmeros os casos, inclusive de São Paulo, em que os próprios Governadores deixaram de cumprir a lei, por inconstitucional. E o Supremo Tribunal lhes deu razão. O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Nunca votei assim. O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Estou dando a opinião do Tribunal. 258 Ministro Aliomar Baleeiro O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Nunca vi pronunciamento explícito do Tribunal nesse sentido. Caso concreto, tenho a impressão de que não existe nenhum. O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Eminente Ministro Gonçalves, há casos em que, inclusive, V. Exa. foi voto vencido. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Há casos, inclusive do eminente Ministro Candido Motta, que me provocaram meditação há alguns anos. S. Exa. dizia que lei inconstitucional é como lei que não existe, e seu acórdão foi vencedor. Citou Rui Barbosa. O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Tanto é assim que tenho escrito: “Se antes já existia, para os Governadores, o art. 8º da Constituição, e admitimos pudessem eles, apesar disso, deixar de cumprir as leis que considerassem inconstitucionais, parece-me que não devemos adotar critério diferente para o Governo Federal, só porque a este se estendeu a mesma possibilidade de representação que já tinham os Governadores”. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Felicito-me por ter chegado ao mesmo raciocínio de V. Exa. sem sequer termos trocado uma palavra. O Sr. Ministro Victor Nunes: V. Exa. permite, eminente Ministro Aliomar Baleeiro? Não queria interromper V. Exa... O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: É muita honra para mim. O Sr. Ministro Victor Nunes: ...mas sou obrigado a defender-me da acusação de inconsistente, que em bom vernáculo é contradição... O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Acusação? Trata-se de um esclarecimento que traz luz ao debate. O Sr. Ministro Victor Nunes: A meu ver, não há contradição alguma por duas razões: primeiro, a representação, do art. 8º, parágrafo único, está restrita aos princípios constitucionais do art. 7º, n. VII, da Constituição, não se estendendo a todos os casos de inconstitucionalidade; em segundo lugar, era uma etapa do processo político de intervenção federal nos Estados, não era um meio comum de se impugnar a inconstitucionalidade das leis. Portanto, o Governador, em todos os outros casos que não fossem os do art. 7º, n. VII, estaria tão desarmado de meios processuais para impugnar leis em tese como se achava o Presidente da República antes da Emenda Constitucional n. 16. O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Mas ficou destruído o argumento que se quis tirar da Emenda Constitucional que ampliou. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: O art. 7º estabelece sete princípios constitucionais. E são tão flexíveis, que tem servido de standard a tudo... 259 Memória Jurisprudencial O Sr. Ministro Carlos Medeiros: Temos indeferido centenas de representações. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: ...apesar do princípio de autonomia e independência dos Poderes. O Sr. Ministro Victor Nunes: Temos indeferido diversas representações, pelo fato de não enquadrarem qualquer dos princípios do art. 7º, n. VII, da Constituição. O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Mas, no caso, trata-se exatamente de um daqueles princípios, o da independência e harmonia entre os Poderes. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Forma republicana, por exemplo, para prevalecer uma lei federal que envolve a autonomia do Estado. Preciso de um esclarecimento, Sr. Presidente. Estamos votando só o primeiro argumento? Pelo primeiro argumento, denego o pedido, e, ainda me socorrendo de um argumento, aceitando-se que o Presidente da República assumiu compromisso de defender a Constituição e cumprir as leis, o que se dá diante do espírito dele é uma alternativa: “devo cumprir uma lei que viola a Constituição? Mais vale a Constituição; fico com a Constituição, estou contra a lei”. O juramento, em vez de coibir, o estimula a praticar o ato que praticou. Tudo isso se prende à raiz da própria Constituição, ao sistema de Governo que adotamos e que acho nefasto para a Nação. VOTO (Mérito) O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Sr. Presidente, interpreto o art. 186 como exigindo concurso de títulos e provas. Sei que há casos em que o Supremo Tribunal Federal tem se contentado apenas com o concurso de títulos. Vi várias vezes, no Congresso, interessados enchendo os corredores e fazendo uma pressão tremenda, fato que explica aquela confusão a que se referiu o eminente Ministro Oswaldo Trigueiro, então Procurador-Geral da República, em relação aos tesoureiros. O meio de que se tem usado para violar o artigo 186 da Constituição é o chamado concurso interno, concurso de títulos que, na prática, é para os nomeados, os interinos, com absoluta violação do princípio do mérito, que está subjacente no art. 186 da Constituição. São os interinos os únicos que acabam sendo considerados aptos para a continuação no cargo. Isso viola, a meu ver, completamente esse artigo. Por essas razões, indefiro o mandado em relação ao primeiro impetrante. Compreendi que, pela Lei 2.123, como foi exposto pelo eminente Relator, o primeiro impetrante ficou numa situação jurídica já estabelecida pela Lei 3.414, de 1958, que dispensava o concurso de títulos e provas, para considerá-lo somente no regime de títulos. 260 Ministro Aliomar Baleeiro O Sr. Ministro Victor Nunes: Nem a Lei 2.123 exigia provas. Ela mandou classificar na carreira de procurador quem exercesse função jurídica, e os que fossem interinos seriam submetidos a concurso de títulos. A Lei 3.414, de 1958, estendeu este regime às autarquias que se criaram ou viessem a ser criadas posteriormente à Lei 2.123. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Sr. Presidente, não aceito o argumento de que a rigidez da Constituição, no art. 186, não se aplica às autarquias. Elas foram criadas para dar ao Poder Executivo maior elasticidade na administração do serviço público. E, escapando aos princípios gerais e constitucionais, quer-se invocar o princípio e a estrutura das autarquias, para o fim de restringir essa mesma flexibilidade por parte do Executivo. Em resumo, nego ao primeiro impetrante, porque considero necessário o concurso. Nego também aos dois demais impetrantes por um argumento — e peço ao eminente Ministro Victor Nunes que retifique minha informação, se eu estiver errado. S. Exa. afirmou que, se os impetrantes estivessem sujeitos à situação que o Presidente da República pretende pela supressão dos dois cargos, eles teriam direito a uma disponibilidade com vencimentos integrais, nos termos da Constituição. O Sr. Ministro Victor Nunes: O governo não lhes reconheceu isso, mas eles teriam esse direito. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Eles não teriam interesse econômico no caso, e a condição para mandado de segurança é que haja interesse lesado. O Sr. Ministro Victor Nunes: O governo os classificou como procuradores de 1ª categoria. Portanto, não lhes está pagando vencimentos de consultor jurídico, mas vencimentos de procurador de 1ª categoria. O governo, em lugar de os pôr em disponibilidade, com a situação e os vencimentos de consultor jurídico, mudoulhes a categoria funcional, com rebaixamento de status e de vencimentos. Acho que não podia fazer isso, porque eles eram estáveis, tinham que ser mantidos no cargo, ainda que em disponibilidade, com vencimentos integrais. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Para mim, a situação não se coloca naquilo de que a Constituição fala: direito líquido e certo. O problema é controvertido. O Sr. Procurador-Geral da República insiste em que, em todos esses casos, houve aumento de despesa. O eminente Relator disse que não houve em relação aos três impetrantes, mas talvez haja em relação aos demais. Não tenho, em relação aos dois últimos, certeza de que eles sofreram lesão no seu direito. Nego a ordem. 261 Memória Jurisprudencial MANDADO DE SEGURANÇA 16.512 — DF Relator: O Sr. Ministro Oswaldo Trigueiro Requerentes: Engenharia Souza e Barker Ltda. e outros — Requerido: Senado Federal Resolução do Senado Federal, suspensiva da execução de norma legal cuja inconstitucionalidade foi declarada pelo Supremo Tribunal Federal. Inconstitucionalidade de segunda resolução daquele órgão legislatório, para interpretar a decisão judicial, modificando-lhe o sentido ou restringindo-lhe os efeitos. Pedido de segurança conhecido como representação, que se julga procedente. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em Sessão Plenária, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, conhecer do pedido como representação por maioria de votos. Brasília, 25 de maio de 1966 — Ribeiro da Costa, Presidente — Oswaldo Trigueiro, Relator. RELATÓRIO O Sr. Ministro Oswaldo Trigueiro: O Código de impostos e taxas de São Paulo (Decreto 22.022, de 31-1-53) dispõe em seu livro II: “Art. 1º O imposto sobre transações, criado pelo art. 2º da Lei n. 2.485, de 16 de dezembro de 1935, recairá sobre as transações efetuadas por empresas comerciais ou civis, individuais ou coletivas, que se dedicarem a negócios de: (...) b) construção, reforma e pintura de prédios e obras congêneres, por administração ou empreitada;” Tendo o arquiteto Abelardo Reidy de Souza se recusado a pagar esse tributo, que lhe foi exigido sobre os honorários contratados para a fiscalização de obra a ser construída por conta do proprietário, foi executado pela Fazenda estadual, cuja pretensão o Tribunal de Justiça julgou procedente. 262 Ministro Aliomar Baleeiro Não se conformando, aquele profissional interpôs Recurso Extraordinário, que aqui tomou o n. 38.538, teve como Relator o eminente Ministro Vilas Boas e foi julgado em sessão plenária de 16-6-61. O acórdão é o seguinte: “Ementa – Inconstitucional a cobrança do “imposto sobre transações”, feita pela Fazenda de São Paulo, com base na legislação tributária estadual — sendo por fato gerador a renda auferida em virtude de contratos de locação de serviços profissionais (Constituição, artigos 15, 19 e 21): Relatados e discutidos estes autos de Recurso Extraordinário n. 38.538 — São Paulo — Recorrente: Aberlardo Riedy de Souza e Recorrida: Fazenda do Estado: Resolve o Supremo Tribunal Federal declarar a inconstitucionalidade alegada, ut notas taquigráficas.” A decisão foi unânime e tomada pelo voto do Relator e dos senhores Ministros Candido Motta Filho, Gonçalves de Oliveira, Ary Franco, Hahnemann Guimarães e Lafayette de Andrada. Posteriormente, em 27-8-65, no RE 53.432 (Construtora de Imóveis São Paulo S.A. v. Fazenda do Estado), o Supremo Tribunal teve idêntico pronunciamento, na Segunda Turma, pelo voto dos Senhores Ministros Vilas Boas, Hermes Lima e Victor Nunes. Como acima esclarecido, a decisão do Tribunal Pleno sobre a inconstitucionalidade do tributo questionado foi prolatada em 19-8-60, seguindo-se a decisão da Turma em 24-10-61. Em 21-8-62, o eminente Presidente do Supremo Tribunal, pelo Ofício 621P, enviou ao Senado Federal cópias autênticas de acórdãos que declaravam inconstitucionais diversas leis, estaduais e municipais, bem como resoluções de entidades autárquicas, incluindo nessa relação o acórdão do RE 38.538, esclarecendo, entre parênteses: “Inconstitucionalidade da cobrança do imposto sobre transações”. Em 25-3-65, promulgou o Senado a seguinte resolução (DO, Seção I, Parte I, de 28-3-65, p. 6003): “Resolução n. 32, de 1965 Suspende a execução da alínea b do art. 1º do Livro II do Código de Impostos e Taxas do Estado de São Paulo, por infringência aos arts. 15, IV, e 21 da Constituição Federal. Art. 1º É suspensa, nos termos da decisão definitiva proferida pelo Supremo Tribunal Federal em sessão de 16 de junho de 1961, no Recurso 263 Memória Jurisprudencial Extraordinário n. 38.538, do Estado de São Paulo, a execução da alínea b do art. 1º do livro II do Código de Impostos e Taxas do mesmo Estado, por iinfringência aos arts. 15, IV, e 21 da Constituição Federal. Art. 2º Esta resolução entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.” Não aquiesceu a Fazenda estadual em considerar revogado o questionado dispositivo do art. 1º, b, do Livro II do Código de Impostos e Taxas. Como se vê do documento de fl. 20, o Coordenador da Receita, pela Instrução n. 3-65, entendeu que a inconstitucionalidade declarada deveria restringir-se às hipóteses rigorosamente idênticas à do arquiteto que, em primeiro lugar, trouxera o caso à apreciação do Supremo Tribunal. Nesse sentido, determinou: “1. É inexigível, em face do decidido no Recurso Extraordinário n. 38.538, o imposto sobre Transações, tendo por fato gerador a renda auferida em virtude de contrato de locação de serviços profissionais. 2. Nas demais hipóteses, o Imposto sobre Transações é exigível por força da legislação fiscal vigente.” Com apoio nessa interpretação, o Governador do Estado, em 15-9-65, representou ao Senado Federal, solicitando resolução de caráter interpretativo, no sentido de ser esclarecida ou modificada a Resolução n. 32/65, de forma a amoldá-la, com a precisão desejável, àquilo que, a respeito, fora decidido pelo Supremo Tribunal. O caso foi submetido à consideração da Comissão de Constituição e Justiça, que opinou pela procedência da representação, entendendo que a Resolução 32 dava ensejo a interpretações altamente desfavoráveis à economia paulista. A Comissão apresentou projeto que o Plenário aprovou e se converteu em nova resolução, promulgada em 14-10-65, e que é do teor seguinte: “Resolução n. 93 de 1965 Suspende cobrança de imposto feita pela Fazenda de São Paulo com base na legislação tributária estadual. Art. 1º É suspensa a execução do art. 1º, b, do Decreto n. 22.022, de 31 de janeiro de 1953, do Estado de São Paulo, que autorizava a cobrança do imposto sobre transações, tendo por fato gerador a renda auferida em virtude de contratos de locação de serviços profissionais, considerada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, em decisão definitiva prolatada no Recurso Extraordinário n. 38.538. Art. 2º É revogada a Resolução n. 32, de 1965. 264 Ministro Aliomar Baleeiro Art. 3º Esta resolução entra em vigor na data de sua publicação.” É contra esta nova Resolução do Senado Federal que a Engenharia Souza e Barker Ltda. e mais (27) vinte e sete empresas construtoras impetram o presente mandado de segurança, em que alegam: a) que a segunda Resolução do Senado Federal é inconstitucional na sua origem, natureza, forma e finalidade, e está ocasionando prejuízo irremediável às impetrantes; b) que, suspendendo a suspensão anterior, o Senado usurpou funções legislativas estaduais — restabelecendo lei inexistente — e fê-lo sem estar baseado em nova decisão judicial; c) que, aceitando a interpretação dada ao julgado pela administração estadual, o Senado procedeu como se fosse uma super instância, revogando praticamente uma decisão do Supremo Tribunal, e atribuindo a este pensamento por ele não manifestado; d) que as impetrantes estão sendo obrigadas a pagar tributo declarado inconstitucional, com efeito retroativo e com os ônus decorrentes da correção monetária. Para melhor esclarecimento do caso, em seus diversos aspectos, leio ao Tribunal o pedido de segurança (fls. 1-10) e as informações prestadas pelo Excelentíssimo Senhor Presidente do Senado Federal (fls. 55-59). O parecer da douta Procuradoria-Geral da República encontra-se à fl. 61 e diz o seguinte: “Em petição de 7-2-66 as impetrantes empresas construtoras com sede em São Paulo, requerem mandado de segurança contra a Mesa e o Plenário do Senado Federal para que seja considerada nula a Resolução n. 93 dessa casa do Congresso Nacional. Essa Resolução, aprovada em 14-10-65, revogou Resolução anterior, de n. 32, aprovada em 25-3-65, pela qual o Senado suspenderá a execução de determinado dispositivo do Código Paulista de Impostos e Taxas em virtude de decisão deste Egrégio Supremo Tribunal que o julgara inconstitucional. A argüição das impetrantes é a de que declarada por este Alto Tribunal a inconstitucionalidade do mencionado dispositivo, suspenso este pelo Senado em seguida a ofício de comunicação do julgado, mediante Resolução, não era lícito ao mesmo Senador revogar esta Resolução nem substituí-la por outra. 265 Memória Jurisprudencial Nas informações (fls. 55-59), de 9-3-66, o Exmo. Sr. Presidente do Senado explica que a segunda Resolução era de natureza interpretativa e estaria ajustada aos exatos termos da decisão judicial; e que era legítima a modificação ou revogação de uma Resolução daquele órgão do Legislativo por outra. Quanto ao cabimento do mandado contra ato do Senado, hoje está assegurado no art. 101, I, i, da Constituição, com a redação dada pela Emenda Constitucional n. 16, de 26-11-65. Há, porém, ainda, uma questão preliminar — a de saber se este Supremo Tribunal Federal pode, como querem os impetrantes anular a resolução senatorial. Se uma resolução, falando-se em tese, é de caráter administrativo ou, mais precisamente, é um ato administrativo, entre tantos que ao órgão legislativo é lícito praticar, a anulação se pode dar, pois se trata de uma situação particular ou individuada. Se, porém, ao revés, a hipótese é de ato revestido da generalidade própria da função legislativa, de ato-regra, já a solução é negativa. Não se trata, aí, de ato jurídico suscetível de anulação pelo Judiciário ressalvado a hipótese de declaração de inconstitucionalidade. No caso o ato é inquestionavelmente da função legislativa. É uma lei que perde a eficácia em conseqüência do pronunciamento do órgão legislativo que completa o do Judiciário. Fica, assim, fora do alcance do mandado de segurança, segundo a jurisprudência deste Alto Tribunal. E sendo ato legislativo, pode ser revogado por outro da mesma natureza. Claro é que a suspensão da execução da lei declarada inconstitucional, no todo ou em parte, como prevê o art. 64 da Constituição, há de se condicionar aos termos do decidido. Se o não for, ocorrerá então a hipótese de inconstitucionalidade, cuja declaração terá lugar por via de processo adequado. O dispositivo legal aqui impugnado estatuiu que o imposto sobre transações recairia sobre as efetuadas por empresas comerciais ou civis, individuais ou coletivas, que se dedicassem a negócios de (...) “b) construção, reforma e pintura de prédios e obras congêneres, por administração ou empreitada”. 266 Ministro Aliomar Baleeiro A ementa do acórdão de que resultou a primeira resolução do Senado é esta: “Inconstitucional a cobrança do imposto sobre transação, feita pela Fazenda de São Paulo, com base na legislação tributária estadual, tendo por fato gerador a renda auferida em virtude de contratos de locação de serviços profissionais”. Aquela primeira Resolução dispôs: “Art. 1º É suspensa, nos termos da decisão definitiva proferida pelo STF, em sessão de 16-6-61, no Rec. Extr. 38.538, do Estado de São Paulo, a execução da alínea b do art. 1º do livro II do Cód. de Imp. e Taxas do mesmo Estado por infringência aos arts. 15, IV e 21 da Constituição Federal. Atendendo a representação do Governador do Estado que alegou ter a decisão judicial se referido apenas a imposto calculado sobre o valor de obras tendo por base contratos de locação de serviços profissionais de arquitetura, desenho, especificação e fiscalização, o Senado aprovou a segunda resolução que declarou revogada a primeira e “suspensa a execução do art. 1º, b, do decreto que autoriza a cobrança do imposto sobre transações tendo por fato gerador a renda auferida em virtude de contratos de locação de serviços profissionais...” Em suma: teria havido divergência entre o acórdão e sua ementa; esta mais ampla que aquela. Na realidade, porém, o acórdão questionado, segundo o voto do Sr. Ministro Candido Motta Filho abrange todo o dispositivo impugnado (fls.12-13). Deveria, conseqüentemente, prevalecer a primeira resolução do Senado. Mas, como ficou exposto, não é possível o veto judicial a qualquer resolução de natureza legislativa daquele órgão, a não ser in concreto ou mesmo in genere, mas no processo próprio. Não cabendo mandado de segurança contra lei em tese (Súmula 266), está compreendida a hipótese da resolução de caráter geral. De resto, a lei paulista impugnada é de 1953; o acórdão que suspendeu um de seus dispositivos é de 1961; e as duas resoluções são de 1965. Já hoje a matéria constitucional discutida tem outra disciplina (emenda n. 16). Em face de exposto o parecer é pela denegação do pedido de mandado de segurança por inadmissível contra resolução do Senado suspensiva de execução de lei. 267 Memória Jurisprudencial Contra a mesma resolução os mesmos impetrantes, na mesma data, e com os mesmos argumentos apresentaram a este Supremo Tribunal reclamação que tomou o n. 691 e foi distribuída ao Exmo. Ministro Carlos Medeiros, em cujo processo foi dado o parecer constante da cópia anexa sendo, pois, o caso de julgamento conjunto”. VOTO O Sr. Ministro Oswaldo Trigueiro (Relator): Ainda que se queira apontar certa imprecisão na ementa do acórdão prolatado no RE 38.538, tenho como insuscetível de dúvida que o Supremo Tribunal declarou a inconstitucionalidade postulada pelo recorrente. Como consta da ata, declarou-se “inconstitucional o tributo em questão”. O tributo em questão era o previsto no Livro II, art. 1, b, do Código de Impostos e Taxas do Estado de São Paulo. Na relação constante do ofício enviado ao Presidente do Senado Federal, para os efeitos do art. 64 da Constituição, incluiu-se o RE 38.538, com o esclarecimento, entre parênteses, de que ele dizia respeito à “inconstitucionalidade da cobrança do imposto sobre transações”. Foi em razão desse expediente que o Senado, pela Resolução 32, suspendeu, nos termos da decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal, a execução da alínea b do art. 2º do Livro II do Código de Impostos e Taxas, por infringências dos arts. 15, IV, e 21 da Constituição Federal. Completou-se, assim, o processo estabelecido para o controle de constitucionalidade: a declaração do Supremo Tribunal foi seguida de manifestação formal do Senado, suspensiva da execução da norma legal questionada. Depois disso, poderia o Senado — por outra Resolução, de sua iniciativa, promulgada sete meses depois — revogar a anterior, para interpretar a decisão do Supremo Tribunal, por essa forma atendendo à reclamação apresentada pelo Estado de São Paulo? É a primeira questão a ser examinada. Em face da decisão do Supremo Tribunal e da primeira Resolução do Senado, entendeu o fisco estadual que a discutida alínea b não fora eliminada do Código de Imposto e Taxas. Seria ela inaplicável aos casos rigorosamente idênticos ao examinado no RE 38.538, porém continuava em vigor para a generalidade dos contribuintes. A essa exegese aderiu o Senado, e isso o levou a revogar a Resolução 32 para, por outra Resolução, a de n. 93, alterar, corrigir, ou apenas interpretar, como se queria, o que fora objeto de declaração pelo Supremo Tribunal. 268 Ministro Aliomar Baleeiro É compreensível o zelo publicano da administração estadual. Parece-me, todavia, que se ela entendeu que a decisão em causa fora obscura ou omissa, poderia ter vindo com embargos de declaração, oportuno tempore. Se, diversamente, estava convencida de que o julgado do Supremo tinha alcance limitado — permitindo, assim, que o tributo em causa continuasse a ser exigido nas hipóteses não expressamente consideradas — cabia-lhe promover a cobrança do tributo, ou delimitar-lhe o campo de incidência, por via legislativa. O apelo ao Senado é que me parece incabível, porque essa Casa do Congresso não tem, no elenco de suas atribuições, nem a de rever as decisões do Supremo Tribunal, nem a de suprir omissões que eventualmente se verifiquem no campo legislativo dos Estados. Pelo art. 64 da Constituição, incumbe ao Senado suspender, no todo ou em parte, a execução de lei ou decreto declarado inconstitucional, por decisão definitiva do Supremo Tribunal. Através desse expediente — originário da Constituição de 1934 —, deu-se ao Senado, em nossa sistemática política, o encargo de tornar inoperantes, erga omnes, as leis ou normas que o Poder Judiciário deixa de aplicar, in casu, por eiva de inconstitucionalidade. Não está sujeito a qualquer sanção específica o exercício dessa atribuição pelo Senado, mas este decerto tem como um de seus deveres primordiais o de velar pela ordem jurídica e preservar a harmonia que deve presidir à convivência dos Poderes. É curial que se, ao receber pedido de suspensão de execução de lei ou norma inconstitucional, o Senado tiver qualquer dúvida, quanto à forma ou mesmo quanto ao sentido da declaração judicial, poderá pedir ao Supremo Tribunal os esclarecimentos que entender necessários. Parece-me, entretanto, que, depois de atender à solicitação do Supremo Tribunal — promulgando resolução suspensiva da lei inconstitucional —, a competência do Senado está exaurida. Penso, por isso, que ele não poderia rever a matéria, quer para interpretar de decisão do Supremo Tribunal, sem que este fosse ouvido, quer para dirimir dúvida suscitada, no âmbito estadual, sobre a validade parcial da norma questionada. Na primeira hipótese, estaria ele atuando na esfera judiciária; na segunda, teria ido até o campo da legislação estadual. Nessas condições, tenho como inoperante a segunda Resolução, promulgada sob n. 93, sem que isso importe em desapreço ao Senado Federal, que terá procedido como entendeu de seu dever, e certamente movido por solicitação de interesse público, consoante o pronunciamento de sua Comissão de Justiça. O caso certamente está colocado no plano das relações entre os poderes constitucionais da República, parecendo-me, entretanto, sem proporções para configurar conflito de que resulte qualquer implicação de caráter político. 269 Memória Jurisprudencial Passando à segunda questão — a do cabimento do mandado de segurança —, não vejo como dele conhecer, para o efeito pretendido na impetração. Em primeiro lugar, porque o mandado de segurança é inadmissível contra a lei em tese, princípio consagrado em nossa jurisprudência predominante e inscrito na Súmula 266. Para o objetivo que se tem em vista, considero a Resolução do Senado como equivalente da lei, em seu aspecto material. Qualquer que seja o alcance da Resolução impugnada, parece-me indubitável que dela não resulta, imediatamente, lesão a direito líquido e certo de qualquer dos postulantes. Admitindo-se que ela possa autorizar a revivescência parcial da norma legal que, desde a publicação da Resolução 32, fora expungida da legislação fiscal do Estado de São Paulo, disso resultaria apenas a possibilidade de vir a Fazenda Pública a exigir, em alguns casos e de alguns contribuintes, o malsinado tributo. Enquanto essa cobrança não se materializa, ou não se apresenta como ameaça iminente, não há lesão de direito remediável por via de segurança. Se essa ameaça já existe, cabe então o mandado contra os exatores estaduais. Nesse caso, porém, a medida não pode ser impetrada originariamente ao Supremo Tribunal. Se, em vez de reclamar do Senado, como preferiu fazer, houvesse o Estado de São Paulo editado novo diploma legal sobre a matéria — voltando a exigir o tributo questionado, nos casos porventura não abrangidos pela declaração do Supremo Tribunal — é óbvio que os prejudicados poderiam recorrer à ação de segurança, para resguardo de seus direitos. Mas esta ação teria que ser dirigida não contra a Assembléia Legislativa, por ter aprovado a lei, e sim contra os agentes da Fazenda, incumbidos de dar-lhe execução em casos concretos. É o que se verifica, com freqüência, na prática judiciária, quando os contribuintes, com ou sem razão, se sentem lesados por imposições fiscais. Por essas razões, não conheço do pedido. VOTO O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Sr. Presidente, peço a Deus e aos eminentes Juízes me perdoem se disser alguma heresia, nesta Casa, porque o único meio de o Supremo Tribunal Federal construir a Constituição, é por esse processo de tentar, errar e corrigir o erro. Portanto, se um erro eu posso cometer, divergindo, é com grande embaraço para mim, porque tenho em alto apreço intelectual a opinião do eminente Sr. Ministro Pedro Chaves. O Sr. Ministro Pedro Chaves: Muito obrigado a V. Exa. 270 Ministro Aliomar Baleeiro O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Adoto o voto do eminente Sr. Ministro Oswaldo Trigueiro, na parte em que considera o mandado de segurança inadequado para o fim pretendido pelo impetrante. Como ambos os Relatores frisaram bem, o interesse de uma resolução do Senado para a execução do art. 64 da Constituição, é de ordem normativa — ou, para usar da expressão do Sr. Ministro Carlos Medeiros, “quase legislativa”. Revogar uma lei, suspender a execução de uma lei, é um ato jurídico de caráter normativo. O mandado de segurança, nesse caso, não se pode utilizar pelo mesmo princípio de que ele não é utilizado contra a norma em tese. Também acompanho o voto do eminente Sr. Ministro Carlos Medeiros contra a reclamação, data venia do eminente Dr. Procurador-Geral da República, porque ela tem um caráter correcional que a torna absolutamente imprópria para ser dirigida contra um dos órgãos dos Poderes da República. Até porque este órgão não tomaria conhecimento, nem daria a menor importância a essa decisão do Supremo Tribunal Federal. Ele a ignoraria. E isso não seria, de maneira nenhuma, proveitoso ao prestígio do Supremo Tribunal Federal nem, também, ao princípio de harmonia e independência dos Poderes. A reclamação de maneira nenhuma caberia. O mandado de segurança de maneira nenhuma caberia. Talvez fosse possível a representação, por intermédio do Procurador-Geral da República, já que o art. 1º da Emenda n. 16, acrescentando mais uma alínea k no art. 101, inciso I, da Constituição Federal, estendeu essa medida a que se referem os arts. 7º e 8º da Constituição contra as leis estaduais, também às leis federais. Talvez. Mas, no caso concreto, não interessa saber se é ou não a representação que cabe. É que não cabem o mandado de segurança nem a reclamação de caráter regimental. Poderia parar meu voto aqui, porém, acredito que o julgado de hoje será uma decisão como aquelas que integram o livro do Ministro Edgar Costa, Os Grandes Julgamentos do Supremo Tribunal Federal. Estamos, hoje, exercendo uma das funções mais importantes, justamente a de equilíbrio dos Poderes dentro da República, dentro da Constituição. Neste ponto, com a permissão do eminente Sr. Ministro Oswaldo Trigueiro, não creio que tenhamos poderes para dizer que o Senado não pode suspender uma resolução, com base no art. 64. O Sr. Ministro Oswaldo Trigueiro (Relator do Mandado de Segurança n. 16.512): Se nós tivermos de julgar, amanhã, em grau de recurso ordinário, mandado de segurança oriundo de São Paulo, como poderemos nos escusar à apreciação da matéria? 271 Memória Jurisprudencial O Sr. Ministro Luiz Gallotti : S. Exa. acha que, mesmo de meritis, o Supremo não pode anular o segundo ato do Senado. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Talvez não tivesse sido claro. Vou pôr o problema nos termos em que o eminente Sr. Ministro Oswaldo Trigueiro o colocou, há pouco, com muito brilho. A primeira pergunta foi esta: pode o Senado Federal revogar a sua resolução tomada com base no art. 64? E a segunda, posta, aqui, pelo eminente Sr. Ministro Pedro Chaves: pode o Senado deixar de suspender a lei que lhe é apresentada como inconstitucional? O Sr. Ministro Oswaldo Trigueiro (Relator do Mandado de Segurança n. 16.512): Infelizmente, pode, porque não há prazo nem sanção. É o que assinalei no meu voto. O Senado pode ser omisso durante vinte anos. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Tenho impressão de que o eminente Sr. Ministro Pedro Chaves, talvez por má-percepção minha, levantou a tese de que o Senado é obrigado a executar aquilo que o Supremo Tribunal Federal disse, quando afirma a inconstitucionalidade de uma lei. A expressão de S. Exa. foi: “o Senado é um executor das decisões do Supremo Tribunal Federal”. Então, S. Exa. admitiu que o Senado possa penetrar no julgado do Supremo Tribunal e apreciar se ele está formalmente compatível com a Constituição, isto é, se ele foi votado por um quorum adequado, de acordo com o art. 200 da Constituição, etc. Aí, não. Acho que, quando o Supremo Tribunal Federal decide, o acórdão que sai daqui tem, por si, a presunção de que o julgamento foi tomado com todas as cautelas constitucionais. O Sr. Ministro Pedro Chaves: Mas ninguém pode chegar a essa presunção sem as cautelas necessárias. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Será o Próprio Supremo Tribunal Federal que verificará se foram tomadas as cautelas, de acordo com as normas legais adequadas. O Senado, a meu ver, não pode fazer isso. É matéria interna corporis. Agora, o Senado, na minha opinião, tem discricionarismo político de suspender ou não. Se convier, ele suspende; se não convier, ele, ao invés de prestigiar a decisão do Supremo Tribunal, pode tomar a iniciativa de uma emenda à Constituição, ou ficar inerte. O Sr. Ministro Pedro Chaves: Era assim no tempo da Carta de 1937. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Só não poderá emendar se, com isso, ele vier a ofender a República ou a Federação. São os dois limites do poder de emendar do Congresso Nacional. 272 Ministro Aliomar Baleeiro O eminente Sr. Ministro Pedro Chaves citou a Constituição de 1937, que permitiu ao Poder Legislativo, se não se conformasse com as decisões do Supremo Tribunal, anulá-las. E nós sabemos que, desgraçadamente, o ditador, exercendo funções do Poder Legislativo em que se investira, suspendeu, de fato, pelo menos um acórdão do Supremo Tribunal, em 1939, ou 1940 e, se não me falha a memória, num caso em que os Desembargadores da Bahia haviam pedido um remédio judicial para não pagar o imposto de renda, que fora introduzido em relação aos magistrados, por um decreto-lei de março daquele ano. Recordo-me muito bem, apesar de ter ocorrido há tantos anos, de pungente acórdão em que, nesse caso melancólico, o eminente Ministro Carlos Maximiliano, um dos maiores nomes que passaram por esta Casa, se referiu ao assunto, dizendo que ele aí não daria mais o remédio judicial, porque não ficava bem ao Supremo dar, para não ser cumprido. E, então, lembrou os tempos em que se dava precedência aos Juízes nas cerimônias públicas. Foi um dos acórdãos mais famosos da história do Supremo Tribunal Federal e dos mais dolorosos, mesmo prolatado nos tempos mais atormentados desta Corte. Agora, o que sustento é que o Senado tem o direito de dar ou não dar a suspensão de lei impugnada como inconstitucional. Pode fazê-lo, para observar se o Supremo Tribunal se estabiliza na matéria e vem a ter uma jurisprudência predominante sobre ela. Não podemos negar que, na história do Supremo Tribunal, a respeito de inúmeras teses, a sua jurisprudência tem vacilado, e encontramos, às vezes, num espaço pequeno de tempo, decisões declarando que tal lei é inconstitucional, e outra, que é constitucional, acerca de vários problemas. Sabemos, acerca do art. 141, § 34, que se pode encontrar uma série de julgados num e noutro sentido. A respeito da possibilidade de uma lei federal poder isentar de imposto estadual ou municipal um serviço no qual a União tenha interesse, há acórdãos nesses dois sentidos. E os casos poderiam ser multiplicados ao infinito. O Senado tem o direito, mesmo depois da Súmula, de esperar que se pacifique, que afinal se tranqüilize o entendimento do Supremo Tribunal; porque pode acontecer que passe a resolução numa tarde e, nessa mesma tarde, resolva o Supremo que aquela lei, que era constitucional, seja inconstitucional. E pode ser, também, que o Senado prefira a reforma da Constituição, para prevalecer o sentido da lei, pugnado pelo Supremo Tribunal; e pode, também, não fazer nada — cruzar os braços, deixar a matéria em ponto morto, que nada, lhe acontece, porque não há qualquer sanção para a sua resistência. Será justificável que o faça, às vezes, porque é velho que um Tribunal da altitude do Supremo Tribunal Federal, ou da Corte Suprema dos Estados Unidos ou da Argentina, legisle num caso concreto. 273 Memória Jurisprudencial Às vezes, há matizes, em cada caso, e aquela decisão que diz que a lei é inconstitucional, assim procede em função de determinadas circunstâncias e distinções, e não em face da lei. Por essas razões, Sr. Presidente, adoto os votos de ambos os eminentes Srs. Ministros Relatores, não conhecendo nem de mandado de segurança, nem da reclamação. E, com ressalva a respeito desses poderes do Senado, que, a meu ver, podemos nos dispensar de apreciá-los, mesmo para não nos comprometermos, desde já o que não é necessário para a solução deste caso. VOTO O Sr. Ministro Adalicio Nogueira: Sr. Presidente, eu considero que, no caso, não se trata propriamente de uma lei em tese, mas de um ato do Senado Federal, que o praticou em nome da Constituição, para complementar, digamos assim, aquilo que o Eg. Supremo Tribunal Federal decidiu. Praticando tal ato, o Senado Federal estava, por conseqüência, cumprindo missão constitucional, que lhe foi outorgada, de acatar e complementar a decisão deste Eg. Supremo Tribunal Federal. Acho que se trata, como bem disse o eminente Ministro Pedro Chaves, de um ato conseqüente de resolução anterior do Supremo Tribunal Federal. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Permite o eminente Juiz um aparte? Eu queria ponderar a V. Exa. e ao Tribunal aquela cláusula do art. 64: “incumbe ao Senado Federal suspender a execução, no todo ou em parte, de lei ou decreto declarados inconstitucionais por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal”. O Sr. Ministro Pedro Chaves: Mas, no todo ou em parte, se o Supremo Tribunal Federal houver declarado a inconstitucionalidade, no todo ou em parte, isso é evidente. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Com a devida vênia, o Senado Federal tem opção para aceitar a conveniência de suspender um dos dispositivos, se forem mais de um, e não suspender os demais. Está na letra, está na própria essência... O Sr. Ministro Adalicio Nogueira: Não tenho aqui o dispositivo constitucional, mas o que ao Senado compete é, justamente, cumprir a decisão do Supremo Tribunal Federal, mandando, portanto, aplicar ou suspender... O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: O Senado não é um mero executor, um mero carimbo de borracha, para dar autenticidade ao ato. O Sr. Ministro Adalicio Nogueira: Nos termos da Constituição, o Senado, acatando a decisão do Supremo Tribunal Federal, suspenderá a disposição. 274 Ministro Aliomar Baleeiro O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: A redação é a seguinte: “Incumbe ao Senado Federal suspender a execução, no todo ou em parte, de lei ou decreto declarados inconstitucionais por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal”. Ele tem, a meu ver, como está neste dispositivo, o poder de, se forem dois ou três dispositivos, suspender um e não suspender os demais. O papel do Senado Federal não é o de um simples carimbo de borracha das decisões do Supremo Tribunal; ele tem uma opção política de achar conveniente suspender ou não. O Sr. Ministro Adalicio Nogueira: Se é íntegro e completo, ele tem de manter integralmente. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Não há razão para se manter. Pode ser que a nação inteira aceite uma lei defeituosa, inconstitucional, e 10 indivíduos, apenas, não a aceitem. O Sr. Ministro Pedro Chaves: Se a incumbência não fosse investigar a decisão do Supremo Tribunal Federal, ele estaria legislando, revogando uma lei, sem a cooperação da Câmara dos Deputados e do Presidente da República. O Sr. Ministro Adalicio Nogueira: Parece-me que a decisão do Supremo Tribunal Federal está dentro dessa proporção. De maneira que, assim sendo, eu também voto, data venia dos eminentes Ministros que me antecederam e do eminente Ministro Aliomar Baleeiro, que foi o voto que se seguiu imediatamente aos votos dos eminentes Ministros Relatores, conhecendo, também, do mandado de segurança, para deferi-lo nos termos do voto dos eminentes Ministros Prado Kelly e Pedro Chaves. VOTO (Preliminar) O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Sr. Presidente, conheço como representação, embora ainda não haja uma lei regulamentando o exercício dela em relação a leis federais. O conheço porque, quando entrou em vigor a Constituição de 1946, também não havia lei regulamentando o exercício desse remédio por parte do Sr. Procurador-Geral da República, e creio que foi Temistocles Cavalcanti que encaminhou as primeiras, independentemente de um texto legislativo; e o Supremo Tribunal Federal considerou auto-aplicável o dispositivo constitucional. Por esses precedentes, dado que o Sr. Procurador-Geral da República assumiu a autoria da reclamação e também o Senado Federal foi ouvido, embora em um prazo menor do que aquele que é concedido às Assembléias dos Estados em circunstâncias análogas, repito: em face do precedente, conheço da representação. 275 Memória Jurisprudencial EXPLICAÇÃO O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Sr. Presidente, peço a palavra para esclarecer meu voto. V. Exa. está computando meu voto vencido no mérito, da representação da Procuradoria-Geral, no caso, quando enunciei, inicialmente... O Sr. Ministro Ribeiro da Costa (Presidente): Por enquanto o que consta da minuta de julgamento é o seguinte: conheceram do pedido como representação, julgando-a procedente para anular o ato impugnado. Restam, agora, os votos que podem diferir. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Tive a impressão de que V. Exa. iria facultar, a quem quer que fosse, votar sobre o mérito. Porque, quando me pronunciei, inicialmente, me referi, apenas, à preliminar do não-conhecimento, quer da reclamação, quer do mandado de segurança. E disse, mesmo: não sendo necessário decidir sobre o mérito, pois não teria razão para me alongar sobre ele. Agora, quanto ao mérito, voto contra o provimento da representação. Creio — e, nisso, divirjo do eminente Sr. Ministro Victor Nunes Leal — que é lícito ao Senado rever a sua resolução. Creio que S. Exa. está equiparando duas hipóteses diferentes. S. Exa., como ouvimos aqui, considerou o ato do Senado com apoio no art. 64 a uma revogação de uma lei. Não. O que o texto diz, inegavelmente, é que a suspensão da execução é uma situação de direito; não é única em nossa Constituição, no art. 64. Além do caso do art. 64, temos um outro exemplo de que uma lei pode ficar em vigor e ter sua execução suspensa. Veja V. Exa., por exemplo, o art. 141, § 34. Ali, há dois princípios: que um tributo deve ser sempre decretado por uma lei; mas que a sua cobrança em cada exercício dependerá de uma prévia autorização orçamentária. Então, que acontece se o Congresso — estou discutindo no plano federal — ou uma Assembléia do Estado não concedeu autorização orçamentária para cobrança de um imposto em determinado orçamento, embora não haja sido revogada a lei que decreta esse imposto? A lei está em vigor; apenas faltou o ato que dá eficácia àquela lei naquele exercício. Pode o Congresso achar conveniente não revogar a lei e deixá-la para quando julgar oportuno utilizá-la. E, num determinado exercício, considerar que a receita daquele imposto ou conveniência da política possam não aconselhar a cobrança naquele ano. O caso não é único, por isso reconheço ao Senado o poder de suspender e rever o seu ato e fazê-lo em qualquer tempo. Poderia, também, chegar à conclusão de que mais convém aguardar aquela hipótese já aqui exposta pelo eminente Sr. Ministro Victor Nunes Leal: uma mudança, por exemplo, da composição do Supremo Tribunal, quando a margem de votação foi mínima, com apenas um voto de diferença, como é, por exemplo, o caso das taxas de incêndio de Pernambuco e Minas Gerais. 276 Ministro Aliomar Baleeiro A diferença de votação é muito pequena nesse caso. Como poderia, também, preferir o processo da emenda constitucional. Por essas razões, não me querendo alongar quanto ao mérito, indefiro a representação. O Sr. Ministro Hermes Lima: Se V. Exa. acha que o Senado pode rever... O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: O Senado Federal é um órgão político; pode rever. O Sr. Ministro Hermes Lima: ...isso significa que ele pode deixar de cumprir o acórdão do Supremo Tribunal que declarou a lei inconstitucional. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Pode. Suspenderá a lei se quiser e achar conveniente. Mas tem discricionarismo para não fazê-lo. Não há qualquer sanção para o Senado se não suspender a lei na forma do art. 64. Permita V. Exa. Esqueça, neste momento, que é um Juiz e volte ao tempo em que era político e Professor de Introdução à Ciência do Direito. Imagine uma hipótese que ocorreu em outro país: determinado Estado está profundamente conturbado por um problema político, por exemplo, aqueles Estados do Sul dos Estados Unidos, em 1860, e uma decisão, por exemplo, a do célebre caso Dred Scott, pode ser provocada por dois indivíduos, ou por um só indivíduo, enquanto todos os demais querem cumprir a lei. Isso pode provocar tamanha irritação no Estado, que o leve a tomar de armas, como lá aconteceu, em parte, por efeito de acórdão sobre Dred Scott. Então, o Senado não está preso à disciplina jurídica, não está preso às formas de direito, e pode optar por critérios políticos; pode preferir “suspender a sua suspensão”, para parodiar Pontes de Miranda, e evitar um mal maior para o País. A Constituição não é, apenas, um Oráculo de Delfos em matéria de ordem jurídica. Ela é para fazer andar o País; não é para fazer parar a vida do País. DECISÃO MS 16.512/DF — Relator: Ministro Oswaldo Trigueiro. Requerentes: Engenharia Souza e Barker Ltda. e outros (Advogados: Benedicto Pereira Porto e outro). Requerido: Senado Federal. Como consta da ata, a decisão foi a seguinte: conheceram do pedido como representação, julgando-a procedente para anular o ato impugnado, contra os votos dos Ministros Aliomar Baleeiro e Hermes Lima, no mérito. 277 Memória Jurisprudencial Presidência do Ministro Ribeiro da Costa. Relator o Ministro Oswaldo Trigueiro. Tomaram parte no julgamento os Ministros Carlos Medeiros, Aliomar Baleeiro, Oswaldo Trigueiro, Prado Kelly, Adalicio Nogueira, Evandro Lins, Hermes Lima, Pedro Chaves, Victor Nunes, Gonçalves de Oliveira, Vilas Boas, Candido Motta Filho, Luiz Gallotti e Lafayette de Andrada. Licenciado, o Ministro Hahnemann Guimarães. Brasília, 25 de maio de 1966 — Dr. Álvaro Ferreira dos Santos, ViceDiretor-Geral. RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA 18.534 — SP Relator: O Sr. Ministro Themistocles Cavalcanti Relator para o acórdão: O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro Recorrente: Editora Abril Ltda. — Recorrido: Juiz de Direito da Vara de Menores da Capital Obscenidade e pornografia. I - O direito constitucional de livre manifestação do pensamento não exclui a punição penal, nem a repressão administrativa de material impresso, fotografado, irradiado ou divulgado por qualquer meio, para divulgação pornográfica ou obscena, nos termos e forma da lei. II - À falta de conceito legal do que é pornográfico, obsceno ou contrário aos bons costumes, a autoridade deverá guiar-se pela consciência do homem médio de seu tempo, perscrutando os propósitos dos autores do material suspeito, notadamente, a ausência, neles, de qualquer valor literário, artístico, educacional ou científico, que o redima de seus aspectos mais crus e chocantes. III - A apreensão de periódicos obscenos cometida ao Juiz de Menores pela Lei de Imprensa visa à proteção de crianças e adolescentes, contra o que é impróprio à sua formação moral e psicológica, o que não importa em vedação absoluta do acesso de adultos que os queiram ler. Nesse sentido, o juiz poderá adotar medidas razoáveis que impeçam a venda aos menores, até o limite de idade que julgar conveniente, desses materiais, ou a consulta dos mesmos por parte deles. 278 Ministro Aliomar Baleeiro ACÓRDÃO Vistos e relatados estes autos de Recurso em Mandado de Segurança n. 18.534, do Estado de São Paulo, em que é recorrente a Editora Abril Ltda. e recorrido o Juiz de Direito da Vara de Menores da Capital, decide a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal dar provimento em parte, por maioria de votos, de acordo com as notas juntas. Distrito Federal, 1º de outubro de 1968 — Evandro Lins e Silva, Presidente — Aliomar Baleeiro, Relator para o acórdão. RELATÓRIO O Sr. Ministro Themistocles Cavalcanti: A Editora Abril requereu mandado de segurança ao Juiz da Vara de Menores da Comarca da Capital de São Paulo que, de acordo com o parecer do Dr. Curador de Menores, mandou apreender, em oficinas da empresa, 231.680 exemplares da revista Realidade, com graves prejuízos para a impetrante. A apreensão foi feita sob o fundamento de que é obscena a referida publicação. Que, entretanto, no conceito do art. 53 da Lei de Imprensa e no seu conceito usual, não se verifica tal obscenidade. Além do mais, a referida publicação devia ser distribuída em outras cidades do Brasil, onde os juízes de menores poderiam atender a outras conceituações da obscenidade. O juiz justificou o seu ato à fl. 22, apontando diversos artigos (fls. 71/77) que caracterizam a obscenidade e justificou seu ato que teria de atingir todos os exemplares ainda nas oficinas. Que o conceito de obsceno se refere estritamente ao pudor, cuja presunção se impõe à autoridade judiciária, conceito que no dizer de Nelson Hungria não se confunde com a expressão erótica. O Tribunal proferiu decisão que se resume na ementa à fl. 90, denegando o pedido e resumindo o que se contém no longo acórdão de fls. 90 a 99. Recorreu a impetrante contestando o conceito de obscenidade constante da decisão, por ser inaplicável na espécie, invocando a opinião do Dr. ProcuradorGeral, favorável à concessão da segurança (fl. 105), e que, na Inglaterra como nos Estados Unidos, o conceito evoluiu porque a literatura não pode estar no nível de menores, mas do público em geral. 