A taxa de serviço (gorjeta) e o PL 57/2010 em face à proteção do consumidor. Lucas Migon1 Ana Paula Gonçalves2 UFRJ - Faculdade Nacional de Direito, Rio de Janeiro, RJ Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ ÍNDICE 01 – Introdução ..........................................................................02 02 – Do conceito de doação remuneratória .............................. 03 03 – Doação ou coação? ............................................................ 04 04 – O PL 57/2010: duplicidade abusiva de encargos sobre o consumidor ................................................................................ 05 05 – Conclusão ........................................................................... 06 06 – Bibliografia ..........................................................................08 1 Estudante do 8º Semestre do Curso de Direito da Faculdade Nacional de Direito – UFRJ, email: [email protected] 2 Estudante do 7º Semestre do Curso de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, email: [email protected] 1 01 – INTRODUÇÃO Cotidianamente o consumidor brasileiro se vê diante da inclusão de um acréscimo de 10% sobre o preço final de suas contas em restaurantes, bares e outros estabelecimentos congêneres. Em que pese, inicialmente, a prática ter sido concebida como exercício espontâneo de generosidade, seria uma grande ingenuidade acreditar que, atualmente, é essa a característica mais marcante das chamadas “gorjetas”. Os beneficiários diretos de tal contribuição também seriam, em um primeiro momento, os funcionários que prestaram atendimento direto àquele consumidor. Entretanto, o que mais se vê, na realidade, é a retenção pelo estabelecimento das quantias arrecadadas por seus funcionários. Em razão dessa obscuridade no repasse das gorjetas, que já foi alvo, inclusive, de Comissão Parlamentar de Investigação no estado de São Paulo, tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei 57/2010, de autoria do Deputado Gilmar Machado. O PL 57/2010 tem como objeto central a alteração do Art. 457 da Consolidação das Leis do Trabalho, de forma a regulamentar o rateio entre funcionários e estabelecimento das gorjetas recebidas. Em seu texto inicial, ele passa a fixar uma definição para “gorjeta”, a saber: “§ 3º Considera-se gorjeta não só a importância espontaneamente dada pelo cliente ao empregado, como também o valor cobrado do cliente pela empresa, como serviço ou adicional, a qualquer título, e destinado à distribuição aos empregados.” 2 Aí reside a problemática abordada neste artigo, a qual será adequadamente exposta a seguir. 02 – DO CONCEITO DE DOAÇÃO REMUNERATÓRIA Inicialmente, é preciso estabelecer que a gorjeta tem caráter inegável de recompensa. O consumidor exerce sua liberdade de gratificar o funcionário que lhe prestou um serviço, se lhe convier. Desta feita, a natureza jurídica em que melhor se encaixa esta conduta é, indiscutivelmente, a de doação remuneratória. Esta, segundo nos leciona o Professor Carlos Roberto Gonçalves3: “É a feita em retribuição a serviços prestados, cujo pagamento não pode ser exigido pelo donatário. (...). Se a dívida era exigível, a retribuição chama-se pagamento, ou dação em pagamento se ocorrer a substituição da coisa devida por outra; se não era, denomina-se doação remuneratória” Em mesmo sentido, positiva o artigo 540 do nosso Código Civil: “Art. 540. A doação feita em contemplação do merecimento do donatário não perde o caráter de liberalidade, como não o perde a doação remuneratória, ou a gravada, no excedente ao valor dos serviços remunerados ou ao encargo imposto.” 3 GONÇALVES, Carlos Roberto – Direito Civil Brasileiro, Volume 3: Contratos e Atos Unilaterais — 9ª Edição — São Paulo – Ed. Saraiva, 2012 3 Desta feita, não há que se admitir qualquer forma de exigência no pagamento das gorjetas, o que, por conta atuação dos diversos órgãos de proteção ao consumidor, é fato amplamente divulgado entre estes. 03 – DOAÇÃO OU COAÇÃO? Ainda neste diapasão, a negativa do consumidor em contribuir, vez ou outra, acaba figurando como matéria nos tribunais, como no caso do Processo nº 0058004-37.2011.8.12.0001 da 10ª Vara Cível do TJ-MS, onde alegadamente o autor da ação se viu obrigado a pagar taxa de atendimento e couvert artístico, sob ameaça de ser impedido de deixar o local até que o fizesse. In casu, a douta juíza Sueli Garcia Saldanha muito bem esclareceu o ponto central abordado neste artigo em sua sentença: “Em relação à requerida, embora tenha sustentado a legalidade da cobrança em razão de um Termo de Ajustamento de Conduta firmado com o Ministério Público do Estado de Mato Grosso do Sul, por intermédio de sua Promotoria de Justiça do Consumidor de Campo Grande/MS, no aludido instrumento restou fixado expressamente que “a cobrança de 10% (ou de qualquer outro percentual) a título de gorjeta constitui mera liberalidade do consumidor” e “a cobrança de couvert artístico só deve ser permitida quando houver atração artística no local e desde que esse valor seja devida e antecipadamente informado ao consumidor” O TAC em destaque tem por finalidade suprir lacuna específica a respeito do tema, pois não há legislação que trate de forma pormenorizada acerca da cobrança desses encargos. Deve-se analisar as questões à luz do disposto no 4 Código de Defesa do Consumidor e dos princípios oriundos às relações consumeristas”. 