Revisões Anorexia nervosa na terceira idade Resumo A anorexia nervosa ocorre em todas as faixas etárias, da adolescência à terceira idade. São descritos seis casos que se apresentaram num serviço de psiquiatria geriátrica durante um período superior a 10 anos. Estes casos ilustram de que forma os efeitos do envelhecimento modificam o quadro clínico, não alterando, contudo, o problema fundamental do baixo peso corporal auto-imposto. Uma maior compreensão para com os idosos e mais narrativas sobre a ocorrência da doença na terceira idade podem dar um largo contributo para a sua compreensão como um todo. A. Wills e S. Olivieri Department of Old Age Psychiatry, Royal Hampshire County Hospital,Winchester, UK Aging & Mental Health (1998); 2 (3): 239-245 Carfax Publishing, Taylor and Francis Ltd Introdução Apesar dos critérios ICD-10 para o diagnóstico da anorexia nervosa (AN) excluírem explicitamente a ideia segundo a qual a doença poderá ter o seu início após a menopausa, a anorexia nervosa foi claramente reconhecida em mulheres com mais de 40 anos (WHO, 1992). O DSM-IV considera que o início desta perturbação raramente ocorre em mulheres com mais de 40 anos (APA, 1994). Na realidade, a AN tem sido identificada em todas as faixas etárias (Joughin et al., 1991; Price et al., 1985), incluindo em homens. Descrições anteriores de AN encontraram algum cepticismo, mas em 1939 Carrier introduziu o conceito de ‘anorexia tardia’ que foi usado por Dally, descrevendo um vasto grupo de mulheres, algumas das quais desenvolveram AN após a menopausa. História do conceito A evidência histórica para a classificação da AN foi recentemente revista por Parry Jones e Parry Jones (1994) e por Russell (1995). Parry Jones e Parry Jones manifestaram a sua preocupação com a rígida fixação à classificação diagnóstica desta perturbação determinada no ICD e no DSM. Relativamente à falta de evidência para a distorção da imagem corporal, casos clínicos ocorridos até 1939 sugerem que “devemos ser cautelosos quanto à sobrevalorização da importância do diagnóstico de um traço individual ... que se pode revelar ser de relativa pouca duração, em termos históricos”. Um desses traços pode ser, seguramente, a idade. Russell (1995) demonstrou que o conceito de AN evoluiu e modificou ao longo do tempo, tanto na sua psicopatologia, como na sua epidemiologia desde que foi originalmente descrita por Lasegue (1873) e Gull (1874). Russell analisa a relevância do factor sexo e a ‘fobia ao engordar’, mas não toma a idade em consideração. O autor assinala que as pressões sócio-culturais podem provocar uma alteração na psicopatologia da AN e que os valores estéticos e filosóficos variam consoante as épocas, do mesmo modo que varia a apresentação clínica da AN. A idade avançada foi, durante muitas décadas, considerada um factor de exclusão para a AN. Podemos, agora, ter uma visão mais ampla. Desde as suas primeiras descrições foi, em termos gerais, aceite que a síndrome da AN ocorre caracteristicamente nos adolescentes e nos jovens, não obstante existirem relatos antigos de AN em doentes mais velhos e relatos mais recentes de AN em doentes com idades pós-menopausicas. Gull descreveu doentes “com idades essencialmente compreendidas entre os 16 e os 23 anos”. O autor evidenciou “ a amenorreia, o estado de inanição lenta, o baixo ritmo cardíaco e respiratório, a perda de peso alarmante, as flutuações no humor e a assinalável energia física e mental manifestada, apesar do lastimável estado físico geral”, afirmando que “com um tratamento firme e sensível, a saúde poderia ser restabelecida”. Em 1930, Berkman publicou uma revisão sobre 117 doentes a quem foi atribuído o diagnóstico de AN, na clínica Mayo. Destes doentes, 16 tinham idades compreendidas entre os 30 e os 40 anos e quatro deles tinham mais de 40 anos. Dos doentes masculinos, 11 apresentavam idades superiores a 30 anos, incluindo dois que tinham mais de 40 anos. VOLUME III, Nº1. JANEIRO/FEVEREIRO 2001 27 Revisões Concluindo que a AN é uma entidade clínica definida, Berkman não exclui nenhum doente devido à idade. Em 1936, Ryle descreveu o problema clínico da AN em 51 casos individuais, 18 dos quais apresentavam idades