279 Memória Jurisprudencial Que apenas dois artigos condenaram a revista — Porque me orgulho de ser mãe e Confissões de uma moça livre, e uma fotografia que seria de mau porte, mas não obscena. A douta Procuradoria-Geral da República é pela confirmação do acórdão recorrido. VOTO O Sr. Ministro Themistocles Cavalcanti (Relator): O exame do recurso envolve questão de saber se pelo artigo 53 da antiga Lei de Imprensa (de 1953), como o quer o acórdão recorrido, cabe ao juízo apreciar livremente os casos de obscenidade ou se a instância superior pode corrigir a aplicação da lei dada com excessivo rigor ou a indevido entendimento do conceito de “obscenidade”. A atual Lei de Imprensa usa de expressão diversa (art. 61, § 6º) e se refere a impresso que “a moral e os bons costumes” dispensam toda e qualquer forma de processo para a apreensão. O meio adequado, portanto, para reagir contra o ato judicial seria ação direta, por meio do mandado de segurança. A dificuldade da medida é que toda a questão se assenta fundamentalmente em um problema de prova, isto é, de verificação do ato do juiz em face do que consta dos textos publicados para verificar se os mesmos são obscenos. Direito líquido e certo pressupõe a prova da legalidade do ato, prova indiscutível de fato, de que decorra o direito e a sua violação. Ora, no caso presente será necessário não só o exame de todo o texto da publicação, mas também a apreciação do seu conteúdo. Não existe, além do mais, um critério objetivo para declarar se uma publicação é ou não obscena, não existe uma linha de demarcação entre o obsceno e o não obsceno. O sentimento de pudor com ele relacionado, na opinião dos autores, depende da formação moral de cada um, de sua educação, da idade, de concepção filosófica, etc. A leitura do número da revista apreendida, para mim, não pode ser considerada uma publicação obscena, precisamente porque não ofende o pudor, nem é erótica, embora não recomendável para pessoas pouco amadurecidas. Ali se justificam certas formas de comportamento que, no meu entender, não são dos mais salutares e contém narrativa de certas formas de vida que não condizem rigorosamente com preceitos tradicionais de moral. 280 Ministro Aliomar Baleeiro Numerosas revistas, porém, dispõem de consultores “sentimentais”, abundam em conselhos os mais extravagantes sobre a vida social, publicam artigos que, a rigor, só deveriam constar de revistas científicas ou livros especializados, cuja aquisição tem objetivo determinado e conhecido. Se formos analisar o que se publica na generalidade das revistas, poucas resistiriam a uma análise mais rigorosa, dentro do conceito fixado no ato impugnado. No meu entender, não se trata de revista obscena, embora considere profundamente medíocre, sob todos os pontos de vista, o que nela se contém. Considero de profundo mal gosto e se destina a um público pouco exigente. Nego, porém, provimento ao recurso porque não vejo no ato manifesta ilegalidade que justifique a concessão da medida impetrada, que, dentro do conceito que faz da obscenidade, considerou necessária a apreensão da revista. Não se pode, pela lei, negar ao juiz, certo arbítrio. Não é manifesta a ilegalidade. Confirmo por não ser líquido e certo o direito da recorrente. PEDIDO DE VISTA O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Sr. Presidente, peço vista dos autos. EXTRATO DA ATA RMS 18.534/SP — Relator: Ministro Themistocles Cavalcanti. Recorrente: Editora Abril Ltda. (Advogado: Sílvio Rodrigues). Recorrido: Juiz de Direito da Vara de Menores da Capital. Decisão: Pediu vista o Ministro Aliomar Baleeiro após o voto do Relator, que negava provimento ao recurso. Segunda Turma. Presidência do Sr. Ministro Evandro Lins e Silva. Presentes à sessão os Ministros Adalicio Nogueira, Aliomar Baleeiro, Themistocles Cavalcanti e o Dr. Décio Miranda, Procurador-Geral da República. Licenciado, o Ministro Adaucto Lucio Cardoso. Distrito Federal, 24 de setembro de 1968 — Guy Milton Lang, Secretário. VOTO O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: I - O egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo denegou segurança impetrada pela Editora da revista Realidade, que teve 281 Memória Jurisprudencial mais de 230.000 exemplares apreendidos — com um prejuízo calculado em NCr$ 300.000,00 — por determinação do Dr. Juiz de Menores da Capital daquele Estado, a pedido do MP; medida, aliás, tomada também por juízes de outras cidades. O v. Acórdão, à fl. 90, larga e brilhantemente fundamentado pelo em. Des. Almeida Bicudo, traz a seguinte ementa: “Não exorbita de sua competência o Juiz de Menores quando apreende toda a edição de uma revista, impedindo, assim, a sua remessa para outras cidades. Confiando ao Juiz de Menores a definição do que seja obsceno, a Lei de Imprensa colocou o conceito em nível da minoridade. O propósito de ultrajar a moral e os bons costumes não constitui requisito para caracterizar a ofensa ao art. 53 da Lei n. 2.083, de 1953. A educação sexual compete aos pais, não a estranhos”. A matéria publicada é resumida, no julgado, do seguinte modo, à fl. 95: “O exame dos artigos reunidos em edição dedicada à mulher brasileira revela, às claras, o objetivo da revista: ampliar a liberdade sexual e reduzir o casamento a “algo secundário e dispensável, senão desprezível”. Basta ler os títulos: Sexo não tem nada de indecência, Felicidade é possível sem o casamento, Devemos ser independentes a qualquer custo. Diga-se, também, que a matéria é tratada superficialmente, por vezes levianamente, sem mérito literário, e apresentada como resultado de inquéritos, cujo valor dificilmente pode ser aquilatado. Nas Confissões de uma moça livre há freqüentes referências ao clima social da Suécia, relativamente ao sexo, como modelo a ser seguido e ao qual “a noite funda da moral brasileira ainda” impede de chegar. As Três estórias de desquite constituem, em suma, uma sugestão, um convite à desquitada para refazer a sua vida ao lado de outro homem. Em Sou mãe solteira e me orgulho disso, se contém alguma coisa de útil, a tônica é que a maternidade é, em si mesma, propiciadora das melhores emoções e, assim, justifica e estimula que seja procurada fora do casamento.” E justifica o rigor no risco de corrupção moral das jovens e crianças: “A fotografia do parto, por certo, choca o sentimento comum de pudor e é obscena, segundo o conceito mais amplo, aqui admitido. A Realidade timbrou em tornar público aquilo que todos os povos insistem em ocultar até das pessoas mais íntimas da parturiente. Essa foto, que só caberia em revista científica especializada, não passa de violenta agressão ao pudor público. 282 Ministro Aliomar Baleeiro Verdade é que a revista contém excelentes páginas de exaltação à mulher. Nos próprios artigos criticados encontram-se trechos de inegável interesse. Parece, no entanto, que existem apenas para efeito de realçar o tema principal — a dissolução da família. E como acentuou a douta Procuradoria-Geral de Justiça, os padrões vigentes em nossa comunidade repelem a inovação, tanto que estão gravados na Carta jurídica da Nação como bem a merecer especial proteção do Estado (art. 167, Constituição Federal).” II - Ninguém contesta o direito de a sociedade, da qual é órgão o Estado, defender-se do obsceno e repugnante e, sobretudo, preservar de influências deletérias o caráter do adolescente e da criança. O art. 53 da Lei de Imprensa de 1953, invocada pela r. sentença, reconhece e dá poderes ao Juízo de Menores para ação repressiva eficaz e imediata. O art. 53 e parágrafo, citados, dispõem: “Não poderão ser impressos, nem expostos à venda ou importados, jornais ou quaisquer publicações periódicas de caráter obsceno, como tal declarados pelo Juiz de Menores ou, na falta deste, por qualquer outro magistrado.” § 1º Os exemplares encontrados serão apreendidos”. Mas o conceito de “obsceno”, “imoral”, “contrário aos bons costumes” é condicionado ao local e à época. Inúmeras atitudes aceitas no passado são repudiadas hoje, do mesmo modo que aceitamos sem pestanejar procedimentos repugnantes às gerações anteriores. A polícia do Rio, há 30 ou 40 anos, não permitia que um rapaz se apresentasse de busto nu nas praias e parece que só mudou de critério quando o ex-Rei Eduardo VIII, então Príncipe de Gales, assim se exibiu com o irmão em Copacabana. O chamado bikini (ou “duas peças”) seria inconcebível em qualquer praia do mundo ocidental há 30 anos. Negro de braço dado com branca em público, ou propósito de casamento entre ambos, constituía crime e atentado aos bons costumes em vários Estados norte-americanos do sul até um tempo bem próximo do atual. As Ordenações Filipinas submetiam a uma passeata com símbolos de irrisão na cabeça o marido condescendente e mandavam queimar o sodomita, para que não restasse memória do “vício nefando”. Na passagem do século, Oscar Wilde sofreu pena de cadeia por esse motivo, enquanto, quase na mesma época, nada padeceram, na França, Marcel Proust, André Gide e outros. Nas comemorações do 50º ano da morte daquele festejado escritor inglês, uma revista comentou que, se vivesse na atualidade, seria squire por decreto da Rainha com o tratamento de sir, em alusão clara ao maior ator britânico de hoje. 283 Memória Jurisprudencial Estudos recentes na correspondência do biógrafo Strachy, — o da Rainha Victória — e do célebre economista Lord Keynes os colocou nesse rol. E o Time já comentou isso. A fornicatio simplex já foi crime sujeito a penas cruéis nos tribunais eclesiásticos e a avó do grande Abrahan Lincoln se via perseguida por esse comportamento ainda no fim do século XVIII. Seria mandado para um hospício de alienados o juiz que apreendesse, hoje, Madame Bovary ou denunciasse Flaubert, mas este, há um século, foi a julgamento. Victor Margueritte, em 1922, perdeu a condecoração da Legião de Honra por ter publicado La Garçonne, obra que a polícia do Rio apreendeu como obscena e que está longe do erotismo da literatura contemporânea, além de não conter palavrões, como várias das atuais. A justiça federal norte-americana cancelou a proibição de Lady Chatterley´s Lover ser transportado nas malas de correio (U.S. Southern District Court) e, já agora, a justiça britânica removeu a medida administrativa segundo a qual essa obra de D. H. Lawrence, considerada uma das maiores deste século, só poderia ser impressa e vendida na Inglaterra com expurgo de certos trechos havidos como eróticos. Comparado com os romances de Henry Miller, traduzidos no Brasil e expostos em todas as livrarias, a de Lawrence poderia ser obra para jeunes filles em conventos. Há dois séculos, publicaram-se e lêem-se as Memórias de Casanova, hoje divulgado em edições abreviadas de bolso para torná-lo mais acessível, sem a censura das páginas um tanto cruas. Um dos mais respeitáveis jornais do Rio publicou em histórias de quadrinhos o sumo dessas memórias. Outro tanto se poderia afirmar do Decameron de Boccacio, da Facetiae de Poggio, e de não sei quantas obras do mesmo tipo. Nos E.U. saiu recentemente, em edição popular, My Life and Loves de Frank Harris, que antes só era impresso em edições restritas de livrarias especializadas em atender uma clientela de amadores do gênero. III - Por outro lado, os problemas de sexo, que são em geral o tabu dos censores, fazem objeto da investigação científica de várias universidades, inclusive do ponto de vista psicológico e psiquiátrico das obras literárias e artísticas que tomam por motivo. É notória a enorme biblioteca de publicações eróticas de todos os tempos, inclusive os glorificados pela austeridade como o reinado da Rainha Victoria, — pertencente hoje ao Institute for Sex Research, fundado por Alfred Kinsey, o famigerado autor do relatório que leva seu nome e que foi condensado pela grande parte das revistas de larga penetração em lares, como Ladies´Home 284 Ministro Aliomar Baleeiro Journal e Seleções do Digest há cerca de 15 anos. Um dos livros de pesquisas nesse material sombrio (The Other Victorianas – A Study of sexuality and pornography in mid-19th Century, de Steven Marcus, 1966) foi subvencionado pelas Universidades de Colúmbia e Indiana, assim como pelo American Council of Learned Societies. Note-se que um dos fundamentos da apreensão foi ter Realidade promovido e publicado um inquérito sobre o procedimento sexual de certo grupo de mulheres brasileiras, em amostragem de 1.200 delas, exatamente o que , em vulto maior, fizeram os dois relatórios Kinsey, resumidos em várias revistas de larga circulação mundial. Ninguém ignora que, em todas as capitais civilizadas, são publicadas revistas restritas e voltadas ao erotismo, com a tolerância das autoridades. Humberto de Campos, da Academia Brasileira de Letras, sob pseudônimo notório do Conselheiro XX, não só publicava diariamente nos jornais crônicas picarescas mas fundou e dirigiu, há cerca de 40 ou 50 anos, A Maçã, revista no gênero daquelas. Mas o importante, do ponto de vista destes autos, é que revistas insuspeitas de comércio de torpesas — revistas de circulação mundial e que versam os mais graves temas da atualidade, como a Time — em quase todas as suas edições tratam de sexo, erotismo, contracepção, a pílula, e até de anormalidade da conduta sexual, como prostituição, homossexualidade, sadismo, etc. Outro tanto ocorre com revistas brasileiras das mais prestigiosas e insuspeitas do cultivo de paixões más. Por que então a atitude discriminatória contra a Realidade? Até que ponto outros interesses, outras considerações, outros preconceitos ideológicos podem ter açulado uma repressão a que foram poupadas outras revistas com os mesmos pecados? A concorrência no mercado editorial instiga medidas administrativas e disso já tivemos recente exemplo na luta entre duas poderosas cadeias de publicidade, uma das quais pretendia pôr fora da competição a outra, quando ia inaugurar uma TV que se apontava como comprometida com editoras estrangeiras. Acontece que a mesma pecha se ativa à Realidade. O tratamento diferencial aplicado à revista da recorrente está a bradar pela necessidade de padrões uniformes na censura de publicações, filmes cinematográficos, rádio e TV. Essa foi uma das razões pelas quais, noutros processos, votei no sentido de que se a União e Estados podem exercer a censura cinematográfica, todavia deve prevalecer a federal sobre a estadual. Se a União libera uma película cinematográfica, o Estado não pode vedar a projeção dela em seu território (Art Films v. Guanabara, RMS 14.686, de 17-8-66, RTJ 39/564). 285 Memória Jurisprudencial Não só o padrão moral do País é um só, mas também se deve prevenir o perigo de um Estado proteger seus produtores contra a competição de produtores de outro Estado, já pela competência da União para regular o comércio interestadual, já pela de legislar sobre Direito Penal. Se Guanabara e São Paulo — os maiores centros editorias e cinematográficos — entrarem em retaliação nesse campo não haverá melhor arma para isso do que a censura de filmes e a apreensão de livros e revistas, sob pretexto de licensiosidade. Ainda não chegamos a isso, mas já tivemos em julgamento de taxas de censura do primeiro daqueles Estados, pondo um ônus na produção de outros Estados. Reporto-me aos RMS 11.687/MG (filme Cafajestes), 5.630/MG e 14.685. Nisso, não nego o poder de polícia dos Estados, mas defendo a predominância de igual poder da União, quando se estabelecer o conflito de um e de outro em caso concreto. Além dos poderes para regular o comércio interestadual é de levar-se em conta que só a União, no Brasil, tem competência para legislar sobre o Direito Penal e, então definir e punir o que é obsceno e contrário aos bons constumes. Peço licença para ler trecho de meu voto no RMS 14.686 (RTJ 39/ 576), referindo-me aos Comentários do em. Ministro Candido Motta, a propósito das decisões americanas sobre os filmes Miracle e Pinky, havidos como profanos e imorais: “O Milagre teve cassada a licença em N.Y. porque choveram sobre às autoridades telegramas e cartas de protestos dos que o assistiram e o reputaram sacrílego. A Corte de N.Y. apoiara a cassação porque “nenhuma religião, tal como esta palavra é entendida por pessoas sensatas, deverá ser tratada com desacato, mofa, escárnio e ridículo”. E. Clark, falando per curiam e não em seu nome pessoal, decidiu: “N.Y. cannot vest such unlimited restrint centrol over motion pictures in a censor...” O Estado de N.Y. curvou-se à decisão e alterou o cap. 241 de sua lei em 1952, afastando a discricionarismo do censor e estabelecendo um processo de julgamento prévio. Poderia fazê-lo porque o seu poder de polícia, no caso, está umbelicalmente vinculado à competência de legislar sobre Direito Penal e sobre educação, num país em que o Governo Federal não tem qualquer controle sobre as diretrizes educacionais dos EstadosMembros. Logo depois, a Corte Suprema decidiu o caso do filme La Ronde, condenado à luz da Lei Orgânica de Educação do Estado de N.Y. como “obsceno, imoral, indecente, inumano e de tal caráter que sua exibição tenderia a corromper a moral e incitar ao crime”. A película era calcada no livro Reigen, de Schnitzler, cuja tradução inglesa Hands Around fora declarada obscena pela justiça de N.Y. Igualmente, em decisão per 286 Ministro Aliomar Baleeiro curiam de Douglas, a Corte invocou a doutrina do Milagre, recusando ao Estado o direito de censura na medida em que viola a liberdade de pensamento das Emendas 1 e 14 (Comercial Pictures Corp. versus Regents of University of Stats of N.Y., 346, U.S. 587, de 1954. No mesmo sentido, também o ac. Gelling v. Texas 343, U.S. 960, de 1952). Nova York baixou, então, diploma definindo nitidamente os filmes condenáveis: os que incitam a crime e os imorais, entendendo-se neste rol aqueles cujos “dominante propósito ou efeito for erótico, pornográfico ou que retratam atos de imoralidade sexual (lewdness) ou, expressa ou implicitamente, apresentem tais atos como desejáveis, aceitáveis ou como padrões adequados de procedimento”. Sem dúvida, em nosso direito, como na jurisprudência da Suprema Corte, o cinema está debaixo da proteção, quer da liberdade assegurada às ciências, às letras e às artes no art. 173 de nossa Constituição”. O caso dos autos tem símile na revista americana Squire, que ganhou na Corte Suprema dos E.U. um writ contra o Postmaster General. Este a pusera no index postal por “vulgaridade” (no sentido de chulo, obsceno) e de “mau gosto” pelo acórdão Hannegan versus Esquire Inc., 327 U.S. 146, 155 (1946). IV - Nossa dificuldade, no caso dos autos, já foi salientada no douto voto do em. Relator: “Não existe, além do mais, um critério objetivo para declarar se uma publicação é ou não obscena, não existe uma linha de demarcação entre o obsceno e o não obsceno. O sentimento de pudor com ele relacionado, na opinião dos autores, depende da formação moral de cada um, de sua educação, da idade, de concepções filosóficas, etc. A leitura do número da revista apreendida, para mim, não pode ser considerada uma publicação obscena, precisamente porque não ofende o pudor, nem é erótica, embora não recomendável para pessoas pouco amadurecidas. Ali se justificam certas formas de vida que não condizem rigorosamente com preceitos tradicionais de moral.” E S. Exa. concorda comigo em que a acusação feita à Realidade condenaria outras revistas brasileiras, as quais não foram incomodadas, acrescentando ainda que não se convenceu da obscenidade increpada àquela publicação: “Numerosas revistas, porém, dispõem de consultores ‘sentimentais’, abundam em conselhos os mais extravagantes sobre a vida social, publicam artigo que, a rigor, só deveriam constar de revistas científicas ou livros especializados, cuja aquisição tem objetivo determinado e conhecido. 287 Memória Jurisprudencial Se formos analisar o que se publica na generalidade das revistas, poucas resistiriam a uma análise mais rigorosa, dentro do conceito fixado no ato impugnado. No meu entender, não se trata de revista obscena, embora considere profundamente medíocre, sob todos os pontos de vista, o que nela se contém. Considero de profundo mau gosto e se destina a um público pouco exigente.” V - Pelos trechos do eminente Relator, agora lidos, está claro que nossas opiniões não colidem quer quanto à tese abstrata, quer quanto ao julgamento de valor sobre os padrões morais da Realidade. Nossa divergência se situa na conclusão e solução do caso concreto. S. Exa. nega provimento, deixando sem remédio o que lhe parece, e a mim, um exemplo de má aplicação da lei com prejuízo vultuoso para os direitos da recorrente, além da ameaça à liberdade de expressão do pensamento. Entendo que há direito líquido e certo de alguém expor e defender livremente seu pensamento, respondendo pelos abusos que cometer. O cidadão pode dizer e publicar o que pensa sobre o nudismo, a igualdade de sexos, a defesa jurídica e social da mãe solteira, a educação sexual, o divórcio, o comunismo, o anarquismo, a existência de Deus, a historicidade de Cristo, a pílula anticoncepcional e não sei quantos temas de nosso tempo, alguns dos quais foram de todos os tempos. Concedo que, no exercício do poder de polícia, a autoridade, e, no caso, o Juiz de Menores, pode apreender a publicação evidentemente pornográfica, obscena ou contrária aos bons costumes, como tal a que visa inequivocamente a excitar a lascívia depravada e fere os padrões de decoro da comunidade, sem nenhum propósito de divulgação científica, artística, educacional ou literária. Sobretudo a que ostensivamente manifesta seu propósito perverso ou corrompido. Como tal há de entender-se a historieta, a gravura, a película sórdida, pelo assunto e pela linguagem, geralmente irreal e com tendências para ênfase no anormal e no anômalo, seja pela exageração mórbida do natural, seja pela preferência voltada para o vicioso, o depravado, o pervertido, o acanalhado. Refiro-me ao que os juristas americanos chamam de hard core pornography para distinguir do realismo erótico nas obras literárias e artísticas. Em princípio, o que é natural não pode ser imoral. Os fenômenos de reprodução do homem são equiparáveis aos de digestão, circulação e outros de ordem biológicas e comportam divulgação. A análise ontológica de fatos sociais como o crime, a mendicância, a prostituição, a atividade sexual extraconjugal, etc. não pode ser indecente se não visa 288 Ministro Aliomar Baleeiro a servir de pretexto para encorajamento de todos esses desvios de conduta social. Veda-se atitude axiológica em prol de crime, de vício, de perversão, não o exame objetivo dos problemas. Nas publicações periódicas, o público não suporta as four letters words, os palavrões de quatro letras, que ouvidos respeitáveis com mau gosto absorvem às gargalhadas no teatro. Muito menos, poderá tolerá-los a autoridade na TV ou no rádio. Todavia, os costumes aceitam essas palavras de quatro letras, e às vezes mais letras, na ficção literária e disso basta lembrar o êxito de Dona Flor e seus dois maridos, de Jorge Amado, tipo do escritor brilhante, que não peca pelo realismo erótico, mas pela linguagem crua e despoliciada das classes menos polidas, não apenas na boca dos personagens — o que é realístico — mas na do narrador. Não ignoro, aliás, o ponto de vista de alguns psiquiatras em justificação aos palavrões, segundo pesquisas curiosas. Ainda não há, na jurisprudência do STF, standards claros e seguros a respeito da linha divisória entre o obsceno ou o pornográfico, de um lado, e o publicável de outro lado, porque relativamente poucos os casos trazidos à sua barra. Os recentes acórdãos sobre filmes nacionais envolviam mais questões de competência da União e dos Estados para o exercício da censura, que, num deles, era antes um pretexto para cobrança de taxas. Isso me levou a consultar a jurisprudência abundante da Corte Suprema dos E.U. nos últimos 15 anos, inclusive nos últimos dois. Lá, porém, reina ainda a law’s confusion, a que se refere Richard Kuh, um dos mais enérgicos procuradores de N.Y. para medidas contra a pornografia, em seu opulento estudo (Foolish Figleaves – Pornography in and out of Court, 1957). Os próprios textos se ressentem de logomaquias, a despeito de distinções etimológicas entre “pornográfico”, “obsceno”, etc. Há de repetir-se que o problema apresenta variáveis, de sorte que a autoridade administrativa, ou judiciária, se vê adstrita à apreciação em caso concreto, até porque as opiniões vão do extremo liberalismo de Black e de Douglas até o oposto de verdadeira asfixia da manifestação do pensamento. Certo é que aquela Corte, numa cadeia de julgados, se revelou indulgente quando a publicação, em seu todo, não se apresenta como puro veículo da salácia, sem qualquer mérito científico, artístico, educacional ou literário que a redima de aspectos crus (Roth v. US, 354 US 476, 508, de 1957; Alberts v. Califórnia, 354, US 476, de 1957; People v. Doubleday A. Co., 335 US 848, de 1948, caso do livro Memoirs of Hecate County, de E. Wilson; Jacobellis v. Ohio, 378, US 184 de 1964; A book named Jonh Cleland’s Memoirs of a Woman of Pleasure v. Massachusetts, 383, US 413, de 1966, caso do clássico Fanny Hill; Hedrup v. N.Y. e Austin v. 289 Memória Jurisprudencial Kentucky, 386 US 767, de 1967) etc. Nessses assuntos de obscenidades, a Corte admite também o clear and present danger test, utilizado noutros casos de poder de polícia. Mas não tolerou a pornografia como fim em si mesmo, pela manifesta evidência de seu objetivo, ou como fim único de lucro, ainda que primorosamente impressa (Ginaburg vs. US, 463, 498, n. 1 de 1966, caso da Eros; Mishkin vs. N.Y., 383 US 502, 509, de 1966). O mais importante é a proteção de crianças e adolescentes, pela deletéria influência que o material pornográfico, ou apenas erótico, poderá exercer em espíritos ainda em formação, refletindo-se até no procedimento deles depois de adultos, como divulgou, sob considerações objetivas e científicas, a N.Y. Academy of Medicine em 1963: “Such reading encourages a morbid preocupation with sex and interferes with the development of a healthy attitude and respect for the opposite sex. It is said to contribute to perversion. In the opinion of some psychiatrists, it may have an especially detrimental effect an disturbed children” Diferente o problema em relação a adultos de que é exemplo a pasmosa condescendência do acórdão Manual Enterprises vs. Day, 370, US, 478, de 1962 (a decisão tolerou o tráfego postal de revistas especializadas para homossexuais). Como o Justice Petter Stewart expressou em Ginzburg vs. US, os adultos têm direito constitucional a escolher a vulgarity, para leitura. Outro ponto, já acentuado por Learned Hand, quando na mocidade julgou US vs. Kennerley, em 1913, reside em que não satisfaz o critério do velho acórdão inglês Regina vs. Hicklin, de 1868, pois a obra controversa deve ser analisada em seu todo (e não em trechos isolados) do ponto de vista do cidadão médio. É o padrão moral deste, e não o do juiz, o metro de aferição (R. Kuh, ob. cit., p. 24/5; H. Shanks: The Art and Craft of Judging, 1968, p. 29 e seg.). Concluindo, pervaguei a vista pelo exemplar de Realidade anexo aos autos — o que foi objeto da apreensão — e não lhe atribuo o caráter de publicação obscena, imoral, sórdida ou contrária aos bons costumes. A linguagem é decorosa, a exposição se fez em tom alto e não encontrei apologia do vício, da anomalia ou mesmo da irreverência, enfim, nenhum juízo de valor que se possa considerar anti-social. Não há ofensa aos padrões atuais do Brasil, ou de qualquer país policé, em gravuras esquemáticas da concepção e gestação ou num inquérito que aborda os mais variados aspectos do comportamento da mulher, inclusive o sexual. 290 Ministro Aliomar Baleeiro Para chegar a essa conclusão, basta-me o exemplar referido, apensado como documento aos autos. Para assim julgar, não necessito de exame pericial ou parecer técnico, impróprio do MS — julgo como homem de meu tempo e de meu País. Reconhecendo direito líquido e certo postergado pelo v. Acórdão recorrido, dou provimento ao recurso, ressalvando todas as medidas que o Dr. Juiz entender adequadas para evitar a venda da revista a menores no limite de idade que lhe parecer conveniente ou a possibilidade de consulta por esses menores em bibliotecas e lugares públicos. É a cautela da Municipalidade de New York nas livrarias marcadas com a senha elucidativa books for adults, que vi na Broadway há 2 meses. A situação é a mesma do exercício do poder de polícia pelos juízes de menores para impedir o acesso deles às boites, às bebidas alcoólicas, ao tabaco, etc., sem que disso se proíbam os adultos. Aliás, nas mãos de adolescentes, andam obras didáticas com gravuras mais minuciosas e explicativas, quando cursam biologia. Certo, Realidade não é indicada para crianças ou alunos de aula primária. Isso não impede que desejem e possam lê-la adultos. Mas duvido que os colegiais, hoje, ainda levem a sério a cegonha. Os juízes dos tempos de nossos avós e pais, ao que eu saiba, não apreenderam nunca A Carne, de Júlio Ribeiro, hoje um clássico. Mostraram com isso compreensão acima de qualquer farisaísmo ou pressão religiosa. Não há motivo para imitarmos o puritanismo da autoridade postal dos E.U., que proibiu o tráfego de cópias coloridas da Maya Desnuda, de Goya, pintada no mais católico, preconceituoso e clerical dos países. Seria o mesmo que um cache-sexe no David de Miguel Ângelo. VOTO O Sr. Ministro Adalicio Nogueira: Sr. Presidente, acabamos de ouvir dois brilhantes votos, anteriormente, o do eminente Ministro Themistocles Cavalcanti, e, hoje, o do eminente Ministro Aliomar Baleeiro, que honram o talento e a cultura jurídica e geral dos eminentes Ministros. Todavia, peço vênia ao eminente Ministro Relator para estar com o Sr. Ministro Aliomar Baleeiro, porque S. Exa., apreciando bem os pontos de vista, que, aliás, também foram muito bem exposto pelo Ministro Themistocles Cavalcanti, concedendo o mandado, ressalva ao Juiz de Menores o direito às providências necessárias para acautelar esses menores dos possíveis danos que possa acarretar a leitura da revista proibida. 291 Memória Jurisprudencial O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: O eminente Presidente lembrou o que não me ocorreu: que, pelo menos no Rio de Janeiro, é vendida aquela revista Playboy, dentro de um envoltório. Ela não é exibida. O Sr. Ministro Adalicio Nogueira: De modo que, fazendo essas rápidas considerações — nem podia acrescentar mais nada ao que já foi dito — estou com S. Exa., o Ministro Aliomar Baleeiro, data venia do eminente Relator, porque também levo em conta as ponderações judiciosas que S. Exa. fez a respeito da matéria. Dou provimento ao recurso. VOTO O Sr. Ministro Evandro Lins e Silva (Presidente): Gostaria que o eminente Ministro Aliomar Baleeiro informasse em que disposição de lei se fundou o juiz para a proibição. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Fundou-se no artigo 53 da Lei de Imprensa, de 1953, a primeira lei. A segunda repete esse dispositivo. Ao invés de dizer “obsceno”, diz “contra os bons costumes”. O dispositivo é o seguinte: “Art. 53. Não poderão ser impressos, nem expostos à venda ou importados, jornais ou quaisquer publicações periódicas de caráter obsceno, como tal declarados pelo Juiz de Menores, ou, na falta deste, por qualquer outro magistrado”. § 1º Os exemplares encontrados serão apreendidos. Base legal tem, não há nenhuma dúvida. O problema é saber se isto é obsceno. Em tese, o juiz poderia fazer o que fez. Aliás, no caso da Esquire, que citei aqui, o Relator, que foi Douglas, disse: “não há nenhuma dúvida de que o Congresso pode estabelecer padrões, segundo os quais a correspondência é classificada nos Correios, para, então, não dar privilégios de segunda classe, que é a tarifa barata, para livros e revistas, publicações que, nesse discricionalísmo administrativo, não a merecem. Concedeu o writ para que a Esquire não fosse impedida de trafegar pelos Correios, com as mesmas vantagens das demais revistas. O Sr. Ministro Evandro Lins e Silva (Presidente): Também peço vênia ao eminente Sr. Ministro Relator para acompanhar o eminente Sr. Ministro Aliomar Baleeiro. O conceito de obscenidade é variável no tempo e no espaço. O que era considerado obsceno há bem pouco tempo, deixou de o ser com a mudança de costumes e o conhecimento que a juventude passou a ter de problemas que lhe eram proibido estudar e conhecer, até recentemente. 292 Ministro Aliomar Baleeiro Há certa distinção que é preciso fazer. O critério a ser seguido pelo juiz, sobre a caracterização da obscenidade, não deve ser o seu critério pessoal, mas, sim, o critério da maioria, o pensamento médio da população. O Código Penal, no art. 234, pune: “Fazer, importar, exportar, adquirir ou ter sob sua guarda, para fim de comércio, de distribuição ou de exposição pública, escrito, desenho, pintura, estampa ou qualquer objeto obsceno.” Os comentadores, que têm tratado desse assunto, vacilam sobre a caracterização exata do conceito do que seja o escrito obsceno. Li uma distinção que Henry Miller — que é tido como autor condenado, por grande parte dos moralistas — procura fazer entre obscenidade e pornografia. Realmente, tem-se que distinguir a baixa pornografia e a obra de arte. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: O erotismo, em si, não é imoral. Tem base psicológica, de fundo biológico. Agora, por exemplo, deformar os fatos, exagerar o que é natural ou pôr em ênfase, em louvor, o que é anômalo, vicioso, depravado, isto é que é, sobretudo, obsceno. Os livros obscenos se caracterizam, em geral, por isso. Por outro lado, obsceno é o contrário aos costumes bons, ainda que nada tenha a ver com sexo, como por exemplo, a função excretória do organismo. Pornográfico, do étimo grego porneion, é o pertinente às prostitutas e seus clientes. O Sr. Ministro Themistocles Cavalcanti (Relator): O que há é o seguinte: é que a lei atribuiu ao juiz competência para determinar o que é obsceno. Este é o fundamento do meu voto. Data venia, nós podemos, agora, através dos votos e declarações, corrigir esse conceito e levar o juiz a outro comportameto, posteriormente. O que me interessa, aqui, é exatamente a repercussão social. Todos esses fatos são verdadeiros. Existe novo conceito de moral, liberdade muito maior, isso é verdade. Que o que se exige e o que a lei justifica é uma disciplina desse comportamento das revistas, livros, etc. Esse, o ponto fundamental para mim. Foi por isso que eu, reconhecendo, embora, que o juiz precisava ter corrigido a sua conceituação, negava o mandado. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Não podemos, também entregar isso ao arbítrio do juiz. Ele tem que atender a certos padrões. Deve ter uma espécie de standard ou test, como o que a Corte Suprema Americana chamou de “o teste do claro e atual perigo”. Não há outro meio. Como vamos deixar um magistrado apreender a edição de uma revista, pode ser, hoje, Realidade, pode ser, amanhã, outra qualquer, pode ser O Estado de São Paulo, conforme lhe der na cabeça, 293 Memória Jurisprudencial segundo sua concepção pessoal ou visão religiosa do que é obsceno? Não é possível uma coisa destas. É preciso estabelecer critérios segundo os quais ele pode fazer isso. O Sr. Ministro Evandro Lins e Silva (Presidente): O eminente Ministro Sr. Ministro Aliomar Baleeiro indicou, em seu brilhante voto, obras de arte e autores que ora condenados, em certa época, e que vieram a ser, depois, assim como redimidos e aplaudidos pela opinião geral. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: O Primo Basílio, por exemplo, que a Igreja Católica condena, no Brasil. O Sr. Ministro Evandro Lins e Silva (Presidente): Podemos citar, ainda, Flaubert, Proust, Pitigrilli, e entre os nacionais, Júlio Ribeiro, Aluízio Azevedo, e os mais recentes, Jorge Amado, José Lins do Rego, Amando Fontes, e, mais recentemente ainda, na literatura estrangeira, Henry Miller e, sobretudo, Jean Genet. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: A Rádio Ministério da Educação esteve fazendo uma propaganda fabulosa dele, que é, até, uma justificativa da homossexualidade. O Sr. Ministro Evandro Lins e Silva (Presidente): Jean Genet chega a defender e a fazer apologia da mendicância, do roubo, do furto, do homossexualismo. E provocou o livro de Sartre, famoso, Saint Genet, onde se põe em relevo a “santidade” desse homossexual, ladrão e mendigo, que violou todos os padrões convencionais da sociedade. É uma sanidade às avessas, que repudio, como o fez Otto Maria Carpeaux, em artigo pouco divulgado. O Sr. Ministro Themistocles Cavalcanti (Relator): São livros, e não revistas. O Sr. Ministro Evandro Lins e Silva (Presidente): O escrito obsceno, a que a lei se refere, compreende o livro, o jornal, a revista, todos eles. É preciso que a obra de arte não seja confundida com o escrito puramente pornográfico, destinado a excitar a luxúria e a sensualidade. O Sr. Aliomar Baleeiro: Depois, o problema é o seguinte: nós, juízes, que já estamos nos tribunais, pertencemos a uma reduzida minoria nacional. Os homens de nossa idade representam cópia da pirâmide das gerações. A grande parte dos homens ativos do País, que estão trabalhando, pensando, etc., são criaturas de 25, 30, 40 anos; eles têm um modo de concepção de vida diferente da nossa. Não lhe podemos impor os nossos padrões. O Sr. Ministro Themistocles Cavalcanti (Relator): Mas a lei se refere, explicitamente, a jornais ou quaisquer publicações periódicas. O Sr. Ministro Evandro Lins e Silva (Presidente): No momento, estou me referindo ao Código Penal, que pune a publicação de qualquer escrito obsceno, seja livro ou jornal. 294 Ministro Aliomar Baleeiro O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Um jornal de ginecologia pode ser apreendido pelo mesmo motivo, porque pode um pai esquecer em casa e o filho lê-lo. O Sr. Ministro Evandro Lins e Silva (Presidente): Lembro que La Garçonne, de Victor Margueritte, foi objeto de um processo no Brasil, e quem o julgou foi o Juiz Vieira Braga, que o absolveu. Dou provimento ao recurso. Mas faço, ainda, uma ressalva. O voto do eminente Ministro Aliomar Baleeiro não impede que o juiz tome providências para evitar que os menores entrem em contato com a revista, de acordo com as medidas que entender convenientes. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: E estabelecer o nível de idade. Mas há rapazes e moças que, aos 17 anos, já podem estar na faculdade de Medicina. O Sr. Ministro Evandro Lins e Silva (Presidente): O provimento do recurso é parcial. Entendo, também, que não cabe aí indenização. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Mas ele não pode pedir em mandado de segurança. O Sr. Ministro Evandro Lins e Silva (Presidente): Faço uma declaração para o futuro, porque o juiz, no caso, agiu interpretando a Lei de Imprensa, e aplicou, um pouco, o seu poder, em relação à divulgação de revistas entre adultos, quando devia limitar esse seu ato ao menores. Acho que o juiz tem todo o poder para impedir que essa revista chegue a ser lida por menores, adotando as providências que lhe parecerem mais convenientes e mais eficazes para esse fim. Meu voto é acompanhando, portanto, o eminente Sr. Ministro Aliomar Baleeiro, dando provimento, em parte, ao recurso. EXTRATO DA ATA RMS 18.534/SP — Relator: Ministro Themistocles Cavalcanti. Relator para o acórdão: Ministro Aliomar Baleeiro. Recorrente: Editora Abril Ltda. (Advogado: Sílvio Rodrigues). Recorrido: Juiz de Direito da Vara de Menores da Capital. Decisão: Deu-se provimento em parte, contra o voto do Relator. Segunda Turma. Presidência do Ministro Evandro Lins e Silva. Presentes à sessão os Ministros Adalicio Nogueira, Aliomar Baleeiro, Themistocles Cavalcanti e o Dr. Oscar Correia Pina, Procurador-Geral da República substituto. Licenciado, o Ministro Adaucto Lucio Cardoso. Distrito Federal, 1º de outubro de 1968 — Guy Milton Lang, Secretário. 295 Memória Jurisprudencial RECURSO EM MANDADO EM SEGURANÇA 18.742 — GB Taxa de renovação da Marinha Mercante. I - Apesar da denominação legal, é imposto com aplicação especial. II - Nesse caso, sua exigência aos mineradores e exportadores de minerais é ilegítima, à luz do § 1° da Lei n. 4.425/1964. VOTO O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: De começo, as datas para fixação do direito vigente à época: o mandado de segurança foi impetrado em 11-5-66, já sob o regime da Emenda Constitucional n. 18/65 e da Lei n. 4.425, de 8-10-64, que dispõe: Art. 1º — e parágrafo único — “Com exceção dos impostos de renda, selo e taxas remuneratórias de serviço prestado diretamente ao concessionário de que trata este artigo, o imposto único exclui a incidência de qualquer outro tributo federal, estadual ou municipal que recaia sobre os depósitos minerais, jazidas ou minas, sobre o produto em estado bruto dela extraído ou sobre as operações comerciais realizadas com esse produto”. 2. Entende a Recorrente que não lhe pode ser exigida a chamada Taxa de Renovação da Marinha Mercante, a que se refere o art. 8º da Lei 3.381, de 24-4-58, nos seguintes termos: “Em substituição à taxa instituída pelo Decreto-Lei nº 3.100, de 7 de março de 1.941 (art. 8º), alterado pelo Decreto-Lei nº 3.595, de 5 de setembro de 1941, o armador de qualquer embarcação que opere em porto nacional cobrará sob a designação de Taxa de Renovação da Marinha Mercante uma taxa adicional ao frete líquido devido, de acordo com o conhecimento de embarque e o manifesto do navio, pelo transporte de qualquer carga.” Entende assim porque essa taxa se destina à aquisição de navios da União, financiamento a empresas particulares de navegação, etc., sem qualquer benefício dos contribuintes, isto é, os exportadores e embarcadores de minerais do país. 3. Coativa como é e não trazendo benefício a quem a paga, a taxa então se caracteriza, diz a Recorrente, como imposto com aplicação especial. Nesse caso, está expressamente excluída quando se tratar de embarque de exportadores de minérios, por força daquele § 1º do art. 1º da Lei 4.425/64, que regula o imposto único sobre minerais. 4. O v. acórdão do eg. Tribunal Federal de Recursos, do qual foi relator o Eminente Ministro Rollemberg, à fl. 71 acolheu a tese da Comissão de Marinha Mercante (fl. 37, e pareceres caprichados do Procurador Dr. O. F. Degrazia, a fls. 95 e 117), isto é, viu na taxa aludida não um tributo, mas simples adicional de frete sem caráter fiscal. 296 Ministro Aliomar Baleeiro 5. Recorrendo à fl. 106, a empresa insiste nesse caráter tributário e na sua inexigibilidade aos exportadores de minerais, porque não é taxa remuneratória admitida pela Lei 4.425. Invoca diversos julgados do Supremo Tribunal Federal em abono de sua tese: “Assim decidiram, verbis gratia, os v. arestos proferidos nos Recursos Extraordinários: – 49.484 (Embargos), in DJ de 24-5-63, apenso, pág. 336; – 52.968, in DJ de 22-8-63, apenso, p. 769; – 53.111, in DJ de 29-8-63, apenso, p. 798; – 52.309, in DJ de 5-11-63, apenso, p. 825; – 52.798, in DJ de 5-11-63, apenso, p. 829; – 48.663, in DJ de 17-10-63, apenso, p. 1.020; No Recurso Extraordinário 52.978, acima mencionado, decidiu-se, verbis: “A Taxa de Renovação da Marinha Mercante, instituída pela Lei nº 3.381, de 58, incide sobre o transporte da mercadoria, que é o fato gerador do tributo”. Mais recentemente, os julgados proferidos nos Recursos Extraordinários n. 52.239 e 49.679, in RTJ, vol. 37, pp. 46 e 474, respectivamente, conceituaram, também, a taxa de que se trata como tributo. Por fim, recentíssimo caso, julgado, em 10 de abril último, pela E. 1ª Turma dessa Corte, de que foi Relator o eminente Ministro Oswaldo Trigueiro, tratava de caso idêntico ao presente: mandado de segurança impetrado por mineradora (Indústria e Comércio de Minérios S.A. – ICOMI) contra a Comissão de Marinha Mercante, que, como aqui, pretendia incidisse a taxa discutida sobre as exportações de minérios efetuadas por aquela. A E. Primeira Turma não conheceu do extraordinário da Comissão de Marinha Mercante, afirmando a ementa do v. aresto: “Taxa de Renovação da Marinha Mercante. Não é exigível de empresa mineradora, acima do limite previsto no art. 68 do Código de Minas” (RE nº 61.095, acórdão in DJ de 26-5-67).” 6. O Em. Relator negou provimento ao recurso da empresa, reconhecendo todavia que “está a questão da natureza dessa denominada Taxa ainda sujeita a controvérsia”. Mais vacilante ainda é a jurisprudência do eg. Tribunal Federal de 297 Memória Jurisprudencial Recursos cujas decisões, em sua maioria, conceituam como taxa (fl. 96). “A jurisprudência dominante considera como taxa”, e cita vários acórdãos do Supremo Tribunal Federal. Conclui então: “Trata-se, com evidência, de mera imposição parafiscal, e assim excluída da categoria do imposto. Não será tecnicamente uma taxa, por falta de interesse imediato do serviço público na participação do contribuinte, mas é incontestável que ela visa a melhoria de um serviço como o de navegação comercial que, se não é público porque não é estatal, objetiva interesse público da maior valia econômica. A sua incidência sobre o frete, a sua arrecadação pelo Banco de Desenvolvimento afastariam essa idéia, mas a sua aplicação pela Comissão da Marinha Mercante daria um sentido público a essa contribuição. Aproxima-se da taxa, pelo menos em alguns de seus elementos técnicos.” 7. Parece-me, também, que a Taxa de Renovação da Marinha Mercante se classifica como uma das controvertidas “contribuições parafiscais”, da terminologia do Inventário Schuman e do prof. E. Morselli. A Constituição de 1946 só mencionou a da previdência social no art. 157, XVI, reproduzido no art. 158, XVI, da Constituição de 1969. Mas esta, além desse caso, previu dois outros nos arts. 159, § 1º, e 157, § 9º. Pouco importa que não as batizasse de “parafiscais”, denominação que pegou de galho na França, Espanha e no Brasil, mas que encontra resistência alhures. O ilustre Professor Giuliano Fonrouge, que tão bem conhece e tem comentado o Direito Fiscal do Brasil, prefere chamá-las classicamente de contribuições especiais” (Acerca de la llamada “parafiscalidad” — en la Ley, de B. Aires, ed. 4-5-1967). A taxa da Marinha Mercante poderia enquadrar-se, talvez, no art. 157, § 9º: “Para atender à intervenção no domínio econômico, de que trata o parágrafo anterior, poderá a União instituir contribuições destinadas ao custeio dos respectivos serviços e encargos, na forma que a lei estabelecer”. Mas não vigorava esse dispositivo ao tempo da impetração e do fato gerador (1966). Ele não poderia ter convalidado a aplicação da Lei 3.381/1958, que é anterior à Lei 4.425/64, excludente daquela taxa em relação aos negócios de minerais. 298 Ministro Aliomar Baleeiro 8. Não é só. Embarcando nas águas de Lamfenburger, nas de Merigot (“Eléments d’une theorie de la Parafiscalité”, Rev. Der. Fin. Y Hacienda Publ., 1954, n. 13, p. 7), Fonrouge (art. cit. acima) e outros dentre os quais os brasileiros que se ocuparam da controvérsia (Ulhôa Canto, Archivo Finanziario, 1956; 5/36), Buys de Barros, Ensaio s/ Parafiscalidade, (1956) e Silvio Faria (Aspectos da Parafiscalidade, Bahia, 1955), não creio que tenha razão o em. Professor Morselli quando sustenta que as contribuições parafiscais assumem pelo seu conteúdo ético, dissociado do princípio da capacidade contributiva, um caráter específico, inconfundível com os dos impostos e taxas (Rev. Sc. et Leg. Fin., 1951, 43/340 e 767; “La Parafiscalitá”, em Econ. & Finanças”, XX, 1952, Lisboa, etc). A quase totalidade dos que pensaram e escreveram sobre o assunto reconhece que a parafiscalidade, nada tem de diverso de fiscalidade, exceto a delegação ao órgão ao qual serve de financiamento. Contribuição parafiscal ora é imposto, ora é taxa. Se beneficia a quem paga, ou ele a provoca, — é taxa. Se isso não acontece — é imposto com aplicação especial e delegação ao órgão que deverá fazer essa aplicação. No caso dos autos, coativa, sem aproveitar à contribuinte nem caracterizar exercício regular do poder de polícia, é imposto com aplicação especial vedado pelo art. 1º, § 1º, da Lei n. 4.425, de 1964. Dou provimento, por isso, ao recurso. RECURSO EXTRAORDINÁRIO 32.518 — RS Relator: O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro Relator para o acórdão: O Sr. Ministro Vilas Boas Recorrente: Altino de Figueiredo Paz — Recorrido: Estado do Rio Grande do Sul 1) Ação criminal privada. Demora no seu andamento. 2) A atividade jurisdicional do Estado, manifestação de sua soberania, só pode gerar a responsabilidade civil quando efetuada com culpa, em detrimento dos preceitos legais reguladores da espécie. 3) Extraordinário conhecido e não provido. 