A PARTICIPAÇÃO DE GUSTAVO FERNANDO KUHLMANN NA EDUCAÇÃO MATO-GROSSENSE (1910-1916) Elizabeth Figueiredo de Sá Universidade Federal de Goiás RESUMO Gustavo Fernando Kuhlmann,educador paulista, mudou-se para Cuiabá juntamente com seu colega de classe, Leowigildo Martins de Mello, à convite do vice-presidente do estado de Mato Grosso, Coronel Pedro Celestino Corrêa da Costa, para juntos reorganizarem a instrução pública através da elaboração de um novo Regulamento; da criação e implantação da Escola Normal; e, implantação e organização de dois grupos escolares na capital. Este texto procura resgatar as ações educacionais do professor Gustavo Kuhlmann com o objetivo de desvendar as representações de educação materializadas em suas ações educativas em Mato Grosso. Para tal, foram utilizados relatórios, ofícios, regulamentos e periódicos localizados no Arquivo Público de Mato Grosso e no Acervo da Casa Barão de Melgaço. O recorte temporal (1910-1916) devese ao período que Kuhlmann atuou na educação mato-grossense. Através desta pesquisa foi possível concluir que, embora a pouca idade e experiência profissional, Kuhlmann procurou imprimir na educação da infância mato-grossense, os saberes e valores necessários para a formação do cidadão republicano. Palavras-chave: Educação mato-grossense – Gustavo Kuhlmann – Grupos Escolares Gustavo Kuhlmann nasceu na cidade de São Paulo em 1890. Filho de pais imigrantes cresceu em um lar extremamente envolvido com o discurso modernizador republicano. Seu pai, Alberto Kuhlmann, como engenheiro participou ativamente da urbanização da cidade de São Paulo; como deputado estadual, participou da 1ª Constituição do Estado de São Paulo em 1891; e, como jornalista, trabalhou para alguns jornais, tais como O Estado de São Paulo com o pseudônimo G. Sandt. Seguindo os passos do seu irmão Guilherme Kuhlmann, cursou a Escola Normal da Praça da República formando-se em 1909, perto de completar seus 20 anos. À convite do governo de Mato Grosso e por indicação de Oscar Thompson, Diretor da Instrução Pública de São Paulo, foi para Mato Grosso, juntamente com seu colega de classe Leowigildo Martins de Mello, em missão para reorganizar o ensino, implantar e organizar a Escola Normal e os grupos escolares. Vale ressaltar que, na Primeira República, viagens de estudo e empréstimo de técnicos paulistas para a remodelação escolar de outros estados eram comuns, tendo em vista que da conjunção Escola Normal, Grupo Escolar e “método intuitivo”, resultou o modelo escolar que foi exportado para os outros estados do país ( CARVALHO, 2000). Este texto procura resgatar as ações educacionais do professor Gustavo Kuhlmann com o objetivo de desvendar as representações1 de educação, materializadas em suas ações educativas em Mato Grosso. Para tal, serão utilizados relatórios, ofícios, regulamentos e periódicos, localizados no Arquivo Público de Mato Grosso e no Acervo da Casa Barão de Melgaço. O recorte temporal (1910-1916) deve-se ao período que Kuhlmann atuou na educação mato-grossense. Os pensamentos pedagógicos e ações educativas de Kuhlmann Gustavo Kuhlmann chegou a Cuiabá no dia 1º de agosto de 1910, aos 20 anos de idade na companhia do seu colega de classe, Leowigildo. Não temos relato dos seus sentimentos quando chegou à capital, mas não é difícil imaginar o seu primeiro olhar à volta, suas expectativas, suas angústias. Cuiabá era uma cidade bem pacata, com casas de adobe, grande parte caiada de branco, bondes puxados a burro e lamparinas de querosene; que pintavam um quadro bucólico de cidade de interior, bem diferente da sua cidade de origem. A cidade, formada irregularmente, segundo as necessidades e os caprichos dos antigos mineiros é dividida em dois distritos e conta com 24 ruas, 1 praça e 28 travessas, sendo a Rua Barão de Melgaço, a mais extensa, com quase três quilômetros; existem alguns edifícios públicos e particulares de feição moderna, dois elegantes jardins situados nas praças Coronel Alencastro e Marquez de Aracaty, uma linha de transways (bonde puxado a burro) com o ramal para o Matadouro e outro mais de um quilômetro para a fábrica de cerveja (ALBUM, 1914, p.320). Na educação, não se via muitos investimentos, salvo as constantes (re)elaborações de novos regulamentos da instrução pública. Só havia uma modalidade de ensino público primário: a escola isolada, onde um só professor ministrava aulas para um grupo de até 60 alunos, de idades e fases de aprendizagem variadas. Este professor era responsável tanto pelo ensino, como pela organização e administração da escola. 