MIGRANTES DA FÉ: CONTRIBUIÇÃO AO ESTUDO DO PROTESTANTISMO EM MATO GROSSO. GONÇALVES, Carlos Barros (UFGD) Breves considerações sobre o processo de ocupação geográfica do antigo Sul de Mato Grosso O chamado antigo Sul de Mato Grosso, atual Estado de Mato Grosso do Sul, permaneceu até o século XVIII quase que intacto, no que se refere à ocupação de indivíduos não indígenas. A partir de então, a região passou a ser ocupada por criadores de gado provenientes dos Estados de Minas Gerais, São Paulo e Rio Grande do Sul. Estes se fixaram nas terras consideradas favoráveis para a criação animal extensiva, principalmente a bovina (OLIVEIRA, 1999, p. 15). Com o término da Guerra entre a Tríplice Aliança e o Paraguai foram implantadas, no Sul de Mato Grosso, empresas extrativistas de minérios e vegetais, como a Mate Laranjeira, empresa que manteve o predomínio sobre a exploração da Erva Mate por quase meio século, tendo sob sua influência uma vasta extensão de terras. Nesse sentido, muitos estudiosos do processo de ocupação não indígena do Sul de Mato Grosso, afirmam que a Mate Laranjeira dificultou, ou então representou, de certa forma, um empecilho à efetiva ocupação de espaços geográficos na região, uma vez que exercia sob as áreas de sua influência um rígido controle político e armado, sobretudo. A ocupação de terras na região do então Distrito de Dourados deu-se também sob a forma da grande concentração. Em fins do século XIX e primeiras décadas do século XX, a região foi constituída de grandes fazendas e pequenos vilarejos ou os chamados distritos de paz. Considerações sobre o estabelecimento dos missionários protestantes em Dourados Em fins da década de 1920, o Estado de Mato Grosso era tido, ou identificado, nos grandes centros do país, como “sertão”, lugar isolado das grandes cidades e, conseqüentemente da “civilização”. Representado como um local com vias de comunicação e transporte precários, lenta dinâmica das atividades produtivas, local de pessoas rudes, imensos espaços não habitados pelo homem “civilizado” e sinais da presença de grupos indígenas (GALETTI, 2000, p. 88). 2 Apesar da “distância” dos grandes centros, Mato Grosso, nesse caso especificamente a parte Sul, sobretudo a partir de 1920, foi atingido diretamente pelas frentes de expansão nacionais. Ou seja, as regiões interioranas do país até então “isoladas” começaram a sofrer um processo de articulação orgânica à vida nacional, através da implantação de novos meios de transporte, comunicação e fixação de novas populações (RIBEIRO,1993, p. 366). Cabe lembrar que para os indígenas, tradicionais habitantes dessas regiões, o contato com as chamadas frentes de expansão e ocupação nacionais não significou apenas a expropriação do território, oficialmente com a criação das primeiras Reservas pelo Estado, mas a introdução de novas necessidades e problemas, tais como o recrutamento como mão-de-obra, o alcoolismo, as doenças e também novos costumes e crenças (CARVALHO, 2004, p. 36). Os “espaços vazios, as matas virgens, as terras abundantes e férteis, o deslocamento de outros indivíduos”, atraíram não somente migrantes, em busca de melhores condições de vida material, mas também os primeiros grupos religiosos a atuarem de maneira sistemática na região. Os indígenas, nesse caso, foram, a princípio o principal motivador, ou melhor, “atrativo” para o estabelecimento dos primeiros missionários protestantes em Dourados. Para a melhor compreensão de nossa proposta, faz-se necessária uma consideração. Situar o processo que culminou com a fixação dos primeiros missionários protestantes em Dourados, com o objetivo inicial de “civilizar” e “cristianizar” os índios Caiuá, habitantes de um espaço já “demarcado” pelo poder público, num contexto maior, a saber, o processo de expansão das denominações protestantes brasileiras para o “interior” do Brasil. Ao longo da década de 1920 foram criadas várias organizações de cooperação interdenominacional1 entre as igrejas protestantes históricas do Brasil. Tais entidades visavam o fortalecimento das denominações protestantes ante o catolicismo e a sociedade nacional. Fortalecimento que se daria, sobretudo, com a expansão das igrejas, através do estabelecimento de postos missionários em regiões ainda não alcançadas pelo protestantismo. Entre essas regiões estava o Sul de Mato Grosso, especificamente Dourados. O povoado de Dourados, à época da instalação dos missionários protestantes, possuía cerca de dois mil habitantes em sua área urbana e, no tocante à religião, era 1 Aliança Evangélica Brasileira; Confederação Evangélica Brasileira; Associação Cristã de Moços; Federação das Escolas Evangélicas Brasileiras; Seminário Teológico Unido. 