299 Memória Jurisprudencial ACÓRDÃO Vistos, etc. Resolve a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, à unanimidade, conhecer do recurso e, no mérito, contra o voto dos Ministros Aliomar Baleeiro e Adalicio Nogueira, negar provimento, tudo conforme as notas taquigráficas. Brasília, 21 de junho de 1966 — Vilas Boas, Presidente e Relator p/ o acórdão. RELATÓRIO O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: 1. O recorrente acionou o Estado do Rio Grande do Sul, porque a alegada desídia do juiz fez com que prescrevesse sua queixa-crime oferecida contra jornalista que o injuriara na imprensa local, a despeito da diligência tenaz de seu advogado. Juiz e serventuários teriam sido morosos em marcar audiências e praticar os atos processuais. Então, diz, o Estado não cumpriu sua finalidade nem seu dever de prestar Justiça, e, nos termos do art. 194 da Constituição, deve indenizá-lo dos honorários, custas e despesas feitas em pura perda. 2. O Estado procurou eximir-se, argumentando não ser responsável por atos dos membros do Poder Judiciário, tendo o juiz de 1ª instância acolhido a ilegitimidade passiva dessa pessoa do Direito Público. A 1ª Câmara Civil, depois de pronunciamento das Câmaras Reunidas, deu pela legitimidade passiva do pedido, voltando os autos à 1ª instância, que julgou improcedente a ação por não estarem caracterizados dolo e culpa do juiz criminal, assoberbado de trabalho, pois atendida a duas comarcas, razão pela qual ocorrera “justo motivo” de retardamento. Admitiu inclusive força maior na lentidão do magistrado (fl. 462). 3. Apelou o recorrente, argüindo que responsabilizara o Estado e não o juiz — o Estado porque não providenciara nem equipara eficientemente o serviço da Justiça, evitando seu congestionamento ou provendo substituições e outras medidas curiais (fl. 468). 4. O v. acórdão de fl. 485 confirmou a recorrida sentença, porque estava provada a inocorrência de culpa do juiz, esmagado pelo trabalho de duas comarcas por impedimento do titular delas. Se o art. 121, II, do CPC escusa de responsabilidade o juiz na ação direta contra ele, em caso de justo motivo, igual escusa há de se reconhecer ao Estado, por fato do mesmo juiz — argumenta a sentença. 300 Ministro Aliomar Baleeiro 5. Recorreu extraordinariamente o A. a fl. 489, pelas letras a e d do art. 101, III, da Constituição, alegando violação do art. 194 da mesma Constituição, combinado com os arts. 15 e 159 do Código Civil. Essas normas não cogitam de culpa, mas responsabilizam o Estado se, existindo por lei determinado serviço, este funciona precariamente, lesando os que a ele recorrem. Invoca o comentário de Pontes de Miranda ao art. 194: “Se houve culpa do causador do dano, responde o Estado, sem haver ação regressiva”. Cita acórdãos do TJSP, do TJGB e do STF, na Rev. For. 152/230, que admitem a responsabilidade civil das pessoas do Direito Público, objetivamente, à luz do risco administrativo, e não da culpa pelo funcionamento defeituoso dos serviços públicos. 6. A Procuradoria-Geral da República pronunciou-se no sentido de que se conheça, mas se negue provimento ao RE. É o relatório. VOTO O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): 1. Conheço do recurso pelas letras a e d, pois não se trata de reapreciar o justo motivo da morosidade do juiz — matéria definitivamente encerrada na justiça local — mas qual a interpretação exata do art. 194 da Constituição, tema em relação ao qual há divergência entre a v. decisão recorrida e outras dos tribunais de São Paulo, Guanabara, e até do STF, como indicou o recorrente. 2. Dou provimento ao recurso porque me parece subsistir, no caso, responsabilidade do Estado em não prover adequadamente o bom funcionamento da Justiça, ocasionando, por sua omissão dos recursos materiais e pessoais adequados, os estorvos ao pontual cumprimento dos deveres de seus juízes. Nem poderia ignorar essas dificuldades, porque, como consta das duas decisões contrárias ao recorrente, estando uma das comarcas acéfala, o que obrigou o juiz a atendê-la, sem prejuízo da sua própria — ambas congestionadas de serviço —, à Comissão de Disciplina declarou-se em regime de exceção ampliando os prazos. 3. Se o Estado responde, segundo antiga e iterativa jurisprudência, pelos motivos multitudinários, ou pelo “fato das coisas” do serviço público, independentemente de culpa de seus agentes (RE da Bahia, Salvador Araújo versus Prefeitura de Salvador, caso de rompimento dos esgotos pluviais por força de temporal violentíssimo), com mais razão deve responder por sua omissão ou negligência em prover eficazmente ao serviço da Justiça, segundo as necessidades e os reclamos dos jurisdicionados, que lhes pagam impostos e até taxas judiciárias específicas para serem atendidos. 4. No caso, há certeza da lesão e, pelo menos para mim, da imputabilidade da causa dele à omissão do Estado do Rio Grande do Sul, como gerador único do 301 Memória Jurisprudencial prejuízo, contra o qual se malogrou a diligência reiterada do advogado do autor. Ou o juiz teve culpa, por desidioso, ou fez tudo quanto humanamente poderia fazer e não venceu a passividade do Estado em remover os obstáculos. O problema transborda do Direito Civil para o Direito Administrativo, dentro do qual os Doutores proclamam a responsabilidade do Estado em tais circunstâncias, independentemente da culpa de seus agentes. Ele se eximiria — penso — se provasse que o prejuízo ocorreu, ou ocorreria, ainda que tivesse empregado todos os meios adequados para evitá-lo. Aí, sim, poder-se-ia falar em força maior. Responde, pois, pela omissão, causa eficiente do prejuízo, como responderia pela ação, se ela fosse a origem da lesão. Se não foi desidioso o juiz, desidiosas foram as autoridades superiores, inclusive os órgãos dos Três Poderes do Estado, pela situação calamitosa de desordem em que submergiu o direito do autor, usuário legítimo do serviço público judiciário, para o qual pagou a taxa judiciária e os selos dos autos, além de impostos. Já se tem condenado o Estado até pelos atos dos terceiros que exerceram autoridade de fato em seu nome. E mais expressivas são as condenações resultantes anonimamente daquilo que os franceses chamam “dufait des choses”, de que damos exemplo, entre nós, no RE da Bahia acima indicado. Na França, desde 1949, entende-se que não há necessidade de prova de ser o fato cometido pelo serviço público ou nele; basta “qu’ il no soit depourvu de tout lien avec le service”, “il suffit qu’on puisse etablir une relation quelconque entre le service et la commission de ce fait. C’est un des aspects les plus remarquables de l’evolution de la jurisprudence en matière de responsabilité” (WALINE, “ Droit Admin.”, 1959, n. 1.175, p. 690). Refere-se esse mestre às decisões do Conselho de Estado de 18-11-1949, casos Mineur, Defaux e Besthelsemer. Note-se que, no caso, além da inexistência de força maior pretendida pelo v. Acórdão, também não há a causa desconhecida que alguns escritores identificam com o caso fortuito. Ninguém dirá que o precário funcionamento da Justiça, caráter crônico, conhecido das autoridades superiores, seja equiparável ao furacão, ao raio, ao terremoto, etc. 5. Entendo que o art. 194 prescinde da prova de culpa do agente público se há falta objetivamente imputável ao serviço. Mas, no caso dos autos, houve culpa dos agentes públicos por omissão de medidas idôneas ao funcionamento da Justiça e até culpa in vigilando das autoridades superiores por sua passividade, não podendo ignorar o colapso prolongado dos serviços judiciários nas duas comarcas, já congestionadas e entregues, ainda assim, a um só magistrado. Se desde a Lei de 8-6-1895 já se reconhecia direito à indenização pelo erro judiciário apurado em revista, não há por que negá-la pela crônica inércia e invencível, que levou Anatole France a pôr na boca dum personagem de referência a sua ancila: “surda como um saco de carvão e lenta como a Justiça”. 302 Ministro Aliomar Baleeiro VOTO O Sr. Ministro Vilas Boas (Presidente): Paul Duez, em De la responsabilité de la puissance publique, cita vários casos em que se estabelece a responsabilidade pela culpa do serviço. É uma culpa objetiva. O serviço falhou, mas o próprio Conselho de Estado, pelo que sei, excetuava claramente o serviço de polícia. Entendia que, quando o serviço de polícia falhava, era necessário que a culpa fosse excessivamente grave para que engendrasse responsabilidade. O serviço de polícia é, evidentemente, falho. Forçosamente, a polícia não está em toda parte. Quanto à responsabilidade pela falta do serviço judiciário, a única regra que conheço é o dispositivo do Código de Processo Penal, que manda indenizar pelos erros judiciários praticados. Assim mesmo, bono modo, não é uma indenização ampla. São tais as restrições que o cidadão sofre na sua liberdade, tão grave e profunda a injustiça sofrida, que uma reparação pecuniária é, às vezes, pequena. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: No caso, o homem quer receber uma reparação moral. Ele foi achincalhado por um adversário. Em vez de reagir com desforço pessoal, acreditou na Justiça. O advogado bombardeava o juiz com petições. Ele insistiu. Não conseguiu fazer funcionar a máquina da Justiça. O Sr. Ministro Vilas Boas (Presidente): Em todo caso, V. Exa., Sr. Ministro Relator, apresentou tese que reputo avançada, de que o art. 194 do Código Penal também envolve a responsabilidade pelas faltas da Justiça. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: É o velho aforisma, a velha parêmia: onde o texto não distingue, o juiz não deve distinguir. Não posso distinguir. Considero o Judiciário como o serviço de vacinação, ou o serviço público de guarda noturna. O cidadão paga para tê-lo. Quem vem à porta do Supremo Tribunal Federal paga, embora seja um sumaríssimo preparo que não cobre nem a despesa com as folhas de papel gastas pelo juiz; apesar disso, paga. Está nas mãos do Estado cobrar mais taxas, mais impostos, porém, faça funcionar a Justiça. O que não posso admitir é que numa comarca haja uma situação realmente anárquica, com o juízo acéfalo, sem juiz, e, em outra, o juiz esteja assoberbado com o trabalho de duas comarcas. O Conselho Disciplinar conhecia o fato. Considerou que essa comarca estava em regime de emergência. Houve reclamação da parte e, afinal, ela tem que sofrer o malogro por mau funcionamento da Justiça. V. Exa., Sr. Presidente, citou a jurisprudência francesa do Conselho de Estado. Citei, no meu voto, um caso cuja fonte, infelizmente, não tive tempo de indicar, mas tenho absoluta certeza do que existiu. Salvador de Araújo versus Prefeitura de Salvador, há perto de 20 anos, no STF. O caso saiu publicado numa revista da Ordem dos Advogados da Bahia. Fui seu defensor gratuitamente, porque ele prestava serviço à Ordem dos Advogados. Tinha uma tipografia no prédio na base da montanha de Salvador. Como sabemos, Salvador é uma cidade de dois 303 Memória Jurisprudencial andares. Houve uma grave catástrofe. Ninguém, na Bahia, nem as pessoas mais velhas tinham memória de que tempestade daquele vulto houvesse ocorrido. As águas pluviais desceram dos sobrados de seis andares, que tinha o primeiro no nível do mar e o último ao nível da montanha. As águas pluviais desceram pelas escadas do edifício, porque a rua se convertera num rio. Salvador de Araújo entrou com uma ação e perdeu em todas as instâncias na Bahia. Interpus recurso extraordinário. Infelizmente, não posso, de memória (já se vão quase vinte anos), dizer qual o Ministro Relator. Baseou-se o acórdão na teoria francesa, levada para os autos através da pequena brochura de Rolland, o Manual de Direito Administrativo, da coleção Dalloz, enfim a teoria da responsabilité du fait des choses, a responsabilidade objetiva, oriunda das coisas e que prescinde da apuração de qualquer falta humana na produção do evento danoso. O Sr. Ministro Vilas Boas (Presidente): É baseada no princípio da responsabilidade. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): Os esgotos foram calculados para todas as estatísticas e chuvas de durante os vinte ou trinta anos anteriores, enquanto houve estatística na Bahia. Os esgotos foram calculados para isso. Mas veio uma chuva acima de quaisquer dessas estatísticas e arrebentou com tudo isso. Ainda assim, o tribunal condenou, e condenou bem, a meu ver. Quem utiliza a coisa deve responder pelos danos que ela causa, ainda que se não possa vincular o evento a uma culpa da pessoa. O risco é inerente a certas coisas, sobretudo máquinas, instalações complexas ou que usam energia elétrica. O Sr. Ministro Vilas Boas (Presidente): Este é meu voto. PEDIDO DE VISTA O Sr. Ministro Adalicio Nogueira: Sr. Presidente, o caso é delicado e interessante. Peço vista dos autos. DECISÃO Como consta da ata, a decisão foi a seguinte: pediu vista o Ministro Adalicio Nogueira, após o voto do Ministro Relator, conhecendo do recurso e provendo-o. Presidência do Ministro Vilas Boas. Relator, o Ministro Aliomar Baleeiro. Licenciado, o Ministro Hahnemann Guimarães. Brasília, 19 de abril de 1966 — Dr. Álvaro Ferreira dos Santos, ViceDiretor-Geral. 304 Ministro Aliomar Baleeiro VOTO (Vista) O Sr. Ministro Adalicio Nogueira: O recorrente propôs ação ordinária contra o Estado do Rio Grande do Sul, a fim de compeli-lo a indenizá-lo de prejuízos sofridos, oriundos de culpa exclusiva do Poder Judiciário ou dos órgãos do Estado, cujo aparelho judiciário não funcionou, em termos de atendê-lo, nos seus reclamos de justiça. É que ele oferecera, na Comarca de Santa Maria, do Estado do Rio Grande do Sul, uma queixa-crime, por delito de imprensa, contra Clarimundo Flores, diretor do jornal A Razão, que, em artigo no mesmo publicado, o injuriara. Pretende, assim, obter indenização dos gastos que despendeu, consistentes em honorários de advogado que pagou, custas e outras despesas. Para tanto, alegou que, a despeito de todos os meios que empregou, de toda a vigilância de que se socorreu, de todos os esforços a que se consagrou para levar a causa a bom termo, não o conseguiu, visto que a mesma desfechou na extinção da punibilidade pela prescrição, mercê da desídia dos órgãos que intervieram no processo e do inadequado funcionamento da máquina judiciária local. A sentença de primeira instância e o v. acórdão do Eg. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul não reconheceram, em benefício do autor, o ressarcimento pleiteado, o que o levou a se valer de recurso extraordinário, já conhecido e provido pelo eminente Relator, com base nas letras a e d do permissivo constitucional. Também eu conheço o recurso. A matéria em debate, já agora, circunscreve-se à apuração de se houve responsabilidade do Estado, em razão do funcionamento defeituoso do serviço público judiciário, motivador da lesão econômica sofrida pelo recorrente, porque o aspecto da desídia funcional culposa dos agentes da Justiça, causadora do dano em apreço, já se solveu, em definitivo, nas instâncias recorridas. Aliás, a questão foi mal posta pela defesa, quando essa suscitou a matéria da irresponsabilidade dos juízes em razão das sentenças ou decisões que proferem. Todos sabem que, nessa esfera, a magistratura está resguardada pela intangibilidade. A res judicata está sobranceira às agressões dos que são fulminados pela sentença. Há, contudo, uma brecha nessa muralha: a reparação do erro judiciário. Mas não é disso que aqui se trata. Os atos acoimados de lesivos são estranhos, propriamente, à função jurisdicional. 305 Memória Jurisprudencial Apontam-se, no caso, manobras protelatórias, atitudes retardatárias do andamento do feito não abrangidas, portanto, pela atividade, lidimamente jurisdicional. Estas não estariam isentas de responsabilidade. Aguiar Dias e Alcino Salazar subtraíam-nas ao amparo da irresponsabilidade (Da Responsabilidade Civil, vol. II, p. 232, nota 1.150 e Responsabilidade do Poder Público por Atos Judiciais, p. 77). Se eu tivesse de apreciar essa lide, sob o prisma da culpa, irrogada aos representantes do recorrido, certamente não a teria como procedente. Na minha já longa prática judiciária, tive a oportunidade de verificar como prescreviam, frequentemente, os delitos de imprensa, em razão da estreiteza angustiosa do prazo de um ano em que tal prescrição se consuma. Dos autos, apura-se que a queixa-crime — pivô desta demanda — teve a sua morosidade, em grande parte, explicada pelo fato do juiz acumular o serviço de duas comarcas trabalhosas, das múltiplas diligências ocorrentes, inclusive expedição de precatórias para a ouvida de testemunhas, etc. Acresce que a Lei de Imprensa impõe sejam tais diligências cumpridas no lapso exíguo de quarenta dias. Talvez, tudo isso justificasse o retardamento da causa, que teve como epílogo a prescrição. Mas há que se encarar a matéria sob um ângulo mais vasto. Todos sabemos que o princípio subjetivo da culpa, fecundo, outrora, para atender aos reclamos de círculos sociais menos exigentes, teve que ceder o passo a critérios mais amplos, destinados a corresponder à complexidade das múltiplas relações que se travam na vida contemporânea. A concepção civilista da culpa acanhou-se em face das imposições de um mundo arrebatado na vertigem da técnica. A clarividência de Pedro Lessa, precursor luminoso de tantas conquistas no campo jurídico, já assentara que somente na área do Direito Público se colheriam subsídios valiosos para a solução de certos problemas. Doutrinava ele: “Desde que um particular sofre um prejuízo, em conseqüência do funcionamento (regular ou irregular, pouco importa) de um serviço organizado no interesse de todos, a indenização é devida. Aí temos um corolário lógico do princípio da igualdade dos ônus e encargos sociais” (Poder Judiciário, pp. 163 e 165). Também o preclaro Amaro Cavalcanti já sustentava a opinião de que o Estado devia reparar os prejuízos causados a particulares, mesmo que se mantivesse dentro da esfera dos atos legais. E arrimado em Duguit, afirmava que o princípio da culpa era importante para fundamentar tal responsabilidade, escudando-a nas idéias de fim e de risco (Responsabilidade Civil do Estado, vol. 1º, n. 58 f e 58 g, pp. 346-349, ed. de 1957, atualizada por Aguiar Dias). 306 Ministro Aliomar Baleeiro Ademais, essa teoria, a despeito de respeitáveis entendimentos em contrário, está hoje plenamente consagrada pelo artigo 194 da Constituição Federal de 1946. Reportando-se a esse dispositivo, assevera o ínclito jurisconsulto Seabra Fagundes que o mesmo adotou, inequivocamente, a teoria do risco, segundo a qual se positiva a responsabilidade do Estado decorrente de ato ilegal ou não. “Desde que haja um dano, haverá lugar à indenização, resulte isso de violação da lei ou não.” (O Controle dos Atos Administrativos pelo Poder Judiciário, n. 83 e 84, pp. 211 e 215, ed. de 1957). Pontes de Miranda, comentando o texto apontado, assim se expressa: “Se houve culpa do causador do dano, responde o Estado e há ação regressiva. Se não houve culpa do causador do dano, responde o Estado, sem haver ação regressiva” (Comentários à Constituição Federal, vol. VI, p. 373). A jurisprudência dos tribunais encaminha-se, francamente, na direção que acabamos de assinalar. Veja-se o brilhante e erudito voto vencedor, proferido pelo conspícuo Ministro Orozimbo Nonato, no julgamento da Apelação Civil n. 7.127, de São Paulo, em que ele sublinha: “Modernamente, em Direito Administrativo, domina a teoria do risco integral ou objetivo que, no caso, tem inteira aplicação” (Rev. dos Trib., vol. 147, pp. 330-334 e 335). Julgados outros apadrinham, sem rebuços, a interpretação elucidativa do artigo 194 da Carta Magna, acima indicada (assim, o ac. unânime prolatado na Ap. Civ. 60.956, de São Paulo, e de que foi Relator o Des. J.R.A. Valim, in Rev. For. vol. 152, pp. 229-231; o ac. proferido na Ap. Civ. de São Paulo, n. 36.961, Rel. o Des. E. Custódio da Silveira, in Rev. dos Trib. vol. 175, pp. 619-622; o ac. prolatado na Ap. Civ. n. 23.745, da Guanabara, Rel. Des. Martinho Garcez Neto, in Rev. de Dir. Adm. vol. 38, pp. 329-331). Ora, no caso vertente, a queixa-crime ajuizada pelo autor, atual recorrente, no foro da Comarca de Santa Maria, não logrou seguimento pacífico em razão de deficiências notórias do aparelho judiciário. O juiz que lhe presidiu o processamento foi o de outra comarca, a de Cachoeira, porque a primeira estava sem titular. Para atender às múltiplas diligências do feito, teria ele que se transportar para Santa Maria. Trata-se, como informam os autos, de duas circunscrições judiciárias assoberbadas de trabalho. A despeito dos instantes pedidos de providências do recorrente, a demanda não teve a celeridade que a própria lei impõe e rematou na prescrição. 307 Memória Jurisprudencial O Estado não acionou, convenientemente, a engrenagem do serviço público judiciário. Não proporcionou à parte a prestação jurisdicional a que estava obrigado. Houve falta do serviço público. Não preciso atingir as alturas do risco, que é o cimo culminante da doutrina objetiva, para decretar-lhe a responsabilidade. Basta-me invocar o princípio da culpa administrativa, ocorrente na espécie, e que não se confunde com a culpa civil, porque procede, precisamente, do mau funcionamento de um serviço (Aguiar Dias, op. cit. vol. II, pp. 156-160 e Orozimbo Nonato, ac. citado, in Rev. dos Trib. vol. 147, p. 333). Em face do exposto, secundando o brilhante e erudito voto do eminente Relator, Ministro Aliomar Baleeiro, dou provimento ao recurso, para que se apure, na execução, a indenização devida ao recorrente Altino de Figueiredo Paz. PEDIDO DE VISTA O Sr. Ministro Pedro Chaves: Sr. Presidente, peço vista dos autos. DECISÃO Como consta da ata, a decisão foi a seguinte: após o voto do Ministro Adalicio Nogueira, dando provimento ao recurso, pediu vista dos autos o Ministro Pedro Chaves. Presidência do Ministro Vilas Boas. Relator, o Ministro Aliomar Baleeiro. Licenciado, o Mininstro Hahnemann Guimarães. Brasília, 17 de maio de 1966 — Dr. Álvaro Ferreira dos Santos, ViceDiretor-Geral. VOTO O Sr. Ministro Pedro Chaves: Do minucioso relatório que precedeu o voto do eminente Ministro Aliomar Baleeiro, verifica-se que o recorrente, tendo intentado ação criminal por injúria praticada pela imprensa, contra certo jornalista, viu seu esforço empregado no procedimento do processo em defesa de sua honra e reputação, apesar de toda sua diligência, frustrado pela decretação da prescrição da ação. Sustentando que a prescrição ocorreu pela desídia do juiz e dos serventuários da justiça, que falharam na missão de que os incumbira o Estado, veio o querelante a juízo exigir a reparação do dano que sofrera pela não obtenção da prestação jurisdicional que lhe era devida e que limitou ao dispêndio que teve, correspondente ao pagamento de honorários a seus advogados, custas do processo e despesas. 308 Ministro Aliomar Baleeiro Vencido nas instâncias locais, recorreu extraordinariamente, com apoio nas letras a e d do art. 101, III, da Constituição Federal, sob alegação de ofensa aos arts. 194 da Constituição, 15 e 159 do Código Civil, e colisão do acórdão recorrido com julgados que indica, relativamente à conceituação jurídica da espécie, com atenção à culpa. O art. 194 da Constituição consagrou o princípio da responsabilidade objetiva do Estado, na forma do risco administrativo, pelos danos causados por seus funcionários, nessa qualidade, a terceiros, independentemente de configuração de culpa civil, que só aparece no parágrafo único com relação à ação regressiva assegurada ao mesmo Estado contra os funcionários. Assim, o que domina sobranceiramente o problema da responsabilidade das entidades de direito público interno, pelo dano causado a terceiros pelos seus funcionários, por atos praticados nessa qualidade, é o art. 194 da Constituição. O texto consagratório do risco paira sobre o Código Civil e não há, portanto, que se cogitar da existência ou inexistência de culpa. Mas ao fixar a responsabilidade do Estado na conceituação do risco, teria o art. 194 da Constituição desprezado a relação de causalidade, a conjugação de causa e efeito entre o ato funcional e o dano? Parece-me que não. A meu ver, o art. 194 da Constituição, ao adotar o critério da responsabilidade decorrente do risco, condicionou a reparação a duas condições: uma explícita — a prática do ato do funcionário em razão do ofício; outra — ínsita, necessariamente compreendida a relação de causa e efeito entre o ato funcional e o dano. O dano reparável, o dano indenizável, o evento prejudicial é o que decorre da prática do ato do funcionário em razão da função, necessariamente, como efeito. Isso nos obriga a examinar a espécie para a verificação da causalidade. A inicial aponta como causa do dano a desídia, a morosidade, o descuro por parte do juiz e dos funcionários na prática dos atos de procedimento no processo e a inobservância dos termos de prosseguimento. As instâncias locais, na ação penal como na ação civil, examinando fatos e provas, concluíram pela inexistência da pretendida desídia funcional, atribuindo o decurso do prazo prescricional à exigüidade dos termos de andamento, marcados na lei federal, e a intercorrência de incidentes processuais inevitáveis, presos que estavam às contingências naturais e previsíveis do ordenamento processual. A meu ver, o autor, ora recorrente, não foi frustado no seu direito de exigir a prestação jurisdicional do Estado por atos dos funcionários, e sim por força do próprio risco processual, que assumiu ao intentar a queixa, num procedimento regulado por lei federal, cujos prazos, por demais exíguos, levavam quase sempre à prescrição, até mesmo nesta mais alta instância. Pelo exposto, conhecendo do recurso pela relevância da matéria, a ele denego provimento. 309 Memória Jurisprudencial VOTO O Sr. Ministro Vilas Boas (Presidente): Realmente, essa lei foi feita para libertar os jornalistas, para facilitar a prescrição. Em certo processo, manifesteime no sentido de evitá-la, mas, apesar de todo o meu zelo, fui derrotado. O problema da responsabilidade do Poder Público baseia-se na culpa objetiva, é a falta do serviço público. Mas essa é a jurisprudência francesa, que temos adotado aqui. Eu mesmo apliquei muito esse entendimento em Minas Gerais. Todavia, em relação a certos serviços, como, por exemplo, o serviço de polícia, exige-se uma culpa excessivamente grave. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Já temos no Brasil, há mais de trinta anos mais ou menos, acórdãos no sentido da responsabilidade do Estado por falta do objetivo serviço público, como, p. ex., por omissão da polícia em reprimir ou garantir o cidadão contra o movimento das multidões. O Sr. Ministro Vilas Boas (Presidente): Encarando por esse aspecto, também de falta do serviço público, a culpa está no próprio serviço, o serviço público agiu mal. Adoto esse ponto de vista. Em relação ao serviço de polícia, é necessária uma culpa excessivamente grave. Em relação à culpa do funcionamento do serviço judiciário, só no caso de erro judiciário, aquele erro judiciário que, segundo o Código de Processo Penal, permite uma reparação módica. Fora desse caso, não encontro nenhum outro de condenação do Estado por culpa do seu serviço de Justiça. Realmente, poderemos chegar a essa conclusão mais tarde. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: No caso, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul eximiu de culpa o juiz, porque teria havido razões de ordem superior à diligência dele. Porém, com isso, aquele tribunal reconheceu, como matéria de fato, a culpa do Estado. O Estado foi que não deu solução ao impasse que havia numa comarca vizinha e que obrigava esse juiz a dividir sua atividade entre os dois foros. O Sr. Ministro Adalicio Nogueira: Aí é que está a falta do serviço público. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: O Estado sabia. O órgão competente declarou, à saciedade, essa comarca em regime de exceção, de emergência. Ora, se nós indenizamos o erro judiciário, sabendo que não há no mundo juiz que esteja à prova do erro, nem há nenhum tão arrogante e tão cheio de veleidades que se suponha acima do erro, acima da negligência, acima da lentidão, podemos estar... 310 Ministro Aliomar Baleeiro O Sr. Ministro Pedro Chaves: Sr. Presidente, peço a V. Exa. que me dê licença para uma ligeira explicação. O processo foi intentado na Comarca de Santa Maria: o juiz de Santa Maria manifestou suspeição. Passou, então, a funcionar no feito o juiz de Cachoeira, como primeiro substituto legal. Essa Comarca de Cachoeira é que estava em regime de exceção, atrasada, com os prazos contados em dobro. Realmente, a Justiça local, ao examinar o caso, achou que não havia culpa do funcionário, porque o Tribunal de Justiça do Estado tinha declarado a comarca em regime de exceção quanto aos prazos. Mas, mesmo assim, não foi possível atender. Essa é uma das razões em que o recorrente funda o seu recurso pela letra d e por que o acórdão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, examinando o caso pelo aspecto da culpa, teria colidido com o julgado do Tribunal de Justiça de São Paulo, que declarou que a culpa era administrativa, era objetiva. Mas, em meu voto, Sr. Presidente, depois de discorrer doutrinariamente e de me colocar em inteira harmonia com os votos que me precederam, abordei outro aspecto da questão, o que decorre do preceito do art. 194 da Constituição. E acabei de citar, neste instante, que, a meu ver, o art. 194, quando adotou a teoria do risco administrativo, da culpa administrativa, não tinha abandonado aquele elo indispensável entre a causa e o efeito (a teoria da causalidade), porque não basta que haja um dano para o Estado indenizar, é preciso que o dano tenha sido provocado por um ato de funcionário público, em razão de seu ofício... O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Por ação ou omissão. O Sr. Ministro Pedro Chaves: ...praticado em razão de seu ofício. Portanto, a meu ver — e o que citei foi que a teoria da causalidade não foi abandonada pelo art. 194 da Constituição —, no caso, então objetivando, o recorrente foi frustrado no seu direito à prestação jurisdicional do Estado, pelo próprio risco que ele correu ao intentar a ação, porque o Estado não regula a ação: a ação é regida pela lei federal, e essa lei tinha prazos certíssimos. V. Exa., Sr. Presidente, acaba de citar que é uma lei destinada a matar, pelo tempo, muitos processos contra jornalistas. E V. Exa. deu também seu testemunho pessoal: com a sua inteligência, com a sua cultura, com a sua dedicação e o seu amor ao Tribunal, V. Exa. não conseguiu, aqui no Supremo Tribunal Federal, que se comprometesse a prescrição numa ação dessas. É por isso que eu digo: quando o recorrente entrou em juízo propondo ação de injúria contra o jornalista, ele correu esse risco, que estava pesando sobre todos os brasileiros que ousassem ir a juízo disputar algum direito nos termos dessa lei processual. É o chamado risco processual, conhecido de todos os tratadistas da matéria. 311 Memória Jurisprudencial Por esses motivos é que, conhecendo do recurso, pela sua alta relevância, eu lhe neguei provimento, por achar que não havia relação de causalidade entre o dano sofrido por ele e o ato omissivo do funcionário, porque a causa imediata do dano que ele sofreu foi o próprio risco processual, a que se sujeitou com a propositura do processo. O Sr. Ministro Vilas Boas (Presidente): A minha conclusão também é a mesma de V. Exa. DECISÃO Como consta da ata, a decisão foi a seguinte: conheceram do recurso, a que deram provimento, os Ministros Aliomar Baleeiro, Relator, e Adalicio Nogueira. Conheceram do recurso, a que negaram provimento, os Ministros Pedro Chaves e Presidente. Havendo empate deve ser convocado Ministro de outra Turma. Presidência do Ministro Vilas Boas. Relator, o Ministro Aliomar Baleeiro. Tomaram parte no julgamento os Ministros Aliomar Baleeiro, Adalicio Nogueira, Pedro Chaves e Vilas Boas. Licenciado, o Ministro Hahnemann Guimarães. Brasília, 14 de junho de 1966 — Dr. Álvaro Ferreira dos Santos, ViceDiretor-Geral. VOTO (Desempate) O Sr. Ministro Hermes Lima: A ação foi proposta contra o Estado do Rio Grande do Sul para haver prejuízos sofridos em virtude de ter sido decretada a prescrição da ação criminal instaurada pelo recorrente contra outrem, “por culpa exclusiva do Poder Judiciário”. A sentença absolveu da instância o Estado porque todos os atos referidos pelo autor eram atos jurisdicionais (fl. 407). Houve apelação. A Primeira Câmara Cível não conheceu da apelação, por não a comportar a decisão recorrida (fl. 430v.) Embargou-se. Os embargos foram recebidos para que a Câmara julgadora tomasse conhecimento da matéria. De onde o acórdão de fl. 446, declarando o Estado parte legítima para integrar a relação processual da ação proposta (fl. 446). Baixados os autos à instância inferior, o juiz proferiu a sentença de fl. 462, julgando improcedente a ação, dizendo que “não configurada a culpa, mesmo em sentido lato, é incabível a indenização pretendida”. O acórdão de fl. 485 confirmou unanimemente a sentença, dizendo que todo problema se cifrara em saber se houve realmente a imputada culpa funcional. 312 Ministro Aliomar Baleeiro O princípio da responsabilidade do Estado, em razão do funcionamento defeituoso do serviço público judiciário, não encontra aplicação no caso. O acórdão afirmou e concluiu: “De logo ficou excluída, na espécie, a hipótese de dolo ou fraude do juiz ou dos serventuários da justiça pelo retardamento do aludido processo, consoante o reconhece o próprio ora apelante. Faça-se apenas a ocorrência de omissões culposas, por desídia. Dos elementos que constam do processo, verifica-se que a demora na realização das audiências e outros atos decorreu do fato de nele funcionar, por impedimento do titular do juizado de Santa Maria, foro por onde corria o feito, o seu substituto legal, o juiz de direito da Comarca de Cachoeira do Sul. Este, assoberbado pelo volumoso serviço da sua comarca e, concomitantemente, em certa fase, com o da Comarca da Santa Maria, circunstância que determinou a providência da então Comissão Disciplinar Judiciária de considerá-las em regime de exceção, pela ampliação dos prazos para a prolação dos despachos e sentenças, não pôde, como era mister, cingir-se à observância dos prazos legais daquele processo criminal, de sorte a evitar a prescrição, com prazo, aliás, bem curto. Acresce, ainda, a circunstância dos autos terem subido em grau de recurso a superior instância para solução de um incidente processual, do que resultou perda de tempo, propiciando o curso prescricional. Houve, assim, justo motivo na demora do processo criminal, circunstância essa reconhecida também pelo venerando acórdão, que confirmou a sentença declaratória da prescrição, ao referir que os prazos do processo não se cumpriram regularmente por impedimento do juiz e força maior (fl. 35). Não tendo ocorrido desídia dos funcionários que intervieram no processo, não há cogitar-se de indenização, na espécie.” (Fl. 485) Além disso, há um fato muito importante a assinalar. O recorrente, que era o querelante, podia, em lugar do querelado, preparar o recurso na Secretaria do Tribunal. O recurso ali ficou à espera de preparo por cerca de dois meses. Que o querelado não o fizesse, compreende-se, em face mesmo do ridículo prazo prescricional de um ano, então vigorante. Mas ao querelante era dado pagar as custas, se tinha tamanho interesse na marcha do processo sobre o qual recaiu também outro incidente processual, de sua iniciativa, que retardou audiência já marcada. É bem de ver que o fundamento da ação — culpa exclusiva do Poder Judiciário — não se configura de modo algum na matéria em debate. Assim, conheço do recurso, mas lhe nego provimento. 313 Memória Jurisprudencial DECISÃO RE 32.518/RS — Relator: Ministro Aliomar Baleeiro. Relator para o acórdão: Ministro Vilas Boas. Recorrente: Altino de Figueiredo Paz (Advogado: Léo Aragon). Recorrido: Estado do Rio Grande do Sul (Advogado: Álvaro de Moura e Silva). Como consta da ata, a decisão foi a seguinte: com o voto de desempate do Ministro Hermes Lima, negaram provimento ao recurso, vencidos os Exmos. Ministros Aliomar Baleeiro e Adalicio Nogueira. Presidência do Ministro Vilas Boas. Relator, o Ministro Aliomar Baleeiro. Tomaram parte no julgamento os Ministros Aliomar Baleeiro, Adalicio Nogueira, Pedro Chaves e Vilas Boas. Convocado, o Ministro Hermes Lima, da Terceira Turma, para desempate de voto. Licenciado, o Ministro Hahnemann Guimarães. Brasília, 21 de junho de 1966 — Dr. Álvaro Ferreira dos Santos, ViceDiretor-Geral. RECURSO EXTRAORDINÁRIO 39.296 — MG Estão sujeitas ao imposto de vendas e consignações as transações sobre minerais que ainda não estão compreendidas na legislação federal sobre o imposto único (Súm. 118). VOTO (Preliminar) O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Sr. Presidente, conheço a jurisprudência do Tribunal no caso e o voto brilhante do Sr. Ministro Luiz Gallotti na matéria. Antes de entrar para o Supremo Tribunal, eu observava que as questões fiscais recebiam sempre carinho imenso do eminente Ministro Luiz Gallotti. Sem fazer injustiça, talvez fosse S. Exa. o juiz desta Casa que mais desvelo manifestava nos problemas de direito tributário. Infelizmente, neste ponto, não pude concordar com a tese de S. Exa. de que, enquanto não fosse regulado pelo Congresso Nacional o imposto único sobre minerais e combustíveis, seria lícito aos Estados-Membros decretar os impostos de sua competência sobre estes mesmos minerais. Creio que o art. 68 do Código de Minas é compatível com a Constituição de 1946, na parte em que estabeleceu a tributação única para os minerais. Sabemos 314 Ministro Aliomar Baleeiro que este art. 68, se não me falha a memória, estabelece um teto de 8% (5% para os Estados e Municípios e 3% para a União). Mas se, de qualquer modo, o art. 68 não representasse uma tributação única sobre os minerais, a conseqüência é que não seriam tributáveis no momento e até que a lei federal viesse a estabelecer o imposto da União sobre tais produtos. Nunca, data venia, seria possível juridicamente que, depois da Constituição de 1946, os Estados e Municípios pudessem aplicar naqueles impostos de sua competência (Const. 19 a 29) sobre os fatos geradores direta ou indiretamente previstos no art. 15, III e § 2º, a minerais: produção, comércio, distribuição, etc. Destarte, conquanto o caso não tenha maior interesse, porque já há uma lei federal recente sobre o assunto, data venia do eminente mestre Ministro Luiz Gallotti, sou voto vencido. O Sr. Ministro Victor Nunes (Relator): V. Exa. está impugnando a Súmula 118. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: A decisão regimental permite que cada juiz, de acordo com a sua consciência, possa conservar sua opinião pessoal. Por isso divirjo. O Sr. Ministro Victor Nunes (Relator): O meu voto é fundado na Súmula 306, que se refere especificamente à taxa de recuperação econômica. O voto de V. Exa. não está impugnando a Súmula 306, mas apenas a Súmula 118. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Não impugno a tese defendida na súmula citada por V. Exa., de que não é inconstitucional uma taxa falsa, mas que, na realidade, encobre o imposto da competência do Estado que a decretou. O nome não tem importância; o que tem importância é o fato gerador. O Sr. Ministro Victor Nunes (Relator): Também penso assim. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Sempre defendi esse ponto de vista. Creio mesmo que o projeto do Código Tributário Nacional o consagrou. Foi o que concordamos em reunião sobre o assunto o Professor Rubens Gomes de Souza, o Dr. Ulhoa Canto, o Professor Bilac Pinto e eu. A minha questão é apenas em relação aos minerais nos fatos sujeitos ao imposto único, de acordo com o art. 15, III e § 2º. 315 Memória Jurisprudencial RECURSO EXTRAORDINÁRIO 45.255 — GO Preliminar: inteligência do art. 114, III, a, da Constituição de 1967. Mérito: interpretação do art. 294 do Código de Processo Civil. Provimento do apelo extremo. VOTO (Preliminar) O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Sr. Presidente, creio que a intenção do constituinte foi a de limitar os casos de recurso extraordinário, porque, se não, como V. Exa. ainda há pouco ponderou, chegaríamos à conclusão de que a mudança das palavras não teria nenhum alcance prático, e “negar vigência” na Constituição de janeiro de 1967 equivaleria àquela decisão contra a letra de lei federal ou de tratado do Estatuto de 1946. Ora, mais do que nunca se pode repetir a velha verdade de que as palavras são péssimos veículos para condução do pensamento do legislador. Temos, pois, que, se penetrarmos esse texto e o contrastarmos com o princípio de que o funcionamento do Supremo Tribunal, à semelhança da Suprema Corte dos Estados Unidos, é o da unidade do direito federal, vamos chegar à conseqüência a que chegou o eminente Sr. Ministro Prado Kelly no seu lógico e luminoso voto, que todos ouvimos com prazer e edificação. Em alguns velhos volumes da Revista do Supremo Tribunal, do volume 1º ao 24º, mais ou menos até 1924, encontramos acórdãos em dois sentidos. Mesmo depois daquele parecer célebre de Epitácio Pessoa, a que se reportou o eminente Ministro Relator, há acórdãos que reiteradamente declaram: “É necessário que a decisão recorrida estridentemente contrarie a lei federal”. Outros acórdãos há, do punho dos maiores juristas que passaram por esta Casa, dizendo que nunca um tribunal decidiu estridentemente contra a lei, nunca negou a vigência da lei federal. Pode acontecer, como num desses casos há pouco focalizados pelo eminente Ministro Relator, que, por um caminho sinuoso, tenham dado interpretação que negue o espírito e a letra da lei. Sou daqueles, Sr. Presidente, que levam muito em conta a ratio juris — o fim inspirador da lei ou por ela alvejado. A letra da lei não é tudo. É impossível que o legislador quisesse limitar o recurso extraordinário a essa hipótese, muito rara, de um tribunal local, ou mesmo um tribunal federal de instância inferior, negar vigência à lei federal. Certo que ele não o faz. Temos que ver, exatamente como acentuou o eminente Ministro Prado Kelly, se, em cada caso concreto, a interpre316 Ministro Aliomar Baleeiro tação dada à lei teve como conseqüência prática a sua não-aplicação àquele caso. Aí teríamos, então, a sinonímia constitucional, já há pouco definida, entre aplicação e vigência. Acredito também que mais importante do que a Constituição literária, essa que foi impressa no “Diário Oficial”, num papel muito ordinário e até com pleonasmo, é a Constituição viva, aquela que foi constituída pelo Supremo Tribunal, pelo Congresso Nacional, pelo Presidente da República, pelo cidadão na rua, adquirindo maior elasticidade, maior sobrevivência. E só isso explica que, em outros países, velhos textos do século XVIII ainda vigorem, assim como antigos códigos de 150 anos ainda resolvam problemas ligados à tecnologia, à ciência, a todas as forças dominadas pelo homem na época em que vivemos. Em resumo, para não dilatar mais o meu voto, subscrevo a solução magistralmente exposta pelo eminente Ministro Prado Kelly. RECURSO EXTRAORDINÁRIO 45.511 — MG Imposto de transmissão causa mortis. Cobra-se pela estimativa ao tempo de avaliação do acervo e não pela do tempo da abertura da sucessão, mormente se assim dispôs a lei estadual supletiva de norma geral de Direito Financeiro (Constituição, art. 6º, de referência ao artigo 5º, XV, b). VOTO O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): 1. Conheço do recurso, para lhe dar provimento. 2. O fato gerador do imposto de transmissão causa mortis é, sem dúvida, o óbito do de cujus. Mas incumbe aos herdeiros, dentro de 30 dias, a abertura do inventário, que implica em imediata avaliação do acervo. Se não cumpriram a lei, devem arcar com as conseqüências de sua inércia. Em quadra violentamente inflacionária, se prevalecesse o critério do v. acórdão, os herdeiros negligentes ou mesmo maliciosos se locupletariam de modo indébito em detrimento do Estado, pagando-lhe apenas fração pequena do que lhes devem em moeda do valor do tempo da abertura da sucessão. Por isso mesmo, o legislador já introduziu a correção monetária nos débitos fiscais para com a União. 317 Memória Jurisprudencial 3. O art. 482 obriga o avaliador a considerar o valor efetivo da coisa, levando em conta não só os lançamentos mais recentes senão também, além da razoabilidade, “quaisquer outras circunstâncias que possam influir na sua estimação”. O desnível monetário entre a data da morte do inventariado e a da avaliação constitui uma dessas circunstâncias e das mais relevantes. 4. Desde que não há norma geral de Direito Financeiro (Constit. art. 5º, XV, b) sobre a matéria, é de necessária aplicação a disposição estadual que a supre (Constit. art. 6 de referência ao citado art. 5º, XV, b). No caso, a lei estadual impôs a estimativa do tempo da avaliação. 5. A jurisprudência é contrária à interpretação do acórdão. Ver, além dos julgados já citados no relatório, o v. acórdão de 27-11-58 no RE 35.419, RF, 194/ 158; RE 55.167, de 24-5-64, na RDA, 78/93 (fideicomisso); e do Tribunal de Justiça de São Paulo, na RF, 170/278). RECURSO EXTRAORDINÁRIO 45.977 — ES Relator: O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro Recorrente: Estado do Espírito Santo — Recorrido: João Zanotti (Firma) Repetição de imposto inconstitucional — Em princípio, não se concede a do tributo indireto, no pressuposto de que ocasionaria o locupletamento indébito do contribuinte de jure. — Mas essa regra, consagrada pela Súmula n. 71, deve ser entendida em caso concreto, pois nem sempre há critério científico para se diagnosticar esse locupletamento. — Financistas e juristas ainda não assentaram um standard seguro para distinguir impostos diretos e indiretos, de sorte que a transferência do ônus, às vezes, é matéria de fato, apreciável em caso concreto. ACÓRDÃO Vistos e relatados estes autos de Recurso Extraordinário n. 45.977, do Estado do Espírito Santo, em que é recorrente o Estado do Espírito Santo e recorrido João Zanotti; decide o Supremo Tribunal Federal, por sua Segunda Turma, conhecer do recurso e lhe negar provimento, unanimemente, de acordo com as notas juntas. Distrito Federal, 27 de setembro de 1966 — Vilas Boas, Presidente — Aliomar Baleeiro, Relator. 318 Ministro Aliomar Baleeiro RELATÓRIO O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: 1. O recorrido, exportador de café, moveu ação para reaver o que pagou a título de “taxa de fomento da produção agrícola e industrial”, instituída pela Lei 135/48 e mantida pela 609/51, direito que lhe foi reconhecido pelo egrégio Tribunal de Justiça do Espírito Santo (acórdão de fls. 290-293, confirmado, em grau de embargos, pelo de fl. 312). 2. Interpôs o Estado do Espírito Santo o Recurso Extraordinário de fl. 314, sustentado pelas razões de fls. 317-318, insistindo na preliminar (acolhida pelo voto vencido de fl. 293) da ilegitimidade da firma recorrida para pleitear a repetição do indébito, por se tratar de tributo indireto. 3. Recebido o recurso pela letra d (fl. 315 v.) teve a apoiá-lo, nesta instância, o parecer da douta Procuradoria-Geral da República (fl. 340 v.) no sentido do seu provimento. É o relatório. VOTO O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): 1. Quanto à inconstitucionalidade da pseudo “taxa de fomento da produção agrícola e industrial”, do Espírito Santo, não há qualquer dúvida. O recorrido juntou certidões de alguns acórdãos do Supremo Tribunal Federal que a reconheceram por ser falsa taxa, que mascara imposto interestadual de exportação, vedado pelo art. 27 da Carta de 1946 e pela anterior. Aquele Estado, mais de uma vez, quando esta Corte lhe reprime essa política tributária inconstitucional e destrutiva da unidade econômica do mercado interno do país, substitui a denominação do tributo condenado e, à sombra dela, insiste no erro. 2. Resta a controvérsia sobre a impossibilidade jurídica da repetição de tributos indiretos, tese que tem o amparo da Súmula n. 71. Entendo que essa diretriz não pode ser generalizada. Há de ser apreciada em cada caso concreto, porque de começo, do ponto de vista científico, os financistas ainda não conseguiram, depois de 200 anos de discussão, desde os fisiocratas do século XVIII, um critério seguro para distinguir o imposto direto do indireto. O mesmo tributo poderá ser direto ou indireto, conforme a técnica de incidência e até conforme as oscilantes e variáveis circunstâncias do mercado, ou a natureza da mercadoria ou a do ato tributado. Para não alongar essa verdade, reporto-me às lições de G. Jèze (Cours El Science Finances, pp. 398/9), que uma das mais recentes obras eleva ao título de maior financista da França neste século. 319 Memória Jurisprudencial À falta de um conceito legal, que seria obrigatório ainda que oposto à evidência da realidade dos fatos, o Supremo Tribunal Federal inclina-se a conceitos econômico-financeiros, baseados no fenômeno da incidência e da repercussão dos tributos indiretos, no pressuposto errôneo, data venia, de que sempre eles comportam transferência do ônus do contribuinte de jure para contribuinte de facto. Então, haveria locupletamento indébito daquele às expensas deste, motivo pelo qual deveria ser recusada a repetição. É o suporte pretendidamente lógico da Súmula 71. “Quanto più relevante é la distinzione, tanto più difficile é il criterio di discriminare delle imposte dirette dalle indirette... Questo critério di discriminazione (o econômico) non puó essere utilizatto dal giurista perchè, a parte i dubbi, legitimi, che sussestono in merito alla possibilità della totale traslazione dell’imposta, esso non offre alcun criterio formale per una distinzione delle imposte sotto “aspetto giuridico” (B. Cocivera, Principi di Diritto Tributario, 1959, p. 245). O jurista confirma os financistas. 