1 Segundo Chartier (1990), as representações são práticas culturais, isto é, formas de pensar a realidade e construí-la. Logo que chegaram à capital, Kulhmann e Mello fizeram visitas às escolas para diagnosticar como se encontrava a educação. Em relato, Mello afirmou que “nada havia que aproveitasse, - tudo estava por fazer” (MELLO, 1911). Tal veredicto tinha como referência o modelo escolar que eles observaram e vivenciaram através das aulas práticas na Escola Modelo que funcionava anexa à Escola Normal, organizada nos moldes da escola graduada. A falta de prática pedagógica nos demais modelos escolares (escolas isoladas e reunidas) tornava a observação bastante tendenciosa. Com o objetivo de modernizar a educação do Estado, Kuhlmann e Mello dedicaram-se na instalação e organização da Escola Normal e dos grupos escolares na capital2. Concomitantemente, investiram na reorganização do Regulamento da Instrução Pública (1910), considerado pela sociedade como “a revolução do ensino” (MARCILIO, 1963). O vice-presidente de Mato Grosso, Coronel Pedro Celestino, indicou o nome de Kuhlmann para assumir a direção do Grupo Escolar do 2º distrito, ficando este responsável pela sua instalação e organização. Em discurso, Kuhlmann expressa os seus sentimentos na participação efetiva da ação educativa naquele Estado: Concidadãos! Quando as circumstancias felizes me proporcionaram o ensejo de vir cooperar na grandiosa obra de reorganização da instrução pública neste recanto da Pátria Brazileira, foi com imensa e sincera satisfação que soube da creação previa dos aparelhos escolares indispensáveis a tão arrojada quão patriótica empreza. Já se achavam fundados nesta capital dois grupos escolares cabendo-me a honrosa tarefa de instalar, organizar e dirijir o do 2º distrito. (...) Digo nossa Instrução sim, porque me orgulho de pertencer a MatoGrosso pelos laços sublimes de um salutar afeto; digo nossa Instrução, sim, porque me enobreço ao ligar-me a essa inspiração superior dos nossos governos; digo nossa Instrução, sim, porque sou solidário incondicional com esta realização pratica que hoje mais uma vez se assinala (KUHLMANN, 1914, p.21). Em discurso proferido no lançamento da pedra fundamental do Grupo Escolar do 2º distrito (05 de abril de 1913), ele não deixou de expressar a sua convicção de ser o grupo escolar um signo do que seria uma escola de verdade (TYACK, CUBAN, 1999). Expressou, também, a sua convicção de que a educação/instrução é o “alicerce fundamental de tudo, eis a primeira pedra da organização pacífico-industrial, eis o elo supremo que une a Família a Pátria e a Humanidade na suprema idealização da Fraternidade Universal” (KUHLMANN, 1914, p. 22). Kuhlmann, como “republicano 2 Os grupos escolares criados desde 1908, através da Lei nº 508. convicto” que afirmava ser, acreditava no poder da educação para transformar os indivíduos e a sociedade. Sendo assim, a escola primária era concebida como um local indicado para operar a regeneração moral e formar cidadãos. Para os intelectuais liberais, a atividade de ensino representava uma ação civilizadora, uma vez que, ao se erradicar a ignorância, introduzir-se-ia o povo no mundo do conhecimento, das luzes, da capacidade de atuar ativamente na sociedade, na produção de riquezas e na vida política. Nenhum progresso social era possível sem a difusão do ensino (SÁ, 2007). Nesse sentido, Kuhlmann ressaltou a importância e a inter-relação existente entre os saberes estudados nos grupos escolares, organizados de forma coerente, através do método intuitivo, voltados para o mesmo objetivo: a formação moral dos “futuros cidadãos”: Sim, principal serviço, porque é na escola que os futuros cidadãos aprendem lojica na matemática, observação na astronomia, esperimentação na física, nomenclatura na química, comparação toxonomica na biolojia, filiação histórica na sociolojia e construção na moral. Sem lojica não há observação, sem observação não pode haver nomenclatura, sem nomenclatura não há comparação, sem comparação não há filiação histórica, sem filiação histórica não há construção. Assim também, sem matemática não há astronomia, sem astronomia não há física, sem física não há química, sem química não há biologia, sem biologia não há sociologia, nem política, portanto, sem sociologia não há moral. E sem moral, preclaros