superiores a 30 anos. “Pensei, contudo, incluir um grupo de mulheres mais idosas porque o quadro clínico me pareceu semelhante na sua essência e as doentes igualmente merecedoras de compreensão e tratamento adequados”.A sua doente mais idosa tinha 59 anos. Ryle acrescentou “ a verdadeira natureza da doença não foi diagnosticada e alguns médicos manifestaram a sua preocupação por nunca terem ouvido falar da sua existência”. Embora isso já não aconteça relativamente à ocorrência de AN em sujeitos mais jovens, um diagnóstico de AN nos mais idosos é ainda encarada com algum cepticismo por alguns médicos e como Ryle afirma: “suspeitas de doença orgânica grave não são recebidas sem alguma falta de naturalidade. Actualmente, parece que, na sua essência, a posição não se alterou. Mais recentemente, Palazzoli Selvini (1974) afirma no seu livro sobre Data de início História Clínica Passada Doença concomitante Resultado 26 Tiroidectomia parcial AN desde os 26 anos Evitamento alimentar Problemas conjugais Nenhuma Aumento de peso até aos 42,8 Kg Faleceu com 82 anos num lar Perda de peso Bizarrias alimentares 8 Abuso sexual enquanto criança AN aos 8 anos Conflito conjugal Perturbação Depressiva Major O peso permaneceu inferior a 40 Kg ao sétimo ano de acompanhamento Perda de peso Bizarrias alimentares Convicção de que tem peso excessivo Recusa em cooperar em programas de aumento de peso 72 Nenhuma Conflito conjugal Aposentação AF Pneumonia Fractura do osso escafóide Peso = 37,8 Kg Faleceu em casa com enfarte do miocárdio Perda de peso Bizarrias alimentares Convicção de que tem peso excessivo Recusa em comer 18 AN desde os 18 anos Debilidade Não é capaz de viver sózinha em casa Nenhuma Peso estável aos 32 Kg A viver em lar Doente Procedência Quadros clínicos F 74 35 Kg Medicina Interna investigação da perda de peso Perda de peso Bizarrias alimentares Convicção de que tem peso excessivo F 67 37,8 Kg Medicina Interna inquirição da tentativa de suicídio 28 F 72 36,6 Kg Clínica Geral Avaliação da perda de peso F 84 Medicina Interna 29,8 Kg recusa em comer M 67 44,8 Kg Clínica Geral perda de peso F 75 Encaminhamento 33 Kg do clínico geral auto-inanição: “na minha opinião, o termo ‘anorexia nervosa’ deveria ser reservado para uma síndrome especial que ocorre em raparigas na fase da puberdade e da pré-puberdade”. Feighner et al. (1972) também define a AN como sendo uma doença que ocorre antes dos 25 anos. Contudo, apesar do ênfase dado à idade precoce de início da doença e do cepticismo em relação aos casos de início tardio, em 1976 Kelett et al. apresentaram o relato de um caso que consideraram representar a primeira descrição inequívoca de “AN com início após a menopausa”. Em 1979, Dally e Gomez fixaram um limite máximo de idade para a ocorrência de anorexia nervosa nos 35 anos. No entanto, em 1984, Dally reviu esta proposição, descrevendo Anorexia Tardia (AT) - a síndrome de AN que ocorre nos doentes mais velhos ou após o casamento. Russell e Gilbert (1992) confirmaram a AT como sendo uma entidade clínica mas indicaram os seus factores precipitantes como sendo acontecimentos ligados a perdas, bem como a sintomatologia depressiva associada a esses acontecimentos. Precipitadores Perda de peso Recusa em comer 69 Nenhuma Morte da empregada (?) Mudança de residência Nenhuma Perda de peso Preocupação com a alimentação Abuso de laxantes 67 Nenhuma Desarmonia conjugal Perturbação Depressiva Major Quadro I. resumo dos relatos dos casos VOLUME III, Nº1. JANEIRO/FEVEREIRO 2001 Peso estável nos 56 Kg A viver com sobrinho e profissional de apoio domiciliário Três internamentos hospitalares em seis anos vive com o marido Não conformada Revisões Os relatos de casos de AN mais recentes em doentes mais velhos foram revistos por Cosford e Arnold (1992): 5 doentes apresentando AN pela primeira vez, em idades compreendidas entre os 54 e os 70 anos e 6 doentes apresentando início precoce de AN que persistiu até às idades compreendidas entre os 60 e os 80 anos. Além disso, Riemann et al. (1993) fizeram, recentemente, o relato de um caso de um homem de 72 anos e Hall e Driscoll (1993), o relato de duas mulheres com 61 e 64 anos que apresentavam sintomas