3. Ora, beneficiando-se da análise econômica mais moderna, dois autorizados mestres de Economia Financeira escreveram, a propósitio da incidência, que “il n’est pas de domaine de la théorie fiscale qui soit plus decevant pour le practicien” (Brochier e Tabatoni, Economie Financière, 1959, p. 261). Esses autores recapitulam as condições sem as quais não ocorrerá a transferência do imposto, esclarecendo que a elasticidade da oferta depende da mobilidade e da “possibilidade de lucro” (profitabilité), estabelecendo que há casos em que “a firma pode estar à mercê dos compradores”, isto é, ficará impedida de majorar o preço com o fim de se ressarcir do ônus fiscal (p. 271). Além disso, se ela insistir na majoração, poderá haver redução global da produção ou da venda com o aumento de custos, que Marshall batizou de “external diseconomies”. Tanto menos geral o tributo, e “comme il n’existe pas d’impôt vraiment gèneral, cet argument revient à mentionner un effet de rigidité de l’offre et le fait qu’un impôt particulier est plus faiblement transférable” (id. p. 271). Acontece que, no caso dos autos, o tributo alvejado é particular (no sentido, de oposto ao geral), pois incide apenas sobre aquela parte das operações de café vendido para outros Estados, sendo público e notório que, pelo menos 5 Estados (São Paulo, Minas Gerais, Paraná, Bahia, Espírito Santo), concorrem intensamente no mercado cafeeiro, sem falar na pequena produção de outras unidades federativas. Se o Espírito Santo exige irracionalmente de seus produtores de café um tributo inexistente nos outros estados competitivos, há discriminação prejudicial àqueles produtores, porque o preço — para cada tipo da mercadoria e em cada 320 Ministro Aliomar Baleeiro momento — tende a ser o mesmo para todos os competidores. Não é possível, então, ao vendedor espírito-santense exigir mais para seu café, sob pretexto de que paga taxa de que estão livres paulistas, baianos e mineiros, pois o comprador tem onde comprar pela cotação do dia na Bolsa de Mercadorias. Ele não se comove porque o Espírito Santo impõe à sua produção uma taxa inconstitucional e ilegítima, desarmando-a na competição interestadual. Logo, o peso da taxa fica nos ombros do produtor ou do comerciante espíritosantense que não têm possibilidade ou, pelo menos, probabilidade de majorar o preço do dia no país, único meio de transferir o gravame aos compradores. 4. Sem dúvida, há um fundamento ético na velha parêmia de Pompônio, que Fabreguettes desejava fosse gravada no frontal de todos os tribunais. Na repercussão do imposto, o lesado é consumidor. A Súmula prefere que o locupletamento favoreça o Estado e não o contribuinte de jure, no pressuposto de que aquele representa a comunidade social. Mas não se pode negar a nocividade do ponto de vista ético e pragmático duma interpretação que encoraja o Estado manutenedor do direito a praticar, sistematicamente, inconstitucionalidades e ilegalidades na certeza de que não será obrigado a restituir o proveito da turpitude de seus agentes e órgãos. Nada pode haver de mais contrário ao progresso do Direito e à realização da idéiaforça da Justiça. 5. Em resumo, a meu ver, não houve, no caso concreto, locupletamento do contribuinte de jure, matéria, de fato, julgada pela Corte local, que interpretou Direito do Estado. 6. Tomo conhecimento do recurso, mas lhe nego provimento pelas razões expostas. DECISÃO RE 45.977/ES — Relator: Ministro Aliomar Baleeiro. Recorrente: Estado do Espírito Santo (Advogado: Lauro Calmon Nogueira da Gama). Recorrido: João Zanotti (Firma) (Advogado: Jurandyr Ribeiro de Oliveira). Como consta da ata, a decisão foi a seguinte: conheceram do recurso, a que negaram provimento. Unânime. Presidência do Ministro Vilas Boas. Relator, o Ministro Aliomar Baleeiro. Tomaram parte no julgamento os Ministros Aliomar Baleeiro, Adalicio Nogueira e Vilas Boas. Ausentes, justificadamente, os Ministros Pedro Chaves e Hahnemann Guimarães. Brasília, 27 de setembro de 1966 — Guy Milton Lang, Secretário. 321 Memória Jurisprudencial RECURSO EXTRAORDINÁRIO 46.617 — GB Desquite por mútuo consentimento. O falecimento de um dos cônjuges, antes de julgado a apelação necessária da sentença homologatória do acordo, põe fim no processo, prejudicados o desquite e o recurso. Morto um dos cônjuges dissolve-se o casamento, extinguindo-se o objeto do desquite, e deixa de existir uma das partes da relação jurídica processual, tornando-se impossível a prestação jurisdicional, que lhe era pessoalmente devida. Não tem eficácia a sentença homologatória de desquite por mútuo consentimento, enquanto não passa, formalmente, em julgado. VOTO O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Sr. Presidente, reconheço o rigor lógico do julgamento de que foi vencedor o eminente Ministro Hahnemann Guimarães, no RE n. 46.616, mas tenho na memória um acórdão contrário do eminente Ministro Vilas Boas, e a vida não é lógica. O direito é para solucionar a vida. Imagine a hipótese — como muitas que poderiam ser invocadas — de um motivo fundamental, motivo de honra, pelo qual alguém se separou de outrem, seja marido, seja mulher. Julgado em primeira instância, vai o caso para o Tribunal. Pelo Código, deveria ser julgado dentro de dois meses, pois o juiz, em 15 minutos, poderia ver que o processo se encontra em condições formais para isso. Na verdade, não é assim. Nos Estados do Norte, não há taquigrafia; o juiz leva um caderninho desses de armazém e faz suas anotações. Julgado e homologado o desquite, há o problema de passar as notas do caderninho a limpo, em português legível, para os autos. Todos os Ministros aqui sabem disso, porque já receberam processos nessas condições dos Estados do Norte. O Sr. Ministro Eloy da Rocha: No Sul também é assim. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: É papel ordinário, tinta ordinária, e, depois de meses ou anos, é que se resolve, dando solução ao processo. Quem, como eu, já dedicou parte da vida à advocacia, sabe que é assim. Muitas vezes, só por súplica ou simpatia é que se consegue a lavratura do acórdão nos autos. Olho o caso sob o ponto de vista do Ministro Vilas Boas. A vida não é lógica. É, como dizia Oliver W. Holmes, a experiência. O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Mas o Ministro Vilas Boas votou de acordo comigo no RE n. 46.616. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Mas no caso a que me refiro, votou de outra forma. Prefiro a solução mais prática. Meu voto é pragmático e realista, nos termos do pronunciamento do eminente Relator, Ministro Victor Nunes. 322 Ministro Aliomar Baleeiro RECURSO EXTRAORDINÁRIO 49.286 — RN Funcionário. Competência do Legislativo para anular suas próprias leis maculadas de inconstitucionalidade. Extinto o cargo pela anulação ou revogação da lei que o criou, não está o ocupante protegido pelo estágio probatório (Súmula n. 22). Lei n. 2.677/61 do Rio Grande do Norte. VOTO O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): Trata-se de mais um dos rumorosos casos do Rio Grande do Norte, originados da Lei 2.677/61 e já familiares ao Supremo Tribunal Federal. A tese é a mesma já versada em vários casos semelhantes de Santa Catarina: competência do Poder Legislativo para anular ou declarar sem efeito suas próprias leis, havidas como contrárias à Constituição. Meu pensamento, no assunto, está manifestado no voto que dei como Relator do Recurso em Mandado de Segurança n. 13.239, de Santa Catarina, acolhido por esta egrégia 2ª Turma em 22-3-66. Se a lei anulou ou cassou efeitos de outra, na pior hipótese, revogou-a e, então, são inexistentes os cargos criados pela primeira. 2. Ora, no caso, entende a recorrida que se achava em estágio probatório e, portanto, sob o pálio da Súmula n. 21. Não penso assim. Anulada, cassada ou apenas revogada a Lei n. 2.938/61 pela Lei n. 2.677/61, foram extintos os cargos criados por aquela. Aplica-se, então, a Súmula n. 22: “O estágio probatório não protege o funcionário contra a extinção do cargo”. A recorrida não era estável nem ingressou por meio de concurso. Não tinha certeza e liquidez o direito que lhe reconheceu o colendo Tribunal do Rio Grande do Norte. 3. Por outro lado, a inconstitucionalidade da Lei 2.677 não poderia ser declarada por uma decisão escoteira da maioria absoluta daquela Corte. Nem é despiciendo outro aspecto da controvérsia: negando ao Legislativo a competência para cassar as próprias leis, vale dizer — revogá-las —, o v. acordão chocou-se com o princípio da harmonia e independência dos Poderes (Cons., art. 7º, VII) e entrou em dissídio com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal nos casos citados pelo recorrente e noutros, em que foi reconhecida essa faculdade às Assembléias. 323 Memória Jurisprudencial 4. Reportando-me ao v. acórdão no Recurso Extraordinário n. 48.655 e também ao decidido por esta 2º Turma no Agravo de Instrumento 27.863 e nos Recursos em Mandado de Segurança n. 13.759 e n. 13.239, conheço do recurso e lhe dou provimento para cassar a segurança concedida. RECURSO EXTRAORDINÁRIO 52.598 — GB Equiparação — Não cabe ao Judiciário ordená-la, substituindo-se ao Legislativo, que tem da Constituição essa competência. VOTO O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): 1. Conheço do recurso, para lhe dar provimento, porque não me convenci, data venia, do acerto do v. acórdão ao reconhecer direito líquido e certo aos recorridos. 2. A Lei, equiparando-os aos funcionários, em geral, quis ampará-los quanto à estabilidade e às garantias asseguradas a estes. Mas se ela não se referiu a vencimentos, não é possível ao Judiciário assumir competência que a Constituição reserva só ao Congresso, com a sanção do Presidente da República e por iniciativa deste. Nem é possível dar vencimentos sem classificação em cargos, aos quais eles se refiram. Nesse ponto, tem razão a Procuradoria-Geral da República. 3. O Supremo Tribunal Federal já tem proclamado, iterativamente, que a invocação do princípio da isonomia não o investe na competência de equiparar vencimentos. Reporto-me aos julgados no MS 11.012, RE 41.166 (DJ de 5-10-59, p. 3385) e outros citados à fl. 175, além do MS 4.038, Relator o eminente Ministro Candido Motta. Aplica-se a Súmula n. 13. RECURSO EXTRAORDINÁRIO 58.356 — GB Súmula — Debate sobre a Revisão de n. 435, que consigna: o imposto de transmissão causa mortis pela transferência de ações é devido ao Estado em que tem sede a companhia. Confirmação da jurisprudência predominante do Supremo Tribunal Federal. Recurso extraordinário conhecido, mas não provido. 324 Ministro Aliomar Baleeiro ANTECIPAÇÃO AO VOTO O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Sr. Presidente, como os eminentes juízes se recordam, o caso consiste num recurso extraordinário em que contribuintes do imposto de transmissão causa mortis de inventário em Minas Gerais repeliram a exigência do mesmo imposto pelo Estado da Guanabara, fundando-se este em que as ações de sociedades anônimas, situadas em seu território, pagassem o imposto de transmissão causa mortis nesse Estado. O eminente Ministro Hermes Lima defendia a tese de que o imposto deveria caber ao Estado da abertura da sucessão e, no caso, há a Súmula n. 435, como veremos adiante. VOTO O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: 1. A questão federal, que, aliás, também se reveste de caráter constitucional, reside em definir se a cláusula do art. 19, § 2º, da Constituição (numeração da Emenda 5/1961) — “(...)Ao Estado em cujo território os valores da herança forem liquidados ou transferidos aos herdeiros” — refere-se, em se tratando de ações nominativas, ao Estado onde se processa o inventário ou, ao invés disso, ao Estado da sede da sociedade anônima, dado que no livro de registro desta se realizará a transferência imposta pelos arts. 25 e 27, § 1º, do Decreto-Lei n. 2.627, de 26-9-1940 (Lei de Sociedades por Ações). A discussão data de mais de 20 anos, desde quando o interventor Ismar Góes Monteiro, de Alagoas, a suscitou, provocando solução do governo ditatorial para que Pernambuco não arrecadasse o imposto de transmissão causa mortis de ações de empresa alagoana, deixadas por acionista residente neste último Estado, onde se liquidava o inventário. Nessa ocasião, Francisco Campos e Hahnemann, em prol da competência do Estado sede da sociedade anônima, formularam dois argumentos realmente persuasivos: 1º) a diferença de redação entre as Constituições de 1934 e de 1937, pois esta ampliou aquela cláusula que, na primeira, regia só sucessões abertas no exterior; 2º) ficar sem objeto, no § 4º do art. 23 da Carta de 1937, a cláusula “em outro Estado” que não existia na de 1934 (RDA 2º/371 e seg.). Assim decidiu o Supremo, sob o regime de 1937, no Acórdão de 10-10-44, no RE n. 5.384 – DF, Direito, 33/245. Alagoas ganhou a partida graças aos pareceres dos dois festejados mestres. Surgiram nesta Corte dois casos, sem grande estrépito, (RT 320/624) no regime de 1946, e, afinal, o memorável acórdão de 5-12-1963, no Rec. Extr. de São Paulo, n. 52.824, RDA 77/90 ou Arq. do MJ, 91/214, com luminosos votos dos Ministros Evandro Lins, Relator, e Gonçalves de Oliveira. Este último eminente 325 Memória Jurisprudencial Ministro trouxe novo argumento, o de ordem histórica, verificando que o Senador Ismar Góes Monteiro, justificando a emenda vitoriosa que reintroduziu na Constituição de 1946 as palavras inovadas pela Constituição de 1937 — as mesmas da cláusula em análise — justificou-as no fato de pessoas enriquecerem nos pequenos Estados, graças às empresas aí fundadas, e se mudarem depois para as grandes cidades de outros Estados, onde vão gozar dos ócios da velhice ou buscar melhores recursos médicos. Aí morrem e aí se inventariam os bens incorpóreos, com prejuízo do estado pobre da situação das sociedades anônimas. Lembro-me bem da captação de votos feita pelo nobre autor daquela emenda na Constituinte de 1946. Aquelas duas razões são relevantes e, com apoio no Rec. Extr. 52.824 e nos dois casos anteriores, a Súmula n. 435 fixou a competência do Estado da sede da empresa para percepção do imposto causa mortis sobre as ações. 2. Meu dever seria o de me inclinar à jurisprudência preponderante, tanto mais quanto por ela militam nomes consagrados e argumentos de peso. Mas como ainda não estou de todo convencido, quero justificar minha dissidência em relação aos doutos juízes para que m’a relevem. Em primeiro lugar, pondero a obscuridade do texto ambíguo, fato assinalado pelo próprio Francisco Campos como “evidentemente mal construído”. O eminente Ministro Evandro Lins fala “da péssima técnica legislativa aí empregada”, pois “as expressões do legislador não constituem um modelo de terminologia jurídica” (no art. 23, § 4º, da Constituição de 1937, reproduzido no §2º do art. 19 da Constituição de 1946, por obra do eminente Góes Monteiro – RDA 77/92). O eminente Ministro Hahnemann anota que “a estrutura do texto já se reconheceu defeituosa”. Pontes de Miranda escreveu que, na cláusula controvertida, “as expressões não são de boa terminologia, pena rombuda escreveu tais coisas e outras o repetiram” (Coment. à Const. de 1946, ed. 1960, 2/205). E adiante: “para os bens incorpóreos, inclusive títulos e créditos, subsumpção assaz violenta e contra a técnica da ciência e do direito privado brasileiro” (op. loco cit.). Temos, então, que o sentido literal é claudicante, de onde se presumir que não estão claros e definidos o sentido e o fim exato do dispositivo. E prova disso jaz em que os defensores da tese favorável à competência do Estado da sede da empresa recorrem a variados processos de desarticulação do texto, que reescrevem segundo as intenções atribuídas ao Constituinte. Elas, entretanto, não são claras. Não é demais recordar, neste assunto, a reserva dos hermeneutas aos trabalhos legislativos. Não sou dos que participam dessas restrições, pois, não raro, a ratio juris brota vigorosamente da “exposição de motivos” da “justificação” do projeto, sobretudo quando provém do líder representativo de considerável grupo parlamentar. Outro tanto se pode dizer dos pareceres dos relatores nas Comissões Parlamentares. Muito menos, porém, pode ser creditado à emenda individual, sobretudo de quem não foi dos principais artífices da Constituição. 326 Ministro Aliomar Baleeiro 3. Mas vamos ao segundo motivo de minha convicção. Entende-se que a Constituição, no art. 19, § 2º, quando fala no Estado onde “os valores da herança forem liquidados ou transferidos aos herdeiros”, quer referir-se à transferência dos arts. 25 e 27, § 1º, da Lei de Sociedades Anônimas. Tenho dúvidas, porque esse art. 19, § 2º, é por demais genérico, abrangendo todos e quaisquer bens incorpóreos e não apenas os títulos registráveis. A propriedade autoral, seja literária, artística, científica ou técnica, por exemplo. Caberá à Guanabara o imposto sobre o valor atribuído à propriedade literária porque registrada na Biblioteca Nacional? E o tributo relativamente às patentes de invenções ou marcas? E os inúmeros valores incorpóreos não sujeitos a registro legal? Ora, o sistema de registro obrigatório do Decreto-Lei 2.627/40 pode ser substituído e até suprimido por outra técnica legislativa. “Sempre divergiu, substancialmente nesse ponto, o Direito brasileiro dos seus habituais modelos — o Direito francês e o belga, bem como do de muitos outros países, em que a cessão das ações nominativas se faz, ou pode ser feita, pela forma comum, mas só se completa, em relação à sociedade e a terceiros, pela declaração da cessão ou transferência inscrita ou averbada no registro da sociedade”. (T. Miranda Valverde, Soc. p. ações, 1ª ed., 1/148, n. 147). Acontece que, hoje, não só há registro no Banco Central (Lei n. 4.728, de 14-7-65, art. 19, II) com o objetivo da circulação de ações e papéis, mas também — o que é relevantíssimo para o nosso problema — já o Direito pátrio, acompanhando o alemão e outros, admite ações endossáveis, ao lado das nominativas e ao portador (Lei de Mercado de Capitais, n. 4.728/1965, art. 32). Certo que esse diploma prevê novo registro para os endossos, mas reconheceu efeitos desde logo que existentes, tanto que a ação endossada poderá ser apenhada ou caucionada pelo adquirente ou endossatário, para ser registrada a posteriori. E — também significativo — a Lei 4.728/65 admite que a sociedade anônima delegue a instituições financeiras ou sociedades de corretores, como mandatários, o encargo de registro e constituição de direitos sobre ações endossáveis. Nada impede — e o fim da lei o insinua — que essas instituições mandatárias operem noutro Estado, diverso do da sede da empresa, notório que o Rio (GB) é o maior mercado de ações, sem comparação mesmo com São Paulo, que prefere outros tipos de papéis. Se é admissível que a “transferência” do art. 19, § 2º, da Constituição seja a dos arts. 25 e 27, § 1º, da Lei das Sociedades por Ações, muito mais admissível, parece-me, que esse dispositivo constitucional se enderece ao art. 1.572 do Código Civil, pelo qual, “aberta a sucessão, o domínio e a posse da herança transmitem-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários”. 327 Memória Jurisprudencial É o óbito do acionista que transfere a propriedade das ações ao herdeiro. O registro no Livro das ações nominativas da sociedade anônima não é constitutivo do direito de propriedade, mas formalidade declaratória e garantidora de interesses de terceiros e da própria empresa. E ainda o Código Civil, art. 1.578, aponta o último domicílio do defunto como o lugar de abertura da sucessão. Por outro lado, se o art. 19, § 2º, fala no território onde serão “liquidados” os valores da herança, temos de recorrer ao art. 499 do CPC, cujo objetivo fiscal é manifesto: “Art. 499. Encerrado o inventário, proceder-se à liquidação para o pagamento do imposto de transmissão causa mortis, observado o que dispuser a respeito a legislação fiscal”. Aí encontramos o que promana da interpretação sistemática de todo o nosso Direito. Entre os arts. 25 e 27 da Lei de Sociedades por Ações, Lei do Comércio e o art. 499 do CPC, dispositivo tributário específico do imposto causa mortis, entendo que este último é solução mais adequada ao problema destes outros. Disposição fiscal específica completa outra disposição fiscal específica, afastando a regra que visa apenas a objetivos restritos de Direito Mercantil: em nosso tempo prepondera a autonomia da lei fiscal em relação ao Direito Comum. 4. Toda Constituição se anima de certa filosofia social e visa a alcançar certos objetivos políticos que, em momento de inspiração jurídica, um povo acredita os melhores para os seus destinos. Quem ler os volumosos Anais da Constituinte de 1946, observará que, ao lado da redemocratização do país, os membros daquela Assembléia estavam preocupados com a preservação da unidade nacional, temendo que o esplêndido desenvolvimento industrial do Brasil no Sul e a sua estagnação no Norte e, sobretudo no Nordeste, viesse a engendrar, cedo ou tarde, uma crise trágica, como a Guerra da Secessão nos Estados Unidos. Vários expedientes políticos foram introduzidos na Constituição para se conjurar esse risco e se corrigir o desequilíbrio econômico das Regiões e Estados. Os Estados menores foram beneficiados por maior representação na Câmara dos Deputados. Percentagens substanciais das receitas tributárias da União foram reservadas ao Nordeste, à Amazônia e à Bacia do Rio São Francisco. Dez por cento do imposto sobre a renda, tributo que em 70% procede da Guanabara e de São Paulo, foram redistribuídos aos Municípios de todo o país, estabelecendo nele um sistema de vasos comunicantes da prosperidade. A legislação posterior elevou esses 10 a 15% e ainda acrescentou mais 10% do imposto de consumo (Em. 5/1961), além dos incentivos das leis da Sudene aos investimentos no Nordeste e Leste. Logo, sem a mais remota sombra de dúvida, a Constituição tem como diretriz deliberada e consciente, no pressuposto de ser a melhor para a concórdia e felicidade da Nação, uma política de beneficiamento e compensação das áreas empobrecidas dos Estados mais atrasados, onde rareiam capitais e, em conseqüência, também rareiam investimentos e sociedades anônimas. 328 Ministro Aliomar Baleeiro Creio que ao Judiciário incumbe, na interpretação dos textos, assegurar essa filosofia política e social da Constituição, sempre que as deficiências literárias do texto ensejem dúvidas e possibilitem interpretações antagônicas. A Súmula 435, data venia, opõe-se a essa orientação, porque fiel ao espírito de certa emenda nascida em caso insignificante — o apetite fiscal de Alagoas numas poucas ações do espólio do Cônego Benígno Lira, inventariado em Recife, há cerca de 30 anos. Os cônegos acionistas, que morrem fora de seus Estados, são casos raríssimos. Mas em todos os Estados pobres, residem e morrem cada ano muitos e muitos brasileiros abonados, que deixam ações da Brahma, da Belgo Mineira, da Souza Cruz, da Willys Overland, da Arno, da Mesbla, do Banco do Brasil, da Siderúrgica Nacional e várias outras sociedades anônimas abertas do Rio e de São Paulo, como acontece nestes autos. Pela jurisprudência predominante, ao invés de a prosperidade acumulada do Rio irrigar os Estados deprimidos, são estes que, pelo imposto mortis causa, vão locupletar com as suas poupanças magras o esplendor da Guanabara, agravando a obra dos impostos de importação, consumo e vendas, que já trabalham contra as áreas atracadas do país. É notório que várias grandes empresas têm suas instalações industriais nos Estados pobres, mas fixaram a sede no Rio ou em Niterói. O Cimento Aratu, por exemplo, produz na Bahia e congrega, em parte, capitais baianos, mas sua sede fica no Rio. As empresas de luz e telefonia da Bahia tinham sua sede em Niterói. Os exemplos poderiam ser multiplicados. Todas essas realidades provam que a Súmula funciona na direção inversa da política da Constituição. 5. Há, ainda, outros aspectos. Numa época em que o Congresso, ansioso por acelerar o desenvolvimento econômico, incentiva a aplicação das poupanças de todas as classes e regiões em sociedades anônimas — do que é típica a Lei do Mercado de Capitais —, vamos espavorir os acionistas mais velhos com as despesas parasitárias de precatórias para pagamento de imposto de cada lote de ações em Estados diferentes, quando, afinal, o que se inventaria são os bens do defunto e não um parte ideal da empresa. Liquida-se o espólio, não se liquida a sociedade anônima. A ação, juridicamente, é um bem econômico distinto do bem econômico constituído pelo ativo da sociedade. É um crédito contra esta. Data venia, desta vez não pude aceitar, como faço quase sempre, as doutas lições do mestre Hahnemann, quando escreveu, no parecer do caso de Alagoas, que “os títulos de crédito constitutivos ou necessários e suficientes para o exercício do direito neles incorporados não são bens incorpóreos, são coisas móveis.” (RDA 77/95). Se fossem móveis e corpóreos, valeria, então, a competência do Estado da situação. 329 Memória Jurisprudencial Prefiro, no particular, com todo respeito, ficar com o autor da Lei de Sociedades por ações, que ensina: “143 – As ações nominativas não podem ser objeto de ação de reivindicação. O objeto desta, pelo nosso Direito, há de ser coisa corpórea, e nessa categoria não entra a ação nominativa. O certificado da inscrição das ações nominativas não é documento constitutivo, nem tem força probante, não é negociável, nem a sua posse autoriza o exercício dos direitos inerentes à ação”. (T. Miranda Valverde. Soc. por Ações, 1ª ed., 1/143-4). A ação, enquanto dura a sociedade, é um direito de crédito contra ela, em relação aos dividendos e bonificações (Lyon-Caen e Renault, Droit Commerc., 1924, n. 192, p. 168). Se são móveis, estão na classe dos móveis incorpóreos, ditos “valores móveis” (idem, n. 194, p. 169). Note-se, aliás, que os negócios com ações, sejam ao portador, sejam nominativas, se fazem na Bolsa de Valores por meio de corretores oficiais. Quem quer comprar um lote da Siderúrgica Nacional, por exemplo, cujas ações até há pouco tempo eram só nominativas, telefona ao corretor ou ao banco. Este ordena ao corretor que as adquira em pregão e se encarrega da transferência mais tarde, recolhendo-as à custódia do banco, à disposição do novo acionista, que nada assina. Entende-se que o negócio é definitivo e irretratável desde que o corretor do adquirente cubra o pregão do alienante. Esses são os fatos quotidianos. Na realidade, a transferência faz-se na Bolsa de Valores, considerando-se o registro uma formalidade enfadonha, que a Lei do Mercado de Capitais hoje permite delegar-se a instituições financeiras e sociedade de corretores fora do Estado da sede da empresa. O Direito caminha para institucionalizar a realidade. Só por espírito de formalismo, e às vezes por gula de custas, são expedidas precatórias para avaliação de ações noutros Estados, pois ninguém ignora que, em se tratando de sociedades anônimas abertas e com cotações em Bolsa de Valores, o valor delas se estabelece por uma simples certidão a ser apreciada pelo juiz do inventário. Não há porque enviar essa precatória de Minas para o avaliador do Rio mencionar que a cotação é x ou y. A São Paulo Alpargatas, por exemplo, tem sede em São Paulo, mas suas cotações são estabelecidas pela Bolsa do Rio, onde esses papéis se negociam todos os dias do ano. Irá, então, de Minas uma precatória para São Paulo, a fim de se avaliar o que é oficialmente realizado e publicado no Rio cada dia? Bastaria uma certidão ou até um boletim oficial da Bolsa, que os publica diariamente. Não difere a lição de Miranda Valverde: “Os documentos exibidos (para transferência no Livro de Registro das Ações Nominativas) ficarão fazendo parte do arquivo da sociedade, bastando, porém, na sucessão universal, certidão em devida forma do pagamento feito ao herdeiro ou legatário.” (obr. cit, n. 151, p. 153). 330 Ministro Aliomar Baleeiro 6. Neste voto, referi-me às ações nominativas, pois em relação às ações ao portador, o eminente Ministro Hahnemann, em seu douto parecer sobre o caso de Alagoas, admite a competência do Estado onde se liquida o inventário. A Súmula n. 435 abre margem a dúvidas, porque também se apóia no v. acórdão de 17-5-58, no RE n. 34.565, Relator o eminente Ministro Henrique d’Ávila, (RT 320/624), em que a competência do Estado da sede da empresa foi eleita também para ações ao portador. Esse v. acórdão reporta-se à “transferência” no caso em que ela juridicamente não ocorreu. Em se tratando de ação ao portador, não há porque se falar em transferência, nem em Livro de Registro, a que esses títulos não são sujeitos por serem transferíveis mediante simples tradição. Se em custódia em banco ou cofre de corretor, o herdeiro aquinhoado prova sua posse pela certidão do quinhão. Nada mais. 7. O eminente Ministro Evandro Lins, naquele memorável acórdão no RE 52.824 (RDA 77/90), admite que a solução vitoriosa nesse julgado enseje dúvidas quanto ao interesse dos Estados grandes ou pequenos. Concede que tal solução seja duvidosa também do ponto de vista da Ciência das Finanças. Igual opinião expende outro defensor daquela solução na melhor monografia brasileira sobre a matéria: P. Batista Araujo (Imposto sobre a Transmissão, 1954, pp. 334-5). O caso é de filosofia social ou política da Constituição, que deve inspirar intérpretes e aplicadores, como ratio juris. Mantenho, data venia, meu voto de acordo com o do eminente Relator, pelo provimento. RECURSO EXTRAORDINÁRIO 60.175 — GB Relator: O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro Recorrentes: Espólio de Antonio Gomes de Avelar, Júlio de Avelar e outros — Recorrida: Casa de Saúde Santa Terezinha S.A. Locação comercial — Contrato não registrado, celebrado pelo usufrutuário que faleceu antes de esgotado o prazo da locação. Efeitos da carência da ação renovatória (Código de Processo Civil, art. 360). O nu-proprietário, depois de extinto o usufruto, não é um novo proprietário, pois já tinha o domínio. 331 Memória Jurisprudencial ACÓRDÃO Vistos e relatados estes autos de Recurso Extraordinário n. 60.175, do Estado da Guanabara, em que são recorrentes o espólio de Antônio Gomes de Avelar, Júlio de Avelar e outros e recorrida a Casa de Saúde Santa Terezinha S. A.; decide o Supremo Tribunal Federal, por sua Segunda Turma, conhecer do recurso e lhe dar provimento, unânime, de acordo com as notas juntas. Distrito Federal, 8 de novembro de 1966 — Hahnemann Guimarães, Presidente — Aliomar Baleeiro, Relator. RELATÓRIO O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: 1. O v. acórdão recorrido, por 3 votos contra 2, decidiu, segundo sua ementa, que: “No regime da Lei do Inquilinato, a relação locatícia transfere-se ao nu-proprietário, assim como ao novo adquirente, ex-lege, independentemente de registro ou de instrumento. Inteligência do artigo 360 do CPC: só se aplica se, na ação renovatória, se contrapõe pretensão de retomada”. 2. O voto vencido do eminente Des. Aloísio M. Teixeira, apoiado pelo eminente Des. P. Borges, à fl. 324, entende que as leis do inquilinato não tolhem ao nu-proprietário romper contrato de locação celebrado pelo usufrutuário, salvo se garantida sua vigência no registro público: “Imagine-se — diz o voto vencido — um usufrutuário de 80 anos que locasse imóvel pelo prazo de 40: a que se reduziria o direito do nu-proprietário se fosse obrigado a respeitar a locação?” Socorre-se do julgado do qual foi Relator Edgard Costa e invoca também Goulart Oliveira. 3. Os recorrentes recorrem extraordinariamente, sustentando, em resumo, que o v. acórdão desobedeceu a lei federal, não aplicando o art. 360 do CPC ou o art. 25 do Decreto 24.150/34, assim como invocou a Lei do Inquilinato (Lei 1.300/50, art. 14) a caso por ela não disciplinado. Vale-se da Súmula n. 375, porque, rejeitada a renovatória, impunha-se a desocupação do imóvel, dado que passara o caso ao direito comum, segundo a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Lembra o acórdão do Supremo Tribunal Federal, Pleno, RF 168/123, segundo o qual “não há distinguir entre improcedência e carência da ação renovatória da Lei de Luvas”. Afirma que a Lei 4.494/64 não é aplicável à espécie. 4. Os autos sobem a mais de 4.000 folhas em três processos diferentes, de modo que, em resumo, o caso concreto pode ser resumido no seguinte: a usufrutuária, senhora idosa, contratou com a recorrida a locação de imóvel, por 5 anos, 332 Ministro Aliomar Baleeiro segundo a Lei de Luvas, dizendo-se dona dele, embora gozasse apenas do usufruto. Com isso, a locatária incorrera em erro escusável, segundo alega. Falecida a usufrutuária, cessou o usufruto antes de esgotado o prazo de prorrogação do contrato, que não foi levado ao Registro de Imóveis, como não o foi também a sentença que o prorrogou. Os usufrutuários, então, intentaram ação possessória contra a recorrida, pretendendo que a extinção do usufruto rompera a locação prorrogada. A locatária, por outro lado, opôs consignação de aluguéis e renovatória. Os três feitos, por dependência, foram julgados por sentença única e, afinal, pelo v. acórdão recorrido, que, em grau de embargos, embora considerasse extinto o contrato não registrado e carente de ação renovatória a locatária, aplicou a Lei n. 1.300/50, art. 14 — e não o direito comum —, mantendo a locação por tempo indeterminado. 5. Os recorrentes exibiram erudito parecer de Orozimbo Nonato em prol de seu direito (fls. 349 e ss.). 6. O recurso extraordinário foi admitido e contra-arrazoado pela recorrida, que se bate pelo seu não-conhecimento. É o relatório. VOTO O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): Sr. Presidente, como eu disse, o processo tem três mil folhas e foram aflorados vários problemas que não tinham, a meu ver, relação muito direta com a causa, ou porque se tinham tornado extemporâneos. Reavivando a memória dos eminentes juízes, vou ler, novamente, a ementa do acórdão recorrido, que diz: “No regime da Lei do Inquilinato, a relação locatícia transfere-se ao nu-proprietário, assim como ao novo adquirente, ex-lege, independentemente de registro ou de instrumento. Inteligência do artigo 360, do CPC: só se aplica se, na ação renovatória, se contrapõe pretensão de retomada.” Como o ilustre advogado acentuou, o problema mais importante é a questão federal propriamente dita: só se aplica, ou não, o art. 360 do Código de Processo Civil, se é direito comum a Lei 4.494 no interregno entre a vigência dela e o diploma que depois lhe modificou a redação, ou se ela é uma lei, como aquela outra do Inquilinato, n. 1.300, e não sei quantas que vigoram neste país desde 1942, sem falar nas de 1921 e 1922. Este é que é o problema. “Evaporado o recurso de quantas digressões o parasitam, há, por fim, uma questão federal a se considerar: roto o contrato de locação da Lei 333 Memória Jurisprudencial de Luvas, por ter falecido a usufrutuária locadora e julgada carente da ação renovatória a inquilina, no regime da Lei 1.300/50 aplica-se o direito comum e cabe a desocupação imediata do imóvel ou está prorrogada aquela locação no regime do art. 14 desse diploma? Entendo, como Orozimbo Nonato, que “o nu-proprietário, que já é proprietário, não pode ser equiparado, ao se findar o usufruto, ao novo proprietário, a que se refere o art. 14 da Lei 1.300”. O Ministro Orozimbo Nonato, como todos conhecemos, é muito erudito e versou com brilho vários aspectos do caso. Mas a parte central do parecer de S. Exa., a tônica do problema, parece-me, é esta: “o nu-proprietário, que já é proprietário, não pode ser equiparado, ao se findar o usufruto, ao novo proprietário, a que se refere o art. 14 da Lei n. 1.300”. “Por outro lado, a carência da ação renovatória dá margem à aplicação do art. 360 do CPC, para que se desocupe o imóvel, como se fosse ela julgada improcedente (STF, RE n. 44.465, 29-1-61, DJ 21-8-61; id., RF 168/125, Luis A. Andrade e Marques Filho, Locação, p. 400; Espínola Filho, Locação, 2º vol.). Reporto-me ainda ao Acórdão de 21-5-59, no RE n. 40.266-BA, Relator eminente Ministro Luiz Gallotti, RTJ 10/135. Tenho por inaplicável ao caso a Lei n. 4.494, de 25-11-64, pois o direito dos recorrentes se tornou efetivo e se consolidou em situação jurídica definitiva sob o regime da Lei n. 1.300/50, cujo art. 14, entretanto, não deveria ser invocado pela v. decisão, em face da Súmula n. 375. A Lei 4.494/64 tem eficácia imediata, não, porém, retroativa”. Muitas vezes tenho lido acórdãos de vários tribunais em que se cita sempre — é quase que inevitável em todo acórdão que trata dessa questão de ineficácia da aplicação da lei no tempo — a obra clássica de Roubier, Les Conflits de Lois dans le Temps, que saiu em nova edição há poucos anos com o nome de Le Droit Transitoire. Mas não raro os juristas se esquecem de que, no Direito francês, a cláusula de irretroatividade, estando no Código de Napoleão, não é constitucional, nem obriga ao legislador ordinário, porque se endereça apenas aos juízes e intérpretes. No Brasil é diferente. A cláusula é constitucional. Está no art. 141, § 3º. Invalida a lei sem desafiá-la. De sorte que, a meu ver, o direito do recorrente Avelar se consolidou em situação jurídica definitiva sob o regime da Lei 1.300. Se entendermos que a situação ali consolidada se rege pela Lei 4.494, não estaremos dando eficácia imediata, mas estaremos dando eficácia retroativa, o que não é admissível pela Constituição. 334 Ministro Aliomar Baleeiro A lei se aplica aos efeitos atuais e futuros das situações preexistentes. De agora para o futuro. Para o futuro, os contratos que se romperem, isto é, em que não houver renovatória ou que ela for improcedente, os efeitos serão de acordo com a lei nova, mas as situações que se produziram e se consolidaram no regime da lei antiga, estas são definitivas. A lei aí seria retroativa, e não de eficácia imediata, se anulasse tais efeitos já produzidos sob o regime da Lei 1.300/50. A meu ver, aliás, na obra de Roubier está claro o conceito da lei de eficácia imediata e da lei de efeito retroativo. As confusões vêm, às vezes, do olvido daquelas diferenças entre o Direito francês e o Direito brasileiro. Por essas razões, tomo conhecimento do recurso, pela letra d, invocada a Súmula 375, e lhe dou provimento, para restabelecer a sentença de 1ª instância, de 1-10-63, à fl. 168. RECURSO EXTRAORDINÁRIO 60.964 — SP Multa Fiscal — 1. O Supremo Tribunal Federal não corrige injustiça da lei se não é inconstitucional, nem do executor se não há ilegalidade. 2. Em princípio não exorbita a Justiça local, se, interpretando a lei fiscal do Estado, reduz multa, fundada em dispositivo que insinua redução ou relevação, se não ocorre dolo nem má-fé. 3. Dolo é matéria de fato, que, como interpretação do Direito Estado, não se concilia com o recurso extraordinário. VOTO O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): 1. Sem dúvida, o Supremo Tribunal Federal não se afastou nunca da doutrina do V. acórdão proferido, há muitos anos, no RE n. 21.211 (RF 152/105): “As injustiças da lei ou do ato administrativo, que não envolvam problemas de legalidade, refogem à esfera específica do Judiciário”. 2. Mas não houve violação de lei federal nem dissídio de julgados sobre direito da União. O v. acórdão parte do dispositivo do Código Tributário Estadual, que autoriza o julgador a reduzir, ou mesmo relevar, penas fiscais se não houve dolo ou má-fé, e apreciou os fatos e aparou as sobras da multa esmagadora. Isso não dá margem a recurso extraordinário. O direito aplicado e interpretado foi o local. Aplicou-o o egrégio Tribunal segundo o exame que, soberanamente, fez dos fatos. 335 Memória Jurisprudencial Há, aliás, símile na jurisprudência recente do Supremo Tribunal Federal a propósito de exagero da Prefeitura de Recife na tributação do Banco do Brasil (RE n. 53.339, 10-3-66, Rel. Em. Ministro Vilas Boas). E não é despiciendo o que jaz no v. acórdão de 25-4-66, no RE n. 57.904, em que o recorrente é o mesmo destes autos: “Pode o Judiciário, atendendo às circunstâncias do caso concreto, reduzir a sanção excessiva aplicada pelo Fisco. Legislação estadual não trazida aos autos, impossibilitando-se verificar se o juiz exorbitou na sua aplicação” (RTJ 37/296, Relator o Em. Ministro Evandro Lins). 3. Não conheço, por isso, do recurso. RECURSO EXTRAORDINÁRIO 62.731 — GB Relator: O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro Recorrente: José do Couto Moreira — Recorrido: Manoel Gonçalves de Carvalho Decreto-Lei no regime da Constituição de 1967. 1. A apreciação dos casos de “urgência” ou de “interesse público relevante”, a que se refere o artigo 58 da Constituição de 1967, assume caráter político e está entregue à discricionariedade dos juízos de oportunidade ou de valor do Presidente da República, ressalvada apreciação contrária e também discricionária do Congresso. 2. Mas o conceito de “segurança nacional” não é indefinido e vago, nem aberto àquela discricionariedade do Presidente ou do Congresso. “Segurança nacional” envolve toda a matéria pertinente à defesa da integridade do território, independência, sobrevivência e paz do País, suas instituições e valores materiais ou morais contra ameaças externas e internas, sejam elas atuais e imediatas ou ainda em estado potencial próximo ou remoto. 3. Repugna à Constituição que, nesse conceito de “segurança nacional”, seja incluído assunto miúdo de Direito Privado, 336 Ministro Aliomar Baleeiro que apenas joga com interesses também miúdos e privados de particulares, como a purgação da mora nas locações contratadas com negociantes como locatários. 4. O Decreto-Lei n. 322, de 7-4-1967, afasta-se da Constituição quando, sob color de “segurança nacional”, regula matéria estranha ao conceito desta. 5. As situações jurídicas definitivamente constituídas e acabadas não podem ser destruídas pela lei posterior, que, todavia, goza de eficácia imediata quanto aos efeitos futuros que se vierem a produzir. ACÓRDÃO Vistos e relatados estes autos de Recurso Extraordinário n. 62.731, do Estado da Guanabara, em que é recorrente José do Couto Moreira e recorrido Manoel Gonçalves de Carvalho, decide o Supremo Tribunal Federal, em Sessão Plena, conhecer e prover, por maioria de votos, de acordo com as notas juntas. Distrito Federal, 23 de agosto de 1967 — Luiz Gallotti, Presidente — Aliomar Baleeiro, Relator. RELATÓRIO O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: 1. O recorrente moveu contra o recorrido “ação ordinária de rescisão de contrato” de locação comercial de aluguéis, por falta de pagamento. A r. sentença de fls. 27-28 deferiu a emenda da mora e julgou extinta a ação. Esse decisório foi confirmado, em grau de apelação, pelo v. acórdão de fl. 44 v. O recorrido foi citado a 11-7-64 e só depositou os aluguéis em débito a 22-9-64, como diz o acórdão. 2. O contrato de fl. 3 estabelece pagamento até o 5º dia do mês subseqüente ao vencido, portable na residência do locador (cláusula 2ª) com a sanção de rescisão plena e imediata na falta de cumprimento de qualquer das cláusulas (8ª). 3. A fls. 46-48, vem o locador com recurso extraordinário, invocando a Súmula 123 e diversos julgados do STF, que juntou por fotocópia: ERE 56.696, Rel. Em. Ministro Candido Motta Filho, in RTJ 33/885, RE 58.115, Rel. Em. Ministro Pedro Chaves, in RTJ 36/152 e RE 51.405, Rel. Em. Ministro Candido Motta Filho, publicado na Revista de Jurisprudência. 4. O recurso foi admitido pelo r. despacho de fl. 56 e devidamente processado. É o relatório. 337 Memória Jurisprudencial VOTO O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): O caso é igual ao do RE n. 62.739, que esta 2ª Turma já resolveu submeter ao Pleno, em face das dúvidas sobre a constitucionalidade do Decreto-Lei 322, de abril p.p. Proponho que também este recurso seja levado ao Pleno para ser julgado conjuntamente com aquele. DECISÃO Como consta da ata, a decisão foi a seguinte: a Turma, unânime, remeteu os autos ao Tribunal Pleno. Presidência do Ministro Hahnemann Guimarães. Relator, o Ministro Aliomar Baleeiro. Tomaram parte no julgamento os Ministros Aliomar Baleeiro, Adalicio Nogueira, Evandro Lins e Hahnemann Guimarães. Licenciado, o Ministro Pedro Chaves. Brasília, 30 de maio de 1967 — Guy Milton Lang, Secretário. RELATÓRIO O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: 1. Em locação da Lei de Luvas, a firma locatária, confessadamente em mora, em abril de 1965, pediu emenda desta no prazo de 30 dias, fixando o juiz prazo excedente do da contestação da lide. Impugnado esse despacho, reformou-o o magistrado (fl. 42, em 19-6-65). Mas o depósito foi extemporâneo. 2. Os v. acórdãos da apelação (fl. 106) e embargos (fl. 134), por maioria de votos, entenderam que a emenda deveria ser cumprida até a contestação, mas que o engano do juiz, dando dilação maior, constituía obstáculo judicial (3-11-1966). 3. Recorre a locadora, à fl. 139, pela letra d, alegando divergência e ofensa à Súmula 123. É o relatório. SUSTENTAÇÃO DO PARECER O Sr. Dr. Procurador-Geral da República: Sr. Presidente, a ProcuradoriaGeral da República não teve ocasião de se pronunciar sobre a questão constitucional levantada por S. Exa., o eminente Relator. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): V. Exa. recebeu uma cópia. 338 Ministro Aliomar Baleeiro O Sr. Procurador-Geral da República: Sim, recebi uma cópia, mas não sabia que o julgamento seria hoje. A questão levantada seria, ao que me recordo, a seguinte: o Sr. Presidente da República baixou um decreto-lei sobre locações, baseado na faculdade constitucional de expedir decretos-leis em matéria de segurança nacional. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Trata-se do art. 58, I, da Constituição de 1967. O Sr. Dr. Procurador-Geral da República: Diz este artigo: “O Presidente da República, em casos de urgência ou de interesse público relevante, e desde que não resulte aumento de despesa, poderá expedir decretos com força de lei sobre as seguintes matérias: I – segurança nacional; II – finanças públicas.” O Presidente da República expediu esse decreto em causa sobre locações de imóveis — matéria de inquilinato — e no decreto estabeleceu certas medidas. Agora, o eminente Ministro Relator, no julgamento de processos pertinentes, levanta, ex officio, a questão constitucional. Sim, porque esta questão não foi levantada pela parte. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: No Agravo n. 40.960, a questão foi levantada pela parte. Nos dois recursos extraordinários, n. 62.731 e 62.739, não, porque foram anteriores. O Sr. Procurador-Geral da República: Nos recursos extraordinários, haveria uma questão preliminar, que é a seguinte: de regra, na instância do recurso extraordinário, não se conhece de lei nova. Pediria ao eminente Relator que lesse o texto do decreto-lei. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Com prazer. Está nestes termos: “Art. 5º Nas locações para fins não residenciais, será assegurado ao locatário o direito à purgação da mora, nos mesmos casos e condições previstas na Lei para as locações residenciais, aplicando-se o disposto neste artigo aos casos sub judice.” O Sr. Procurador-Geral da República: Então o problema constitucional levantado por S. Exa., o eminente Relator, data venia, é sobre a vigência do decreto para situações anteriores. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Dois problemas eu pretendo discutir no meu voto: primeiro, a possibilidade de o Presidente da República regular a purgação 339 Memória Jurisprudencial da mora nas locações comerciais, por via de um decreto-lei expedido nestas condições; segundo, a força retroativa desse decreto-lei, abrangendo situações definidas, constituídas, tranqüilas, anteriores à expedição desse diploma. O Sr. Procurador-Geral da República: A questão preliminar é da possibilidade de, na instância do recurso extraordinário ou do agravo de instrumento, em matéria de recurso extraordinário, aplicar-se uma lei nova. Mas, passando ao mérito, quanto à constitucionalidade, a primeira dúvida do eminente Ministro Relator seria se o Presidente da República poderia, com base nesse art. 58 da Constituição vigente, expedir um decreto-lei em matéria de locação comercial. Diz o parágrafo único do texto: “Publicado o texto, que terá vigência imediata, o Congresso Nacional o aprovará ou rejeitará, dentro de sessenta dias, não podendo emendá-lo; se, nesse prazo, não houver deliberação, o texto será tido como aprovado.” Nem o Senado, nem a Câmara deliberaram a respeito, de forma que esse decreto-lei, como outro em igualdade de condições, está, deste ponto de vista, aprovado pelo Poder Legislativo. O Senado e a Câmara deixaram esse prazo terminar antes das férias de julho. Tornou-se, assim, por força de expresso texto constitucional, um ato legislativo. Confira-se com o que dispõe o art. 49, V, da Constituição. A questão, se o decreto preenche ou não preenche os demais requisitos referidos, parece-me que é atribuição privativa da Câmara e do Senado. Podem dizer: não aprovamos o decreto porque não há a urgência, não é matéria de segurança nacional, não é matéria de finanças públicas. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Ou podem dizer: não convém porque não adotamos a mesma política legislativa do Presidente da República. O Sr. Procurador-Geral da República: Perfeito. É matéria do âmbito do Congresso e está superada. Entretanto, do ponto de vista da urgência, peço vênia ao Supremo Tribunal Federal para ponderar o seguinte: esta matéria de locação assumiu, na vida pública brasileira, uma natureza social de maior urgência. Esses problemas de locação prendem a atenção desta Suprema Corte, posso dizer, há quarenta e cinco anos, desde a primeira lei do inquilinato, em 1922, e tive ocasião de requerer, baseado nessa lei, e o Supremo Tribunal sempre entendeu que a matéria da lei do inquilinato é matéria de urgência, é matéria excepcional, é matéria do mais alto interesse público, que justifica mesmo a aplicação imediata da lei, até a processos em curso. Quando se promulgou a primeira lei do inquilinato, em 1922, discutiu-se neste Tribunal — e naquele tempo a nossa Constituição era uma Constituição ultra-individualista, a de 1891 —, discutiu-se da constitucionalidade — naquela época a palavra era outra, era o tabelamento dos aluguéis pelo Comissariado de 340 Ministro Aliomar Baleeiro Alimentação Pública —, se era possível, se era constitucional o tabelamento de aluguéis. O Supremo Tribunal, para seu gáudio, já naquele tempo, deu ao assunto uma interpretação lata, no sentido de que a propriedade tinha suas funções sociais, e que, portanto, em casos de alta necessidade pública, de urgência, de interesse público, o Governo poderia tabelar os aluguéis. Em 1921 e 1922, houve uma grande crise de habitação no Rio de Janeiro, daí a primeira lei de inquilinato, depois a segunda, todas as duas julgadas constitucionais. E até hoje, ao que me consta, nunca o Supremo Tribunal julgou inconstitucional uma lei de tabelamento, de fixação de aluguéis, embora a Constituição se refira àqueles conceitos individualistas, clássicos, ao ato jurídico perfeito, ao direito adquirido. Não conheço acórdão nenhum do Supremo Tribunal impugnando a legislação do inquilinato, quer a de após a primeira guerra, quer a legislação do inquilinato que vem desde 1942 até hoje, com sucessivas prorrogações. O Supremo Tribunal Federal tem entendido que esta matéria está dentro da nova concepção da propriedade como função social. Portanto, Srs. Ministros, este decreto-lei foi expedido nesse sentido social que vivemos hoje. Daí a sua urgência, daí o seu interesse público, daí aquele texto que o eminente Ministro Relator leu, que se aplica aos processos em curso. Toda a legislação do inquilinato que se tem feito se aplica aos processos em curso e às locações em curso. É um texto que encontramos em 1942 e nas legislações que se vêm sucedendo. São essas, Srs. Ministros, as observações que a Procuradoria-Geral da República pede desculpas de tão prolixamente ter desenvolvido. Mas é assunto — os Srs. Ministros compreendem — da mais alta relevância social e econômica para o País. Este decreto não foi impugnado no Congresso. Não houve um deputado ou senador que se levantasse para impugnar este decreto, nem da oposição, nem do Governo, tão justo e razoável pareceu aos membros do Poder Legislativo. Portanto, em síntese, é um decreto-lei baseado no art. 58 da Constituição de 1967, de alto interesse social na tradição de toda nossa legislação sobre inquilinato, e que está aprovado, expressamente, nos termos do parágrafo único, pelo Senado e pela Câmara. Se a Câmara e o Senado aprovaram-no, nos precisos termos do parágrafo único do art. 58, tornando-o ato legislativo, não é possível a qualquer outro Poder, mesmo o Judiciário, dizer que tal lei é inválida pela sua origem. Se o Senado e a Câmara podem legislar sobre inquilinato — ninguém o contesta —, podem também fazê-lo indiretamente, aprovando um decreto-lei que o fez sob o título de urgência, segurança nacional, etc. São essas considerações que a Procuradoria-Geral da República, por meu intermédio, faz em defesa da constitucionalidade deste decreto-lei. 341 Memória Jurisprudencial VOTO O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): Sr. Presidente, não perdi uma sequer das palavras do eminente Procurador-Geral da República, porém, estamos falando, por infelicidade minha, línguas diferentes. Não contesto qualquer das teses ou dos fatos que S. Exa. trouxe como informação ao Supremo Tribunal. Sei que a Câmara e o Senado silenciaram sobre esse decreto-lei. A interpretação desse silêncio tem sido diversa e oposta. Uns, como S. Exa., acham que isso foi uma concordância com a justiça desse diploma, outros acham que isso, pelo contrário, foi uma desaprovação à maneira pela qual esse diploma foi criado. Não me cabe, Sr. Presidente, psicanalisar os eminentes representantes da Nação. Por outro lado, não contesto que esta lei ou quaisquer outras, válidas constitucionalmente, têm eficácia imediata. O normal é que toda lei tem eficácia imediata, naquele minuto e para o futuro. O que contesto é que, num sistema como o nosso direito brasileiro, em que se nega a força retroativa da lei — salvo os casos que ela própria ressalva, como nas leis criminais mais favoráveis ao réu —, o que contesto é que possa prejudicar o ato jurídico perfeito, a coisa julgada e as situações definitivamente constituídas. É esta a minha tese. Sobre ela o nobre eminente Procurador-Geral da República não falou. Não entro, Sr. Presidente, na apreciação da justiça da lei. Desde que aceitei um posto neste Supremo Tribunal Federal, com muita honra para mim, lembrei-me de que na minha mocidade me tinham ensinado aquela regra sovadíssima, de D’Argentré: não julgo a lei, julgo segundo a lei. Quando estes autos me vieram conclusos, já estava publicado o Decreto-Lei n. 322, de 7-4-1967, que, invocando o art. 58, I, da Constituição, estatui no “Art. 5º Nas locações para fins não residenciais, será assegurado ao locatário o direito à purgação da mora, nos mesmos casos e condições previstas na Lei para as locações residenciais, aplicando-se o disposto neste artigo aos casos sub judice.” Realmente, como ponderou o nobre Procurador-Geral da República, nos recursos extraordinários, as partes que haviam interposto tal remédio antes da publicação deste decreto-lei, evidentemente, não o podiam invocar. Mas, dado que o legislador disse que se aplica nos casos sub judice, a ele estou obrigado, como juiz, se constitucional. Esse dispositivo poria, desde logo, ponto final ao recurso se graves problemas em torno das inovações da Constituição de 1967 não nos obrigassem a 342 Ministro Aliomar Baleeiro meditar sobre a compatibilidade do Decreto-Lei n. 322 com a mesma Carta Magna, cujo art. 58, citado, reza o seguinte: “Art. 58. O Presidente da República, em casos de urgência ou de interesse público relevante, e desde que não resulte aumento de despesa, poderá expedir decretos com força de lei sobre as seguintes matérias: I – segurança nacional; II – finanças públicas. Parágrafo único. Publicado o texto, que terá vigência imediata, o Congresso Nacional o aprovará ou rejeitará, dentro de 60 dias, não podendo emendá-lo; se, nesse prazo, não houver deliberação, o texto será tido como aprovado.” Não me parece duvidoso que a apreciação da “urgência” ou do “interesse público relevante” assume caráter político: é urgente ou relevante o que o Presidente entender como tal, ressalvado que o Congresso pode chegar a julgamento de valor contrário, para rejeitar o decreto-lei. Destarte, não pode haver revisão judicial desses dois aspectos entregues à discricionariedade do Executivo, que sofrerá apenas correção pela discricionariedade do Congresso. Por aí não há inconstitucionalidade. Mas o conceito de “segurança nacional”, a meu ver, não constitui algo indefinido, vago e plástico, algo que pode ser ou não ser entregue à discricionariedade do Presidente e do Congresso. Os direitos e garantias individuais, o federalismo e outros alvos fundamentais da Constituição ficarão abalados nos alicerces e ruirão se admitirmos que representa “segurança nacional” toda matéria que o Presidente da República declarar que o é, sem oposição do Congresso. Quero crer que “segurança nacional” envolve toda matéria pertinente à defesa da integridade do território, independência, paz e sobrevivência do País, suas instituições e valores materiais ou morais, contra ameaças externas e internas. Em duas palavras — contra a guerra externa ou intestina, esteja ela travada e efetiva ou fermente ainda em estado potencial próximo ou remoto. Daí admitir eu que o conceito de “segurança nacional” abranja medidas preventivas contra os lêvedos da ação armada ou da desordem, nesta época em que tanto se falou e se fala em “5ª coluna”, “guerra fria”, “guerra revolucionária”, “guerra psicológica”, etc. Não emito uma opinião pessoal: infiro do que está nos arts. 89 a 91 da Constituição, encimado pela Seção V do Capítulo I do Títitulo “Da Segurança Nacional”. Nesses três dispositivos, está dito que as medidas permanentes de estudo e organização se referem à mobilização nacional e às operações militares, concessões de terras de fronteiras e lugares estratégicos, transportes e comunicações, pontes e indústrias direta ou indiretamente vinculados à defesa. 343 Memória Jurisprudencial Instrumento principal de execução da política de segurança são as Forças Armadas destinadas à defesa da Pátria e à garantia dos Poderes, da lei e da ordem (art. 92, § 1º). Se nisso se contém a matéria de segurança nacional, toda ela de ordem pública e de Direito Público, repugna que ali se intrometa assunto miúdo de Direito Civil, que apenas joga com os interesses também miúdos e privados de particulares, como a purgação da mora nas locações em que seja locatário o comerciante. Nem mesmo pelo guarda-chuva amplo da inflação seria imaginável porque o comerciante, que se deve declarar falido quando não paga no dia, não é vítima, mas beneficiário da espiral de preços. Cada dia, ele reajusta seus preços e não há possibilidade prática de impedi-lo nessa natural defesa de seus interesses, pela simples razão de que poderá abster-se de suprir o mercado. Parece-me, pois, que, em matéria objetivamente definida na Constituição (arts. 89 a 91), não é constitucional interpretar a cláusula “segurança nacional” do art. 58, I, como algo que o Presidente da República faz e o Congresso desfaz, ou que ambos podem fazer discricionariamente. Já se disse que o Parlamento britânico pode tudo, menos transformar homem em mulher ou mulher em homem. Mas, num país de Constituição escrita e rígida, não há o mesmo arbítrio. A lei, no Brasil, não pode transformar o quadrado no redondo sempre que o redondo e o quadrado tenham sido designados como tais na Constituição, expressa ou implicitamente. Segurança nacional, a meus olhos, não é o que o Presidente e o Congresso dizem que é, mas apenas o que se concilia com o que está expresso e implícito nos arts. 89 e 91 da Constituição, sob a epígrafe “Da Segurança Nacional”. E, por certo, purgação da mora em locações não residenciais não se harmoniza com o conceito da segurança nacional. Outra dificuldade brota do caso dos autos. As decisões atacadas foram proferidas depois da Lei n. 4.864, de 29-11-65, e do Decreto-Lei n. 4, de 7-2-66, que cortaram a controvérsia sobre a emenda da mora na locação da Lei de Luvas. No caso dos autos, pelo contrato de f., o locatário obrigou-se a pagar até o 5º dia do mês seguinte ao vencido, na residência do locador ou onde for determinado. Dívida portable. Mora confessada. Parece-me que o recorrente, por isso, estava numa situação jurídica definitivamente constituída e acabada, como titular de direito adquirido garantido pelo art. 150, § 3º, da Constituição de 1967. 344 Ministro Aliomar Baleeiro Se constitucional, por amor ao debate, à luz do art. 58, I, d, o Decreto-Lei n. 322 terá aplicação imediata aos efeitos futuros das situações anteriores, mas não poderá projetar sombra sobre o passado, a fim de atingir os efeitos já produzidos por essas situações anteriores e definitivas. Como, então, aplicá-lo aos processos sub judice? Por princípio, o Tribunal aprecia a inconstitucionalidade nos termos em que lhe é proposta. Mas, no caso concreto, o legislador do Decreto-Lei n. 322 endereçou a regra também ao juiz, que, nesta altura do processo, já não pode ouvir mais as partes. Forçosamente, há que se discutir o problema constitucional. Por essas razões, dou provimento ao recurso, porque, em resumo: a) não se pode aplicar ao caso o art. 5º do Decreto-Lei n. 322/67, porque viola a Constituição, já por dispor sobre matéria estranha à segurança nacional (art. 58, I, de referência aos arts. 89 a 91), já porque retroage para atingir direito adquirido oriundo de situação jurídica anterior e definitivamente constituída (art. 150, § 3º); b) a inconstitucionalidade não pode ser convalidada pelo Congresso (art. 58, parágrafo único), porque a matéria de segurança nacional não envolve conceito que o legislador possa discricionária e politicamente definir: ela está definida nos arts. 89 a 91 da Constituição. Nem o Congresso pode sanar a eiva contra o art. 150, § 3º. c) o recurso merece provimento nos termos do art. 28 da Lei n. 4.864, de 29-11-65, e Decreto-Lei n. 4, de 7-2-1966, como aliás, já foi julgado, noutros casos análogos, pela 2ª Turma. O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Há uma questão relevante, também, suscitada pelo eminente Procurador-Geral da República: se no recurso extraordinário pode-se considerar uma lei nova, porque, a rigor, o Supremo Tribunal Federal, preliminarmente, no julgamento do recurso extraordinário, aprecia se a decisão recorrida negou vigência à lei federal, ou se a decisão recorrida interpretou diversamente uma lei federal. Transposta esta preliminar, a questão surge no mérito do julgamento do recurso extraordinário. Com esta preliminar, nós julgamos do acerto da decisão recorrida. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): Considerando o argumento do eminente Procurador-Geral da República que V. Exa. agora restaura, queria ponderar o seguinte: prevalecendo o ponto de vista que V. Exa. com toda propriedade invoca, é de se dar provimento, porque as decisões da justiça local foram contra as decisões que o Supremo Tribunal Federal deu. Mas o problema, que citei no meu voto escrito, é que estou diante de um texto que me obriga a considerar o Decreto-Lei 322 para os casos sub judice. 345 Memória Jurisprudencial Se esse decreto-lei for constitucional, somos obrigados, nesta instância superior, a considerar o caso. O Sr. Ministro Adaucto Cardoso: São dois temas diversos, que devem ser abordados cada um de per si. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): Partindo da velha regra, que é da Corte Suprema — a de que não se pronuncia a inconstitucionalidade se não for estritamente necessário —, e só na parte necessária à solução do caso concreto, nós podemos inverter o julgamento: em vez de considerar a validade de todo o Decreto-Lei 322, nós partimos do ponto mais vulnerável e mais restrito — o art. 5º e sua aplicação retrooperante. Se dissermos que ele não se aplica retroativamente, resolve-se o caso concreto e fica para outra etapa o problema do Decreto-Lei 322 em seu todo e por sua origem. O Sr. Ministro Evandro Lins: V. Exa. podia informar se, em todos os casos julgados, esse decreto-lei ainda não estava em vigor? O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): Ainda não estava em vigor. O Sr. Ministro Evandro Lins: Temos de enfrentar o problema do agravo. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): De pronto não posso me lembrar se invocou, porque a publicação se deu no momento em que estavam tirando as peças na instância inferior. Mas houve invocação posterior ao traslado. Depois de formado o instrumento, os agravados, por sua advogada, dizem: “Acresce ainda que o recente Decreto 322, de 7-4-1967, estabelece, em seu art. 5º, que: “nas locações para fins não residenciais será assegurado ao locatário o direito à purgação de mora, nos mesmos casos e condições previstos na lei para as locações residenciais, aplicando-se o disposto neste artigo aos casos sub judice”. Isso foi no dia 2 de maio. Proponho, Sr. Presidente, que V. Exa., metodizando os trabalhos, ponha em votação, primeiro, se pode ter aplicação retroativa aos casos sub judice anteriores a 7 de abril, data da publicação do Decreto-Lei 322, o art. 5º desse diploma. O Sr. Ministro Prado Kelly: Se pode ter aplicação nesta instância, por meio de recurso extraordinário ou em agravo de instrumento, que pressupõe a denegação do recurso. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): Aí vamos ter outra tarde perdida com esse decreto-lei. 346 Ministro Aliomar Baleeiro O Sr. Ministro Prado Kelly: Aí a incompatibilidade do art. 5º será com o artigo que define o recurso extraordinário, com o artigo que era, antes, o 101. Esse é o ponto. Seria a incompatibilidade do art. 5º em relação ao art. 114 da atual Constituição, que delineia o campo do recurso extraordinário. Se a preliminar for vitoriosa, não há razão de entrar nos outros assuntos, a não ser na parte do mérito. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): Creio que a sugestão do eminente Ministro Prado Kelly teria a virtude de restringir ao estritamente indispensável a votação. Sou dos que acham que as leis, aliás na velha regra, só quando absolutamente inconstitucionais, devem ser declaradas como tais. Acho que os membros do Congresso, responsáveis pela política legislativa do País, podem exigir que apliquemos cegamente todas as leis que forem constitucionais, boas ou ruins. Quem se queixar da justiça da lei que vá às eleições e substitua os deputados e senadores. Nosso papel não é fazer leis, mas justiça segundo as leis constitucionais. O Sr. Ministro Adaucto Cardoso: V. Exa. emitiu seu voto a respeito da constitucionalidade do decreto-lei. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): Eu emiti meu voto sobre a constitucionalidade... O Sr. Ministro Victor Nunes: Brilhante voto. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): ...quer pelo ponto de vista de que ele não se contém no conceito de segurança nacional, quer porque o art. 5º... O Sr. Ministro Adaucto Cardoso: Neste caso, a questão está posta por V. Exa. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): Eu proponho, data venia do eminente Ministro Prado Kelly, que se entre na constitucionalidade do art. 5º sem discutir o problema da segurança nacional. Estou satisfeito com a solução para o caso concreto. Quem tiver interesse suscite a outra questão. O Sr. Ministro Prado Kelly: Pode-se discutir o art. 5º de ângulos diversos: a aplicação dele na instância inferior e no Supremo Tribunal e a sua aplicação aos feitos pendentes. Não está em causa a segunda parte. O Sr. Presidente Luiz Gallotti: V. Exa. propõe que se ponha a votos a inconstitucionalidade do art. 5º? O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): Sim, o que manda seja aplicado retroativamente o Decreto-Lei 322 aos casos sub judice. VOTO (Preliminar) O Sr. Ministro Barros Monteiro: Sr. Presidente, tenho a impressão de que as duas questões estão entrelaçadas. 347 Memória Jurisprudencial Mas se V. Exa. as separou para votação, estou de acordo com o eminente Relator. A meu ver, é inconstitucional o preceito e não pode ser aplicado retroativamente. O Sr. Presidente Luiz Gallotti: O eminente Procurador-Geral da República preferiria que se votasse primeiro a preliminar do cabimento do recurso, mas o eminente Relator julga que a aplicação do Decreto-Lei é inconstitucional. O Sr. Ministro Hermes Lima: Pelo voto do eminente Relator e do eminente Ministro Barros Monteiro, julga-se ao mesmo tempo a constitucionalidade, declarando-se inconstitucional o art. 5º, na parte em que manda aplicar aos casos pendentes. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): Creio, data venia, que a solução alvitrada pelo eminente Procurador-Geral criaria um impasse. Continuaria a luta entre as partes, uma dizendo que teve ganho de causa no Supremo Tribunal e a outra que, aplicando-se o Decreto-Lei 322, poderia voltar para resolver o mesmo problema. Temos de enfrentar a dificuldade, e Deus que nos ilumine. O Sr. Ministro Victor Nunes: Eu pediria licença aos eminentes colegas para uma ponderação. A meu ver, o eminente Relator colocou bem o problema, porque todas essas questões estão entrelaçadas. Veja-se a minha dificuldade pessoal. Se se tratasse de lei emanada do Congresso, que ampliasse a faculdade de purgar a mora, inclusive para os processos pendentes, eu a aplicaria. De modo geral, temos aplicado a legislação sobre o inquilinato aos processos pendentes. Quando... O Sr. Ministro Evandro Lins: A todos eles. O Sr. Ministro Victor Nunes: ...o Tribunal fala em vigência imediata de tais leis, não o diz no sentido em que o eminente Relator empregou a expressão, isto é, de observância da lei a partir do momento de sua vigência. Temos empregado essa expressão, numerosas vezes, no sentido de fazer a lei nova alcançar os processos em curso. No caso em exame, ao votar essa preliminar, tenho primeiro de analisar a validade do decreto-lei, porque o tenho por inconstitucional. Como poderia eu, sem contradição, dizer que esse decreto-lei se aplica aos casos pendentes, se o considero inconstitucional. O Sr. Ministro Evandro Lins: Ele não se aplica aos processos pendentes. A questão da inconstitucionalidade é prejudicial de todas as outras questões. O Sr. Ministro Prado Kelly: A preliminar é de ser formulada nestes termos: “Aplica-se aos casos em julgamento o art. 5º do Decreto-Lei 322?” A motivação é que pode variar. Uns não aplicarão o preceito, por considerar o decreto-lei inconstitucional... 348 Ministro Aliomar Baleeiro O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): Eu não aplico pelos dois motivos. O Sr. Ministro Prado Kelly: ...outros, por uma razão de técnica processual, em face do art. 114 da Constituição. Serão razões de decidir. Mas a preliminar submetida ao julgamento... O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): Todas convergem. O Sr. Ministro Prado Kelly: ...seria nos termos que acabei de enunciar. O Sr. Ministro Victor Nunes: V. Exa. põe bem a questão. O Sr. Ministro Evandro Lins: Cada um proferiria seu voto. O Sr. Ministro Barros Monteiro: Sr. Presidente, já adiantei o meu voto. Estou de acordo com o eminente Relator na primeira parte e também na segunda, por entender que a matéria do art. 5º do Decreto-Lei 322 escapa ao conceito de segurança nacional. VOTO (Preliminar) O Sr. Ministro Adaucto Cardoso: Estou de acordo com o voto total enunciado pelo eminente Relator porque, na realidade, o conceito de segurança nacional não é de interpretação exclusiva dos Poderes Executivo e Legislativo. É dever desta Corte Suprema dizê-lo e tirar daí a conseqüência necessária, que é a declaração da inconstitucionalidade do Decreto-Lei 322, que, a todas as luzes, não trata de assunto pertinente à segurança nacional. De forma que adoto o voto do eminente Relator, tal como foi proferido no primeiro impulso, sem o lançamento de preliminares, mas globalmente considerado. VOTO (Preliminar) O Sr. Ministro Djaci Falcão: Acolho também ambos os fundamentos adotados pelo eminente Relator, à vista do conceito de segurança nacional emitido com brilhantismo por S. Exa. e no qual não se pode situar matéria relativa a locação de imóvel para fim comercial, disciplinada pelo direito privado; muito embora não desconheça eu, como todos nós, a tendência de publicização de certos princípios de direito privado. Por outro lado, no que tange à aplicação da regra do art. 5º do Decreto 322, de modo retrooperante, ela destoa inclusive do art. 6º da Lei de Introdução ao Código Civil. VOTO (Preliminar) O Sr. Ministro Eloy da Rocha: Sr. Presidente, sigo, no meu voto, a ordem indicada pelo debate: em primeiro lugar, a aplicação do art. 5º do Decreto-Lei 349 Memória Jurisprudencial 322, de 7-4-1967, aos casos sub judice. O eminente Procurador-Geral da República trouxe, em abono de seu ponto de vista, o exemplo da legislação do inquilinato, desde a primeira, que sempre teve aplicação a todos os casos pendentes, em face da natureza dessas leis. O eminente Relator ponderou que elas atingem os processos pendentes, mas com a ressalva do art. 150, § 3º, da Constituição: “A lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. Poderá existir, na ocorrência da mora, o ato jurídico perfeito. Se o devedor não podia ser admitido a requerer o pagamento da dívida, com os encargos legais, no prazo da contestação, a mora produziu o seu efeito, na conformidade da lei. Houve o ato jurídico perfeito, que não se pode atingir por lei posterior. O art. 5º do Decreto-Lei 322, ao dispor que a nova regra se aplica aos processos sub judice, fere o art. 150, § 3º, da Constituição. O segundo ponto é o da competência do Presidente da República para expedir decreto, com força de lei, sobre a segurança nacional. O voto do eminente Relator é exaustivo, convincente, brilhante. Estou de acordo com S. Exa. Segurança nacional, certamente, não compreende relação de direito privado. Conceitua-se a segurança nacional, na Constituição, não só na Seção que, dentro do Capítulo “Do Poder Executivo”, trata “Da Segurança Nacional” — arts. 89 a 91 —, mas, ainda, no começo da Constituição, quando, no Capítulo sobre a “Competência da União”, a ela se refere o art. 8º, inc. IV. Com esse conceito genérico, contrasta o art. 5º do Decreto-Lei 322. Poder-se-á discutir sobre a extensão do conceito, mas, no caso, é evidente o excesso. Não me parece de valia a invocação do parágrafo único do art. 58: a omissão do Congresso Nacional importará em aprovação. É certo que a Constituição dispõe que será tido como aprovado o decreto-lei que, no prazo de sessenta dias, não for votado pelo Congresso Nacional. Se o Congresso tivesse aprovado expressamente, ainda seria contestável, pela matéria do decreto-lei, a sua constitucionalidade. Mas, se o Congresso Nacional não se pronunciou, não praticou ato de aprovação ou de rejeição, não foi sanado, com a omissão, o vício do decreto lei, que transcendeu da competência do Poder Executivo. Resta decidir o último ponto. Declarada a inconstitucionalidade do art. 5º do Decreto-Lei 322, cumpre julgar o recurso, à vista da legislação anterior a este decreto-lei. A parte sustentou que a purgação da mora era permitida, em face de leis posteriores às referidas na Súmula 123. Inconstitucional o art. 5º do DecretoLei 322, ainda será preciso examinar se a lei anterior a esse dispositivo autorizava a purgação da mora, que o juiz admitiu. Sem esse exame, não ficará completo o julgamento do recurso. O Sr. Ministro Victor Nunes: Afirmada a inconstitucionalidade do art. 5º do Decreto-Lei 322, teremos de apreciar o caso em face da lei anterior. 350 Ministro Aliomar Baleeiro O Sr. Ministro Prado Kelly: O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro já considerou isso no voto. O Sr. Ministro Eloy da Rocha: Continuo a aplicar a Súmula 123. Entendo que as leis posteriores às referidas na Súmula não modificaram o princípio nela enunciado. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator) : O Decreto-Lei n. 4 e a Lei 4.864, se não me falha a memória, abonam a tese de V. Exa. Também aplico. O Sr. Ministro Eloy da Rocha: Ainda depois desses diplomas legais, segui a jurisprudência consagrada na Súmula 123. Não assiste à parte recorrida direito à purgação da mora, que o juiz concedeu. VOTO (Preliminar) O Sr. Ministro Prado Kelly: Sr. Presidente, o eminente Relator, no seu brilhante voto, que eu admiraria de diferentes ângulos, lembrou ao Tribunal a tradição por ele adotada, em atenção a precedentes da Corte americana, de só discutir a inconstitucionalidade de lei quando essa declaração for indispensável ao julgamento do feito. Colocada a preliminar nesses termos, com o assentimento dos eminentes colegas, e indagando-se da Corte se se aplica ao feito o art. 5º do Decreto-Lei 322, a questão me parece muito simplificada. O Sr. Ministro Candido Motta Filho: Queria, apenas, que V. Exa., com a sua sabedoria, pudesse esclarecer: é que o art. 5º do Decreto-Lei 322 tem as mesmas razões de ser do decreto! Ele se fundamenta na segurança nacional! O Sr. Ministro Prado Kelly: Perfeito! Mas note V. Exa.: se entendo, por motivos outros, que esse artigo não tem aplicação à espécie ora examinada, não preciso deter-me nos defeitos que viciam o diploma legal. De outra forma, não seria fiel ao critério que preconizo. Como dizia, a matéria ficou altamente simplificada. O art. 5º diz: “Nas locações para fins não residenciais, será assegurado ao locatário o direito à purgação da mora, nos mesmos casos e condições previstas na Lei para as locações residenciais, aplicando-se o disposto neste artigo aos casos sub judice.” Alterou-se, nesse caso, a legislação anterior, não só para locações ad futurum como para locações já contratadas. E, no dizer “aplicando-se o disposto neste artigo aos casos sub judice”, se dá efeito retrooperante da norma aos processos pendentes. É esse o seu alcance. Mas pode aquela norma aplicar-se em terceira instância, ou seja, no Supremo Tribunal Federal, por via do recurso extraordinário? Creio que não, Sr. Presidente, porque a observância de tal preceito feriria conceituação constitucional do apelo extremo, qual seja, a condição de “prequestionamento”. 351 Memória Jurisprudencial Por esses motivos, Sr. Presidente, e reservando-me para outras considerações em melhor ensejo, considero inaplicável ao feito o art. 5º do Decreto-Lei 322 . O Sr. Ministro Hermes Lima: Quer dizer, eminente Ministro, que V. Exa. não toma conhecimento. O Sr. Ministro Prado Kelly: Não. Considero inaplicável o novo preceito à espécie e, em conseqüência, acompanho o eminente Relator. O Sr. Ministro Hermes Lima: Por que não houve prequestionamento? Por essa razão? O Sr. Ministro Prado Kelly: Porque não houve prequestionamento. O Sr. Ministro Luiz Gallotti (Presidente): Quem invoca o dispositivo não é o recorrente; é o recorrido. O Sr. Ministro Prado Kelly: Quem invoca, de oficio, é o eminente Relator, e isso lhe faz honra; S. Exa. não quis ser omisso em ato de ofício, quando a lei assim ordena. Submeteu a questão ao Tribunal. Mas os efeitos do artigo em causa não incidem no recurso extraordinário quando o Tribunal tem restrita a sua tarefa: a de só decidir em face das questões consideradas na justiça de origem. Conheço do recurso e lhe dou provimento. O Sr. Ministro Luiz Gallotti (Presidente): Assim, V. Exa. conhece e dá provimento ao recurso extraordinário, porque a decisão recorrida contraria à jurisprudência do Tribunal no tocante às leis que foram apreciadas nas instâncias ordinárias. O Sr. Ministro Prado Kelly: No tocante às leis que deviam ser aplicadas ao tempo do litígio. O Sr. Ministro Eloy da Rocha : Não é preliminar essa questão? O Sr. Ministro Prado Kelly: Quanto à preliminar levantada, considero inaplicável o art. 5º. O Sr. Ministro Eloy da Rocha: A questão contida no voto de V. Exa. precede à de inconstitucionalidade do art. 5º do Decreto-Lei 322. O Sr. Ministro Prado Kelly: Foi o que pensei, quando, mediante aquiescência dos eminentes Ministros Victor Nunes e Evandro Lins e tácita concordância do Tribunal, sugeri, com a aprovação do eminente Relator, que a questão se colocasse singelamente em torno da aplicação ao feito do art. 5º do Decreto-Lei 322. O Sr. Ministro Hermes Lima: Isso significa que V. Exa. não entra no mérito. 352 Ministro Aliomar Baleeiro O Sr. Ministro Prado Kelly: Não preciso cogitar de mais nada porque mais nada se nos depara. Considero inaplicável à espécie, na presente fase processual, o art. 5º do Decreto-Lei 322. O Sr. Ministro Luiz Gallotti (Presidente): E como a lei aplicada o foi em desacordo com o entendimento do Supremo Tribunal Federal, por isso V. Exa. acompanha o Relator e também dá provimento. O Sr. Ministro Prado Kelly : Estou de acordo com a conclusão do eminente Relator. VOTO O Sr. Ministro Adalicio Nogueira: Sr. Presidente, entendo, como o eminente Ministro Relator, que o conceito de segurança nacional, realmente, está definido na Constituição, expressa ou implicitamente, não nos sendo possível ampliar ou restringir esse conceito, ao sabor de uma interpretação plástica. Em tese, estou perfeitamente de acordo com o voto de S. Exa. Quanto, porém, ao caso vertente, adoto o ponto de vista sustentado pelo eminente Ministro Prado Kelly. Acho inaplicável, no momento, o dispositivo citado do art. 5º, em face, mesmo, do sistema de julgamento adotado pelo egrégio Supremo Tribunal Federal, reservando-me, então, para, na oportunidade própria, apreciar, em cada caso concreto, a solução. É o meu ponto de vista. VOTO (Preliminar) O Sr. Ministro Evandro Lins e Silva: Sr. Presidente, já tive oportunidade de pronunciar-me, em caso anterior, de pleno acordo com o voto do eminente Relator. Naquela oportunidade, discutiu-se a inconstitucionalidade do DecretoLei n. 2, de 14-1-1966, que deslocava para a competência da Justiça Militar os crimes contra a economia popular. Sustentei, então, que, de acordo com o Ato Institucional n. 2, não podia o Presidente da República, baseado na regra que lhe permitia expedir decretos-leis em matéria que envolvesse a segurança nacional, ampliar conceitos, de modo a absorver a competência do Poder Legislativo. A meu ver, o eminente Relator situou perfeitamente o problema. O conceito de segurança nacional é o gênero, que envolve duas espécies: a segurança externa e a segurança interna. De segurança externa evidentemente não se cuida, porque ela compreende problemas de guerra externa, de defesa do território nacional, o que não está em 353 Memória Jurisprudencial causa. A segurança interna compreende a defesa das instituições políticas do País, de um modo geral, isto é, o sistema de governo, os Poderes da República, a Federação e tudo o mais que forma a estrutura do regime sob o qual vivemos. A Constituição só autoriza o Presidente da República a expedir decretos-leis quando se trata de segurança nacional ou de finanças públicas. Por ocasião daquele voto, mostrei que a ampliação do conceito poderia credenciar o Executivo a legislar sobre problemas de locação, a pretexto de que a segurança nacional estava em jogo. Poder-se-ia dizer que tal matéria afeta a segurança nacional, porque pode, eventualmente, perturbar a paz pública. Toda a matéria de legislação seria deslocada, por força de uma interpretação ampliativa, para a competência do Poder Executivo. Continuo a entender que o art. 58 da Constituição, como toda a matéria de ordem constitucional, deve ser interpretado, em última análise, pelo Supremo Tribunal Federal, a quem compete, por isso, definir o conceito de segurança nacional, nos termos da própria Constituição. Também ao encargo do Supremo Tribunal Federal fica a interpretação final sobre o que é finança pública, matéria sobre a qual o Presidente da República tem, hoje, o poder de editar decretos-leis. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): E sobre o qual existe um código. O Sr. Ministro Evandro Lins e Silva: De forma que, Sr. Presidente, estou de inteiro acordo com o eminente Relator. Como já disse, confirmou-se a previsão de que, em dado momento, poderíamos ter a surpresa de ver a Presidência da República editando decreto-lei sobre matéria de inquilinato. O Sr. Ministro Luiz Gallotti (Presidente): V. Exa. refere-se ao voto no caso dos crimes contra a economia popular, os quais foram declarados, por um decretolei, crimes contra a segurança nacional. O Sr. Ministro Evandro Lins e Silva: Infelizmente, minha previsão se realizou. De acordo com o voto do eminente Relator, também declaro a inconstitucionalidade do art. 5º do Decreto-Lei 322. VOTO O Sr. Ministro Hermes Lima: Sr. Presidente, no meu entender, o art. 5º do Decreto-Lei n. 322, de 7 de abril de 1967, que assegura aos locatários purgação da mora em locações comerciais e editado em nome da segurança nacional, não é inconstitucional, e as minhas razões são as seguintes: o art. 58 dá ao Presidente 354 Ministro Aliomar Baleeiro da República, em casos de urgência ou de interesse público relevante e desde que não resulte em aumento de despesa, o poder de expedir decretos com força de lei, sobre as seguintes matérias: segurança nacional e finanças. Evidentemente, o conceito de segurança nacional é extremamente flexível e aberto. Tanto é flexível e aberto, que o parágrafo único desse art. 58 entendeu que, publicado o texto, que teria vigência imediata, de algum decreto fundado na segurança nacional, o Congresso Nacional, que é órgão político por excelência e, portanto, o mais apto para apreciar os problemas da segurança nacional, o aprovará ou rejeitará. Não é ao Tribunal que caberá dizer o que é ou o que não é segurança nacional. Isso está deferido — na Constituição, art. 58, parágrafo único — ao Congresso Nacional. Essa tarefa cabe ao Congresso Nacional. Não cabe a este Tribunal, a meu ver, dizer o que é ou o que não é segurança nacional. O eminente Relator, no seu brilhantíssimo voto — e que, mais uma vez, revela a sua capacidade intelectual e jurídica... O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): Muito obrigado a V. Exa. O Sr. Ministro Hermes Lima: ...disse que os problemas de segurança nacional estão compendiados nos arts. 89 a 91. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): O conceito emana de todas as ações que possam pôr em perigo a perenidade, a independência, a segurança, a paz, a ordem interna do País, suas instituições, seus valores morais e intelectuais, quer por agressores externos, quer por agressores internos, em maior ou menor escala, em suas formas aparentes, extrínsecas, ou mesmo com as formas insidiosas, veladas, dissimuladas, que todos conhecemos. O Sr. Ministro Hermes Lima: Ora, o art. 90 dá competência ao Conselho de Segurança Nacional... O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): V. Exa. olhe a rubrica da seção “Da Segurança Nacional”. O Sr. Ministro Hermes Lima: Ao Conselho de Segurança Nacional, para todas as medidas que estão expressas no art. 91. Essa é a função do Conselho de Segurança Nacional. Mas isso não quer dizer que o Conselho esgote esta matéria, nem que só o que aí está signifique segurança nacional. É preciso, a meu ver, conciliar o art. 91, em que existe discriminação de competência de um órgão político, como é o Conselho de Segurança Nacional, 355 Memória Jurisprudencial com o art. 58, que alarga o conceito de segurança nacional, porque, no art. 91, o Conselho informará o Presidente da República, assessorará o Presidente da República, nessas matérias que estão aí discriminadas. Esse é o papel do Conselho. Mas o art. 58 alarga mais o conceito de segurança nacional, porque diz que “o Presidente da República, em casos de urgência ou de interesse público relevante (...)”. Quer dizer, a segurança nacional abrange, como casos de urgência ou de interesse público relevante, mais alguma coisa do que aquilo que está compendiado no art. 91 da Constituição. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): Permite o eminente colega um esclarecimento? Nós ambos já fomos partícipes em elaboração de constituições, e naquelas houve um cuidado imenso da Comissão Redatora do Projeto de, seguindo a velha regra da arte de elaborar leis, não empregar palavras ou cláusulas ou locuções diferentes para uma idéia só. Quando se fala, na Constituição, no “Senado”, só pode ser no “Senado Federal”. Não podem ser usadas as expressões “órgão” ou “Câmara”, é sempre a mesma palavra, usada do princípio ao fim, ainda com o perigo de se quebrar a elegância literária do texto pela repetição. Essa matéria, antes mesmo da Constituição de 1954 e das anteriores, foi discutida por um constitucionalista nosso conterrâneo, Aurelino Leal, embora ele estivesse mais preocupado com a técnica legislativa em matéria de Direito Civil e não de Direito Constitucional. Hoje, todas as livrarias vendem as traduções de obras americanas sobre a maneira de redigir-se projeto de lei, a drafting. A Constituição emprega a locução “segurança nacional”, mas abre subtítulo “Da Segurança Nacional”, e em outro capítulo a ela se refere. Tem-se que buscar o conceito aí. É a velha arte de interpretar-se a lei analogicamente, sistematicamente. Uma disposição completa a outra, uma lei completa a outra. Não se pode tornar uma disposição isolada se há uma autorização ao Presidente da República. No art. 58, há um conceito do que é “segurança nacional” e de todas aquelas matérias que constituem a “segurança nacional”. E o próprio bom senso está dizendo que só podem ser a paz, a segurança, o bem-estar, enfim, a preservação da incolumidade da Nação, quer quanto às ameaças externas, quer quanto às internas. Mas, purgar mora de comerciante, tenha paciência! 356 Ministro Aliomar Baleeiro Por exclusão, podemos dizer o que é “segurança nacional”. Vejamos o que não é segurança nacional: bola de futebol não é segurança nacional, batom de moça não é segurança nacional, cigarro de maconha não é segurança nacional. Não se pode fazer um decreto-lei regulando a produção da maconha, por exemplo, porque é da alta segurança para o soldado que poderá tirar seus complexos de medo do soldado inimigo, de angústia etc. O Sr. Ministro Hermes Lima: Compreendo, perfeitamente, o ponto de vista de V. Exa., mas não aceito, exatamente, que tudo quanto está no conceito de segurança nacional sejam as funções deferidas ao Conselho de Segurança Nacional. O Conselho de Segurança Nacional tem funções específicas, que estão discriminadas e, no conceito que V. Exa. fez de segurança nacional, não caberiam, certamente, outras medidas. Se interpretássemos, literalmente, que a segurança nacional só está expressa no art. 91, em seus incisos e letras, não caberia o conceito que V. Exa. ainda agora acaba de repetir sobre segurança nacional. Esse conceito autoriza medidas que não estão ali previstas. Por isso é necessário não limitar o conceito de segurança nacional ao que está expresso no art. 91, mas juntar a esse art. 91 o art. 58, que vem antes dele e que diz: “O Presidente da República, em caso de urgência ou de interesse público relevante (...)” Ora, se lermos o que está escrito no art. 91, veremos que muitos casos de urgência ou de interesse público relevante não se acham nele incluídos. Evidentemente, se um país tivesse governantes que, em nome de conceito de segurança nacional, proibissem que moças usassem batom ou que indivíduos fumassem maconha ou que se embriagassem, então, esse país seria um país de opereta, não teria respeito internacional, não seria sério, seria um circo. De modo que o argumento de V. Exa. peca pelo absurdo. Além disso, não há também, a meu ver, perigo de que o conceito de segurança nacional possa ser usado pelo Presidente da República para limitar as garantias e os direitos do art. 150, porque esses direitos estão expressos na Constituição. O Presidente da República não poderá, em nome da segurança nacional, negar a liberdade de pensamento, negar a liberdade de palavra, ou, então, restringir ou eliminar quaisquer dos direitos e quaisquer das garantias que estão asseguradas no art. 150. O conceito de segurança nacional tem, portanto, a meu ver, a primeira de suas limitações no art. 150 da Constituição. A primeira, a mais fundamental das limitações do conceito de segurança nacional está no art. 150 da Constituição. 357 Memória Jurisprudencial O Sr. Ministro Evandro Lins: Está no próprio art. 58, porque a urgência ou o interesse público relevante ao invés de ampliarem o poder do Presidente da República, aí funcionam como condição restritiva: só nos casos de urgência ou de interesse público relevante, é que ele poderá expedir decretos-leis sobre matéria de segurança nacional e finanças públicas. V. Exa. está interpretando esse dispositivo como sendo ampliativo dos poderes do Presidente da República, quando essas condições são restritivas. O Sr. Ministro Hermes Lima: Não, perdão. Estou interpretando como sendo ampliativo ou como contendo outros requisitos além dos que estão enumerados no art. 91. Essa é minha posição. O Sr. Ministro Evandro Lins: A enumeração do art. 91 não subordina o Presidente da República a essas condições de interesse público ou de urgência para que possa expedir os decretos-leis, porque o normal é que ele se dirija ao Legislativo em todas as matérias que não envolvam problemas de segurança nacional ou de finanças públicas. O Sr. Ministro Hermes Lima: Ora, Sr. Presidente, os casos de urgência ou de interesse público relevante do art. 58 são casos políticos, de relevância política, em que uma razão de ordem política ou, que vale dizer, uma razão de ordem pública está incluída. Porque é um caso de ordem pública e de ordem política é que o parágrafo único do art. 58 deferiu ao Congresso Nacional a apreciação do decreto. Então, é essa a função política por excelência do Congresso Nacional. Não podemos criar duas instâncias para tomar conhecimento dos decretos do Presidente da República expedidos em nome da segurança nacional. O Sr. Ministro Victor Nunes Leal: Mas apreciamos as próprias leis do Congresso! O Sr. Ministro Hermes Lima: Esses decretos só têm uma instância. Qual é a instância? O Congresso Nacional. O Sr. Ministro Victor Nunes Leal: Então esse decreto-lei valeria mais que a lei. Se o Supremo Tribunal examina qualquer lei em face da Constituição, não pode examinar tais decretos-leis? O Sr. Ministro Hermes Lima: Não é isso; é que não podemos substituir o Congresso na apreciação dessa matéria que está a ele deferida. O Sr. Ministro Victor Nunes Leal: E se o Congresso tivesse aprovado expressamente o decreto-lei? O Sr. Ministro Hermes Lima: Estava aprovado. O Sr. Ministro Victor Nunes Leal: Seria uma lei. E não poderíamos apreciar essa lei? 358 Ministro Aliomar Baleeiro O Sr. Ministro Hermes Lima: No caso, trata-se de lei, apesar de não aprovada expressamente pelo Congresso, mas trata-se de lei. Se o Congresso tivesse aprovado, seria lei; o Congresso não aprovando, é também lei. Só não seria se o Congresso tivesse recusado. É o que está no parágrafo único do art. 58. O Sr. Ministro Victor Nunes Leal: E por que o Supremo Tribunal não teria o poder de examinar somente esse tipo de lei, quando pode julgar todas as outras em face da Constituição? O Sr. Ministro Hermes Lima: O Poder Judiciário tem o poder de examinar todas as leis, mas não tem o poder de se substituir ao corpo político no exame de leis cuja matéria é peculiarmente política. Os nossos pontos de vista são diferentes porque V. Exa. parte da premissa de que a lei é inconstitucional. Eu não: parto da premissa de que a lei é constitucional. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): Eminente Ministro, parece que a nossa divergência se circunscreve a um problema que procurei deixar claro no meu voto. O conceito de segurança está definido nos artigos 89 a 91, e neste caso o Presidente da República não pode hipertrofiá-lo, com aprovação do Congresso ou sem ela. O Congresso não pode convalidar ato do Presidente da República, nesse sentido, nem por lei. V. Exa. parte de outro princípio, porque acha que esse conceito não está definido na Constituição, não é evidente por si mesmo e será aquilo que a discricionariedade do Congresso determinar, aprovando ou rejeitando um ato do Executivo. O Sr. Ministro Victor Nunes Leal: Esse é o problema: será matéria discricionária do Executivo e do Congresso? O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): Se for discricionária, meu nobre colega, só o céu é o limite. Amanhã o Código Penal poderá criar pena de cem anos; poderá até dizer que a segurança nacional exclui a proibição constitucional da pena de morte, ou considera a paz, ou a inexistência de guerra estrangeira, como guerra estrangeira, e então poderá ser aplicada essa pena de morte. Coisas incríveis poderão ocorrer neste País. É bom imaginar todas as conseqüências próximas e remotas de uma interpretação como essa numa Casa como a em que estamos servindo. E olhe que eu sou partidário do governo forte, o governo que manda, e por isso mesmo defendo o parlamentarismo, porque, a meu ver, é o governo mais forte do mundo. O detentor de poderes mais discricionários do mundo é o Primeiro Ministro da Inglaterra, enquanto apoiado pelo Parlamento. O Sr. Ministro Hermes Lima: Mas eu não digo que seja arbitrário, digo que seja discricionário, porque os limites, como eu já disse, do conceito de segurança nacional não estão no art. 91 — estão no art. 150 da Constituição. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): Lá está, no art. 150, o conceito de propriedade. 359 Memória Jurisprudencial O Sr. Ministro Hermes Lima: Essa é questão que o Supremo Tribunal poderia discutir. Poderia partir do princípio de que não há nada no conceito de propriedade que possa ser anti-social. Seria um belo ponto de partida. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): V. Exa. se esqueceu de que estivemos ombro a ombro discutindo o conceito de propriedade como função social, e até algumas emendas que puseram de cabelo em pé alguns respeitáveis companheiros da Constituinte de 46. Estou ainda vendo na eternidade o Deputado Eduardo Duvivier alarmado com V. Exa.; o Professor Mário Mazagão queria até renunciar com medo de nossas idéias ali. O Sr. Ministro Hermes Lima: Sr. Presidente, já tomei muito tempo, mas a matéria é importante e estou dando um voto que, penso, vai discrepar dos demais, precisava, portanto, justificar-me. Então, o freio para os decretos do Presidente, em matéria de segurança nacional, está no Congresso. O Congresso que exerça as suas funções, o Congresso que tome realmente a posição de um fiscal desses decretos do Presidente da República. Portanto, buscando agora a conclusão do caso, julgo o decreto constitucional. Em segundo lugar, penso que o art. 5º também não é inconstitucional, que pode se aplicar, segundo a tradição de todas as leis do inquilinato, aos casos pendentes. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): Eu não contesto. Eu contesto é que se possa negar efeitos já produzidos, decorrentes de situação definitivamente instituída. Suponhamos que neste momento a lei marque o teto de 6% à usura. Far-se-á uma lei ou um decreto-lei baseados na segurança nacional, e dirão: o empréstimo no Brasil não poderá mais cobrar juros, porque os Concílios da Igreja já consideram que o juro é pecado. Tendo exemplos como o de D. Felipe II, Rei da Espanha e de Portugal, que suspendeu juros da dívida pública para pôr a perder a alma dos credores dele. Assim, com tais fundamentos morais, ficavam proibidos os juros. Tendo validade essa lei, daqui para o futuro ninguém mais pagaria juros, mas quem recebeu juros até hoje não é obrigado a devolvê-los. Ninguém pode pedir de volta o juro que pagou; ninguém deixa de ser credor do juro que estava vencido até ontem. É uma situação definitiva. O credor não pode ser prejudicado. O Sr. Ministro Hermes Lima: Também julgo, Sr. Presidente, que a matéria do Decreto-Lei 322 é da mais alta importância social, pois assim sempre foram consideradas as leis sobre o problema de locação, do inquilinato. Se o Congresso Nacional, ao apreciar essa lei, ficou um pouco alarmado pelo fato de o Presidente 360 Ministro Aliomar Baleeiro da República tê-la editado em nome da segurança nacional, ninguém contra ela se pronunciou. Não houve um deputado, um senador que articulasse uma palavra contra o mérito da lei. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): Não foi por medo do Presidente da República, porque tem havido críticas severas e irreverentes a S. Exa. em outros assuntos. Mas os deputados tiveram medo de perder a eleição, a maior parte da população é de inquilinos. O Sr. Ministro Hermes Lima: Concluindo meu voto, quero deixar bem claro meu pensamento: o conceito de segurança nacional não está adstrito aos itens do art. 91. Esse conceito se ampliou pelo art. 58, que dá ao Presidente da República, em casos de urgência ou de interesse público relevante, o poder de editar decretos. O juiz desses decretos é o Congresso Nacional. Os limites do conceito de segurança nacional estão no art. 150 da Constituição. Esse conceito não está na Constituição como um cheque em branco. Os limites do conceito, a meu ver, se acham no art. 150. Se essa não é a melhor maneira de estruturar a organização política do País, a culpa não cabe ao Supremo Tribunal Federal. O Supremo Tribunal Federal não tem o poder de organizar politicamente o País ou de corrigir a Constituição, segundo ditames de justiça que ele ditaria ou segundo valores éticos que ele considera mais altos e adequados. A Constituição é o que os constituintes fizeram. Sr. Presidente, a Constituição não é obra da razão, é obra dos corpos políticos. Portanto, a política da Constituição não pode ser corrigida pelo Supremo Tribunal Federal. A política da Constituição tem que ser corrigida pelos poderes políticos da Constituição. É o meu voto. VOTO O Sr. Ministro Victor Nunes: Sr. Presidente, os apartes esclareceram devidamente a questão que estamos examinando. Evidentemente, não se pode negar que o Congresso Nacional seja um freio constitucional para o Presidente da República, no uso das atribuições do art. 58. Também não se pode negar que outra contenção encontramos no art. 150, que define as garantias individuais, e talvez mais importante, muito mais importante. O que me impede de concordar com o brilhantíssimo voto do eminente Ministro Hermes Lima é que não são esses os únicos elementos de contraste no sistema de freios e contrapesos que a Constituição adotou. O art. 58 não suprimiu qualquer das prerrogativas do Supremo Tribunal, definidas no art. 114 e 115. O fato de poder o Congresso apreciar os decretos-leis 361 Memória Jurisprudencial do art. 58 não lhes confere categoria superior à das leis votadas pelo Congresso, quer este aprove esses decretos-leis pelo silêncio ou em forma expressa. Se o Supremo Tribunal pode julgar as leis em face da Constituição, também pode apreciar, em face da Constituição, aqueles decretos-leis. O problema fundamental, no exame a que estamos procedendo, é saber se o conceito de segurança nacional, a que se refere o art. 58, é matéria da competência discricionária do Executivo e do Congresso Nacional. Ainda há pouco, o Sr. Ministro Aliomar Baleeiro pôs bem esse problema. E esta é a questão nuclear que temos a decidir. O Executivo e o Congresso podem dar ao conceito de segurança nacional, do art. 58, a amplitude que entenderem? O Sr. Ministro Hermes Lima: A meu ver, sim. Não é arbitrário. O Sr. Ministro Victor Nunes: Estou empregando o vocábulo “discricionário”, que tem rigor técnico. Competência arbitrária, na Constituição, nenhum de nós admitiria. A meu ver, Sr. Presidente, como já foi sustentado por eminentes colegas que me precederam, a conceituação de segurança nacional não foi deixada à discricionariedade dos outros dois Poderes. Em primeiro lugar, o texto constitucional, particularmente o art. 58, não confundiu, nem assemelhou, os conceitos de segurança nacional e interesse público relevante. O Sr. Ministro Evandro Lins há pouco observou isso. Diz o texto que o Presidente da República pode, em caso de urgência ou de interesse público relevante, expedir certos decretos-leis. Quais? O próprio texto responde: os que se refiram a matéria de segurança nacional e a matéria de finanças públicas. Portanto, a dois tipos de condicionamento está subordinada a ação do Presidente da República. O primeiro é que se trate de certa matéria: segurança nacional, que ora nos interessa, ou finanças públicas. O segundo é que o caso seja de urgência e de interesse público relevante. O que é discricionário, nesse dispositivo, é a condição da urgência e do interesse público relevante. Sobre isso falam soberanamente, em primeiro lugar, o Executivo, em segundo, o Congresso. Mas a matéria do decreto-lei, esta é outra condição sem a qual o Presidente da República não pode expedir decretosleis, pois não basta que a matéria seja urgente e de interesse público relevante, é preciso também que se refira à segurança nacional ou às finanças públicas. A definição dessa matéria não é discricionária, pois o nosso sistema constitucional seria ilusório se um conceito tão básico, tão importante, tão fundamental, seja para a segurança do Estado, seja para a segurança dos indivíduos, dependesse tão-só do critério ilimitado e exclusivo dos órgãos políticos. 362 Ministro Aliomar Baleeiro A Constituição contém outros dispositivos que tratam da segurança nacional. Se o art. 58, que também se refere à “segurança nacional”, não define essa matéria, será naqueles outros textos que o Supremo Tribunal encontrará subsídio para a conceituação jurídica da segurança nacional, exercendo sua competência de apreciar quaisquer leis em face da Constituição, inclusive os decretos-leis do art. 58. Com esses fundamentos, Sr. Presidente, e com os apartes que tive ocasião de externar, poderia limitar meu voto à não-aplicação do art. 5º do Decreto-Lei 322 ao caso dos autos, na linha das brilhantes considerações do Sr. Ministro Prado Kelly. Mas, como os tribunais podem decidir — e freqüentemente o fazem — por mais de um fundamento, acrescento este outro, de ser inconstitucional o DecretoLei 322, em sua integridade, por não cuidar de matéria de segurança nacional. VOTO O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Sr. Presidente, pelo adiantado da hora, vou resumir o meu voto. A questão, em verdade, deve ser posta nestes termos: a validade do decreto-lei expedido pelo Presidente da República, com fundamento no art. 58 da Constituição, tem sua apreciação sujeita apenas às atribuições conferidas ao Congresso Nacional, ou o Supremo Tribunal também a pode julgar? O eminente Ministro Hermes Lima diz que a questão é puramente de natureza política e fica, conseqüentemente, ao critério exclusivo do Congresso Nacional. Neste particular, peço licença ao egrégio mestre para divergir da sua douta conclusão e acompanhar o brilhante e substancioso voto do eminente Relator. A questão é de grande relevância. Para chegar à conclusão de que a questão seria apenas do arbítrio, do critério do Congresso Nacional, nós não poderíamos ler que o Presidente da República baixará decretos-leis com força de lei sobre segurança nacional ou finanças públicas. Seria sobre qualquer matéria. Diz o parágrafo único do art. 58: (lê) Se o Presidente não ficar adstrito a baixar decreto com força da lei apenas sobre segurança nacional e finanças públicas, poderá fazê-lo sobre qualquer matéria. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): Não há palavras inúteis na lei. Então, por que o subtítulo “Segurança Nacional” numas das Seções da Constituição? O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Se a matéria, evidentemente, pelo seu conteúdo, não diz respeito a segurança nacional nem a finanças públicas, mas há aprovação implícita do Congresso Nacional, que não se manifestou no prazo de 60 dias sobre esse ato legislativo, fica o projeto convalidado? Então, não é 363 Memória Jurisprudencial apenas sobre segurança nacional e finanças públicas que pode legislar o Presidente da República. É sobre qualquer matéria. E isso é que o legislador constituinte não quis, deixando ao crivo do Judiciário, do Supremo Tribunal, apreciar o conteúdo dessa lei. Bastam essas considerações para me pôr de acordo como o eminente Relator. O Presidente da República legislou sobre Direito Civil, matéria que a Constituição reserva à lei, conforme o art. 8º, XVII, da Constituição. Essa matéria de locação de imóveis é de Direito Civil e não de segurança nacional. Por essas razões é que adoto o lúcido e brilhante voto do eminente Relator como razão de decidir. VOTO O Sr. Ministro Candido Motta Filho: Sr. Presidente, também poderia declarar inaplicável o art. 5º do Decreto-Lei 322, mas acho que é dever de minha consciência de jurista e de Ministro desta Casa dizer, de acordo com o eminente Relator, que o Decreto-Lei é inconstitucional porque se baseia no conceito de segurança nacional, que tem um sentido estrito dentro da nossa Constituição, lei de garantia, de distribuição de direitos e competências, que, portanto, firma um sistema de freios e contrapesos. Se considerarmos a segurança nacional no seu sentido mais amplo, dentro dessa discricionariedade de que aqui se falou, não haverá mais garantia nem para os direitos individuais, nem para os direitos sociais, nem para os direitos políticos. Acho mesmo que a Constituição distingue, nos seus termos, o que é ordem pública, o que é questão política, o que é ordem social, o que é ordem econômica, o que é direito individual. E, quando ela se refere à segurança nacional, está se referindo à manutenção da integridade política do povo, como Estado, e é por isso que ela ouve o Conselho de Segurança Nacional, como base, às suas decisões a respeito, bem como às Forças Armadas. Ora, o problema que se está discutido não é um problema dessa ordem. É um problema de ordem constitucional que se refere às garantias de ordem civil, que não são, portanto, abrangidas pelo conceito de segurança nacional. Tive oportunidade, há mais de dez anos, de fazer uma conferência na Associação Comercial de São Paulo sobre o conceito de segurança nacional, em que mostrava justamente o perigo do conceito que se alastrava nos Estados Unidos, onde se dizia que o conceito de segurança nacional se dilatava até ao Vietnam. Eu chamava a atenção dos ouvintes e propugnava para que a Constituição, num sistema da limitação de poderes, definisse o que fosse segurança nacional, e que 364 Ministro Aliomar Baleeiro os tribunais, como órgãos da Justiça e intérpretes da Constituição, assegurassem as liberdades públicas em frente a todos os princípios, impedindo que se transformasse a discricionariedade dos poderes públicos em ditadura, porque a ditadura é o poder de ditar leis! Concluindo, Sr. Presidente, declaro inaplicável o art. 5º do Decreto-Lei 322. VOTO O Sr. Ministro Lafayette de Andrada: Sr. Presidente, acompanho o douto e brilhante voto do eminente Ministro Relator, conhecendo do recurso e lhe dando provimento. Dou pela inconstitucionalidade do art. 5º do Decreto-Lei 322, de 7-4-67. Como muito bem expôs o eminente Ministro Aliomar Baleeiro e bem explanou o eminente Ministro Victor Nunes no correr do debate, ao Supremo Tribunal cabe, dentro da sua competência de apreciar as leis em face da Constituição, declarar a inconstitucionalidade de tais leis ou decretos-leis. E, se o art. 58 citado não define o que seja matéria de segurança nacional, não poderemos concluir que o conceito tão grave e relevante dessa matéria possa ficar ao arbítrio exclusivo dos órgãos políticos. É esse o meu voto, de acordo com o eminente Ministro Relator. VOTO O Sr. Ministro Luiz Gallotti (Presidente): Vou recordar o julgamento que houve aqui, em que os eminentes Ministros Evandro Lins, Gonçalves de Oliveira, Ribeiro da Costa e eu fomos votos vencidos. O eminente Ministro Victor Nunes achava-se na Inglaterra. Entendemos que não podia um decreto-lei dispor sobre crimes contra a economia popular, porque não nos parecia que fossem delitos contra a segurança nacional. Tratava-se de infração a tabelamento de preços, eu não via como se pudesse considerar tais crimes como cometidos contra a segurança nacional. Ouvi com a maior atenção e com o respeito de sempre o voto do eminente Ministro Hermes Lima, mas, data venia de S. Exa., desta vez não me convenci. Entendo que, quando a Constituição usa a expressão “segurança nacional”, refere-se a um conceito fixado, estabelecido na doutrina. É o que acontece também com “imposto”, “taxa”, “crime político”, “anistia”, etc., como já tenho argumentado em outros casos. Se ao legislador ordinário fosse livre subverter esses conceitos, que a Constituição teve em mira, ruiria todo o sistema constitucional. O Congresso, em lei ordinária, não pode alterar o conceito de segurança nacional. Se pudesse, estaria modificando a própria Constituição, que dispôs levando em conta tal conceito, e, obviamente, para ser respeitado. 365 Memória Jurisprudencial Entendido amplamente, isto é, que o Congresso, sem limites, pode alargar o conceito de segurança nacional, então, poderia haver decretos-leis sobre tudo, porque, remotamente, toda a ordem jurídica interessa à segurança nacional, e a limitação constitucional da competência do Executivo para baixar decretos-leis praticamente desapareceria. A constituição permite que se legisle por decretos-leis com aprovação a posteriori pelo Congresso, tácita ou expressa, apenas em se tratando das duas matérias que ela, taxativamente, indica no art. 58: segurança nacional e finanças públicas. Se a matéria não for uma dessas duas, a Constituição não quer que se legisle por essa forma, e o Congresso não pode dizer o contrário, nem por lei e, menos ainda, pelo silêncio. Esse é, em síntese, o meu pensamento. Também considero inconstitucional o art. 5º do Decreto-Lei 322. DECISÃO RE 62.731/GB — Matéria Constitucional. Art. 24, inc. III, do Regimento Interno. Relator, o Ministro Aliomar Baleeiro. Recorrente: José do Couto Moreira (Advogado: Celso Augusto Fontenelle). Recorrido: Manoel Gonçalves de Carvalho (Advogado: Nelson França da Silva). Foi julgado inconstitucional o art. 5º do Decreto-Lei 322, de 7 de abril de 1967, pelos votos dos Ministros: Relator, Raphael de Barros Monteiro, Adaucto Cardoso, Djaci Falcão, Eloy da Rocha, Evandro Lins, Victor Nunes, Gonçalves de Oliveira, Candido Motta, Lafayette de Andrada e do Presidente, Luiz Gallotti. Votou pela constitucionalidade o Ministro Hermes Lima. Contra o voto deste Ministro, foi o recurso conhecido e provido; votando também pelo conhecimento e provimento os Ministros Prado Kelly e Adalicio Nogueira, que não se pronunciaram sobre a matéria constitucional por entenderem desnecessário. Falou o Procurador-Geral da República, Professor Haroldo Valadão. Presidência do Ministro Luiz Gallotti. Presentes os Ministros Lafayette de Andrada, Candido Motta, Gonçalves de Oliveira, Victor Nunes, Hermes Lima, Evandro Lins, Adalicio Nogueira, Prado Kelly, Aliomar Baleeiro, Eloy da Rocha, Djaci Falcão, Adaucto Cardoso e Raphael de Barros Monteiro, e o ProcuradorGeral da República, Professor Haroldo Valadão. Licenciados, os Ministros Hahnemann Guimarães e Oswaldo Trigueiro. Tribunal Pleno, 23 de agosto de 1967 — Dr. Álvaro Ferreira dos Santos, Vice-Diretor-Geral. 366 Ministro Aliomar Baleeiro RECURSO EXTRAORDINÁRIO 63.026 — SP Solve et repete. Não é lícito à autoridade proibir o contribuinte em débito de adquirir estampilhas, despachar mercadorias nas alfândegas e exercer as suas atividades profissionais. VOTO O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: I - Volta a debate no Pleno, que dele já se ocupou recentemente, o problema da sobrevivência dos Decretos-Leis 5 e 42, de 1937, que restringem indiretamente a atividade comercial da empresa, impedindo-a de comprar selos, despachar mercadorias, etc., se antes de discutir, em juízo, dívida fiscal, não fizer prévio depósito da soma reclamada pelo Erário. No caso concreto, uma fábrica de alimentos enlatados foi intimada a recolher NCr$ 181 de imposto e outro tanto de multa, “sob pena de cobrança executiva e sanções fiscais”. Estas só serão afastadas se fizer o depósito prévio do DecretoLei 42 e, então, propuser ação de anulação do débito. Daí a segurança concedida pelo eg. Tribunal Federal de Recursos. II - Por outras palavras, a ditadura de 1937, nos albores de sua inauguração, instituiu no Brasil o regime da regra solve et repete, provavelmente por imitação do Direito Fiscal italiano, que, àquele tempo, foi fonte de inspiração do novo “Estado Autoritário”: o contribuinte deverá pagar e depois acionar a União para anulação de débito e repetição do tributo indevidamente pago. Ora, paradoxalmente, o solve et repete foi introduzido na Itália pela lei de 20-3-1865, como medida liberal e contrapartida da apreciação judicial das reclamações de contribuintes que, antes da Unificação, no regime do Papa e da Áustria, só poderiam pleitear o reconhecimento de suas súplicas perante o Contencioso Administrativo composto dos próprios funcionários do Estado sem as garantias de magistrados de carreira. Aquela lei dizia: “Em toda controvérsia de imposto, os atos de oposição, para serem admissíveis em Juízo, deverão acompanhar-se do certificado de quitação do imposto, exceto no caso em que se trate de cobrança de uma liquidação adicional”. Isso foi repetido nas leis posteriores de impostos, não de taxas e outros tributos, que não o imposto. O valor do princípio como Política Legislativa tem sido contestado com bons argumentos pelos financistas italianos (p. ex., Mario Pugliese, Derecho Financiero, 1939, p. 227). Geralmente, considera-se melhor a fundamentação de Ludovico Mortara, de que aquele princípio decorre da executoriedade dos atos administrativos, tendo por corolário a obrigação aos Juízes de não revogá-los ou modificá-los, ainda que os considerem lesivos de direito subjetivo do cidadão. 367 Memória Jurisprudencial Aderindo a essa tese, escreve Pugliese: “Do ato administrativo emana uma presunção de legitimidade que, por uma parte, não permite ao magistrado atacar de maneira alguma a validade e a executoriedade e, por outra, vincula o sujeito passivo, ao qual é dirigida a ordem contida nesse ato, para que a obedeça incondicionalmente” (ob. cit., p. 228). Mas isso já foi posto em dúvida por Scandale e A. D. Giannini. Mas, apesar do imperioso tom da lei italiana, reconhece Pugliese que “este rigor se atenua, como veremos, só em presença de elementos de convicção tão evidentes que façam aparecer ictu oculi o bom fundamento da demanda do contribuinte” (ob. cit., pp. 230 e 234). “A Suprema Corte italiana se pronunciou muitas vezes nesse sentido, e os magistrados inferiores a seguiram e seguem constantemente seu ensinamento. Estabeleceu-se que a autoridade judicial — sem estar obrigada a observar o preceito solve et repete, pode examinar os elementos da demanda para estabelecer se esta resulta, ictu oculi, plenamente fundada. Nesta hipótese, a demanda pode ser admitida, sem que se haja observado o cânon solve et repete. A Suprema Corte, para atenuar o rigor excessivo do preceito em sua aplicação atual, chega a admitir uma espécie de ‘suspensão’ de sua eficácia para os fins de exame da instância do autor — por outras palavras, atribui efeitos jurídicos processuais, embora limitados, à demanda, ainda que sem prova de haver-se assegurado o pagamento” (ob. cit., p. 234). III - Bem diverso é o regime do Brasil, infenso ao solve et repete desde o Império. A própria ditadura recuou de seus passos e disciplinou o executivo fiscal em moldes menos ásperos no Decreto-Lei n. 960/38. Chegou a admitir o mandado de segurança — matéria silente na Carta de 1937 —, embora dele excluísse as questões tributárias, salvo quando o ato da autoridade embaraçasse a atividade do contribuinte. Finalmente, a Constituição de 1946, no art. 141, § 4º, introduziu expressamente uma cláusula inédita até então, nas Cartas anteriores: “A Lei não poderá excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão de direito individual”. A par disso, veio a cláusula facultando o mandado de segurança contra direito líquido e certo. Uma e outra foram conservadas, intactas, na Constituição de 1967. Penso, pois, que, contra essas garantias iterativas e enfaticamente asseguradas na Constituição, fiel ao irrestrito judicial control dos norte-americanos, não prevalecem aqueles Decretos-Leis 5 e 42, que são supérfluos na proteção ao Fisco e visam apenas a dificultar e a embaraçar a revisão da controvérsia fiscal pelos magistrados. Hurlent de se trouver ensemble, os Decretos-Leis 5 e 42, de um lado, e o art. 5, n. I, da Lei 1.533, de 1951, que dá mandado de segurança contra ato administrativo do qual não caiba efeito suspensivo independente de caução. 368 Ministro Aliomar Baleeiro Pelo Direito positivo do Brasil, o Fisco já goza de todas as prerrogativas e privilégios razoáveis, como, por exemplo: a) ele cria seu próprio título, já que a lei imprime liquidez e certeza à certidão do débito inscrito nos livros da Repartição; b) executivo fiscal, decorrente dessa liquidez e certeza, de sorte que a defesa só é ouvida depois da penhora; c) privilégio e preferência do crédito em relação a outros credores, seja ou não recente, enquanto outros países, inclusive a Itália, consideram quirografárias as dívidas ativas de certos impostos depois de certo tempo; d) prazos quadruplicados para os procuradores da Fazenda Pública nos processos. Note-se que o legislador dos Decretos-Leis 5 e 42 não se contentou com a prestação de fiança pessoal, que se pode obter de um Banco mediante comissão. É depositar dinheiro vivo. Em contraste, a União aceita termos de responsabilidade para retirada de mercadorias de quem espera a aprovação de leis de isenção. Logo, só para estorvar a defesa em Juízo, pretende-se aquilo que, juridicamente, me parece uma incompatibilidade absoluta: a garantia do mandado de segurança contra atos ilegais de autoridades e, ao mesmo tempo, a sobrevivência de decretos-leis que armam o Fisco do meio de paralisar o funcionamento da empresa. Se for fábrica, não poderá depositar o imposto de produtos industrializados, sem o qual suas mercadorias não poderão sair do estabelecimento produtor; se for importador ou exportador, ou se necessitar de importar máquinas ou matériasprimas, não poderá despachar nas alfândegas, etc. Isso, em última análise, põe em catalepsia a Empresa e a coage à capitulação ante a exigência iníqua do Fisco, impedindo-a de recorrer ao Poder Judicial, defender-se no Executivo, intentar a anulação ou a declaratória, etc. Se o contribuinte pagar ou depositar previamente, não receberá restituição, porque se dirá que transferiu o ônus aos consumidores. Penso, pois, que perderam a vigência os Decretos-Leis 5 e 42, como o reconheceu o Pleno, recentemente, nos RE 60.664 e 63.047, unânimes, Relator o Ministro Gonçalves, de 14-2-68, além de outros julgados das Turmas e do próprio Plenário. Ainda, a Súmula 323. Idênticas razões inspiraram os verbetes 323, contra a apreensão de mercadorias do contribuinte, e 70, contra a interdição do estabelecimento como meio coercitivo de exigir tributos. Onde há a mesma razão, impõe-se a mesma solução. Nego provimento ao recurso. 369 Memória Jurisprudencial RECURSO EXTRAORDINÁRIO 64.333 — PR Direito de resposta. A lei não impede que o cidadão atingido por ofensivo comentário exerça desde logo o direito de resposta por via judicial, antes de tentá-lo suasoriamente. VOTO O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: I - A indicação do Recorrente para a presidência do Banco do Estado provocou do jornal comentário ácido, no qual se estranha que a escolha tenha recaído em quem, segundo o jornalista, só pagava dívidas pela pressão de protestos cambiais ou executivos judiciais. As certidões desses fatos estão nos autos (fls. 14-7). II - A carta de retificação traz as explicações do Recorrente (fl. 18), como ele as entendeu de dar, o que é direito reconhecido na lei, guardados os limites. III - Não me parece que tenha razão o v. acórdão quando julga nulo o processo, porque não há prova de que o Recorrente haja antes tentado a publicação suasoriamente. Não é esse, creio, o sentido da lei, que apenas possibilita expressamente a intervenção do juiz em caso de recusa. Mas nada nela impede que a pessoa atacada pelo jornal se dirija desde logo ao magistrado. Este, então, apreciará se o direito de resposta está sendo exercido com moderação, dentro dos limites da lei. Poderá ainda regular outros aspectos do caso. Há dois interesses sociais em confronto e não apenas dois interesses privados. De um lado, a liberdade de manifestação do pensamento, respondendo cada um pelos abusos que cometer. De outro, o direito de cada cidadão ao respeito à sua honra e à sua dignidade e até à sua “privacy”. Mesmo um criminoso tem o direito à verdade por parte da imprensa. Há de se lhe reconhecer o direito de reagir contra o clima psicológico que o jornal poderá criar, influindo até no julgamento, sobretudo se este for da competência do júri popular. O jornalista, por sua vez, deve ser garantido contra o espírito polemista ou exibicionista do queixoso com sensibilidade da “mimosa pudica” a ver injúria onde ela não existe ou ávido também de ofender o próprio comentarista ou terceiros. IV - Conheço do recurso e dou-lhe provimento apenas para que o Eg. Tribunal decida pelo mérito se o conteúdo da resposta pretendida se conforma com os padrões da lei. 370 Ministro Aliomar Baleeiro RECURSO EXTRAORDINÁRIO 64.624 — SP Relator: O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro Recorrente: Companhia Santista de Papel — Recorrida: Fazenda do Estado Vigência da Lei. I - Se o veto mutilou a lei, tirando-lhe qualquer sentido ou nexo, de modo que não se lê nela quando entrará em vigor, aplica-se o art. 1º da Introdução ao Código Civil. ACÓRDÃO Vistos e relatados estes autos de Recurso Extraordinário n. 64.624, do Estado de São Paulo, em que é Recorrente a Cia. Santista de Papel, e Recorrida a Fazenda do Estado, decide o Supremo Tribunal Federal, por sua Primeira Turma, conhecer do recurso e dar-lhe provimento, à unanimidade, de acordo com as notas juntas. Distrito Federal, 18 de março de 1969 — Luiz Gallotti, Presidente — Aliomar Baleeiro, Relator. RELATÓRIO O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Trata-se de executivo fiscal de São Paulo contra a Cia. Santista de Papel, cobrando-lhe Imposto de Vendas e Consignações não recolhido no exercício de 1964, no quantum da Lei 8.049/63. A Recorrente argumenta que não vigorava a Lei 8.049, de 30-12-63, pois só entrou em vigor 45 dias depois da publicação, de acordo com a Lei de Introdução ao Código Civil, e não imediatamente, como pretende a Fazenda. Na r. sentença de fls. 71/73, o Dr. Juiz decidiu que a vigência da lei é indiscutível, pois no art. 8º diz: “Esta lei entrará em vigor na data da publicação.” Julgou procedente a ação. O v. acórdão de fls. 95-7 manteve a r. sentença. O recurso extraordinário pela letra c (fls. 100-7) cita v. acórdão do STF, 49.103, RTJ 23/370, e o art. 863 do CPC c/c o art. 114 da CF de 1946. O recurso foi admitido em despacho de fls. 111-2, pelo em. Vice-Presidente do Tribunal de Alçada de São Paulo. Parecer da douta PGR pelo não-provimento (fl.121), defendendo a aplicação do art. 8º da Lei n. 8.049, pois a cláusula “esta lei entrará em vigor 90 dias 371 Memória Jurisprudencial depois da publicação” foi vetada pelo Governador nas palavras “90 dias”, ficando eficaz a partir da data da publicação. Embora a Constituição atual tenha acabado com o veto de palavra, por ser posterior à Lei 8.049, é inaplicável a espécie. Lembra, ainda, decisão do Eg. STF no RMS 14.597, RTJ 33/127. É o relatório. VOTO O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): A lei de São Paulo n. 8.049, de 30-12-63, conforme fl. do DO local de 31-12-63, à fl. 26, contém o seguinte: “Art. 8º Esta lei entrará em vigor (...) vetado (...) a sua publicação.” Isso porque o Executivo vetou as palavras “em 90 dias após (...)”. Entende o Estado que, como saiu publicado, a lei entrará em vigor à data da sua publicação. II - Não me parece correta essa interpretação. O texto ficou sem sentido. Não diz quando entrará em vigor, e, nesse caso, isso acontecerá em 45 dias, segundo o art. 1º da Introdução ao Código Civil. Disso mesmo se convenceu o Em. Vice-Presidente Y. Costa Manso, do Eg. TA de São Paulo em seu despacho de admissão do recurso, à fl. 112. “Desse texto mutilado, evidentemente, não se poderá deduzir que, ao invés dos 90 dias do projeto, a Lei n. 8.049 entraria em vigor ‘na data de sua publicação’, como pretende o Fisco, mesmo porque o Governador tinha apenas o direito de veto e, não, o de emenda para alteração do texto aprovado na Assembléia Legislativa (Constituição Federal, art. 62, § 1º, in fine). Conseqüentemente, vetado o prazo de 90 dias, a lei mencionada só poderia vigorar após o decurso de 45 dias contados da publicação oficial (Lei de Introdução ao Código Civil, art. 1º). Nesses termos, e aproveitando à defesa da Companhia executada essa dilatação da entrada em vigor da Lei n. 8.049, cujo prazo a Fazenda deseja encurtar, transparece nítida a questão federal.” III - Conheço do recurso pela letra c, porque o ven. acórdão deu validade a lei e ato de Governo em desacordo com a Lei Federal — no caso a Introdução ao Código Civil. E dou-lhe provimento. Acrescento que, data venia, a majoração decretada depois da aprovação do orçamento não era exigível nos primeiros meses de 1964, no período anterior à Emenda n. 7. A isso se opunha o art. 141, § 34, da Constituição de 1946, como se decidiu nos ruidosos casos de Campinas. 372 Ministro Aliomar Baleeiro VOTO O Sr. Ministro Amaral Santos: Sr. Presidente, conquanto tenha votado em sentido contrário, neste caso, acompanho o eminente Relator, conhecendo do recurso e lhe dando provimento. EXTRATO DA ATA RE 64.624/SP — Relator: Ministro Aliomar Baleeiro. Recorrente: Companhia Santista de Papel (Advogado: Jayme Edmundo Mauger). Recorrida: Fazenda do Estado (Advogado: Roberto Maia). Decisão: Conhecido e provido. Unânime. Presidência do Ministro Luiz Gallotti. Presentes à sessão os Ministros Amaral Santos, Barros Monteiro, Djaci Falcão e Aliomar Baleeiro, e o Dr. Oscar Correa Pina, Procurador-Geral da República substituto. Brasília, 18 de março de 1969 — Alberto Veronese Aguiar, Secretário. RECURSO EXTRAORDINÁRIO 67.653 — GB Liberdade de trabalho. Cláusula pela qual o empregado, que fez cursos técnicos às expensas do empregador, obrigou-se a não servir a qualquer empresa concorrente nos cinco anos seguintes, ao fim do contrato. Não viola o art. 150, § 23, da Constituição o acórdão que declarou inválida tal avença. ANTECIPAÇÃO AO VOTO ESCRITO O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): Sr. Presidente, quando propus à egrégia Turma a remessa deste processo ao Pleno, inspirei-me na relevância que me parece que o caso tem. É uma dessas controvérsias em que se tem que escolher entre a literalidade da Constituição e os grandes interesses nacionais que estão subjacentes, e que o Supremo Tribunal Federal pode e deve propiciar. Do Presidente da República ao mais modesto repórter de província, fala-se em desenvolvimento nacional, a grande aspiração do País, tanto dos que conscientemente falam nisso, como dos que repetem, como aquela ave de grande memória, os estribilhos. Todos querem o desenvolvimento nacional. 373 Memória Jurisprudencial Do ponto de vista do desenvolvimento nacional, deveria uma cláusula como esta ser mantida, porque precisamos conhecer todos os segredos da técnica, quer da mecânica, quer, sobretudo, da química. Há grandes empresas, onde centenas de indivíduos estão pesquisando produtos novos. VOTO O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): I - O douto parecer do eminente Procurador-Geral da República, Décio Miranda, expõe bem a questão: “Sustenta-se que é lícita a cláusula pela qual o empregador, que ensinou ao empregado o know how da empresa, lhe impõe a obrigação de não trabalhar no mesmo ramo profissional, pelo prazo de cinco anos após o término do contrato de trabalho. No Tribunal recorrido, a cláusula foi tida por atentatória à liberdade de trabalho, assegurada no art. 150, § 23, da Constituição. O agravante vê na decisão a matéria constitucional capaz de alçar o seu recurso extraordinário à consideração do Supremo Tribunal Federal, nos termos do art. 135 da Constituição. É muito interessante a matéria do recurso, mas não vemos como reconhecer tenha sido contrariado o princípio da liberdade de trabalho, precisamente quando a decisão recorrida assegurou essa liberdade. Se o fez com amplitude maior do que, no entender da recorrente, a espécie comportava, ainda assim não terá contrariado o § 23 do art. 150. Terá consistido numa condenação, razoável ou não, do excesso de constrição do outro contraente, mas presumivelmente adequada, vista que foi a espécie por experimentados Juízes trabalhistas. Haverá, na espécie, interpretação que se possa considerar conveniente à liberdade, mas contraproducente do ponto de vista do estímulo à transmissão de know how a empregados brasileiros, nunca, porém, interpretação contrária ao § 23 do art. 150. Este, é certo, poderia ser trazido à colação na hipótese inversa, isto é, se se tivesse admitido a validade da cláusula. Mas, tendo-se afirmado a liberdade a despeito do contrato, é óbvio que não se contrariou o dispositivo que a assegura com a só limitação das ‘condições de capacidade que a lei estabelecer’. Em resumo, o caso denuncia a existência de omissão na lei trabalhista, e a conseqüente dificuldade de o solverem os Juízes trabalhistas. Não configura, porém, contrariedade à Constituição, capaz de trazer o litígio ao Supremo Tribunal Federal.” 374 Ministro Aliomar Baleeiro II - Em meu voto no Agravo, ponderando que não me cabe discutir a posição moral bem penosa do Recorrido, aceitando a troco de custosa viagem e permanência na Inglaterra, para treinamento técnico e conhecimento de segredos industriais, a cláusula impugnada, declarei que, no caso, não me parece ter havido a alegada violação do art. 150, § 23, da Constituição Federal, na redação de 1967. Esse dispositivo estatui que “é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão (...)”. O v. acórdão, ao invés de contrariar essa norma, prestigiou-a. Do ponto de vista do interesse do desenvolvimento nacional, a solução estiolará a aquisição da tecnologia pelos trabalhadores nacionais, pois o procedimento do Recorrido, possivelmente indefensável sob critérios éticos, não encorajará a empresa a arriscar despesas e segredos de fabricação sem um mínimo de garantias. Mas o remédio para isso não cabe ao Supremo Tribunal Federal. Os próprios industriais entre si busquem na solidariedade de classe o caminho óbvio. Não conheço do recurso. RECURSO EXTRAORDINÁRIO CRIMINAL 69.528 — PR Incitamento ou animosidade contra as Forças Armadas. Constitui o delito previsto no art. 33, III, do Decreto-Lei n. 314, de 1967, proferir em solenidades ou cerimônias cívicas expressões ofensivas contra qualquer das Forças Armadas, incitando contra estas animosidade de classes sociais. Aplicação da Súmula 279. Recurso extraordinário não conhecido. VOTO O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Em resumo, um jovem de 21 anos, estudante da Escola de Comércio, no dia da Comemoração da Inconfidência Mineira (que, juridicamente, segundo o Direito da época, foi ato subversivo) e exaltação de Tiradentes (um rebelde, segundo as leis então vigentes), fez, de improviso, um discurso em que criticou acerbamente as realidades brasileiras, dizendo que feridas cancerosas devoravam a economia nacional, como o Exército, com 54% do orçamento, um porta-aviões desnecessário, a Rede Ferroviária com o deficit colossal, o funcionalismo, etc. 375 Memória Jurisprudencial O sargento instrutor do Tiro de Guerra local deteve-o em casa e telegrafou a seus superiores, suscitando IPM, no qual o rapaz confirmou a materialidade dos fatos, explicando que estava indignado porque seu pai, trabalhando na prancheta durante anos, desenhara um novo trator, diz ele, melhor do que os estrangeiros, e debalde apelara para obter apoio e crédito do Governo, a fim de fabricá-lo, sem obter resposta. Entretanto, tendo escrito ao Presidente dos EUA, recebera palavras de simpatia três semanas depois. Rematou o seu depoimento com as seguintes palavras, à fl. 19 do processo principal: “Posso, falando assim de improviso, ter me exprimido mal e dado impressão diferente da dos meus intentos. A verdade, porém, é que não quis ofender a ninguém, a ninguém eu quis excitar, e nem causar animosidade de quem quer que seja contra as classes armadas.” (Fl. 19) II - O Capitão Pery Salazar, encarregado do IPM, em relatório fiel e sereno, pronunciou-se da seguinte maneira, à fl. 25 daquele processo: “A atitude de Marcos Olsen está capitulada no item III do art. 33 do Decreto-Lei n. 314, de 13 de março de 1967, que define os crimes contra a Segurança Nacional e a Ordem Política e Social; é de se ressaltar, entretanto, a ignorância de que é possuído o referido aluno em assuntos dessa natureza e as causas íntimas que lhe levaram ao erro. Sua permanência em residência, determinada pelo 1º Sgto. Instrutor do TG-172 (Documento de fl. 5), que se iniciou em 21 de abril e só suspensa por este encarregado do IPM em 26 de abril, bem como a pronta instauração do IPM, não só se constituíram em verdadeiras punições a Marcos Olsen, como influíram positivamente na opinião pública de Caçador, SC, que ainda, de uma maneira geral, estava alheia aos fatos, e os que tiveram conhecimento, inclusive estudantes e professores, foram unânimes em reprovar a atitude do mal-informado aluno. E como o fato, pelo exposto, pode deixar de ser enquadrado no Decreto-Lei n. 314/67, salvo melhor juízo, sejam estes autos remetidos ao Sr. Tenente Coronel João Carlos Christoffel, Cmt. do 5º BE Cmb, para que os encaminhe ao Exmo. Sr. Cmt. da 5ª RM e 5ª DI, a quem incumbe solucionar o mesmo e remeter à autoridade competente na forma do § 4º do art. 117 do CJM.” (Fl. 25) O Conselho de Justiça Militar, conforme r. sentença de fl. 147, absolveu o acusado por 4 a 1, “por não se ter configurado o delito tipo do art. 33, do DecretoLei 314/67”. 376 Ministro Aliomar Baleeiro Houve apelação do Ministério Público, e a Procuradoria-Geral da Justiça Militar, em parecer à fl. 170, assinado pelo nobre Procurador Nestor de Agôsto, opinou o seguinte: “O fato descrito, em seu contexto, melhor se compadece com o delito típico de injúria, definido no art. 38, inciso VI, da dita lei de Segurança Nacional. O evento, pelo narrado na peça acusatória e pelo que se contém na prova colhida, quer a já obtida no inquérito policial militar, quer no sumário de culpa, evidenciou a modalidade delituosa definida no art. 38, inciso VI, da Lei n. 314/67, na forma injuriosa, quando o ofendido for (...) entidade que exerça autoridade pública. De fato e desde logo, se percebe que o apelado teve em mira um desabafo ao assacar a injúria contra o Exército Nacional, a quem atribuía excessivos gastos do Erário Nacional, que redundava, ao seu modo de ver, em onerar a indústria e os meios produtores, com os onerosos impostos, que dizia pesar no seu próprio estabelecimento industrial. Opinamos, pois, pelo acolhimento da apelação interposta pelo ilustre Dr. Procurador da 5ª Região Militar, para que se reforme a sentença apelada e se condene Marcos Olsen na pena de seis meses de detenção, quantidade mínima da pena do art. 38, inciso VI, da Lei n. 314 de 1967, na ausência de circunstâncias agravantes.” (Fl. 171) Mas o eg. STM, pelo v. acórdão de fl. 173, deu provimento à apelação para condenar o Recorrente pelo incitamento à animosidade do art. 33, III, do Decreto 314, e não pelo de injúria do art. 38, IV, do mesmo diploma: a pena foi de um ano e dois meses. III - Recorreu extraordinariamente o acusado. Por certo, sua petição não é um primor de técnica forense. Mas, em matéria criminal, sendo do réu o apelo, creio que o direito da defesa consagrado pelo art. 153, § 15, da Constituição Federal aconselha benignidade quanto a defeitos formais imputáveis ao patrono. Este é exigido em favor do réu pelo processo contraditório adotado, de sorte que os deslizes técnicos do defensor não devem prejudicá-lo. IV - O fato ocorreu, como já foi assinalado, a 20-4-67. A CF de 1967, art. 114, II e c, e art. 122, § 1º, garantia ao civil condenado pela Justiça Militar o recurso ordinário para o STF. Com outra redação, permanece essa garantia na Emenda n. 1 da CF de 1969, arts. 119, II, b, e 129, § 1º. Tenho para mim que o recurso extraordinário destes autos pode ser conhecido como ordinário, por aplicação extensiva do art. 153, § 15, da Constituição Federal. Lembro que o STF resolveu reabrir prazo para que os recursos ordinários de mandado de segurança, extintos, pudessem ser interpostos como extraordinários. 377 Memória Jurisprudencial Por isso conheço do recurso como ordinário e dou-lhe provimento, para restaurar a sentença de primeira instância, porque não se me afigurou caracterizado, no caso, o crime de instigação à animosidade em qualquer de suas modalidades. Nem mesmo o de injúria do art. 38 do Decreto-Lei 314, porque me parece não ter ocorrido animus iniuriandi. Mal-informado de que as despesas do Exército absorvem 54% do orçamento, o que, aliás, não é exato, o Recorrente considerou “feridas cancerosas” das finanças o Exército, o porta-aviões, a Rede Ferroviária, o funcionalismo excessivo, etc., em detrimento da indústria e do desenvolvimento nacionais. Não houve, segundo li, palavras injuriosas in re ipsa nem o ânimo de denegrir, insultar ou enxovalhar o Exército. Não ofendeu a honra ou a dignidade das Forças Armadas, imputando-lhe manchas. O acusado, como cidadão, fez um cálculo econômico que, em outros países, já foi levantado por economistas que divergem a respeito da conveniência social de vultosas despesas militares. Adolfo Wagner, na Alemanha bismarckiana, era um defensor delas pela sua produtividade econômica. Molinari procurou demonstrar o contrário, calculando o volume de bemestar do povo se as despesas militares fossem substituídas por investimentos em saúde pública, educação, transportes, etc. Os anais dos Parlamentos das nações que se empenharam nas guerras mais importantes de um século para cá estão cheios de debates pró e contra o volume de gastos militares, que a Dinamarca chegou a suprimir em certo momento. Machiavelli, pensador político, que teve até a veleidade de escrever monografia sobre a arte militar e não alimentava ilusões sobre a necessidade da força para garantir a independência e a perenidade da pátria, cuja unificação sonhou, pregou, repetindo Aulo Gelio, que “o dinheiro não é o nervo da guerra”, isto é, há mais importância na adesão da consciência nacional à causa da guerra do que no ouro para financiá-la. Agora mesmo, um dos temas de controvérsia mais acesa nos EUA jaz nas astronômicas despesas projetadas para o sistema de defesa antimísseis capaz de destruir, no espaço, imediatamente, os foguetes acaso dirigidos do estrangeiro contra os grandes centros demográficos americanos. O Pentágono tem sido o alvo predileto de artigos e até de livros hostis. O crime de instigação à animosidade do art. 33 do Decreto-Lei 314 pressupõe, a meu ver, dolo específico de intriga, provocação, propósito político ou ideológico de incentivar discussões internas para um fim de subversão, etc. E isso não se imputa ao estudante irritado com a dificuldade de fabricar os tratores do pai. Não lhe atribui o v. acórdão qualquer posição ideológica ou subversiva. É industrial e direitista. Quer incentivos para a indústria. Nada mais. V - Em matéria de fato, dou muito apreço aos juízes de primeira instância que tiveram o contato direto e real com o acusado, viram-no e o ouviram assim como as testemunhas no meio social que foi teatro do ato apontado como criminoso. 378 Ministro Aliomar Baleeiro Quando, hoje, a imprensa pinta um quadro tenebroso da Justiça Militar dos EUA, que seria comparável aos artigos de guerra dos tempos nossos do Conde de Lippe (p. ex., o artigo “Military Justice on Trial”, em Newsweek de 318-1970, p. 18), posso afirmar o contrário dos julgamentos por oficiais brasileiros, na primeira instância, quer pela minha experiência de jovem advogado na Bahia, quer pela de juiz e de velho nesta Corte. Então e hoje, observei sempre um profundo espírito de justiça e de independência dos oficiais que integram os nossos Conselhos. E isso honra ao Brasil e às suas Forças Armadas. VI - Se não for conhecido como recurso ordinário, conheço como extraordinário pelas razões acima expostas (CF, art. 153, § 15) e dou provimento, porque não se trata de reexame dos fatos, mas do enquadramento jurídico destes. Tais como figuram no próprio e v. acórdão, não tipificam o crime do art. 33, III, do Decreto-Lei 314. Falta ao processo justa causa. RECURSO EXTRAORDINÁRIO 69.784 — SP Imposto Territorial Urbano. Seu conceito (art. 33 do Código Tributário Nacional). Inconstitucionalidade do art. 2º da Lei n. 614/64 do Município de Americana, por vulnerar o § 6º do art. 19 e o art. 25, I, da Constituição Federal de 1967. Recurso extraordinário não conhecido. VOTO (Conhecimento) I O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: O eminente Ministro Djaci Falcão, em elaborado voto, confirma o venerando acórdão do egrégio Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo (fl. 251) que repeliu o adicional progressivo do Município de Americana (Lei 614, de 6-10-1964) ao Imposto Territorial Urbano sobre proprietários de mais de um lote não edificado na área da cidade. S. Exa. não conheceu do Recurso Extraordinário da Prefeitura, pelos incisos a e d, por ofensa aos artigos 25 e 150, § 1º, da Constituição Federal de 1967 e dissídio com o Supremo Tribunal Federal. O voto do ilustre Relator, como o venerando acórdão recorrido, funda-se em dois pareceres eruditos dos professores Rubens Gomes 379 Memória Jurisprudencial de Sousa (fl. 7) e Rui Barbosa Nogueira (fl. 40), pedidos pelo Recorrido quando submeteu ao Supremo Tribunal Federal o Recurso Extraordinário n. 63.666, de 1967, no qual aliás foi vencido, como outros foram no RMS 16.789 (RTJ 41/607). A relevância manifesta do caso, o alto padrão técnico da inicial do Recorrido, as opiniões doutrinárias dos prestigiados jurisconsultos que opinaram, o interesse de 4.000 municípios e o de muitos milhares de proprietários urbanos, enfim várias circunstâncias estão a recomendar a atenção meditada e circunspecta dos juízes do Supremo Tribunal Federal acerca da controvérsia, a começar pelo bom exemplo do eminente Relator. Em verdade, estamos diante dum caso em que esta Corte, fiel à sua missão constitucional, vai construir soluções, como órgão para dirimir problemas políticos e econômicos latentes no contexto da Constituição e das leis complementares dela. Temos de minerar os princípios que jazem subjacentes em nosso Direito Constitucional escrito. 