04 – O PL 57/2010: duplicidade abusiva de encargos sobre o consumidor Para preencher tal lacuna, tramita no Legislativo o Projeto de Lei 57/2010, que traz em seu conteúdo, conforme já ilustrado neste texto, a positivação da legalidade da cobrança da taxa de serviço. Entretanto, analisando à luz dos institutos do Direito Civil, sobretudo o do contrato de doação remuneratória, não se pode admitir tal exigibilidade. A intenção do legislador, embora claramente em favor da classe dos trabalhadores do setor de serviços, fere no âmago o caráter espontâneo da doação. Entretanto, esta não é a única problemática do referido Projeto de Lei. O PL 57/2010, ao alterar o art. 457 da CLT, inclui, dentre outros, os 6º e 7º parágrafos no referido artigo, merecendo estes destaque no presente ensaio. O primeiro fixa a distribuição, na proporção de 80-20 percentual entre empregados e empregador, dos valores retidos a título de gorjeta. Já o segundo determina que, vez que a retenção se perpetue por mais de 12 meses, passa a integrar a base média salarial do empregado. Ora, basta uma breve reflexão para identificar um verdadeiro disparate, à luz do Direito do Consumidor, nesta nova regulamentação. Sabe-se que o preço final de venda do produto ou serviço abarca, em regra, seus custos com a matéria-prima, com a sua produção e, finalmente, o lucro do estabelecimento. Sabe-se, também, que o salário 5 dos funcionários de um estabelecimento é, nitidamente, parte integrante dos custos com a produção do serviço ou produto. Assim sendo, uma vez que as gorjetas passem a integrar o salário do trabalhador, ainda que seu pagamento não seja obrigatório, quando realizado, estará o consumidor arcando duas vezes com o mesmo custo. Esta situação caracteriza verdadeiro repasse de gastos diretamente para o consumidor, sabidamente detentor de vulnerabilidade característica, maximizando os lucros do estabelecimento comercial – e concentrando-os nas mãos do empregador. Na prática, sabendo-se também que o mercado se autoregula, o que ocorre é a redução proposital dos salários pagos aos garçons e demais empregados do setor, com a promessa de complementação de renda por meio da retenção de gorjetas. Desta forma, estes passam a depender da arrecadação de contribuições para melhorar o padrão de vida, o que nos leva diretamente ao fato de que, no fim, o que se tem é um duplo encargo abusivamente aplicado sobre o consumidor final, que arca com os custos da prestação de serviço por duas vezes. 05 – Conclusão Finalmente, podemos concluir que, caso seja aprovado, desta forma, o Projeto de Lei aqui estudado, o consumidor final restará lesado em sua liberalidade de contribuir, mas não só – também arcará abusivamente com o pagamento dos salários daqueles que o servem. Da mesma forma, é possível verificar que a fixação de um percentual dá causa à perda da finalidade precípua da doação espontânea, vez que estabelece um padrão de contribuição ao qual deve se submeter o doador. 6 Em verdade, para buscar um ideal de razoabilidade no equilíbrio das relações aqui abordadas, o mais adequado seria, frente à atualização do Código de Defesa do Consumidor, positivar uma proibição não só à discriminação do valor correspondente a uma eventual gorjeta, na nota final, mas também à própria fixação percentual de um valor. A doação remuneratória é lícita, porém a forma mais razoável de manter sua liberalidade e espontaneidade intrínsecas é, sem dúvida, a nãovinculação do consumidor a um padrão de doação pré-determinado pelo estabelecimento, deixando este livre para contribuir com o valor que achar justo. Da mesma forma, não discriminar um eventual percentual nos cálculos finais evita as situações nas quais o consumidor se vê obrigado a justificar, frente ao atendente, sua opção por não incluir a gratificação no pagamento, esquivando-se, assim, de situações constrangedoras e da pressão coerciva do juízo de reprovação social exercido pelos atendentes, bem como por seus pares consumidores. 7 Bibliografia GONÇALVES, Carlos Roberto – Direito Civil Brasileiro, Volume 3: Contratos e Atos Unilaterais — 9ª Edição — São Paulo – Ed. Saraiva, 2012 VENOSA, Sílvio de Salvo – Direito Civil: Contratos em Espécie – 5ª Edição – São Paulo – Ed. Atlas, 2005 8