de AN. Assim, a AN foi historicamente descrita na literatura em doentes idosos e fora dos critérios de idade que figuram nas classificações de diagnóstico modernas . Apesar de tanto o ICD-10 como o DSM-IV já não excluírem a idade da pós-menopausa do diagnóstico de AN, esta doença, ao contrário de outras perturbações do foro psiquiátrico, não é amplamente aceite como uma doença sem idade específica. Descrevemos seis casos de pessoas idosas (cinco mulheres e um homem) que sofrem de anorexia nervosa que foram encaminhados para os serviços públicos de saúde durante um período superior a 10 anos e discutimos as implicações para o diagnóstico, orientação e cuidados destes doentes. Os casos estão resumidos no Quadro I. Relatos de casos A Sra. G (74 anos) A Sra. G foi encaminhada para o serviço de psiquiatria geriátrica da sua área de residência pela equipa médica hospitalar que estudava a sua perda de peso e, possivelmente, alguma massa abdominal. Foi submetida a extensivos exames cujos resultados foram negativos. Pesava 35 Kg (estatura = 1,66m). O único acontecimento com interesse na sua história clínica passada foi o facto de ter sido submetida a uma tiroidectomia parcial há trinta anos para remover um nódulo benigno, da qual recuperou completamente. Não foi necessária nenhuma terapia de substituição. O encaminhamento foi induzido pelo seu comportamento que se centrava em torno dos seus hábitos alimentares invulgares. Só aceitava comer uma banana e, ocasionalmente, tomar uma chávena de chá, alegando que qualquer outro alimento a enjoava. Estava persuadida a cooperar num programa de aumento de peso e o seu peso chegou, gradualmente, aos 42,8 Kg durante um período superior a um mês. Nessa altura, recusou cooperar durante mais tempo no programa, retomou os seus hábitos alimentares anteriores e começou, novamente, a perder peso - daí, o seu encaminhamento para o especialista em psiquiatria geriátrica. O exame psiquiátrico revelou uma mulher normal em termos cognitivos e afectivos, mas cuja atitude em relação à comida e à imagem corporal eram característicos de uma pessoa anoréctica: fobia ao engordar e evitamento de alimentos associados a uma grande convicção de ser excessivamente gorda. O seu resultado na Escala de Depressão Geriátrica (EDG) foi de 7. Descobriu-se que a Sra. G foi, de facto, anoréctica a partir dos 26 anos, imediatamente após ter casado com um oficial britânico colocado, nessa altura, na sua Austrália natal. O casal mudou-se, então, para Inglaterra, uma mudança que em pouco tempo considerou ser intolerável. A sua atitude em relação às relações sexuais era de repugnância e não foi capaz de lidar com as exigências sociais impostas a uma esposa de um oficial. O seu evitamento assumiu a forma de anorexia nervosa. A Sra. G começou a ser consultada por um vasto leque de diferentes especialistas, apresentando uma variedade de queixas somáticas e apesar de pelo menos uma vez ter sido correctamente diagnosticada, esse diagnóstico foi rejeitado tanto por ela como pelo seu marido.Assim, continuou a ser consultada por médicos, submetida a exames e a diferentes medicações sem qualquer alteração no seu comportamento ou hábitos alimentares. O seu peso oscilou entre os 32 e os 45 Kg durante a história da sua perturbação com mais de 48 anos. Após o falecimento do seu marido, a Sra. G mudou-se para um lar, onde faleceu aos 82 anos. Sra. H (67 anos) A Sra. H foi internada no hospital geral da sua área de residência, no seguimento do que se pensava ser uma tentativa de suicídio. Foi encontrada de pé no lago da sua povoação, com a água à altura das coxas, bastante despreocupada, em silêncio, contemplando abstractamente o céu. O exame do estado mental realizado na altura do internamento foi consistente com um diagnóstico de Perturbação Depressiva Major (EDG = 19). Foi tratada em conformidade com esse diagnóstico, obteve alta do hospital, mas recebendo acompanhamento hospitalar diário. Durante esta fase de tratamento, as enfermeiras repararam que a Sra. H nunca usava roupas femininas: apresentava-se no hospital sempre de calças, camisolas largas, sem maquilhagem, cabelo curto, despenteado. Comia muito pouco, pequenas quantidades