2. Data venia, conheço do recurso por ambos os incisos. O venerando acórdão recorrido de fl. 251 tem fundamento básico neste caudaloso período: “No caso em discussão, além da revogação do art. 202 da Constituição Federal de 1946, que constituiu a fundamentação da sentença apelada, a Lei n. 614 do Município de Americana, a pretexto de criar um adicional ao imposto territorial urbano, em realidade, como demonstram à saciedade os dois lúcidos pareceres dos Professores Rubens Gomes de Souza e Ruy Barbosa Nogueira, criou um novo imposto geral sobre o patrimônio imobiliário urbano dos contribuintes, violando, ao mesmo tempo, as normas do § 6º do art. 19 e do art. 25 da Constituição do Brasil de 1967, uma vez que somente a União poderá instituir outros impostos que não os previstos na Constituição, sendo que ao Município compete apenas decretar impostos sobre propriedade predial e territorial urbana e sobre serviços de qualquer natureza, etc., não sobre outros impostos, como fez o Município de Americana através do art. 2º da Lei n. 614, que não tem por base de cálculo do imposto territorial urbano o valor venal do imóvel, como estatui a norma geral do art. 33 do Código Tributário Nacional, mas a circunstância subjetiva de ser o contribuinte proprietário de mais de um terreno, quando o imposto discutido é de natureza estritamente real, como se infere da definição constante do art. 32 do citado Código Tributário”. Não creio que Americana houvesse instituído “um novo imposto geral sobre o patrimônio imobiliário urbano” nem que tivesse vulnerado os artigos 19, § 6º, e 25 da Constituição Federal de 1967. Cobrou o imposto territorial urbano de sua competência, regulado, sem qualquer diferença, na Constituição de 1946, na Emenda n. 18/1964, na Constituição de 1967 e na Emenda 1/1969. Sob o 380 Ministro Aliomar Baleeiro regime de 1946 até hoje, o Município não tinha nem tem acesso à competência residual. Se podia exigir validamente aquele adicional da Lei 614 no regime da Constituição Federal de 1946, podia exigi-lo sob a Constituição Federal de 1967 e ainda o pode sob a Emenda 1, de 1969. O Direito Constitucional brasileiro, nesse particular, não mudou nada. E a supressão do art. 202 da Constituição Federal de 1946 não retirou qualquer sustentáculo à constitucionalidade da Lei n. 614 de Americana. Isso quanto ao inciso a, como voltaremos a discutir mais adiante. Estou convencido da divergência entre o venerando acórdão recorrido e o proferido em caso rigorosamente igual — aplicação da Lei 614 de Americana a proprietários de mais de um terreno —, o RMS n. 16-789/SP, de 12-12-68, unânime, na RTJ 41/607. Naquela causa, os proprietários argüiam que, além de violação da isonomia, o art. 202 da Constituição Federal de 1946 não justificava a discriminação para a progressividade e já estava revogado pelo art. 25 da Emenda n. 18, de 1965. O ataque à Lei 614 era travado no mesmo campo e com as mesmas armas deste recurso. Data venia do preclaro Relator, parece haver equívoco em dizer-se que, nesse venerando acórdão do RMS 16.789, “a matéria foi tratada em face do art. 202 da Constituição Federal, que não mais vigora” “bem assim não havia a regra do art. 33 do Código Tributário Nacional”. A decisão local, em verdade, citou o art. 202, mas o acórdão do Supremo Tribunal Federal, calcado unicamente no voto do eminente Ministro Victor Nunes, não contém a mais mínima palavra sobre o art. 202, de 1946, ou sequer sobre o princípio nele consagrado — meramente programático, segundo Mestre Rubens Gomes de Sousa — de que os tributos, “sempre que possível, devem ser pessoais e graduados pela capacidade econômica do contribuinte”. Lerei o voto do Ministro Victor Nunes, na Revista Trimestral de Jurisprudência, v. 41, p. 608-9: “Nego provimento ao Recurso, de acordo com a decisão recorrida. Embora os recorrentes tenham lançado mão de argumentação inteligente, ressalta, desde logo que não existe a alegada inconstitucionalidade, o que nos dispensa mesmo de remeter este processo ao julgamento do Pleno, tal como fez o Tribunal de Alçada, que o julgou por sua 3ª Câmara Civil. Pode ser injusto o critério de variação do Imposto Territorial Urbano em Americana, adotado pela Lei municipal 614/64, mas a verdade é que ele se baseou em dados objetivos, tendo em vista uma finalidade social relevante”. 381 Memória Jurisprudencial Nem uma palavra sobre o artigo 202 ou seu conteúdo. O fundamento é um só: “não existe a alegada inconstitucionalidade” da Lei 614, à luz da Emenda 18/1965 e da Constituição Federal de 1967, que nada diferem no particular. Como continua a não diferir sob a égide da Emenda 1/1969. Não é só. O mesmo Recorrido destes autos interpôs o RE n. 63.666 da decisão local que deu pela validade do adicional da Lei 614 quanto ao exercício de 1965, e o eminente Ministro Djaci Falcão negou admissibilidade ao apelo extremo pelo despacho de arquivamento (fl. 214) no Diário da Justiça de abril de 1969, p. 1293, nos seguintes termos: “A matéria objeto do presente recurso, envolvente da Lei muni-cipal n. 614/1964, de Americana, foi apreciada no RMS 16.789 (ver RTJ 41/607), que concluiu pela legitimidade da cobrança do tributo. O recurso está arrimado tão só na alínea a, do permissivo constitucional.” VOTO (Mérito) 3. Rubens Gomes de Sousa, estrela cuja luz intensa no firmamento jurídicotributário sobrevive à morte, honrou-me, há 20 anos, criticando minha opinião de que o art. 202 da Constituição Federal de 1946 era cogente, como Giardina e Manzoni também vieram a sustentá-lo mais tarde em relação a disposição idêntica — o art. 53 da Constituição Federal italiana de 1947, fiel, nesse ponto, ao princípio embrionário análogo no Estatuto Albertino. No parecer, à fl. 30, Rubens queixa-se de que eu o não houvesse refutado nem me referido a seu reparo quando publiquei a 2ª edição do livro criticado. Dispensei-me de fazê-lo, porque meu argumento se achava expresso na citação das palavras do Deputado e Professor Scoca na Constituinte italiana, acerca do art. 53 da Constituição de seu país: “(...) un principio informato è un criterio più democratico, più aderente alla conscienza della solidarietà e più conforme alla evoluzione delle legislazioni più progredite. La regola della progressività deve essere effetivamente operante (...)” (Carullo, Constituzione Ilustrata con i lavori preparatori, 1948, v. I, 182 e s. — transcrição em Baleeiro, Limitações Contitucionais ao Poder de Tributar, 4ª ed., 1974, p. 314, nota 1). Embora na campanha de Giardina e Manzoni, concedo que são mais numerosos os que estão na mesma linha de Rubens — a de que o art. 202 da Constituição Federal de 1946 e o art. 53 da Constituição Italiana têm caráter apenas programático (p. ex., E. D’Albergo, Riforma Tributaria, 1949, p. 11; Giannini, Coment. alla Constit. Ital. de Calamandrei, 1950, v. I, pp. 169, 281 a 284, etc.). 382 Ministro Aliomar Baleeiro Ora, se o eminente Relator e o venerando acórdão local adotaram os raciocínios de Rubens G. Sousa naquele douto parecer, hão de reconhecer que o art. 202, de 1946, não tinha a mínina influência na causa, porque apenas programático. Ele recomendava ao legislador ordinário a personalização e a progressividade do tributo sempre que possível. Suprimindo aquele dispositivo, não há uma palavra na Emenda 18/1965, na Constituição Federal de 1967, nem na Emenda 1/1969 a proibir que o legislador decrete em caráter progressivo e pessoal qualquer tributo ou que se conserve com esse caráter um imposto anterior à Emenda 18, de 1965. Pessoal e progressivo era e continua a ser, até 1967, o imposto de herança. Progressório o é o IPI, assim como fora o Imposto de Consumo, em relação aos cigarros, tributados por alíquotas crescentes conforme o preço. Pessoal é ainda o IPI quando atinge drasticamente produtos supérfluos ou de luxo, em contraste com a benignidade para as mercadorias necessárias ou de consumo generalizado. Quando a Constituição Federal quer proibir a progressividade ou o gradualismo, ela expressamente estatui que a alíquota deverá ser uniforme. Por exemplo, a do ICM, por força do § 5º do art. 23 da Emenda 1/69. Nada veda, na Constituição Federal ou no Código Tributário Nacional, a progressividade do Imposto Territorial Urbano. Pelo contrário, a analogia, a doutrina e a tradição aconselham que assim seja, como instrumento de Política Legislativa e de Política Fiscal para combate ao latifúndio (ou mesmo ao parvifúndio), acessibilidade dos terrenos às construções para habitação, guerra à especulação que os retêm para captação da chamada renda ricardiana, etc. Há mais de 80 anos, Rui, no Relatório do Ministro da Fazenda, (1891), já defendia a tributação enérgica dos lotes baldios e das casas arruinadas, em prol da construção de novos edifícios e aproveitamento racional da terra urbana. E cita tentativas, ainda no regime monárquico, num século avesso à intervenção do Estado. Com mais razão, desde a Constituição Federal de 1934, até a atual, pois todas elas expressam “a função social da propriedade” (Emenda 1/69, art. 160, III), bem longe do ius utende et abutende, da tradição romana. A possibilidade de usar o Imposto Territorial Rural, em caráter fortemente progressivo, como meio de reforma agrária e extinção dos latifundia, foi a justificativa única da Emenda Constitucional n. 10, de 9-11-64, que transferiu para a competência federal esse tributo dos Municípios, embora mandasse a União entregar a estes arrecadação respectiva. Isso veio a ficar explícito no Estatuto da Terra (Lei 4.504/64): “Art. 47. Para incentivar a política de desenvolvimento rural, o Poder Público se utilizará da tributação progressiva da terra, do Imposto de Renda, da colonização, etc. (...)” 383 Memória Jurisprudencial Isso, para entre outros alvos, “desestimular os que exercem o direito de propriedade sem observância da função social e econômica da terra” (Estatuto da Terra, art. 47, n. I). E, no art. 49, repete-se que o imposto territorial obedecerá a critérios de progressividade e regressividade (esta, naturalmente, em relação aos minifúndios). Note-se, o lote-padrão de 300 m2 de Americana tem analogia, até certo ponto, com o conceito de “módulo” do Estatuto da Terra. 4. O acórdão local, confirmado pelo Supremo Tribunal Federal, no RMS 16.798 (à fl. 94), reconhece que Americana instituiu o combatido “adicional”, valendo-se da “chamada extrafiscalidade para atingimento de fins sociais, tendo em vista a utilização dos terrenos baldios. Operando na proporção do número destes os seus proprietários, visa a lei a compeli-los, na medida de suas fortunas, a edificar”. Acrescentarei: a edificar ou a vendê-los, sem retê-los em busca de lucros às expensas das obras públicas e do crescimento demográfico da cidade. Fato de experiência universal é que os terrenos se valorizam dia a dia e muitos os compram e os conservam baldios para especulação sem esforço nem risco. Em parte, o aumento é fictício por efeito da desvalorização da moeda. Mas, em parte — mesmo nas épocas inflacionárias —, os terrenos sobem sempre de valor com o tempo. Nas quadras inflacionadas, o incremento do valor imobiliário é muito maior do que o índice de perda do poder aquisitivo da moeda. Bilac Pinto, em sua clássica monografia Contribuição de Melhoria — infelizmente esgotada —, dá exemplos espantosos e astronômicos do crescimento de valor dos imóveis em vários tempos e em várias cidades do mundo. Por quê? A explicação cientifíca jaz na teoria ricardiana da terra. Há mais de século e meio, Davi Ricardo, economista clássico mas pai espiritual das idéias econômicas de Karl Marx, explicava que, como os terrenos são diferentes pelas suas faculdades naturais, uns valem mais do que outros, porque aqueles melhores que estes. À proporção que a população cresce e a riqueza da sociedade aumenta, há mais fome de terras e terrenos e, portanto, os preços destes, em todas as categorias, sobem. Nas cidades, a princípio, todos querem o centro. Depois, vão aceitando os lotes mais distantes e assim sucessivamente. Os proprietários dos lotes bons, pela situação, existência de serviços públicos, proximidade em relação ao comércio, escolas, transportes, etc., gozam de um oligopólio — ou mercado de pouquíssimos vendedores — e assim podem impor preços cada vez maiores. Eles se locupletam com o crescimento demográfico, que agrava a procura das habitações, e com a expansão dos serviços públicos, que melhoram os bairros novos. Daí a contribuição de melhoria e o imposto sobre as plusvalias imobiliárias, o unearned increment, a política do “imposto único” de Henry George, etc., a 384 Ministro Aliomar Baleeiro fim de que os donos dos lotes não se abstenham de vendê-los à espera de que se valorizem ainda mais, criando para a comunidade angustiosos problemas de moradia, causa da criação do BNH. Nenhum financista moderno deixa de mencionar as funções extrafiscais do imposto, louvando-as, como exercício do poder fiscal não para obter receitas, mas para coibir atitudes individuais tidas como antisociais. Há algumas dezenas de anos, o Brasil e outros países aplicavam adicionais aos solteiros e aos casais estéreis ou de poucos filhos, como política populacional. A explosão demográfica contemporânea fez perimir aquela política fiscal. Um coisa é certa: nenhum dispositivo da Constituição veda o emprego de tributos para fins extraficais, tão bem estudados por Alberto Deodato, Bilac, W. B. Correa e outros no Brasil, objeto de estudos especiais do Congresso reunido pelo Instituto Internacional de Finanças, em Roma, 1948, quando os relatou o Prof. F. Neumark, deles tendo participado o próprio Bilac (Travaux de l´I.I.F.P., 1949, pp. 235 e s.). Todos os países civilizados exploram as possibilidades e os efeitos extrafiscais dos impostos, seja para combate à inflação, seja contra os vícios, o luxo, as coisas prejudiciais à saúde, o latifúndio, os terrenos baldios, etc. Há quase 100 anos, o velho Cooley distinguia do tax power o police power exercido pela tributação. E ele está consagrado no art. 78 do CTN (redação do AC 31/67) a respeito das taxas. 5. É válido e legítimo todo tributo que não repugna à Constituição Federal ou a uma lei complementar dela, como o CTN. A alegada injustiça do tributo pode ter os melhores fundamentos políticos, econômicos ou éticos, mas não o condena juridicamente. Os contribuintes, então, recorram aos legisladores e os castiguem nas eleições se permanecerem moucos, mas nada esperem dos Tribunais. Como acentou Victor Nunes naquele v. acórdão do RMS 16.798 (RTJ 41/607), o adicional de Americana pode ser injusto talvez, mas não é inconstitucional. A lição é de A. D. Giannini: a lei pode instituir validamente “il più iniquo o antieconomico dei trubuti” (Elementi. Dir. Finanz., 1945, pp. 67 e s.). A justiça é uma idéia-força, no sentido de Fouillé, mas varia no tempo e no espaço, senão de indivíduo. Fixa-a o legislador, e o juiz há de aceitá-la como um autômato. Inúmeros acórdãos do Supremo Tribunal Federal declaram que lhe não é lícito corrigir a justiça intrínseca na lei, substituindo-se às escolhas do legislador. 5. A fórmula brutal de A. D. Giannini obsta a Constituição Federal, porque repele, parece-me, o imposto evidentemente confiscatório. No caso, não é confiscatória nem mesmo drástica ou exagerada. 385 Memória Jurisprudencial O imposto de Americana, para o dono de um só terreno, é de 1%, seguindo-se suave escala de progressão aritmética e não geométrica, calculada sobre o quantum do ITU. É, pois, a seguinte a escala: 1 terreno só 1% 2 a 3 terrenos 1,20% 4 a 6 terrenos 1,30% 7 a 10 terrenos 1,40% 11 a 20 terrenos 1,50% Mais de 21 terrenos 1,60% Poderia Americana decretar a alíquota de 1,6%, sobre o valor venal, para o proprietário de um lote só? Sem nenhuma dúvida. Nada a impede, como estabeleceu a alíquota de 2%, após o 7º mês, para os lotes sem muros ou ocupados por edifícios incendiados, arruinados, condenados, etc. Vários municípios brasileiros aplicam alíquotas maiores sem progressão. Um ponto, entretanto, deve ficar bem claro: se a tributação é progressiva, há de ser feita por escalões, isto é, 1% sobre o 1º lote; 1,20% sobre os três imediatos; 1,30% sobre os outros três seguintes; 1,40% sobre os quatro imediatos; 1,50% sobre os dez outros; e 1,60% sobre todos os demais. Não é lícito à Americana aplicar 1,60% sobre todos os terrenos de quem possuir 22 deles, pois assim o adicional já não será progressivo. Isso é que seria ilegítimo. 8. Não há imposto sobre a coisa, mas imposto sobre a coisa porque alguém ganhou a coisa, vendeu-a, importou-a, exportou-a, contratou-a, ou dela é dono ou possuidor. Se o imposto é calculado objetivamente pela coisa, sem considerar o contribuinte, temos tributo real. Se é considerado o contribuinte por sua condições individuais, temos tributo pessoal. Qualquer tributo pode ser personalizado e Vauthier, há um século, escreveu um livro para provar que todo imposto pode ser cobrado em base progressiva (L. V. Vauthier, De l´Impôt Progressif, étude sur l´application de ce mode de prévèlement à un impôt quelconque (Paris, 1851). 9. Parece-me, data venia, haver paralogismo na tese de que o adicional não é o mesmo ITU, porque o fato gerador seria o domínio ou a posse de 2 ou mais terrenos. O fato gerador é, como no ITU, a propriedade ou a posse de terreno na área urbana, segundo o Código Tributário Nacional. A base de cálculo é que discrimina o número de lotes, para aplicação do critério progressivo. O adicional é, pois, um bis in idem do Imposto sobre a Propriedade Territorial Urbana, que tem como fato gerador o domínio ou a posse de imóvel na área definida como urbana pelo Código Tributário Nacional. 386 Ministro Aliomar Baleeiro Um adicional é a nova aplicação do mesmo imposto, pelo Fisco competente, em face da legitimidade bis in idem, que se não confunde com a inconstitucional bitributação, esta caracterizada pela concorrência de governos diversos, um dos quais apenas será o competente (Repert. Enciclop. do Dir. Brasileiro, v. 6º, verb. Bitributação e Bis in idem). Como já assinalamos de começo, a exclusão de Município no campo da competência residual já vinha da Constituição Federal de 1946, da Emenda 18/ 1965, sob cujo império o Supremo Tribunal Federal repeliu a alegada inconstitucionalidade da Lei 614/64. Não há, pois, como aceitar-se o “distingo” do venerando acórdão recorrido, segundo o qual, a partir do exercício de 1967, mudaram as disposições constitucionais disciplinares do ITU. Em relação a este, tudo ficou no mesmo. 10. Com a devida vênia, dou provimento ao recurso, feita, porém, ressalva do item 7 deste voto, isto é, a progressividade há de ser por escalões sucessivos e não apenas pela alíquota correspondente ao número total de lotes de cada proprietário. RECURSO EXTRAORDINÁRIO 70.121 — MG Relator: O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro Relator para o acórdão: O Sr. Ministro Djaci Falcão Recorrente: Júlio Batista da Silva — Recorrido: Estado de Minas Gerais No acórdão objeto do recurso extraordinário ficou acentuado que o Estado não é civilmente responsável pelos atos do Poder Judiciário, a não ser nos casos expressamente declarados em lei, porquanto a administração da Justiça é um dos privilégios da soberania. Assim, pela demora da decisão de um causa responde civilmente o juiz, quando incorrer em dolo ou fraude, ou ainda sem justo motivo recusar, omitir ou retardar medidas que deve ordenar de ofício ou a requerimento da parte (art. 121 de Código de Processo Civil). Além disso, na espécie, não se trata de responsabilidade civil decorrente de revisão criminal (art. 630 e seus parágrafos de Código de Processo Penal). 387 Memória Jurisprudencial Impõe-se a responsabilidade da pessoa jurídica de direito público quando funcionário seu, no exercício das suas atribuições ou a pretexto de exercê-las, cause dano a outrem. À pessoa jurídica responsável pela reparação é assegurada a ação regressiva contra o funcionário, se houve culpa de sua parte. In casu não se caracteriza negativa de vigência da regra do art. 15 do Código Civil, nem tampouco ofensa ao princípio do art. 105 da Lei Magna. Aferição de matéria de prova (Súmula 279). Recurso extraordinário não conhecido. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em Sessão Plena, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, não conhecer de recurso, contra os votos dos Ministros Relator, Bilac Pinto e Adalicio Nogueira. Brasília, 13 de outubro de 1971 — Aliomar Baleeiro, Presidente — Djaci Falcão, Relator para o acórdão. RELATÓRIO O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: 1. O Recorrente, comerciante, foi denunciado pela emissão de cheques sem fundos, tendo o juiz decretado sua prisão preventiva. No final, o processo foi encerrado e arquivado, com absolvição do acusado a requerimento do próprio Ministério Público. Mas o acusado permaneceu na cadeia pública durante 3 anos e 17 dias, dos quais 2 anos e 9 meses em virtude da desídia do juiz, que, recebendo os autos conclusos depois do interrogatório, em 15-4-61, conservou-os consigo, disciplicentemente, sem qualquer despacho ou providência, até 16-1-64, como o reconheceu e o disse o Promotor Mário Dirceu Araújo, segundo certidão de fl. 28, acrescentando: “(...) não obstante reiteradíssimas solicitações de devolução por parte do Ministério Público desta Comarca”. Até a Ordem dos Advogados interveio para que se pusesse cobro à inércia do magistrado. 2. Como essa longa prisão por prazo maior do que o admitido na lei houvesse reduzido à miséria extrema, socorreu-se da justiça gratuita (fl. 5) e propôs ação de indenização por perdas e danos contra Minas Gerais. A r. sentença de fl. 106 julgou improcedente a ação, citando o acórdão do Supremo Tribunal Federal, de 21-6-66, na RF 220/105, “sem embargos da grave 388 Ministro Aliomar Baleeiro e lamentável omissão do Juiz de Carmo de Minas, ficando com os autos em seu poder por mais de 2 anos, sem qualquer despacho, estando o A. preso (...)” (fl. 108). Entendeu também que a ruína financeira do recorrente já se caracterizara antes da prisão. 3. Apelou o A. e o nobre Procurador da Justiça, Dr. Wagner de Luna Carneiro, a fls. 128/9, opinou favoravelmente ao provimento, a fim de que se liquidassem os danos na execução. O v. acórdão de fl. 133 negou provimento à apelação, sustentando a tese da irresponsabilidade do Estado pela culpa dos juízes, salvo em casos específicos previstos em lei, como, por exemplo, o do art. 630 do Código de Processo Penal. Mas argumenta: “Tal porém, não é o caso em apreço, em que o magistrado após decretar a prisão preventiva do ora autor, recebendo os autos, reteve-os em seu poder, durante dois anos e nove meses, sem proferir qualquer despacho, enquanto o denunciado permanecia preso tendo afinal, sido absolvido a requerimento do próprio Representante do Ministério Público”. “Não prevista, em lei, para a hipótese, a responsabilidade do Estado, a improcedência da ação deve ser mantida. Apenas determino que se leve o caso ao conhecimento da Corregedoria da Justiça”. (Voto do Relator, o eminente Desembargador Assis Santiago, fl. 139). E, realmente, o v. acórdão mandou que o caso fosse submetido à Corregedoria, para as providências disciplinares adequadas. 4. Recorreu extraordinariamente o A., à fl. 142, pela letra a, argüindo violação do art. 105 da Constituição Federal de 1967 e denegação de vigência do art. 15 do Código Civil. Teria ainda o v. acórdão divergido de outros que dão sentido genérico à palavra “funcionários” naquela e em outras disposições legais. O recurso foi admitido pelo r. despacho de fl. 150. Sustentado à fl. 142, foi contraditado por Minas Gerais à fl. 157. A douta Procuradoria-Geral da República, em parecer do Dr. Murilo Silva, à fl. 163, pronunciou-se pelo não-conhecimento, tendo comentado todavia: “O caso dos autos é contristador e está a reclamar revisão da legislação atinente à espécie, de modo a responsabilizar o Estado pelos erros e demoras dos magistrados. O Estado responde, por lesões praticadas pelos funcionários, à exceção dos magistrados, ao pretexto do privilégio da soberania. 389 Memória Jurisprudencial O advogado e o membro do Ministério Público têm que cumprir à risca os seus prazos, enquanto que o magistrado não. Tal discriminação não nos parece correta em um regime democrático, onde todos são iguais perante a lei. O que é certo, porém, é que, por enquanto (e praza aos céus que isso não perdure), o Estado não responde por erros das autoridades judiciárias, como acertadamente decidiu o Tribunal mineiro.” É o relatório. VOTO O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): I - Sentença e acórdãos contrários ao Recorrente reconhecem de modo expresso os fatos em que ele assenta sua pretensão: a retenção ilegal do processo por juiz desidioso, durante 2 anos e 9 meses, estando preso o denunciado, que, por lei, não poderia permanecer no cárcere senão por 81 a 90 dias, no máximo, sem concluir-se a instrução, vindo a ser absolvido a pedido do próprio Ministério Público. Na singela inicial, o Recorrente deixa bem claro que não reclama nada pelo fato de ter sido denunciado e preso, para afinal ser absolvido, mas pela culpa do juiz negligente no cumprimento de seus deveres e na violação da lei, que não se compraz com a detenção preventiva além do prazo máximo nela previsto. II - O primeiro fundamento do recurso repousa no art. 105 da Constituição Federal de 1967: “As pessoas jurídicas de direito público respondem pelos danos que seus funcionários, nessa qualidade, causem a terceiros.” O caso ocorreu sob o regime da Constituição Federal de 1946, que continha norma igual no art. 194. Entende o Recorrente que os magistrados, nesse dispositivo, a exemplo do que ocorre noutros diplomas, como o Código Penal, estão abrangidos no conceito genérico de “funcionários”. Ainda se socorre do Código Civil: “Art. 15. As pessoas jurídicas de direito público são civilmente responsáveis por atos de seus representantes que nessa qualidade causem danos a terceiros, procedendo de modo contrário ao direito ou faltando a dever prescrito por lei, salvo o direito regressivo contra os causadores de dano.” Ambos os dispositivos transcritos partem do mesmo princípio — o da regressividade e não o da solidariedade. 390 Ministro Aliomar Baleeiro Responsável é a pessoa de direito público pela falta de seus agentes em serviço ou por extensão deste, resguardado seu direito de regresso contra eles, se pessoalmente culpados. Claro que pode haver falta anônima do serviço, por fato inerente a este, objetivamente considerado, sem culpa específica do agente público. De início, admito, a tese do Recorrente: “funcionários”, no art. 105 da Constituição Federal de 1967, ou 194 da Constituição Federal de 1946, são os mesmo “representantes” do art. 15 do Código Civil, inclusive os órgãos e agentes dos Três Poderes, e não apenas aqueles que as leis antigas chamavam de “empregados públicos” da Administração. “Critério estritamente objetivo e, portanto, mais largo, exige que se considerem funcionários públicos no art. 194 todos os que praticarem atos, ou incorreram em omissão, no exercício de função pública, sem se dever entrar, sequer na apuração da legalidade ou ilegalidade da investidura”, adverte Pontes de Miranda (Comentários à Constituição Federal de 1946, VI, p. 370). Assim, a meu ver, o art. 105 da Constituição Federal de 1967 abarca em sua aplicação os órgãos e agentes do Estado, como os chefes do Poder Executivo, os Ministros e Secretários de Estado, os Prefeitos, ainda que não sejam funcionários no sentido do Direito Administrativo. E, com maior razão, também os juízes, como agentes do Estado para a função jurisdicional deste, que os coloca sob regime especial de garantias no interesse de tal função. Esse regime especial e a natureza específica de sua atividade não lhes tiram o caráter de funcionários, lato sensu. O art. 15 do Código Civil, usando da espressão genérica de “representantes”, refere-se a todos os instrumentos jurídicos e técnicos das Pessoas de Direito Público, e, a meu entender, não comporta distinções, que ele não fez. A história do instituto da responsabilidade civil pode ser escrita como a história da sua contínua e progressiva ampliação, desde a responsabilidade pela culpa à responsabilidade sem culpa, desde o princípio The King does not wrong até a responsabilidade do Estado por todos os seus agentes. E, já em nossos dias, avança o assalto dessa melhoria ética e jurídica ao reduto mais defendido contra ela — a responsabilidade do Estado pela leis injustamente às situações individuais legítimas. Casos como os destes autos não podem ser aferidos pelos votos dos gloriosos magistrados das gerações anteriores, que nos precedem nesta Corte há cerca de meio século, quando ainda vacilava o espírito jurídico contra os privilégios da irresponsabilidade do Estado pelos atos dolosos ou culposos de seus agentes em serviço. Isso era concebível no regime da Constituição de 1824, ou talvez na de 1891, cujo art. 82 deixava a responsabilidade “estritamente” aos funcionários insolventes e impecuniosos como escárneo às vítimas dos fatos lesivos produzidos pelo serviço público ou pela culpa do Estado in vigilando ou in eligendo. 391 Memória Jurisprudencial Aliás, a despeito da letra daquele art. 82 da Constituição Federal de 1981, o Supremo Tribunal Federal, há 60 anos pelo menos, condenava o Estado por faltas atribuíveis a seus funcionários em serviço (Acórdãos n. 1926, de 12-71911; 1.973, de 25-5-1912; 2.098 e 2.251, de 10 e 21 de maio de 1913. No mesmo sentido, C. Maximiliano, Comment., id. de 1929, n. 475, p. 837). Hoje, ou melhor, desde 1946, a regra não pode ser posta em dúvida, nem sofrer restrições, que não existem no art. 194 da Constituição Federal de 1946 ou 105 da Constituição Federal de 1967. Não me parece, pois, exata, com a devida vênia, a assertiva do em. Des. Natal Campos, o revisor, à fl. 138, de “que o Estado não pode ser responsabilizado no presente caso. A responsabilidade pelos prejuízos alegados pelo A., se existe, é pessoal exclusivamente do juiz Oscar Junqueira Lopes.” Não. Pelo menos depois do art. 194 da Constituição Federal de 1946, essa responsabilidade ou não existe ou é também de Minas Gerais, que escolheu o juiz inadequado e, por seus órgãos competentes, não o vigiou, nem tomou as providências cabíveis, inclusive o habeas corpus por iniciativa de seu Ministério Público. III - A r. sentença de fl. 106 pretende ter apoio no v. acórdão do Supremo Tribunal Federal, de 21-6-66, no RE 32.518/RS, vencidos o em. Ministro Adalicio Nogueira e eu (RTJ 39/190 ou RF 220/105). Sua ementa resume a tese ali vitoriosa e que não se opõe à do Recorrente: 1. Ação criminal privada. Demora no seu andamento. 2. A atividade jurisdicional do Estado, manifestação de sua soberania, só pode gerar a reponsabilidade civil quando efetuada com culpa, em detrimento dos preceitos legais reguladores da espécie.” Naquele feito, o eg. Tribunal do Rio Grande do Sul entendera não ter havido culpa do juiz, que deixou prescrever processo de injúrias impressas pois que estava assoberbado de trabalho com os encargos acumulados de duas comarcas durante longo período. Os votos vitoriosos dos em. Ministros V. Boas, P. Chaves e Hermes Lima foram infensos ao reconhecimento da responsabilidade objetiva do Estado do Rio Grande do Sul, por “falta inerente ao serviço público”, segundo o Direito Administrativo, defendida em brilhante voto do Ministro A. Nogueira e que eu também esposei. No caso destes autos, não se trata de culpa por fato do serviço público, independentemente de culpa do agente ou representante do Estado. Aqui temos culpa escancarada, escandalosa e incontestável do juiz, reconhecida pela sentença e pelo v. acórdão; culpa por negligência e ilegalidade, e que justificou a remessa dos autos à Corregedoria, para ajustar contas com o magistrado deslembrado de seus deveres e dos mandamentos da lei, senão até da caridade. 392 Ministro Aliomar Baleeiro IV - Data venia, o v. acórdão equivocou-se ao armar-se das lições de Waline. Este, como li e entendi, não sufraga a solução do eg. Tribunal de Minas Gerais. Como é bastante sabido, a maior parte dos casos de responsabilidade do Estado, na França, recai na competência do contencioso administrativo. O Conselho do Estado, órgão jurisdicional, administrativo, decide de indenizações pedidas em conseqüência de atos ou fatos dos serviços públicos, o que lhe tem permitido construir, em decisões memoráveis à margem do Código de Napoleão, uma teoria da responsabilidade sob a égide do Direito Administrativo. Alguns casos, entretanto, são conhecidos pelos magistrados do Poder Judiciário. Entre eles, exatamente o da responsabilidade pelo dolo ou culpa dos juízes em suas funções. Vamos pela mão do próprio Waline: “Responsabilité de L’Etat du fait des services judiciaires. 1.361 — Cette question ne concerne pas le Droit Administratif, puisque, par hypothèse, il s‘agit de services non administratifs. Mais, traditionnellement, on l’annexe aux études de Droit Administratif.” (...) “Sans aller jusqu’à des hypothèses aussi extrêmes, qui ne sont cependant pas inimaginables, il peut y avoir eu des détentions préventives abusivement prolongées (…)” “Or, le principe traditionnel et constant, sauf exceptions, est l’irresponsbilité de l’Etat pour le mauvais fonctionnement du service de la justice.” (Droit Admin., 1959, n. 1.361, p. 771/2). Depois de mostrar a iniquidade desse princípio, Waline cita uma das exceções por lei expressa: “D’autre part, depuis la loi du 7 février 1933 renforçant les garanties de la liberté individuelle, la responsabilité personnelle des magistrats peut être reconnue dans le cas de dol, fraude, concussion, mais également, et ceci est moins théorique, en cas de faute lourde professionnelle. “Dans le cas où le magistrat aurait pu être pris à partie c’est-à-dire notamment dans le cas de faute lourde professionnelle, l´Etat est civilement responsable des condamnations prononcées contre ces magistrats; la victime a ainsi toujours um répondant solvable. L´Etat peut exercer un recours contre le magistrat. 393 Memória Jurisprudencial “Naturellement, de telles actions, qui mettent en jeu da responsabilité des magistrats pour mauvais fonctionnement des services judiciaires sont de la compétence exclusive des tribunaux judiciaires: 31 mai 1935, Pollet, p. 642.” (Waline, op. cit., n. 1.362, p. 772/3). Ainda o mesmo festejado escritor, em monografia especial sobre os abusos dos juízes, acentua: “L´excés de pouvoirs ne consiste pas nécessairement en une extension arbitraire de ses attributions par le juge, ou en une faute grossière par laquelle il s’affranchit des règles fondamentales qu’il a le devoir d’observer dans l´exercice de ses fonctions. Il y a en effet une irrégularité plus grave encore que de mal juger, c´est de ne pas juger du tout, de se refuser à exercer sa fonction, de dénier la justice aux plaideurs ou à la société elle-même. Aussi le déni de justice a-t-il été considéré, au cours de caractérisées de l´éxcés de pouvoirs.” (Waline, Notion Jurid. de l´Excès de Pouvoirs — L´Excès de pouvoirs du Juge — 1926, p. 184. Corrobora-o outro adinistrativista contemporâneo de igual mérito: “La prise à partie est une procédure particulière prévue par les articles 505 et suiv. du Code de procédure civile qui permet de metrre en cause la responsabilité des magistrats et officiers de police judiciáire aux cas où ceux-ci se sont rendus coupables de dol, concussiòn, déni de justice ou faute lourde professionnelle. Cette procédure aboutit également à la mise en jeu de la responsabilité de l´Etat car, au cas de condamnation du magistrat, la loi du 7 février 1933 substitue automatiquement la responsabilité de l´Etat à celle du magistrat condamné.” (Laubadère, Droit Admin. 1957, n. 933, p. 494). Não ensinam outra coisa os civilistas franceses contemporâneos de prol. Por exemplo, H. Mazeaud e L. Mazeaud (Traité Respons. Civile, 4ª ed., 1947, I, n. 520, p. 494, ou na edição Mazeaud — André Tunc, tomo III, v. I, n. 2006-3) ou Savatier (Traité Resp. Civile, 1951, tomo I, n. 228, p. 290, e tomo II, n. 718, p. 306). Ou ainda Lalou, que, depois de repetir a lição dos autores já citados, acrescenta: “La faute lourde au sens du nouvel art. 505 — 1º C. Pr. Civ. n´implique pas nécessairement un manquement intentionnel ou même inexcusable au devoir professionnel; il suffit que le juge ait commis une négligence particulièrement grave (Riom, 23 mars 1938, DP 1938.2.93. Gaz Trib., 28-4-1938, et les conclusions de M. l´Avocat Géneral André Rous). 394 Ministro Aliomar Baleeiro “Pour cette raison, la prise à partie peut avoir lieu même pour erreur de droit, pourvu que cette erreur n´ait pas été commise dans le jugement luimême et qu´elle soit si grossière qu´un magistrat normalement soucieux de ses fonctions ne 1´aurait pas commise (même arret)” (Lalou, Tr. Resp. Civ., 1949, n. 1415, p. 809). Do mesmo modo, ensinam os processualistas franceses, como se vê em Juris — Classeurs de Procedure Civile, sobre o art. 505 do CPC, notadamente n. 96, 97, 98, 64 a 67, 78, 79-bis, etc. Coincide com o Código de Processo francês o da Itália, no art. 55, 1º: “(...) il giudice é civilmente responsabile soltanto: 1) quando nell´esercizio delle sue funzioni é imputabile di dolo, frode o concussione; 2) quando senza giusto motivo rifiuta, omette o ritarda di provedere sulla domanda delle parti e, in generale, di compiere un atto del suo ministero”. Mas essa disposição não previu a responsabilidade solidária do Estado, como o fez a Lei francesa de 7-2-1933, de sorte que alguns comentadores a excluem. Assim se pronunciaram Rocco, Salvatore Satta e Sergio Costa. Este, porém, adverte: “Tutavia, vedasi Alessi, in Foro Pad., 1957, I, 348, il quale, nel sostenere che l´attività colposa dell’ ufficiale giudiziario determina una responsabilità dello Stato, in forza del rapporto organico, sembra sostenere equale tesi anche per il giudice” (Costa, Responsabilità del giudice, vb. no Novissimo Digesto Ital., 1957, XV, p. 702-3). Note-se o comentário do professor colombiano H. D. Echandia: “Por lo general, los autores de derecho administrativo aceptan esta responsabilidad del Estado. Duguit considera que si bien el acto jurisdiccional es una emanación de la soberanía del Estado, ‘ella no se manifiesta de una manera más intensa en el acto jurisdicional que en el acto administrativo’, y no hay razón para excluirla del primero. De la misma opinión es Philippe Ardant, y también Bielsa. Los autores brasileños siguen esta moderna doctrina, como observa Mario Guimaraes, para quien reconocer la indemnización em ciertos casos es una medida de justicia, porque si existe un servicio público organizado por la colectividad, y falla, el perjuicio que por ese motivo se cause a alguien no tiene por qué sufrirlo la víctima, y es natural que sea repartido entre toda la colectividad, siempre que con ello no se atente contra la cosa juzgada.” (Derecho Processal Civil, 1966, p. 349) 395 Memória Jurisprudencial V - Creio que essa digressão pelo Direito Comparado guarda pertinência com o Direito pátrio e, conseqüentemente, com o caso dos autos. O Código de Processo Civil, no art. 121, declara civilmente responsável o juiz quando incorre em dolo ou fraude, ou quando, sem justo motivo, recusar, omitir ou retardar providência que deve ordenar ex officio ou a requerimento da parte. Por outro lado, o juiz é “sempre” obrigado a consignar nos autos os motivos da demora na conclusão da instrução criminal (CPP, art. 402). E os prazos para os seus atos, quando não especificados de outro modo, estão previstos no art. 800 do Código de Processo Penal. Por motivo justo, poderá excedê-los apenas até igual tempo (art. 800, § 2º). E fica sujeito à pena da perda dos vencimentos por tantos dias quantos os do excesso (art. 801 do CPP). Merece menção o parecer da Procuradoria-Geral do Estado, nestes autos, à fl. 66, pelo subprocurador, que, quando promotor, pediu a absolvição: “A responsabilidade do Estado não advém somente do erro judiciário, mas também de negligência judiciária. Negligentes foram aqueles funcionários que deixaram o autor preso ilegalmente: o processo penal deveria estar concluído dentro de 81 dias e o foi depois de 3 anos, estando o então réu preso por decreto judicial.” O art. 194 da Constituição Federal de 1946 (art. 105 da CF de 1967) tem o mesmo efeito da Lei francesa de 7-2-1933 — o de estabelecer a responsabilidade do Estado, com a diferença de que, na França, ela é solidária e, no Brasil, direta, com regresso contra o agente público. Nem se diga que o Recorrente fez a “greve do cárcere”, defendendo-se mal, como se um pobre diabo num fim-demundo tivesse meios eficazes para chamar ao dever um juiz insensível à lei e até à piedade cristã. VI - Por essas razões suficientes — e que não são todas —, conheço do recurso e dou-lhe provimento, a fim de julgar a ação procedente, liquidando-se as perdas e os danos na execução. PEDIDO DE VISTA O Sr. Ministro Djaci Falcão: Sr. Presidente, peço vista dos autos. EXTRATO DA ATA RE 70.121/MG — Relator: Ministro Aliomar Baleeiro. Recorrente: Júlio Batista da Silva (Advogado: Orlando de Souza). Recorrido: Estado de Minas Gerais (Advogado: Laércio Nogueira Branco). 396 Ministro Aliomar Baleeiro Decisão: Pediu vista o Ministro Djaci Falcão, após o voto do Relator, conhecendo do recurso e dando-lhe provimento. Primeira Turma, em 15-9-70. Ausentes, justificadamente, os Ministros Barros Monteiro e Amaral Santos. Decisão: Decidiu-se remeter ao Tribunal Pleno. Unânime. Presidência do Ministro Luiz Gallotti. Presentes à sessão os Ministros Amaral Santos, Barros Monteiro, Djaci Falcão e Aliomar Baleeiro, e o Dr. Oscar Corrêa Pina, Procurador-Geral da República substituto. Brasília, 24 de novembro de 1970 — Alberto Veronese Aguiar, Secretário. RELATÓRIO O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: 1. O Recorrente, comerciante, foi denunciado pela emissão de cheques sem fundos, tendo o Juiz decretado sua prisão preventiva. No final, o processo foi encerrado e arquivado, com absolvição do acusado a requerimento do próprio Ministério Público. Mas o acusado permaneceu na cadeia pública durante 3 anos e 17 dias, dos quais 2 anos e 9 meses, em virtude da desídia do Juiz, que, recebendo os autos conclusos depois do interrogatório em 15-4-161, conservou-os consigo, displicentemente, sem qualquer despacho ou providência, até 16-1-64, como o reconheceu e o disse o Promotor Mário Dirceu Araújo, segundo certidão de fl. 28, acrescentando: “(...) não obstante reiteradíssimas solicitações de devolução por parte do Ministério Público desta Comarca. Até a Ordem dos Advogados interveio para que se pusesse cobro à inércia do magistrado. 2. Como essa longa prisão por prazo maior do que o admitido na lei o houvesse reduzido à miséria extrema, socorreu-se da justiça gratuita (fl. 5) e propôs ação de indenização por perdas e danos contra Minas Gerais. A r. sentença de fl. 106 julgou improcedente a ação, citando o acórdão do Supremo Tribunal Federal, de 21-6-66, na RF 220/105, “sem embargo da grave e lamentável omissão do Juiz de Carmo Minas, ficando com os autos em seu poder por mais de 2 anos, sem, sem qualquer despacho, estando o A. preso (...)” (fl. 108). Entendeu também que a ruína financeira do Recorrente já se caracterizara antes da prisão. 3. Apelou o A. e o nobre Procurador da Justiça Dr. Wagner de Luna Carneiro, às fls. 128/9, opinou favoravelmente ao provimento, a fim de que se liquidassem os danos na execução. 397 Memória Jurisprudencial O v. acórdão de fl. 133 negou provimento à apelação, sustentando a tese da irresponsabilidade do Estado pela culpa dos juízes, salvo em casos específicos previstos em lei, como, por exemplo, o do art. 630 do Código de Processo Penal. Mas argumenta: “Tal porém, não é o caso em apreço, em que o magistrado após decretar a prisão preventiva do ora autor, recebendo os autos, reteve-os em seu poder, durante dois anos e nove meses, sem proferir qualquer despacho, enquanto o denunciado permanecia preso tendo afinal, sido absolvido a requerimento do próprio representante do Ministério Público.” “Não prevista, em lei, para a hipótese, a responsabilidade do Estado, a improcedência da ação deve ser mantida. Apenas determino que se leve o caso ao conhecimento da Corregedoria da Justiça.” (Voto do Relator, o em. Desembargador Assis Santiago, fl. 139.) E, realmente, o v. acórdão mandou que o caso fosse submetido à Corregedoria, para as providências disciplinares adequadas. 4. Recorreu extraordinariamente o A., à fl. 142, pela letra a, argüindo violação do art. 105 da Constituição Federal de 1967 e denegação de vigência do art. 15 do Código Civil. Teria ainda o v. acórdão divergido de outros que dão sentido genérico à palavra “funcionários” naquela e em outras disposições legais. O recurso foi admitido pelo r. despacho de fl. 150. Sustentado à fl. 142, foi contraditado por Minas Gerais à fl. 157. A douta Procuradoria-Geral da República, em parecer do Dr. Murilo Silva, à fl. 163, pronunciou-se pelo não-conhecimento, tendo comentado, todavia: “O caso dos autos é contristador e está a reclamar revisão da legislação atinente à espécie, de modo a responsabilizar o Estado pelos erros e demoras dos magistrados. O Estado responde, por lesões praticadas pelos seus funcionários, à exceção dos magistrados, ao pretexto do privilégio da soberania. O Advogado e o membro do Ministério Público têm que cumprir à risca os seus prazos, enquanto que o magistrado não. Tal discriminação não nos parece correta em um regime democrata, onde todos são iguais perante a lei. O que é certo, porém, é que por enquanto (e praza aos céus que isso não perdure) o Estado não responde por erros das autoridades judiciárias, como acertadamente decidiu o Tribunal mineiro.” 398 Ministro Aliomar Baleeiro 5. A requerimento do Recorrente, que é pobre e foi assistido pela Assistência Judiciária Gratuita da OAB na instância inferior, nomeei, nos termos do Regimento Interno, seu patrono o nobre Dr. Cláudio Lacombe, que redigiu substancioso memorial já distribuído aos eminentes Juízes. É o relatório. VOTO O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): Sr. Presidente, antes de o ilustre Professor, que acabamos de ouvir com encanto, assumir as graves funções de Procurador-Geral da República, já lhe tributava eu a mais sincera e profunda admiração. Mas, como todos os humanos, ele hoje não estava nos seus dias mais felizes. Com certeza, foi o imprevisto do caso. Se ele tivesse examinado esse processo, refletido sobre todas as questões a ele pertinentes, acredito que não teria feito a promoção que acabamos de ouvir. Quer dizer, de logo, que não se trata, aqui, de uma construção no silêncio da lei. Trata-se de aplicação do Direito Positivo do País. Trata-se de dar o sentido exato do art. 105 da Constituição Federal de 67, correspondente ao art. 194 da Constituição de 46, assim como do art. 15 do Código Civil — o conceito de funcionário público no dispositivo em que se estabelece a responsabilidade do Estado pelos seus agentes. Mas, quando fosse silente a legislação brasileira, o nosso dever era outro. O eminente Professor de Processo e Direito Judiciário, mais do que eu, sabe todo o alcance daquele artigo velho no nosso Direito, o art. 113 do Código de Processo Civil, que já existia na legislação anterior. “O juiz não poderá, sob pretexto de lacuna ou obscuridade da lei, eximir-se de proferir despachos ou sentenças.” A mesma regra que, por outras palavras, já com a solução, está na Lei de Introdução ao Código Civil: “Art. 4º Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.” E um deles, dos mais fecundos, está no próprio texto dessa Lei, no artigo imediato: “Art. 5º Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.” 399 Memória Jurisprudencial Perdoe-me o eminente Procurador-Geral da República este desabafo. Acho que estamos discutindo um dos casos mais graves dentre os que nos ocuparam este ano. Não seria eu, pois, quem poria em dúvida a autoridade do Poder Judiciário, num País em que ele é realmente um Poder (em outros países, na França, por exemplo, se diz que não constitui um Poder). Mas tanto maior a autoridade, tanto maior a responsabilidade. O Poder Judiciário não será responsável se nós acobertamos com o manto da indulgência ou com essa figura misteriosa da soberania do Estado — para usar da expressão de Duguit —, a falta, a culpa, ou o dolo dos juízes. Sentença e acórdãos contrários ao Recorrente reconhecem de modo expresso os fatos em que ele assenta sua pretensão: a retenção ilegal do processo por juiz desidioso, durante 2 anos 9 meses, estando preso o denunciado, que, por lei, não poderia permanecer no cárcere senão por 81 a 90 dias no máximo, sem concluir-se a instrução, vindo a ser absolvido a pedido do próprio Ministério Público. Devo dizer que o Ministério Público pediu inúmeras vezes que o Juiz devolvesse os autos. A Ordem dos Advogados interveio. Não houve nada que arrancasse os autos do Juiz. Depois, o Dr. Procurador acha que houve culpa concorrente! O Sr. Procurador-Geral da República (Dr. Xavier de Albuquerque): O Ministério Público, que tão zeloso se mostrou no sentido de requisitar os autos, podia impetrar o Habeas Corpus. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): Evidentemente. E por que o não pediu? Quem nomeia e paga o Ministério Público? O Estado. Por que existe o Ministério Público? Porque o Estado tem o dever de prestar determinados serviços ao povo. Não cumpriu o seu dever, e aí, há culpa do Estado. O Sr. Ministro Amaral Santos: O defensor dativo tomou qualquer providência? O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): Ele era maior. O Sr. Ministro Amaral Santos: Ou era revel, ou tinha advogado constituído. Se revel, tinha defensor dativo. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): Ele não era revel. O Ministério Público, a Ordem dos Advogados, um deputado, todos requereram, e o Juiz manteve os autos em casa. Na singela inicial, o Recorrente deixa bem claro que não reclama nada pelo fato de ter sido denunciado e preso... Aí, é outra resposta do Dr. Procurador. 400 Ministro Aliomar Baleeiro O recorrente não vem pedir uma indenização porque foi processado. Qualquer de nós pode ser processado e passar pelos dissabores, vexames, prejuízos que um processo acarreta. Não é porque foi processado e preso que ele reclama. Litiga porque o juiz o reteve pelo décuplo do prazo legal. ...para afinal ser absolvido, mas sim pela culpa do juiz negligente no cumprimento de seus deveres e na violação da lei, que não se compraz com a detenção preventiva além do prazo máximo nela previsto. Para mim, e creio que também para o Ministro Amaral Santos, os prazos do Código de Processo são de ordem pública. Se a parte disser “quero ficar na cadeia”, o juiz não tem o direito de conservá-lo na cadeia. O Sr. Ministro Amaral Santos: Há prazos que não são preclusivos. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): O primeiro fundamento do recurso repousa no art. 105 da Constituição Federal de 1967: “As pessoas jurídicas de Direito Público respondem pelos danos que seus funcionários, nessa qualidade, causem a terceiros”. O caso ocorreu sob o regime da Constituição Federal de 1946, que continha norma igual no art. 194. Entende o Recorrente que os magistrados, nesse dispositivo, a exemplo do que ocorre noutros diplomas, como o Código Penal, estão abrangidos no conceito genérico de “funcionários”. Ainda se socorre do Código Civil: “Art. 15. As pessoas jurídicas de direito público são civilmente responsáveis por atos dos seus representantes... Peço a atenção do Tribunal para a expressão do Código, que é genérica: representantes, e não apenas funcionários. ...que nessa qualidade causem danos a terceiros, procedendo de modo contrário ao direito ou faltando a dever prescrito por lei, salvo o direito regressivo contra os causadores de dano.” Ambos os dispositivos transcritos partem do mesmo princípio — o da regressividade e não o da solidariedade. Responsável é a Pessoa de Direito Público pela falta de seus agentes em serviço ou por extensão deste, resguardado seu direito de regresso contra eles, se pessoalmente culpados. Claro que pode haver falta anônima do serviço, por fato inerente a este, objetivamente considerado, sem culpa específica do agente público. De início, admito a tese do Recorrente: “funcionários”, no art. 105 da Constituição Federal de 1967, ou 194 da Constituição Federal de 1946, são os mesmos “representantes” do art. 15 do Código Civil, inclusive os órgãos e agentes dos três Poderes, e não apenas aqueles que as leis antigas chamavam de “empregados públicos” da Administração. 