cidadãos, não pode haver Liberdade, Igualdade, Fraternidade. Não pode haver Ordem nem Progresso, não pode haver civismo, não pode haver cousa alguma! (KUHLMANN, 1914, p. 22). A formação moral da criança era um tema presente nos discursos e publicações de Kuhlmann. Seguindo os passos de seu pai, atuou como jornalista, para divulgar as concepções sobre a educação republicana. Escrevia para os jornais O Republicano e A Reacção, dos quais era o diretor, e, para o jornal O Debate. Para o público infantil publicou o jornal mensal O Amiguinho (1912) e editou, também, um livro de poesias com o título Bondade e Pátria, aprovado pelo Conselho Superior da Instrução Pública (1915) para ser adotado nas escolas primárias na formação moral e cívica das crianças. Neste livro 3, todas as 42 poesias estão voltadas para o amor à pátria, à escola, ao próximo. São elas: “A humanidade”, “Fraternidade Universal”, “A lei”, “O sangue de Tiradentes”, “Patriotismo”, “A luz”, “O pensamento”, “Por que devo ser bom”, “Por que devemos estudar”, “História de Lucio”, “Criancinha”, “Passarinho amigo”, “O 3 O livro Bondade e Pátria foi reeditado pela Cia Melhoramentos de São Paulo em 1921. canto dos passarinhos”, “Descoberta do Brazil”, “Liberdade”, “Um sonho”, “O trabalho”, “Os indígenas”, “14 de julho”, “José Bonifácio”, “Meu patriotismo”, “Meus deveres”, “República”, “Benjamim Constant”, “Sou livre!”, “A escola”, “O coração”, “Bandeira Nacional”, “Ordem e Progresso”, “A bandeira”, “As cores”, “Acanhamento”, “O velhinho”, “O lar”, “As plantas”, “Um pedaço de pão”, “As flores”, “Falladoras” e “Apello”. No início, Kuhlmann faz algumas observações para que o professor trabalhe a poesia utilizando os sentidos e ressalta a importância de explicar sobre os fatos históricos e científicos, propondo novos exercícios sobre o assunto (KULHMANN, 1921). Kuhlmann e Mello planejaram alguns “horários especiais”, com os saberes distribuídos ao longo de todos os anos e encaminharam para serem aprovados pelo vicepresidente do estado. Esclareceram que os horários foram planejados a lume do que estava acontecendo em São Paulo, tendo o objetivo de tornar freqüente e direta a relação entre mestres e alunos e, distribuir os trabalhos de forma tal que os alunos estivessem constantemente ocupados (KUHLMANN, MELLO, 1910). O horário adequado, na concepção dos professores paulistas, deveria observar alguns preceitos pedagógicos que dizem respeito à ordem, à extensão e ao desenvolvimento das lições. O primeiro preceito determinava a necessidade de reservar o primeiro período das aulas para as disciplinas que, segundo eles, requisitam maior esforço de atenção do aluno. Desse modo, as áreas da Matemática, compreendendo a Aritmética, Cálculo e Geometria, ocupavam, em todas as séries, o primeiro horário, com uma duração que variava de 20 (1° e 2° anos) a 35 minutos (3° e 4° anos); seguida do ensino da Leitura, que oscilava de 55 (1° ano) a 40 minutos (2°, 3° e 4° anos). Às aulas de Desenho, Ginástica, e Trabalhos Manuais eram destinados os últimos horários. A última disciplina a ser ensinada, nos 3° e 4° anos, nas terças e quintas-feiras e sábados, era a Educação Moral e Cívica. O segundo preceito era “intercalar, quando possível, exercícios de fácil execução entre as outras disciplinas para descanso do aluno” (KUHLMANN, MELLO, 1910). Por isso, distribuíram as aulas intercalando as disciplinas que consideravam que exigiam mais “esforço” do aluno, com uma mais “leve”, como no caso do ensino da Leitura, no 1° ano, que foi alternado com os exercícios calistênicos. Em obediência ao terceiro preceito o qual dizia que “as aulas de matérias essenciais à vida prática devem ser diárias e merecem mais atenção do professor”, o horário foi organizado privilegiando algumas disciplinas em detrimento a outras. Por fim, como quarto e último preceito determinante para a elaboração do horário escolar, deve-se “atender a que, no primeiro ano, quando uma das seções estiver em leitura, as outras se ocupem em trabalhos auxiliares da disciplina” (KUHLMANN, MELLO, 1910). Tal regra explica a distribuição do horário de Leitura no primeiro ano. A classe era dividida em três seções: A, B e C; e, enquanto uma seção estava da alfabetização, as outras duas seções estavam fazendo atividades referentes ao ensino da leitura. Para trabalhar os conteúdos, o Regulamento (1910) exigia que os professores utilizassem o método intuitivo, partindo do geral para o