de comida, rejeitando sempre, com repugnância, a oferta de qualquer doce. Pesava 37,8 Kg (estatura = 1,56 m). O seu humor era, inicialmente, o de uma mulher taciturna, de aspecto triste e alheado, mas que melhorou ao longo do tempo. A psicoterapia de grupo provou ser particularmente eficaz ao permitir-lhe dar-se a conhecer. Emergiu uma longa história familiar de conflito e de abuso sexual que remontava à sua infância. O seu avô governou autocraticamente a sua família, abusando das suas filhas, netas e pelo menos de uma das enteadas. A Sra. H sofreu um episódio de anorexia nervosa aos 8 anos que foi detectado mas não tratado e que, aparentemente, se extinguiu espontaneamente. Ocorreu um segundo episódio VOLUME III, Nº1. JANEIRO/FEVEREIRO 2001 29 Revisões pouco tempo após o seu casamento. O conflito emergiu em torno do sua apetência e comportamento sexuais que ficaram aquém das expectativas do seu marido. A sua doença actual foi precipitada novamente por problemas conjugais, acabando por eclodir na sua subida ao lago da povoação. A Sra. H possuía uma fraca autoimagem: via-se como uma mulher feia. De facto, descrevia-se como “deformada”. O seu comportamento anoréctico persistiu mesmo após a depressão estar completamente curada. Conseguiu, no entanto, regressar à sua vida normal, mantendo-se com um peso inferior a 40 Kg durante os sete anos que foi acompanhada pelos serviços locais de psiquiatria geriátrica. Sra. I (72 anos) 30 A Sra. I, uma vice-directora reformada, foi encaminhada pelo seu clínico geral após ter sofrido uma queda, fracturando um osso escafóide. Desenvolveu, seguidamente, fibrilação auricular e pneumonia. A sua hospitalização foi prolongada e associada a uma perda de peso de 8 Kg: de aproximadamente 44 Kg para 36,6 Kg. Após a recuperação, a Sra. I recusou-se a cooperar em qualquer programa de aumento de peso, alegando que ainda se encontrava demasiado gorda. Tendia a comer apenas fruta fresca e vegetais. Mostrava os edemas localizados nos tornozelos para justificar a sua atitude. Preocupava-se com o funcionamento intestinal, fazendo um uso excessivo de laxantes que acabaram por lhe terem sido retirados. O exame do estado mental revelou uma mulher com um baixo nível afectivo apesar dos seus pensamentos não possuírem conteúdo depressivo. Não possuía ânimo nem energia. Não existiam indicadores biológicos de depressão, excepto o seu fraco apetite. Mostrava uma persistente recusa em aceitar que estava doente, excessivamente magra ou de ter, de facto, emagrecido. A sua família ficou bastante ansiosa, o que gerou a intensa correspondência, solicitando alguns procedimentos, compra de livros de dietas e culinária, etc.. A Sra. I permaneceu, no entanto, tranquila, claramente satisfeita com a sua situação. Averiguações posteriores revelaram que a Sra. I deixou de exercer funções num prestigiado estabelecimento de ensino superior feminino apenas quando atingiu o limite máximo de idade para aposentação, tentando com efeito, adiar esse procedimento. Desde então, tem sido bastante infeliz. Durante muitos anos, o seu casamento esteve em sérias dificuldades. Os seus filhos esforçaram-se por amenizar os atritos existentes entre os seus progenitores. Desenvolveu-se um padrão comportamental, segundo o qual sempre que emergia uma crise conjugal, os filhos levavam um ou ambos os progenitores, cada um, para sua casa. A mãe foi sempre claramente reconhecida como uma pessoa doente e o pai, sempre tratado com benevolência. A doença da Sra. I acabou por a recompensar com o poder e o controle que ela nunca tinha usufruído. VOLUME III, Nº1. JANEIRO/FEVEREIRO 2001 Sra. J (84 anos) Conhecemos a Sra. J por via de um encaminhamento interno do hospital feito pela equipa médica. A Sra. J foi internada após terse recusado a comer durante duas semanas. Queixou-se de náuseas e de um sabor metálico na boca, factores que a levaram a evitar alimentar-se. Os extensivos exames levados a cabo não conseguiram revelar nenhuma causa física. O exame do estado mental revelou uma mulher num estado caquéctico (29,8 Kg = 1,48m), que negava sintomas de depressão (EDG = 11) e com um peso exíguo. Na realidade, a Sra. J considerava que ainda estava excessivamente