401 Memória Jurisprudencial “Critério estritamente objetivo e, portanto, mais largo, exige que se considerem funcionários públicos no art. 194 todos os que praticarem atos, ou incorreram em omissão, no exercício de função pública, sem se dever entrar, sequer, na apuração da legalidade ou ilegalidade da investidura” — adverte Pontes de Miranda (Comentários à Constituição Federal de 1946, VI, p. 370). Assim, a meu ver, o art. 105 da Constituição Federal de 1967 abarca em sua aplicação os órgãos e agentes do Estado, como os chefes do Poder Executivo, os Ministros e Secretários de Estado, os Prefeitos, ainda que não sejam funcionários no sentido do Direito Administrativo. E, com maior razão, também os juízes, como agentes do Estado para a função jurisdicional deste, que os coloca sob regime especial de garantias no interesse de tal função. Esse regime especial e a natureza específica de sua atividade não lhes tiram o caráter de funcionários, lato sensu. O Sr. Ministro Amaral Santos: Pediria que examinasse a expressão lato sensu. O juiz é um funcionário que não se comporta dentro do quadro geral do funcionalismo público. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): Não contesto isso. Estou afirmando exatamente isso, mas pergunto a V. Exa.: o juiz é representante ou agente do Estado? O Sr. Ministro Amaral Santos: É representante. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): Então estamos de acordo. O Sr. Ministro Amaral Santos: É preciso considerar a função que o juiz exerce. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): Tudo é serviço público: iluminar a cidade, cuidar das árvores, varrer ruas, prender, soltar, legislar. Um varredor do Supremo é um elemento técnico, não jurídico do Estado. Se ele der uma vassourada na cabeça de um visitante, dará origem à obrigação de o Estado indenizar aquele em quem foi produzido o dano. O art. 15 do Código Civil, usando da expressão genérica de “representante”, refere-se a todos os instrumentos jurídicos e técnicos das Pessoas de Direito Público, e, a meu entender, não comporta distinções, que ele não fez. A história do instituto da responsabilidade civil pode ser escrita como a história da sua contínua e progressiva ampliação, desde a responsabilidade pela culpa à responsabilidade sem culpa, desde o princípio “the King does not wrong” até a responsabilidade do Estado por todos os seus agentes. E, já em nossos dias, avança o assalto dessa melhoria ética e jurídica ao reduto mais defendido contra ela — a responsabilidade do Estado pelas leis injustamente danosas às situações individuais legítimas. 402 Ministro Aliomar Baleeiro Casos como os destes autos não podem ser aferidos pelos votos dos gloriosos magistrados das gerações anteriores, que nos precederam nesta Corte há cerca de meio século, quando ainda vacilava o espírito jurídico contra os privilégios da irresponsabilidade do Estado pelos atos dolosos ou culposos de seus agentes em serviço. Isso era concebível no regime da Constituição de 1824, ou talvez na de 1891, cujo art. 82 deixava a responsabilidade “estritamente” aos funcionários insolventes e impecuniosos como escárneo às vítimas dos fatos lesivos produzidos pelo serviço público ou pela culpa do Estado in vigilando ou in eligendo. Recordo-me de um caso, aqui, do International Bank contra uma firma de São Paulo — 30 ou 40 milhões de contos. Suponhamos que o Supremo tivesse cometido um erro grosseiro num caso que, a meu ver, seria indenizável: todo o patrimônio dos onze Juízes do Supremo, vendidos em leilão, não daria para pagar um milésimo do prejuízo que daí decorreria. É um escárnio mandar um juiz, pobretão, indenizar. O Sr. Ministro Amaral Santos: No caso do Supremo, quem seria responsável: o Relator? O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): Não é coisa para ser discutida agora. Acredito que V. Exa. cumpriria o seu dever com a mesma bravura moral com que tem exercido o seu mandato nesta Casa. Aliás, a despeito da letra daquele art. 82 da Constituição Federal de 1891, o Supremo Tribunal Federal, há 60 anos pelo menos, condenava o Estado por faltas atribuíveis a seus funcionários em serviços (Acórdãos n. 1.926, de 12-71911; n. 1.973, de 25-5-1912; n. 2.098 e 2.251, de 10 e 21 de maio de 1913. No mesmo sentido, C. Maximiliano, Comment., id. de 1929, n. 475, p. 837). Hoje, ou melhor, desde 1946, a regra não pode ser posta em dúvida nem sofrer restrições que não existem no art. 194 da Constituição Federal de 1946 ou 105 da Constituição Federal de 1967. Não me parece, pois, exata, com a devida vênia, a assertiva do em. Des. Natal Campos, o revisor, à fl. 138, de “que o Estado não pode ser responsabilizado no presente caso. A responsabilidade pelos prejuízos alegados pelo A., se existe, é pessoal exclusivamente do juiz Oscar Junqueira Lopes.” Não. Pelo menos depois do art. 194 da Constituição Federal de 1946, essa responsabilidade ou não existe ou é também de Minas Gerais, que escolheu o juiz inadequado e por seus órgãos competentes não o vigiou, nem tomou as providências cabíveis, inclusive o habeas corpus por iniciativa de seu Ministério Público. A r. sentença de fl. 106 pretende ter apoio no v. Acórdão do Supremo Tribunal Federal, de 21-2-66, no RE 32.518/RS, vencidos o em. Min. Adalicio Nogueira e eu (RTJ 39/190 ou RF 220/105). Sua ementa resume a tese ali vitoriosa e que não se opõe à do Recorrente: 403 Memória Jurisprudencial “1. Ação criminal privada. Demora no seu andamento. 2. A atividade jurisdicional do Estado, manifestação de sua soberania, só pode gerar a responsabilidade civil quando efetuada com culpa, em detrimento dos preceitos legais regulares da espécie.” Logo, nesses acórdãos, não se exclui a hipótese destes autos. Ali se discutia um problema de mau funcionamento anônimo da Justiça, sem culpa apurável do juiz. Era o de um juiz que deixou prescrever uma causa, mas a ementa e os votos unânimes reconheceram que o Estado seria responsável se houvesse culpa do juiz. Naquele feito, o eg. Tribunal do Rio Grande do Sul entendera não ter havido culpa do juiz, que deixou prescrever processo de injúrias impressas pois que estava assoberbado de trabalho com os encargos acumulados de duas comarcas durante longo período. Os votos vitoriosos dos em. Ministro V. Boas, P. Chaves e Hermes Lima foram infensos ao reconhecimento da responsabilidade objetiva do Estado do Rio Grande do Sul, por “falta inerente ao serviço público”, segundo o Direito Administrativo, defendida em brilhante voto do Ministro A. Nogueira e que eu também esposei. No caso destes autos, não se trata de culpa por fato do serviço público, independentemente de culpa do agente ou representante do Estado. Aqui, temos escancarada, escandalosa e incontestável do juiz, reconhecida pela sentença e pelo v. Acórdão; culpa por negligência e ilegalidade, e que justificou a remessa dos autos à Corregedoria, para ajustar contas com o magistrado deslembrado de seus deveres e dos mandamentos da lei, senão até da caridade. Data venia, o v. Acórdão equivocou-se ao armar-se das lições de Waline. Este, como li e entendi, não sufraga a solução do eg. Tribunal de Minas Gerais. Como é bastante sabido, a maior parte dos casos de responsabilidade do Estado, na França, recai na competência do contencioso administrativo. O Conselho do Estado, órgão jurisdicional, administrativo, decide de indenizações pedidas em conseqüência de atos dos serviços públicos, o que lhe tem permitido construir, em decisões memoráveis à margem do Código de Napoleão, uma teoria da responsabilidade sob a égide do Direito Administrativo. Alguns casos, entretanto, são conhecidos pelos magistrados do Poder Judiciário. Entre eles, exatamente o da responsabilidade pelo dolo ou culpa grave dos juízes em suas funções. Vamos pela mão do próprio Waline: “Responsabilité de L´Etat du fait des services judiciaires, 1361 — Cette question ne concerne pas le Droit Administratif, puisque, par hypothèse, il s´agit de services non administratifs. Mais, traditionnellement, on l´annexe aux études de Droit Administratif.” (...) 404 Ministro Aliomar Baleeiro “Sans aller jusqu’à des hypothèses aussi extrêmes, qui ne sont cependant pas inimaginables, il peut y avoir eu des détentions préventives abusivement prolongées (...)” “Or, le principe traditionnel et constant, sauf exceptions, est l´irresponsabilité de l´Etat pour la mauvais fonctionnement du service de la justice.” (Droit Admin., 1959 n. 1361, pp. 771/2). Depois de mostrar a iniqüidade desse princípio, Waline cita uma das exceções por lei expressa: “D’autre part, depuis la loi du 7 février 1933 renforçant les garanties de la liberté individuelle, la responsabilité personnelle des magistrats peut être reconnue dans le cas de dol, fraude, concussion, mais également, et ceci est moins théorique, em cas de faute lourde professionnelle. Dans le cas où le magistrat aurait pu être pris à partie c’est-à-dire notamment dans le cas de faute lourde professionnelle, l´Etat est civilment responsable des condamnations prononcées contre ces magistrats; la victime a ainsi toujours um répondant solvable. L’Etat peut exercer un recours contre le magistrat. Naturellement, de telles actions, qui mettent en jeu da responsabilité des magistrats pour mauvais fonctionnement des services judiciaires sont de la compétence des tribunaux judiciaires: 31 mai 1935, Pollet, p. 642” (Waline, op. cit., n. 1.362, p. 772/3). Ainda o mesmo festejado escritor, em monografia especial sobre abusos dos juízes, acentua: “L’excés de pouvoirs ne consiste pas nécessairement en une extension arbitraire de ses attributions par le juge, ou en une faute grossière par laquelle il s’affranchit des règles fondamentales quil a le devoir d’observer dans l’exercice de ses fonctions. Ii y a en effet une irrégularité plus grave encore que de mal juger, c’est de ne pas juger du tout, de se refuser à exercer sa fonction, de dénier la justice aux plaideurs ou à la société elle-même. Aussi le déni de justice a-t-il été considéré, au cours de caractérisées de l’excés de pouvoirs.” (Waline, Notion Jurid. de l’Excès de Pouvoirs — l’Excès de pouvoirs du Juge — 1926, p. 184. Corrobora-o outro administrativista contratemporâneo de igual mérito: “La prise à partie est une procédure particulière prévue par les articles 505 et suiv, du Code de procédure civile qui permet de mettre en cause la responsabilité des magistrats et officiers de police judiciárie aux cas où ceux-ci se sont rendus coupables de dol, concussiòn, déni de justice ou faute lourde professionnelle. Cette procédure aboutit 405 Memória Jurisprudencial également à la mise en jeu de la responsabilité de l’Etat car, au cas de condamnation du magistrat, la loi du 7 février 1933 substitue automatiquement la responsabilité de l’Etat à celle du magistrat condamné.” (Laubadère, Droit Admin., 1957, n. 933 p. 494). Não ensinam outra coisa os civilistas franceses contemporâneos de prol. Por exemplo, H. Mazeaud e L. Mazeaud (Traité Respons. Civile, 4ª ed., 1947, I, n. 520, p. 494, ou na edição Mazeaud — André Tunc, tomo III, v. I, n. 2006-3) ou Savatier (Traité Resp. Civile, 1951, tomo I, n. 228, p. 290, e tomo II, n. 718, p. 306). Ou ainda Lalou, que, depois de repetir a lição dos autores já citados, acrescenta: “La faute lourde au sens du nouvel art. 505 - 1º C.Pr.Civ. n’implique pas nécessairement un manquement intentionnel ou même inexcusable au devoir professionnel; il suffit que le juge ait commis une négligence particullèrement grave (Rion, 23 mars 1938, DP 1938-2-93. Gaz Trib., 28-4-1938, et les conclusions de M. l´Avocat Géneral André Rous). “Pour cette raison, la prise à partie peut avoir lieu même pour erreur de droit, pourvu que cette erreur n´ait pas été commise dans le jugement lui même et qu´elle soit si grossière qu´un magistrat normalement soucieux de ses fonctions ne l´aurait pas commise (même arret)” (Lalou, Tr. Resp. Civ., 1949, n. 1.415, p. 809). Do mesmo modo, ensinam os processualistas franceses, como se vê em Juris — Classeurs de Procedure Civile, sobre o art. 505 do CPC, notadamente n. 96, 97, 98, 64 a 67, 78, 79-bis, etc. Coincide com o Cód. Proc. Francês o da Itália, no art. 55, 1º; “(...) il giudice é civilmente responsabile soltanto: 1) quando nell’ esercizio delle sue funzioni é imputabile di dolo, frode o concussione; 2) quando senza giusto motivo rifiuta, omette e ritarda di provedere sulla domanda delle parti e, in generale, di compiere um atto del suo ministero”. Mas essa disposição não previu a responsabilidade solidária do Estado, como o fez a Lei francesa de 7-2-1933, de sorte que alguns comentadores a excluem. O eminente Advogado, na sua magnífica defesa oral, aludiu ao Código de Processo francês. Desde o tempo de Napoleão, o Código de Processo da França (Code de Procedure) mandava responsabilizar pessoalmente o juiz e resguardava o Estado. Nos casos de culpa grave, denegação de justiça, dolo etc. Mas a lei de 7 de fevereiro de 1933, modificando o texto desse artigo, incluiu novos casos de responsabilidade do juiz, como no “prise à partie”, mandando que o Estado responda pela indenização e aja contra o juiz. 406 Ministro Aliomar Baleeiro Não houve, na Itália, uma lei como aquela de 7 de fevereiro de 1933, porém o Código de Processo Italiano manda responsabilizar o juiz. Todavia, há escritores que entendem que o Estado deva ser responsabilizado e eu me reporto no meu voto ao Novíssimo Digesto Italiano. Cito uma das opiniões mais valiosas, a lição dos nossos antecessores nesta Casa, o Ministro Mário Guimarães. Assim se pronunciaram Rocco, Salvatore Satta e Sergio Costa. Este, porém, adverte: “Tutavia, vedasi Alessi, in Foro Pad, 1957, I, 348, il quale, nel sostenere che l’attività colposa dell’ ufficialle giudiziario determina una responsabilità dello State, in forza del rapporto organico, sembra sostenere eguale tesi anche per il giudice” (Costa, Responsabilità del giudice, vb. no Novissimo Digesto Ital., 1957, XV, pp. 702/3). Note-se comentário do profesor colombiano H.D. Echandia: “Por lo general, los autores de derecho administrativo aceptan esta responsabilidad del Estado. Duguit considera que si bien el acto jurisdiccional es una emanación de la soberanía del Estado, “ella no se manifiesta de una manera más intensa en el acto jurisdiccional que en el acto administrativo”, y no hay razón para excluirla del primero. De la misma opinión es Philippe Ardant, y também Bielsa. Los autores brasileños siguen esta moderna doctrina, como observa Mario Guimaraes, para quien reconocer la indemnización en ciertos casos es una medida de justicia, porque si existe un servicio público organizado por la colectividad, y falla, el perjuicio que por ese motivo se cause a alguien no tiene por qué sufrirlo la víctima, y es natural que sea repartido entre toda la colectividad, siempre que con ello no se atente contra la cosa juzgada.” (Derecho Procesal Civil, 1966, p. 349). Creio que essa digressão pelo Direito Comparado guarda pertinência com o Direito pátrio e, conseqüentemente, com o caso dos autos. O Código de Processo Civil, no art. 121, declara civilmente responsável o juiz quando incorre em dolo ou fraude, ou quando, sem justo motivo, recusar, omitir ou retardar providências que deve ordenar ex officio ou a requerimento da parte. Dir-se-á, essa disposição é do Código de Processo Civil e estamos com um caso regulado pelo Código de Processo Penal. Mas o art. 121 do Código de Processo Civil permite que a parte interpele o juiz aos dez dias, não se esquecendo, todavia, primeiro, que a regra da responsabilidade pode ser invocada analogicamente por efeito do art. 103 do Código penal, ou por efeito do art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil. Em segundo lugar, ambos os textos, o do 407 Memória Jurisprudencial Código de Processo e o do Código Penal, são anteriores à Constituição de 1946, sob cuja égide ocorreu este caso. A Constituição atual, como a de 1946, manda que o Estado pague também. Por outro lado, o Juiz é “sempre” obrigado a consignar nos autos os motivos da demora na conclusão da instrução criminal (CPP, art. 402). E os prazos para os seus atos, quando não especificados de outro modo, estão previstos no art. 800 do Código de Processo Penal. Por motivo justo, poderá excedê-los apenas até igual tempo (art. 800, § 2º). E fica sujeito à pena da perda dos vencimentos por tantos dias quanto os do excesso (art. 801 do CPP). Merece menção o parecer da Procuradoria-Geral do Estado, nestes autos, à fl. 66, pelo subprocurador, que, quando Promotor, pediu a absolvição: “A responsabilidade do Estado não advém somente de erro judiciário, mas também de negligência judiciária. Negligentes foram aqueles funcionários que deixaram o Autor preso ilegalmente: o processo penal deveria estar concluído dentro de 81 dias e o foi depois de 3 anos, estando o então réu preso por decreto judicial.” O art. 194 da Constituição Federal de 1946 (art. 105 da Constituição Federal de 1967) tem o mesmo efeito da Lei francesa de 7-2-1933: o de estabelecer a responsabilidade do Estado, com a diferença de que, na França, ela é solidária e, no Brasil, direta, com regresso contra o agente público. Nem se diga que o Recorrente fez a “greve do cárcere”, defendendo-se mal, como se um pobre diabo num fim-de-mundo tivesse meios eficazes para chamar ao dever um juiz insensível à lei e ate à piedade cristã. Por essas razões suficientes — e que não são todas —, conheço do recurso e dou-lhe provimento, a fim de julgar a ação procedente, liquidando-se as perdas e danos na execução. Repito que este caso difere profundamente daqueles julgados nos RREE n. 32.518, de 1966, (na RTJ 39/190 ou RF 220/105) e 69.568/SP de 1970, nos quais o STF excluiu a responsabilidade por inexistência de culpa do juiz — culpa essa reconhecida no v. Ac. recorrido. Invoco os votos do Mestre Orosimbo na Apel. Civ. 7.873 (AJ 76/24) e no RE 15.728 (RF 133/416), citados pelo Dr. Cláudio Lacombe. Depois de feito este voto, tomei conhecimento do exaustivo estudo do Professor J. Cretella, na Revista da Faculdade de Direito de São Paulo, vol. 64, pp. 73/102 (1969), no mesmo sentido, que aqui defendo. 408 Ministro Aliomar Baleeiro Insisto em que os nobilíssimos Juízes estão diante dum problema grave, a merecer correta solução, segundo o ideal de justiça de nossa época, que não se compraz com a irresponsabilidade ilimitada duma categoria de agentes públicos. O tema vem sendo afrontado por monografias de prol da França, como as de Vedel, Bryoxi, Moreau, Lefas, Moritane de La Roque, Ardan, Morange e Debbash. O estudo deste último ostenta um título sugestivo para nós neste minuto: “Le juge administratif et le service judiciaire: vers um prochain passage de la timidité à l´audace”. É dessa timidez que nos devemos libertar. VOTO O Sr. Ministro Djaci Falcão: O recorrente propôs ação ordinária de indenização contra o Estado de Minas Gerais, fundado em que, processado por crime de emissão de cheque sem provisão de fundos, ficou sob custódia preventiva entre 1º de fevereiro de 1961 e 17 de fevereiro de 1964, quando foi absolvido a pedido da Promotoria Pública. Acrescenta que o processo, durante dois anos e nove meses, ficou paralisado, em mãos do Dr. Juiz de Direito da Comarca de Cristina, resultando desse injustificado e negligente retardamento a sua ruína financeira, eis que teve de abandonar o seu estabelecimento comercial — Casa N. S. Aparecida. No juízo de origem, o seu titular, após ressaltar os pressupostos da ação de responsabilidade civil da administração pública, ou seja, ato do funcionário em razão do ofício e nexo de causalidade entre o ato e o dano, desce à análise das provas, concluindo textualmente: “Portanto, bem claro está que a derrocada financeira do Autor não decorreu de sua prisão ou do tempo que nela permaneceu, da sua própria incapacidade de gerir sua casa comercial, embora contando com a colaboração de sua esposa e filhos. Por outro lado, o próprio Autor concorreu para a sua longa permanência na prisão, não podendo, pois, atribuir a culpa exclusiva ao Estado. Ao que parece, conforme lembram os contestantes na primeira ação (fls. 75 dos autos apensados), o Autor quis fazer a greve do encarceramento, em sinal de protesto, pois, apesar de estar em contato com seus familiares e advogados inclusive um irmão que lhe levou um advogado não reclamou, não requereu habeas corpus, não permitiu qualquer providência por parte de seus advogados e familiares, sendo que estava cônscio de seus direitos, mesmo por ser jurado, permanecendo no propósito de ficar na cadeia. E na ação intentada contra os seus credores que promoveram o processo crime, o autor agiu estranhamente. Assim é que, ele próprio, redigiu e subscreveu dos autos da ação (apensados) várias petições, com 409 Memória Jurisprudencial alegações, inclusive contra-razões de recurso, de fls. 150, 177, 182, 193, 199, 205, 206, 20-229, 232, 236, 330, 332, 342, 344-346; desentendeu-se com vários advogados, e suscitou suspeição contra o Juiz de Carmo de Minas e contra o Escrivão do 1º Ofício de Cristina (fls. 173 e 176 autos apensados). Afinal, a ruína financeira do Autor que já se manifestara muito antes, pela emissão de cheques sem provisão de fundos e protestos de duplicatas, não decorreu de demora de sua prisão e para a qual, próprio Autor concorreu conscientemente” (fl. 109). Arrimada nessas considerações, a sentença deu pela improcedência da ação (fl. 109v.). Em acórdão do egrégio Tribunal de Justiça de Minas Gerais, da lavra do ilustre Desembargador Assis Santiago, foi mantida a decisão de primeira instância. Na referida peça foi destacado que o Estado não é civilmente responsável pelos atos do Poder Judiciário, a não ser nos casos expressamente declarados em lei, porquanto administração da justiça é um dos privilégios da soberania. Assim, pela demora da decisão de uma causa, responde civilmente o Juiz, quando incorrer em dolo ou, fraude, ou, ainda, sem justo motivo, recusar, omitir ou retardar medidas que deve ordenar de ofício ou a requerimento da parte (art. 121 do Código de Processo Civil). Além disso, na espécie, não se trata de responsabilidade civil decorrente de revisão criminal (art. 630 e seus parágrafos do Código de Processo Penal). Entrando no âmago das provas, o respeitável aresto assinala que a ruína financeira do autor vinha de antes da queixa, com a emissão de cheque sem fundos e duplicatas protestadas. Para o devido exame da propriedade do apelo excepcional, impõe-se o conhecimento das seguintes passagens do julgado sob apreciação: “Aqui, contra o Estado, insiste o autor em querer a indenização pelo fato de ter-lhe sido decretada a prisão preventiva e de ter ficado encarcerado por mais tempo do que permite a lei, esgotado que foi o prazo para a formação da culpa. Não seria possível atendê-lo nem no primeiro nem no segundo aspecto de seu pedido, ainda que, no segundo, lhe abone a súplica o parecer da douta Procuradoria do Estado. Não foi a permanência do autor na prisão que lhe causou os danos, como também ela se deu por sua obstinação disse o juiz — pois que sua situação antes já era insustentável, como até mesmo porque houve de sua parte a greve de encarceramento. Não requereu habeas corpus, vencido o prazo, apesar dos contatos que tinha com o meio exterior à prisão. Diz o autor que isto não lhe fora possível, porque os seus pedidos não conseguiriam vencer a barreira que sobre ele se fechou, em decorrência da rígida incomunicabilidade inspirada 410 Ministro Aliomar Baleeiro pela influência política de seus perseguidores, com reflexo até mesmo na conduta do magistrado. Isto é, porém, fato que encontra desmentido no processo, pois que, pelo menos, duas pessoas o visitaram na prisão, sendo uma delas um Deputado Estadual, segundo os testemunhos nos autos. E não é crível que, pelo menos, o ilustre parlamentar, amigo do autor, tanto que o foi visitar, a perseguição que houvesse, por influência de poderosos, não tivesse providenciado a soltura do paciente de uma prisão tornada ilegal pelo excesso de prazo. Com razão, pois, acentuou Cunha Peixoto, à f. destes autos: se ele ficou preso por prazo superior, poderia ter requerido o habeas corpus, e se a tese vingar o Estado não pode prender mais ninguém, porque virá o pedido de indenização” (fls. 134 e 135). Esse o quadro que se nos apresenta neste recurso extraordinário, baseado na letra a do inciso III do art. 199 da Lei Magna, sob a alegação de negativa do disposto no art. 15 do Código Civil e de ofensa à regra inserida no art. 107 da Carta Política vigente. O eminente Relator, em seu erudito voto, após digressão pelo direito comparado, acolheu a pretensão do suplicante. O caso dos autos tocou-me a sensibilidade, diante do padecimento a que foi conduzido, por circunstâncias várias, o ora recorrente. Entrementes, na posição de julgador, não vejo, mesmo numa branda exegese do nosso direito positivo, como conhecer deste recurso extraordinário. Peço venia para discrepar do eminente Ministro Aliomar Baleeiro. Ao ver do recorrente teria havido desprezo ao princípio de responsabilidade civil e conseqüente dever de reparação, que defluem do art. 15 do Código Civil e do art. 107 do Estatuto Fundamental. Estou com o eminente Relator quando acentua os diversos estágios da evolução do conceito de responsabilidade civil do Estado, sobretudo depois do início do século XIX. É o que nos mostram Henri Mazeaud e Leon Mazeaud no seu Traité Theorique et Pratique de La Responsabilité Civile, Delictuelle et Contractuelle, (quatrième èdition, vol. III, pp. 4 e seguintes). De modo gradativo, no curso da história do direito, foi se diluindo o princípio da infalibilidade do soberano, óbice de maior monta à aceitação da responsabilidade civil do Estado. Se é princípio universal que toda lesão de direito deve ser reparada, e, por outro lado, dentre as funções do Estado destaca-se a de tornar efetivo o direito, não seria justo instituir em seu favor uma imunidade absoluta. Aos poucos, com a distinção de atos jure imperii e atos jure gestionis, seguida da sua abolição, veio a se afastar de todo o dogma da irresponsabilidade da Administração Pública. Assim ganhou projeção o princípio da responsabilidade civil do Estado, seja fundado na teoria da “culpa”, quer na denominada do “acidente administrativo” ou da “falta impessoal do serviço” ou ainda da teoria do “risco administrativo”. Seja como for, o Estado, em resguardo do equilíbrio econômico afetado pelo dano, e da estabilidade da própria sociedade, deve autolimitar-se. A absoluta irresponsabilidade do Estado é fato do passado, que foge até às razões da eqüidade. 411 Memória Jurisprudencial Entre nós, ao tempo da Constituição de 1891, a responsabilidade era do próprio funcionário público (art. 82). Apesar do texto constitucional, o Supremo Tribunal Federal teve oportunidade de acolher responsabilidade civil do Estado (Constituição Federal comentada, 1902, p. 355, João Barbalho). Com o art. 15 do Código Civil, veio a prevalecer o princípio da responsabilidade civil das pessoas jurídicas de direito público, com ressalva do princípio da regressividade. Fixado o princípio da solidariedade na Carta Política de 1934 (art. 171), o constituinte de 1946 restabeleceu o princípio de regressividade (art. 194, parágrafo único). Atualmente continuam de pé os princípios da responsabilidade civil do Estado e da regressividade, consoante se percebe das seguintes disposições da Carta básica: “Art. 107. As pessoas jurídicas de direito público responderão pelos danos que seus funcionários, nessa qualidade, causarem a terceiros. Parágrafo único. Caberá ação regressiva contra o funcionário responsável, nos casos de culpa ou dolo”. Impõe-se a responsabilidade da pessoa jurídica de direito público quando funcionário seu, no exercício das suas atribuições, ou a pretexto de exercê-las, cause dano a outrem. À pessoa jurídica responsável pela reparação é assegurada a ação regressiva contra o funcionário, se houve culpa de sua parte. Assim, é fora de dúvida a responsabilidade do Estado, em razão de danos causados por funcionários administrativos. Porém, quando se cogita da responsabilidade do Estado em virtude de ato jurisdicional, a quaestio jure assume feição polêmica na doutrina, e mesmo na jurisprudência. No caso concreto, como ficou explícito no relatório, as decisões nas instâncias ordinárias seguiram a diretriz predominante na jurisprudência pátria, ou seja, a de que a responsabilidade do Estado por ato judicial somente se verifica quando prevista em lei, como se dá na hipótese da revisão criminal julgada procedente, e em que se reconhece ao interessado o direito à indenização pelos prejuízos sofridos (§ 1º do art. 630 do Código de Processo Penal). Ademais, o acórdão recorrido acentuou a responsabilidade pessoal do juiz, prevista no art. 121 do Código de Processo Civil. Tenho como ponderáveis as considerações aduzidas pelo eminente Relator do presente recurso, sobretudo quando reconheço o alargamento do conceito da responsabilidade civil do Estado e, por outro lado, vejo o irrealismo da responsabilidade civil do juiz (art. 121 do Código de Processo Civil). Tenho-as como úteis ao direito constituendo. Porém, no caso concreto, a decisão impugnada cingiu-se a emitir um juízo interpretativo, não só razoável, por encontrar apoio de juristas do porte de Carlos Maximiliano (Comentários à Constituição Brasileira de 1946, 4ª edição, vol. III, p. 260), dentre outros, mas que afina com a jurisprudência predominante (como, por exemplo, o RE 35.500, Rel. Ministro Vilas Boas, in Rec. For. 194/ 159 e 160; e o RE 35.518, Rel. Ministro Vilas Boas, in Rec. For 220/105 a 111). É, aliás, o que reconhece o ilustre advogado dativo, no memorial que apresentou aos juízes desta Corte. 412 Ministro Aliomar Baleeiro Dessarte, palpável é a ausência do pressuposto da negativa de vigência, ainda que implícita ou virtual da regra consubstanciada no art. 15 do Código Civil, não ocorrendo, a par disso, ofensa ao art. 105 da Lei Magna. E, vale lembrar, o recurso baseia-se apenas na alínea a da norma constitucional adequada. Além disso, há de se considerar que as decisões nas instâncias ordinárias se fundaram também na afirmação de que o autor, ora recorrente, permaneceu na prisão por obstinação, assim como de que a sua ruína financeira antecedeu à custódia preventiva. Foram afastados o dano e o nexo causal. Certas ou erradas, essas duas conclusões envolvem apreciação de elementos de fato, insuscetíveis de reexame no âmbito restrito do recurso extraordinário. (Sumula 279) Com essas singelas considerações, preliminarmente, não conheço do recurso. PELA ORDEM O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): Peço a palavra, Sr. Presidente. Não é meu hábito replicar aos votos que divergem do meu. Mas, só há progresso do direito nos debates, e só podemos buscar a verdade aqui, fazendo o contraste de nossas opiniões e dando nossa impressão sobre os atos. O eminente Ministro Djaci Facão trouxe aqui a doutrina do Tribunal de Minas Gerais de que esse homem estava em má situação financeira, tanto que tinha títulos protestados quando foi preso. O Sr. Ministro Djaci Facão: Não foi a doutrina do Tribunal de Minas. Apenas lembrei os fatos que estão nos autos e que podem ser objeto de verificação. E, na aferição da prova, a justiça local é soberana. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): Mas referiu o Tribunal de Minas. Esse homem tinha uma casa de comércio. O Sr. Ministro Djaci Facão: Não discuto isso. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): Foi o voto que V. Exa. transcreveu. Ora, esse homem, sua mulher e seu filho tinham uma casa de comércio, que podia estar insolvente, ou em situação de impontualidade, de iliquidez de caixa. Poderia, estando em situação ilíquida, recobrar-se. Há inúmeros casos de firmas que passaram por vicissitudes e escaparam. Podia ter títulos protestados. Isso me lembro um fato com o Banco do Brasil, cuja importância na vida econômica do País não preciso ressaltar. O Banco do Brasil uma vez foi ameaçado de protesto de cheque pelo Governador Carlos Lacerda. Foi preciso até intervenção política junto ao Governador, para não promover medidas drásticas contra o Banco. Houve outro caso aqui, de R.A. Azeredo, no qual a indenização a que foi condenado o Banco do Brasil era maior do que o seu capital. 413 Memória Jurisprudencial Portanto, isso não prova que não assiste direito a esse homem de ser indenizado, porque levou 2 anos e 9 meses, pelo menos, sem falar nos três de prisão, impossibilitado de exercer qualquer atividade econômica e de olhar por seus interesses, porque um juiz desidioso, relapso, reteve os autos em casa. Estamos a dizer aqui: por que ficou preso? Por que não saiu da prisão? Por que não requereu habeas corpus? Tudo isso é muito bonito, aqui, mas não para quem se viu preso num canto longínquo do sertão. Esse homem se improvisou em advogado. O eminente Ministro Djaci Falcão leu as peças dos autos. Na capa, está um memorial do próprio punho dele. O Sr. Ministro Djaci Facão: Membros do Poder Legislativo estadual foram lá, interceder em seu favor. É o que está nos autos. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): Vários deputados estiveram lá, mas ninguém conseguiu tirá-lo da cadeia, nem arrancar os autos do Juiz. O Promotor diversas vezes pediu os autos, mas o Juiz não deu. Não afirmo que houvesse contemplação partidária local. Não levantei essa tese. Reconheceu o Tribunal de Minas que houve culpa e mandou responsabilizar o Juiz. Se um homem fica preso dois anos e nove meses, há presunção de que sofreu prejuízo. Não quero dizer que a casa dele afundou ou não. O que digo é que tem que ser reparado o prejuízo, que ele tem direito a uma indenização, como preferiu o Dr. Procurador-Geral da República, e serão apuradas as perdas e danos na liquidação. O direito que lhe reconheço é saber se, na realidade, ele teve perdas e danos, porque ficou dois anos e 9 meses na prisão. O que reconheço é o direito dele, diante de uma culpa que o Tribunal de Minas foi o primeiro a proclamar. VOTO (Reiteração) O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Presidente e Relator): Fui Relator desse processo e já o discuti, inúmeras vezes, na Turma, e creio que no Pleno. Mantenho meu voto, que era pelo conhecimento e provimento do recurso, porque acredito que o Estado tenha o dever jurídico e até ético de indenizar os danos que cause aos particulares pela desídia, pela culpa, ou pelo dolo dos seus juízes. Para mim, eles são tão servidores públicos, funcionários, agentes públicos de que trata o art. 15 do Código Civil, quanto quaisquer outros. O v. acórdão recorrido, do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, coloca o problema em termos de direito, havendo apenas de um ou de outro juiz uma referência aos fatos. O Tribunal de Justiça nega a responsabilidade do Estado 414 Ministro Aliomar Baleeiro pelos atos do juízes. Considera que responsabilizar o próprio juiz ou o Estado pela sua desídia ou pela sua inexação no cumprimento do dever teria como conseqüência comprometer a independência da magistratura. O Código de Processo tem aquelas limitações de mandar interpelar antes, etc., etc. Eu me baseei na legislação francesa de 1933, que modificou o velho Código de Processo e que manda o Estado indenizar quando o juiz, por culpa grave, faute lourde, causa prejuízo aos particulares, em várias hipóteses, que são exemplificativas, evidentemente, como dolo e desídia. O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Só que, no Brasil, não se fez uma lei como a que foi feita na França, em 1933. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Presidente e Relator): Para mim, bastam os arts. 15 do Código Civil e 107 da Constituição atual, que repete, no assunto, as anteriores. No caso concreto, o juiz levou quase três anos com um processo em casa, enquanto o réu permanecia no calabouço, indefeso, e, até pela sua própria situação financeira, não poderia custear os serviços de um patrono. Acho que o Estado tem o dever de manter uma Justiça que funcione tão bem como o serviço de luz, de polícia, de limpeza ou qualquer outro. O serviço da Justiça é, para mim, um serviço público como qualquer outro. Data venia do eminente Sr. Ministro Luiz Gallotti, cujo voto é brilhantíssimo, neste caso, acho que há lei, há o próprio Código Civil que manda, pelo art. 15, responder o Estado pelas faltas dos seus agentes; e há o art. 194 da Constituição de 1946 igual ao art. 107 da Constituição de 1969. O Sr. Ministro Amaral Santos: Distingue o funcionário público. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Presidente e Relator): Não posso distinguir onde o texto não distingue. Para mim, o juiz é um funcionário público. O Sr. Ministro Amaral Santos: Há várias categorias de funcionários. O juiz é regulado por legislação completamente diversa daquela dos servidores públicos. O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Presidente e Relator): Em sessão recente, manifestei o meu ponto de vista, a minha convicção, e não quero convencer ninguém. Meu voto está nos autos e já há três votos contrários a ele. Acredito que, um dia — que desejo não seja longínquo —, se o legislador retardar a sua ação, o Supremo Tribunal Federal cumprirá um dos seus deveres, que é o de preencher a lacuna das leis, e dê ao caso, dentro do espírito de conjunto das regras do sistema, uma solução para casos tristíssimos como este. Reitero meu voto, conhecendo do recurso e lhe dando provimento. 415 Memória Jurisprudencial RECURSO EXTRAORDINÁRIO 79.253 — SP Relator: O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro Recorrente: Banco Brasileiro de Descontos S.A. — Recorrida: Prefeitura Municipal de Pindamonhangaba Horários de bancos. Competência municipal. Prevalece a legislação federal sobre a municipal na limitação ou fixação do horário de funcionamento de estabelecimentos bancários, em relação aos quais o interesse nacional é maior que o “peculiar interesse local” (Pleno, RE 77.254, de 20-2-74; RMS 11.291, de 12-6-73). ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por unanimidade de votos, conhecer e dar provimento ao recurso. Brasília, 11 de outubro de 1974 — Oswaldo Trigueiro, Presidente — Aliomar Baleeiro, Relator. RELATÓRIO O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): 1. O Presidente Geltil C. Pinto, em seu despacho de deferimento, bem resume a questão, à fl. 121: “No Município de Pindamonhangaba promulgou-se a Lei n. 1.302/ 72 que fixou o horário para o atendimento ao público dos estabelecimentos bancários entre 9 e 16 horas. O Banco Brasileiro de Descontos S/A, inconformado, impetrou segurança sob a alegação de que essa lei municipal ofende diplomas federais reguladores das atividades bancárias. Saiu vencido nas duas instâncias. Irresignado, ingressou com o presente extraordinário, arrimando-se no artigo 119, III, letras a, c e d, da Constituição da República. Argumenta que o julgado afronta o artigo 8º, item XVII, letra l,da Lei Maior; artigo 4º, item VIII, da Lei Federal n. 4.595; a Lei Federal n. 4.173; o Decreto-Lei n. 546, de 18-4-1969 e os artigos 224, § 2º e 225 da Consolidação das Leis do Trabalho, bem como diverge da jurisprudência de outros tribunais do País (RT 348/482, 361/371 e doc. anexo). Houve impugnação e a ilustrada Procuradoria-Geral opinou pelo indeferimento do recurso. 416 Ministro Aliomar Baleeiro Não se pode considerar vulnerado o dispositivo constitucional que restringe à União o direito de legislar sobre a política de crédito, câmbio e comércio exterior. Trata-se de norma de caráter geral, visando aos superiores interesses do país e só remotamente se poderia admitir que o horário de funcionamento de estabelecimentos bancários pudesse influir na orientação financeira federal. Perfeitamente razoável, entretanto, a argüição de vulneração dos demais diplomas que disciplinam o funcionamento dos bancos e estabelecimentos congêneres. Realmente, a expressão ‘funcionamento’, inserta no item VIII do artigo 4º da Lei n. 4.595, inclui não só o modo de as agências bancárias realizarem as sua tarefas, como também o horário de atendimento ao público. Também o fato de o artigo 1º da Lei n. 4.178 impedir o funcionamento dos bancos aos sábados, em expediente externo e interno, pode-se tirar a conclusão de que a União reservou para si a total regulamentação dessa matéria. Saliente-se, ao propósito, que a Colenda Suprema Corte, ao menos em dois julgados (Recursos Extraordinários n. 55.180 e 76.993), já sufragou a tese defendida pelo recorrente. Finalmente, depara-se o dissídio pretoriano. Contrariamente ao acórdão recorrido, decidiram os julgados de outros ´Tribunais, invocados, que a lei federal prevalece sobre a municipal que restrinja o horário bancário fixado naquela.” 2. À fl. 151, parecer contrário do Dr. Fernandes Dantas, pela ProcuradoriaGeral da República, argumentando: “Em casos semelhantes (RE 77.006, 77.119, 77.254, 77.793, 77.810 e 78.460), quase todos já providos, o mesmo recorrente de agora vem obtendo adesão desta Procuradoria-Geral, em tema tão somente de que a lei municipal não pode estabelecer horário que contrarie os limites do art. 224 da CLT. 3. No caso dos autos, porém, a malsinada lei municipal (fl. 13) não prescreveu, como aquelas de que cuidaram os recursos acima citados, um horário certo para o expediente externo dos bancos. Cingiu-se apenas a balizar o período entre 9 (nove) e 16 (dezesseis) horas, para nele os bancos organizarem o seu expediente de atendimento ao público. Dentro desse período, os bancos terão plena liberdade para a estipulação das horas normais de trabalho que o aludido artigo da Consolidação determina como limite. 417 Memória Jurisprudencial 4. Vê-se, portanto, a plena distinção entre os casos submetidos a esse Excelso Pretório, e dela a sem-razão do recorrente na presente hipótese, que em nada conflita com a invocada disposição da lei federal”. É o relatório. VOTO O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): I - Desde as Constituições anteriores, aos municípios foi assegurada a autonomia quanto à matéria de seu peculiar interesse. Parece-me que “peculiar”, na cláusula constitucional, deve ser entendido como “exclusivo” ou “preponderante” interesse. Ninguém disputará ao Governo municipal a atribuição de regular a que horas se entregará o leite às portas, coletará o lixo, serão acesas as lâmpadas públicas ou que espécies botânicas serão preferidas para a arborização das ruas, etc. II - Mas o “peculiar” interesse local há de ceder ao “maior” interesse do Estado-Membro ou da União. Depois que a nossa República passou a chamar-se de “federativa”, por amarga ironia, a autonomia local — seja a do Estado-Membro, seja a do Município — vem sendo metida num colete de aço, que o legislador federal pode apertar com larga discrição. Se era inexato nas Constituições anteriores, poder-se-ia dizer que, hoje, direito federal corta direito local em quase tudo. III - A atividade bancária, pela sua conexão com os problemas de moeda, crédito, inflação, câmbio, balanço de pagamentos, etc., está comandada discricionariamente por órgão da União, o Banco Central. O horário dos bancos, que não é assunto exclusivo do Direito Trabalhista, deve ser isócrono no País, em cujo território as empresas desse gênero se expandem em vasta rede de estabelecimentos ou agências que, pelo telefone e pelo telex, se comunicam com as matrizes e lhe cumprem instruções e ordens, muitas das quais derivadas do Banco Central. Este tanto pode deliberar, a qualquer momento, um feriado bancário, quanto pode prorrogar o horário de todas as agências bancárias até meia-noite, como já fez, para recebimento de declarações de imposto de renda. Se for permitido a Pindamonhangaba restringir a duração de horários de bancos, como fez, ou ordenar-lhes que interrompam as atividades às 16 horas, Camamú poderá restringir ainda mais aqueles horários e determinar que os guichês desçam as grades às 15h30. Nenhum estabelecimento da mesma rede bancária nacional poderá efetuar um pagamento por meio de outro estabelecimento congênere, na praça de Pindamonhangaba, às 16h15, porque a edilidade não quer. O interesse nacional mais relevante do Brasil todo curvar-se-á àquilo que o próspero município paulista erigiu em seu “peculiar interesse”. 418 Ministro Aliomar Baleeiro A lei, penso, tem um alcance prático de realizar o máximo de potencialidades nacionais. El rey de Portugal, a 12.000 km de distância, teve de cometer a cada Senado da Câmara no Brasil poderes de ordenar aos almotacés a hora de abrir e fechar a padaria na vila sem banco. Hoje, o ato do Príncipe já não necessitará de delegar tanto arbítrio à vereança. A técnica de comunicações melhorou muito e as relações econômicas rápidas nos negócios intermunicipais, interestaduais e internacionais exigem que o interesse peculiar dum município só deixe sobreviver o interesse geral de todos os outros municípios que constituem a Nação. IV - Conheço do recurso e dou-lhe provimento. Não o obsta, mas o prestigia, a Súmula n. 419, que se dirige genericamente ao “horário do comércio local”, e que ressalva: “desde que não infrinjam leis estaduais ou federais validadas”. Tenho como válidos os diplomas federais pertinentes, citados pelo Recorrente. Invoco o precedente do RE 77.254/SP, Pleno, 20-2-74, Relator Djaci Falcão, caso rigorosamente igual, com a seguinte ementa: “Duração do trabalho em estabelecimento bancário. Competência prevalente da União para legislar sobre a matéria (art. 8º, XVII, letra b, in fine, da Constituição Federal). Horário fixado em lei municipal com afronta ao disposto nos arts. 224 e 225 da CLT. Súmula 419. Recurso extraordinário provido”. Neles estão citados os RE 55.180 e 55.413, E. Lins; RMS 14.635, P. Chaves; RE 68.425, Thompson; 76.993, Falcão; REs 77.006 e 77.119, Bilac. Lembro ainda precedente mais antigo: o RMS 11.291, Gonçalves, 12-61963, Ap. 149 do DJ de 8-8-63, p. 645. EXTRATO DA ATA RE 79.253/SP — Relator: Ministro Aliomar Baleeiro. Recorrente: Banco Brasileiro de Descontos S.A. (Advogado: Armando Rodrigues Arsenço). Recorrida: Prefeitura Municipal de Pindamonhangaba (Advogado: João Laert Salles). Decisão: conhecido e provido, unanimemente. Presidência do Ministro Oswaldo Trigueiro. Presentes à sessão os Ministros Aliomar Baleeiro, Djaci Falcão, Bilac Pinto, Rodrigues Alckmin e o Dr. Oscar Corrêa Pina, Procurador-Geral da República substituto. Brasília, 11 de outubro de 1974 — Alberto Veronese Aguiar, Secretário. 419 Ministro Aliomar Baleeiro ÍNDICE NUMÉRICO Rp 654 (voto) Rp 861 (voto) Rp 864 Rp 909 RMS 13.239 (voto) RMS 14.624 MS 15.886 MS 16.512 RMS 18.534 RMS 18.742 (voto) RE 32.518 RE 39.296 (voto) RE 45.255 RE 45.511 (voto) RE 45.977 RE 46.617 (voto) RE 49.286 (voto) RE 52.598 (voto) RE 58.356 (voto) RE 60.175 RE 60.964 (voto) RE 62.731 RE 63.026 (voto) RE 64.333 (voto) RE 64.624 RE 67.653 (voto) REC 69.528 (voto) RE 69.784 (voto) RE 70.121 RE 79.253 Rel.: Min. Vilas Boas ......................................... 201 Rel.: Min. Oswaldo Trigueiro .............................. 205 Rel. p/ o ac.: Min. Thompson Flores .................... 213 Rel. p/ o ac.: Min. Rodrigues Alckmin.................. 221 Rel.: Min. Aliomar Baleeiro ................................ 228 Rel. p/ o ac.: Min. Aliomar Baleeiro ..................... 229 Rel.: Min. Victor Nunes ..................................... 238 Rel.: Min. Oswaldo Trigueiro .............................. 262 Rel. p/ o ac.: Min. Aliomar Baleeiro ..................... 278 Rel. p/ o ac.: Min. Aliomar Baleeiro ..................... 296 Rel. p/ o ac.: Min. Vilas Boas .............................. 299 Rel.: Min. Victor Nunes ..................................... 314 Rel.: Min. Prado Kelly ....................................... 316 Rel.: Min. Aliomar Baleeiro ................................ 317 Rel.: Min. Aliomar Baleeiro ................................ 318 Rel. p/ o ac.: Min. Eloy da Rocha ........................ 322 Rel.: Min. Aliomar Baleeiro ................................ 323 Rel.: Min. Aliomar Baleeiro ................................ 324 Rel. p/ o ac.: Min. Evandro Lins .......................... 324 Rel.: Min. Aliomar Baleeiro ................................ 331 Rel.: Min. Aliomar Baleeiro ................................ 335 Rel.: Min. Aliomar Baleeiro ................................ 336 Rel. p/ o ac.: Min. Aliomar Baleeiro ..................... 367 Rel.: Min. Aliomar Baleeiro ................................ 370 Rel.: Min. Aliomar Baleeiro ................................ 371 Rel.: Min. Aliomar Baleeiro ................................ 373 Rel.: Min. Amaral Santos ................................... 375 Rel.: Min. Djaci Falcão ...................................... 379 Rel. p/ o ac.: Min. Djaci Falcão ........................... 387 Rel.: Min. Aliomar Baleeiro ................................ 416 421