3 caracterizado pela ausência de uma assistência religiosa oficial. Os moradores do local, apesar de haverem construído em 1925 uma capela de “cultos católicos”, vivenciavam uma religiosidade caracteristicamente católica e sob uma liderança “leiga”. O que havia de mais próximo ao catolicismo romano oficial, eram as visitas dos padres itinerantes que percorriam a região em viagens a cavalo. No entanto, além dessas visitas ocorrerem em intervalos de meses e até anos, não raro os padres eram pessoas comuns disfarçadas, que procuravam lograr algum proveito material com o título sacerdotal. A criação da Associação Evangélica de Catequese dos Índios do Brasil, responsável direta pela fixação dos primeiros missionários protestantes em Dourados, é fruto direto, ou expressão concreta das tentativas de cooperação do protestantismo histórico no Brasil, a desenvolver-se desde início do século XX. A entidade foi criada em São Paulo no dia 28 de agosto de 1928, e seu surgimento deveu-se, sobretudo à fundação anterior da Comissão Brasileira de Cooperação (CBC-1920), entidade responsável por promover os “melhores métodos de cooperação e evangelização do Brasil”. A Comissão de Cooperação foi organizada com representantes de denominações protestantes brasileiras e membros de agências missionárias estrangeiras, ou board, com obra geral no país. A CBC foi estruturada sob a forma de departamentos que abrangiam entre outros assuntos, os de Evangelização, Relações Internacionais, Movimentos Sociais e o de Missão aos Índios. Em relação à catequese indígena, um relatório da CBC afirmou, Temos acumulado em nosso arquivo grande soma de documentos referentes aos índios, obras de assistência e catequese. Nossa correspondência com as missões no Amazonas, no Araguaia e em Mato Grosso se não é volumosa, é contudo interessante. Temos concorrido para aproximar elementos interessados na evangelização dos índios. [...] A nossa sub-comissão de missão aos índios elaborou um projeto de estatutos de uma associação de evangelização dos índios, em vias de formação, e na qual estão interessadas a [East] Brazil Mission da Igreja Presbiteriana [do Sul dos Estados Unidos]... e várias outras corporações... (Odilon D.R. de Moraes; Erasmo Braga: Relatório da Comissão Brasileira de Cooperação 1927-1928 apud Reyli, 1993, p. 255). A primeira referência encontrada sobre a criação de uma missão protestante no antigo Sul de Mato Grosso, foi um artigo publicado no jornal presbiteriano O Puritano (13/8/1927, p. 2). O periódico exaltou o idealizador de um projeto de catequese dos 4 índios, reverendo Albert Sidney Maxwell, membro da East Brazil Mission (Missão Leste do Brasil), que há alguns anos tentava reunir instituições interessadas em missões aos indígenas: Quem vem acompanhando com interesse a obra evangelica, no Brasil, nestes ultimos dez anos, sente-se confortado quando verifica a consolidação de varias instituições que durante muito tempo não passaram de projectos mais ou menos vivos no pensamento da Egreja. Esta observação se estende a todos os ramos evangelicos, os quaes se vão impondo ao respeito do povo, não só pelo augmento do numero de seus adeptos, como pela participação efficiente na vida nacional em varias esfheras de actividade, taes como, o campo educativo, a obra beneficente [...] Agora vae-se effectivar a Missão entre os Indigenas. Não é de hoje que se vae impondo á consciencia da Egreja o dever e a necessidade de irmos ao encontro dos nossos infelizes irmãos das selvas, afim de melhorarmos as suas condições materiaes e espirituaes mediante o grande remedio que é o Evangelho do Senhor Jesus [...] Esperamos confiantes a manifestação da Egreja Presbyteriana . O primeiro grupo de missionários a se fixarem em Dourados, em abril de 1929, representava três denominações: Igreja Presbiteriana do Brasil, Metodista e Presbiteriana Independente, além da Missão Brasil Leste, da Igreja Presbiteriana do Sul dos Estados Unidos. Esse primeiro grupo foi composto pelos missionários, Albert Sidney Maxwell, o engenheiro agrônomo João José da Silva e sua esposa Guilhermina Alves da