gorda e que precisava de perder mais peso: o seu rosto cavado estava ainda demasiado rechonchudo e o seu estômago flácido, demasiado saliente. Encontrava-se animada e despreocupada. Não estava afectada cognitivamente (MMSE = 27/30). A tomografia computorizada cerebral revelou uma pequena atrofia cortical generalizada, compatível com a idade. A avaliação das suas rotinas diárias revelou que não conseguia viver bem sozinha no seu apartamento, pois cansava-se muito rapidamente e necessitava de fazer longas pausas durante as tarefas diárias. Continuava a comer refeições muito ligeiras na enfermaria do hospital. Foi transferida para um lar onde se integrou perfeitamente e permaneceu sem distúrbios comportamentais, manifestando-se, simultaneamente, melancólica. Continuou a comer muito pouco, mas o seu peso estabilizou nos 32 Kg. A Sra. J sofre de anorexia desde os 18 anos, na sequência do falecimento da sua mãe. Apesar de ter feito uma completa recuperação desse episódio, desenvolveu fases posteriores de anorexia em reacção a todos os acontecimentos de vida ou desilusões importantes incluindo a casamento da sua filha, o falecimento do seu marido 14 anos antes e um assalto a sua casa. A Sra. J apresentou um baixo peso corporal durante os últimos quatro anos, mas o que acabou por merecer a atenção dos serviços médicos foi a sua idade avançada e a sua crescente incapacidade de viver sozinha em segurança. A Sra. J acabou por ir morar para um lar. Sra. K (75anos) A Sra. K foi encaminhada para os nossos serviços após ter-se mudado de uma cidade no norte de Inglaterra. Nunca se integrou. Foi persuadida pelo seu marido a mudar-se para sul, mas rapidamente se arrependeu. A sua aparência inicial era a de uma mulher ansiosa, deprimida e excessivamente magra: 33 Kg, estatura = 1,55m. Provavelmente a Sra. K já se alimentava deficientemente há nove meses; preocupava-se extremamente com a alimentação. Comia apenas fruta fresca e vegetais. Recusava qualquer alimento contendo gorduras ou proteínas, mas aceitava um pequeno pedaço de Revisões requeijão. Abusava de laxantes e passava longos períodos de tempo no quarto de banho, após as refeições. O seu internamento hospitalar conseguiu curar a sua depressão, embora continuasse a preocupar-se com a alimentação, com o seu peso e com as calorias que ingeria. A discórdia conjugal chegou ao nosso conhecimento durante o período em que esteve internada. A Sra. K casou tarde - aos 48 anos - e o seu casamento sempre foi um casamento oficial. A Sra. K era uma arquitecta bem sucedida profissionalmente. O seu marido era sócio da mesma empresa, mas o sucesso profissional da sua esposa provocou atritos no casal. Pouca era a comunicação entre os dois. Desenvolveram muito pouca intimidade. O seu marido suspendeu o seu tratamento levando-a para casa antes da altura aconselhável e acordada entre ela e o seu médico. O seu estado mental sofreu flutuações ao longo dos anos. Foi internada três vezes em seis anos. Em regra, o seu humor melhorava rapidamente com o tratamento mas não se mantinha durante muito tempo. A caquexia e a discórdia familiar persistiram como traços permanentes. Tanto a doente como o seu marido ofereceram resistência à intervenção de profissionais de saúde psiquiátrica e de psicólogos clínicos ou quando aceite, foi suspendida. Esta situação precária pareceu o único modus vivendi que o serviço de psiquiatria geriátrica conseguiu estabelecer com este casal. emagrecimento e anorexia. Não mostrou, inicialmente, vontade de cooperar na entrevista mas tornou-se mais aberto durante as semanas seguintes. Revelou ser um homem inteligente, culto, pronto, senão desejoso de falar sobre a sua família, a sua música e a sua casa. Sentia que tinha sido privado dos seus direitos pelo comportamento do seu sobrinho mas reconhecia, simultaneamente, que as suas competências domésticas eram tão fracas que nunca conseguiria viver sozinho. Chegou até a afirmar que se tivesse ficado em Edimburgo sozinho, já teria falecido ou internado numa instituição. Considerava-se gordo, na realidade obeso. Estava obcecado com a quantidade de calorias que estava a ingerir: estar no hospital era muito perturbante pois não sabia