particular, do concreto para o abstrato, utilizando os órgãos dos sentidos, principalmente a visão. A formação do professor dava-se através da Escola Normal e, para os que estavam atuando, a capacitação dos docentes se dava através de Conferências Pedagógicas publicadas na revista A Nova Época, principalmente de autoria de Gustavo Kuhlmann. Segundo Amâncio (2000, p. 815) o periódico “parece ter sido canal, por excelência, para que os normalistas paulistas pudessem - a exemplo do que ocorria em São Paulo - divulgar, ainda que em pouco tempo, seus ideais republicanos e pedagógicos”. Kuhlmann foi muito elogiado na sua função, mas, por outro lado, vivenciou muitos conflitos devido às idéias que advinham da sua formação, principalmente no que diz respeito ao ensino laico. A polêmica acontecia, sobretudo, através da imprensa (de um lado o jornal A Reacção dirigido por Gustavo Kuhlmann e, por outro, o jornal A Cruz, instrumento da Igreja Católica) que trazia à tona a disputa por posições políticas na sociedade local e o desejo, por parte da Igreja, de interferir na organização pedagógica da instrução primária no estado. Para finalizar... Apesar da pouca idade e da falta de experiência, Kulhmann procurou desenvolver com muita seriedade a função a ele destinada. Demonstrava ser muito apaixonado pelo que fazia e pelo que acreditava. Afirmava que “Em política, como em crenças, como também em questões sociais tenho já bem acentuados, sinão bem definidos meus ideais. Sou republicano, firmado em princípios muito mais sólidos do que as falsas bazes que caracterizam a demagojia bombástica e perigosa” (KUHLMANN, 1914, p. 3). Kuhlmann se referia à demagogia dos representantes da Igreja católica que o atacava através da imprensa. Seu relacionamento conturbado com líderes da Igreja Católica e o seu ceticismo pelas doutrinas religiosas, levaram Kuhlmann a casar com Emilia Amarante Peixoto de Azevedo, somente no civil4. Em 1916, com as mudanças políticas na região, Kuhlmann deixou a direção do Grupo Escolar. Recebeu o convite para assumir a Direção da Instrução Pública, mas, por fidelidade partidária, recusou o convite (AHMAD, 1963). No mesmo ano, com o falecimento do seu sogro, filha do Coronel Caracciolo Peixoto de Azevedo, membro do Diretório do Partido Republicano Conservador e, na ocasião, vice-presidente do Estado, retornou com sua família para São Paulo, iniciando assim uma nova etapa na sua vida profissional. A atuação de Kuhlmann em parceria com Mello, foi muito importante para uma grande virada na educação mato-grossense naquele período. Com o tempo, devido a vários fatores a Escola Normal já não existia, porém, a escola graduada introduzida através dos grupos escolares, resiste até os nossos dias. Referências bibliográficas: AHMAD, Carmita de Mello. Um professor ilustre. In: Jornal A Comarca de Penápolis. São Paulo, n. 1367, 1963. ÁLBUM. Graphico do Estado de Matto-Grosso (EEUU Brasil). Corumbá/ Hamburgo: Ayala e Simon Editores, 1914. AMÂNCIO, Lazara Nanci de Barros. Ensino de Leitura e Grupos Escolares: Mato Grosso 1910-1930. Cuiabá-MT: EdUFMT, 2008. CARVALHO, Marta Maria Chagas de. Reforma da Instrução Pública. In: LOPES, Eliane Marta Teixeira, FARIA FILHO, Luciano Mendes, VEIGA, Cynthia Greive. 500 anos de Educação no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. 4 Informação fornecida pela professora Adozinda Kuhlmann , sua filha (2008). CHARTIER, Roger. A história cultural; entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990. KUHLMANN, Gustavo. Esclarecimentos. Cuiabá: Casa Avelino, 1914. _________________. Bondade e Pátria. São Paulo: Cia Melhoramentos de São Paulo, 1921 ______________, MELLO, Leowigildo Martins de. Oficio ao vice-presidente do estado encaminhando o horário dos grupos escolares, 23 de agosto de 1910. MARCILIO, Humberto. História do Ensino em Mato Grosso. Cuiabá-MT: Secretaria de Educação, Cultura e Saúde de Mato Grosso, 1963. MELLO, Leowigildo Martins de. Relatório das Escolas Normal e Modelo Anexa, 1911. SÁ, Elizabeth Figueiredo de. De criança a aluno: as representações da escolarização da infância em Mato Grosso (1910-1927). Cuiabá,MT: Carlini & Caniato: EdUFMT, 2007. TYACK, David; CUBAN; Larry. Razões da persistência da gramática escolar. In: TYACK, David; CUBAN; Larry. Thinkering toward Utopia. A century of public school reform. Boston: Harvard University Press, 1999, p.85-109. Tradução de Renato de Souza Porto Gilioli ( Texto mimeo).