de que forma a sua comida tinha sido preparada. Contudo, ele apenas tinha bebido água, recusando quaisquer biscoitos, bolos ou sobremesas. Este caso exigiu um longo e complexo estudo, pois o seu sobrinho melindrouse com o envolvimento da equipa do serviço de psiquiatria geriátrica. Contudo, a devido tempo, foi encontrada uma solução satisfatória, segundo a qual o Sr. L foi alojado num anexo construído para ele, sob os cuidados de uma profissional de apoio domiciliário interna. Encontra-se bem e o seu peso estabilizou nos 57 Kg. Sr. L (67 anos) Descrevemos seis doentes com mais de 65 anos que sofrem de anorexia nervosa.Vários autores descreveram doentes idosos que sofrem de AN, encorajando mais narrativas de casos (Gower e Crips, 1990; Hall e Driscoll, 1993; Hsu e Zimmer, 1988; Kellett et al., 1976; Launer, Riemann et al., 1993). As características clínicas de doentes idosos que sofrem de AN são semelhantes em todas as faixas etárias (Joughin et al., 1991). Os nossos seis doentes apresentaram resistência em comer com vista a manterem-se com um baixo peso corporal. Contudo, ao contrário dos seus congéneres mais jovens, os sintomas que apresentam não se centram no desaproveitamento de comida ou na intensificação da actividade física. Este facto pode dever-se à sua educação e atitudes em relação ao desperdício e às suas capacidades físicas limitadas resultantes da sua idade. Dally e Gomez referiram as mesmas características num sub-grupo de doentes que sofriam de AN, pelo que não se deve declinar o diagnóstico na faixa etária mais idosa. Por outro lado, os nossos doentes, quer tenham desenvolvido AN na sua juventude ou nos últimos anos da sua vida, demonstraram claramente um padrão de fobia que reflectiu um desejo de (re) estabelecer o controle sobre as suas vidas. A AN deu-lhes esse controle, restituindo-lhes o seu poder. Esta alteração no formato psicológico da AN na terceira idade reflecte falta de conhecimento da história natural da perturbação. Na realidade, estudos de acompanhamento de longo prazo realizados com doentes que sofrem de AN não O Sr. L mudou-se da Escócia, onde tinha vivido como homem celibatário e professor de música toda a sua vida, para a área de domicílio dos nossos serviços. Um homem tímido, socialmente isolado, passou toda a sua vida em casa de sua mãe e após a sua morte, sob os cuidados de uma série de empregadas domésticas. Quando a última faleceu (cuidou dele durante 17 anos), o seu único parente próximo, um sobrinho, pensou que era seu dever cuidar do “velho tio” e decidiu levá-lo para sua casa. Tomou essa decisão sem sequer ter consultado o seu tio sobre essa questão. O Sr. L foi internado pouco tempo depois. Desde a sua chegada, recusou, provavelmente, toda a comida que lhe foi oferecida, mantendo-se refém dentro do seu quarto, quase não falando com ninguém. Como quase em todos os casos idênticos, deu entrada no hospital em maca, pesando 44,8 Kg (estatura = 1,67m). Mas 3 meses de extensivos exames médicos não conseguiram identificar causas orgânicas do seu emagrecimento e recusa em comer. Não foi identificada depressão clínica, mas foi, por fim, encaminhado para o nossos serviços por um médico bastante perplexo que reparou que a carta de encaminhamento do Sr. L não registava o aumento de uma grama em três meses de intensivos esforços. O seu exame do estado mental revelou que qualquer distúrbio do domínio afectivo era modesto e insuficiente para explicar o seu Discussão VOLUME III, Nº1. JANEIRO/FEVEREIRO 2001 31 Revisões 32 abrangeram doentes idosos (Crisp, 1965; Eckhert et al., 1995; Hsu et al., 1992).Três dos nossos doentes sofreram de AN quando mais jovens mas desistiram do acompanhamento. As alterações físicas e psicológicas associadas ao envelhecimento normal espelham as da adolescência, podendo provocar um reaparecimento dos sintomas de anorexia nos doentes que possuem história clínica da perturbação, num período de conflito psicológico.Todos os nossos seis doentes descreveram agentes psicológicos de stress precipitadores: em quatro casos o conflito conjugal foi o problema-chave , enquanto que para os outros a aposentação, o luto, a mudança de residência e o lidar com a crescente debilidade física podiam ser identificados claramente como precipitadores importantes. Apesar da idade e da duração da doença serem classicamente descritos como sinais de um mau prognóstico, o crescente número de relatos de AN nos idosos pode representar um grupo de doentes mais jovens cujos sintomas persistiram até à velhice. Devemos assinalar que quatro dos nossos casos foram encaminhados para os nossos serviços por clínicos gerais, após a realização de intensivos exames médicos. Uma maior consciencialização do diagnóstico de AN nos mais idosos, uma documentação mais centrada na personalidade pré-mórbida dos doentes e suas atitudes constantes ao longo da vida em relação à comida podem evitar a ansiedade no médico e a realização de exames infrutíferos, bem como longos internamentos hospitalares. Todos os nossos doentes mantiveram um peso baixo durante muitos anos, antes e após a intervenção médica e nenhum deles faleceu prematuramente devido aos sintomas. A coexistência de outras perturbações físicas e mentais não devem obstar ao diagnóstico de AN. Nos doentes mais jovens a coexistência de depressão é completamente reconhecida. Dois dos nossos doentes apresentaram perturbação depressiva mas os sintomas de anorexia persistiram após o seu tratamento. Este facto, foi, igualmente, descrito por outros autores (Hsu e Zimmer, 1998; Rammell e Brown, 1988). Os homens encontram-se em maior risco se não forem correctamente diagnosticados como sofrendo de AN na velhice mesmo que, como é o nosso caso, sejam preenchidos todos os critérios correctos. Parece que o preconceito que evita a aceitação de AN em mulheres idosas é maior quando se examina um homem. Contudo, os casos narrados por Nagaratnem e Ghougassan (1988) e Riemann et al., (1993), bem como pelos investigadores deste estudo mostram que os acontecimentos de vida podem precipitar a p e r t u r b a ç ã o nu m i n d i v í d u o c o m p re d i s p o s i ç ã o. Os doentes idosos sofrem, frequentemente, de patologias físicas, sendo submetidos a exames médicos que não são facultados aos mais jovens. As alterações observadas no cérebro por tomografia computorizada e MRI estão bem documentadas na AN, bem como o inverso, na normalização do peso (Artmann et al., 1985; Krieg et al., 1988). Apenas um dos nossos doentes apresentou uma VOLUME III, Nº1. JANEIRO/FEVEREIRO 2001 tomografia computorizada que revelava atrofia cerebral, consistente com a idade. Pensa-se que a longa duração da doença produz danos cerebrais irreversíveis. Contudo, numa análise recente a uma série de oito doentes que sofrem de AN, o mais velho, com 41 anos, não confirmou esta hipótese. Esperamos que um maior interesse no grupo de doentes mais idosos que sofrem de AN conduza a um interesse maior nesta área, especialmente nos doentes que apresentam história médica de AN na sua juventude e os que se apresentam pela primeira vez aos clínicos gerais. Conclusões A AN é ainda considerada por muitos como sendo uma prerrogativa de pessoas jovens e apenas de jovens mulheres. Esta abordagem é excessivamente restrita. Os nossos seis casos ilustram claramente a frequência relativa de AN na terceira idade. Estes casos salientam, também, o problema da perda de poder nos idosos.A quatro dos nossos doentes, foram retirados o poder de decisão e a responsabilidade das suas vidas, às vezes com tal desrespeito pela liberdade pessoal que até constitui um abuso. Neste sentido, os idosos que desenvolveram AN não são tão diferentes dos doentes mais jovens. Sugerimos que a idade não deixe de aparecer como um critério de diagnóstico para a AN. BIBLIOGRAFIA American Psychiatric Association (1994). Diagnostic and statistical manual of mental disorders, 4th edition. Washington, DC: APA. Artman, H., Grall, H., Adelmann, M. e Schleiffer, R. (1985). Reversible and non reversible enlargement of CSF spaces in Anorexia Nervosa. Neurobiology, 27, 304-312. Berkman, J.M. (1930). Anorexia nervosa, anorexia, inanition, and low basal metabolic rate. American Journal of Medical Science, 180, 411-424. Carrier, J. (1939). L’anorexie Mentale. Paris. Librairie E. Le Francois. Cosford, P e Arnold, E. (1992). 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