Silva, professora, juntamente com o filho Erasmo ainda criança, o médico Nelson de Araujo, metodista, e o professor e dentista Esthon Marques. O jornal O Puritano publicou em 6/4/1929, um texto informativo sobre a partida do grupo missionário da cidade de São Paulo para o Mato Grosso. O texto seguinte à notícia exaltou a iniciativa dos missionários ao encontro dos indígenas “desprezados, perseguidos, escravizados e calumniados”. O jornal apresentou os evangelizadores como pessoas à parte da sociedade responsável pelo processo de expropriação e marginalização em que se encontravam de maneira geral, os indígenas do Brasil, nesse período. Assim, a iniciativa de catequese foi identificada como um ato digno de heroísmo, autonegação e patriotismo, Que trabalho magnifico vão fazer estes moços, que, arrostando perigos, longe das grandes e confortaveis cidades em que se crearam, vão civilizar e evangelizar os pobres selvagens brasileiros, tantas vezes despresados, perseguidos, escravizados e calumniados! Ide bandeirantes de Christo! Ide, confiantes no Pae de misericordia, de quem ireis falar aos indios de vossa Pátria! (carta de Euripedes C. Menezes). 5 Após a instalação em Dourados, o projeto de catequese consistiria de ações assistencialistas no sentido de oferecer auxílio médico, de higiene, agricultura e alfabetização. Ahi serão os indios aldeiados por um sistema racional que, sem os afastar repentinamente de seus habitos selvagens, lhes proporcione meios para irem, paulatinamente, se adaptando á vida civilizada. Nesse aldeiamento aprenderão elles rudimentos de agricultura e receberão cuidados medicos, ensino religioso, instrucção escolar, noções de hygiene, enfim o apparelhamento necessário ao seu ingresso á vida fóra da floresta (O Expositor Christão 29/8/1928). Consoante a essas ações, a pregação da “palavra de Deus”, pois, a princípio é possível dizer que o objetivo dos missionários não era simplesmente “integrar” o indígena ao modo de vida do “civilizado”, mas, fazer de cada Cayuá [...] um ente civilizado que traga comsigo a salvação offerecida por Nosso Senhor Jesus Christo na cruz do Calvario (O Expositor Christão, 21/8/1929). O estabelecimento do protestantismo de missão em Dourados pode ser estudado sob duas perspectivas, pois, apesar da pretensão inicial dos missionários visarem unicamente à catequese indígena, não deixaram de manter contato com a população não índia local. Tal divisão justifica-se, pois, a ação missionária entre a população dita urbana, deu-se de maneira diferente da exercida entre os indígenas. Com relação à atuação entre os não índios, destaca-se no projeto de evangelização protestante para o antigo Sul de Mato Grosso, além das visitações, cultos esporádicos e as chamadas escolas dominicais, desenvolvidas desde os primeiros dias da instalação na localidade, a fundação do templo evangélico (1936), da Escola Evangélica Erasmo Braga (1939) e do Hospital Evangélico (1946). A princípio é possível afirmar que a fundação do Hospital e Escola foi de suma importância no processo de consolidação do protestantismo na região, pois objetivou atender a duas demandas sociais crescentes, uma vez que essa região, a partir de meados da década de 1940, começou a atrair de maneira sistemática, um considerável contingente de migrantes, dada a política de nacionalização das fronteiras nacionais e ocupação dos “espaços vazios”. Verificamos que os missionários, através dos relatórios e cartas enviados aos periódicos de suas denominações2, construíram a imagem do indígena pobre, selvagem, ignorante e, sobretudo, pecador. Esses adjetivos visaram legitimar a ação missionária perante as igrejas evangélicas do país, uma vez que através da pregação 2 Jornais O Expositor Christão, O Puritano, O Estandarte, A Penna Evangélica, Revista A Voz Missionária 6 protestante os indígenas recebiam a verdadeira religião, bem como as condições necessárias à desejada “civilização”. Para os missionários estabelecidos em Dourados, “civilização” foi sinônimo de protestantismo. REFERÊNCIAS CARVALHO, Raquel Alves de. Os missionários metodistas na região de Dourados e a educação indígena na Missão Evangélica Caiuá (1928-1946). 2004. 98 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – UMESP, Piracicaba. GALETTI, Lylia da Silva Guedes. Nos confins da civilização: sertão, fronteira e identidade nas representações sobre Mato Grosso. 2000. 358 f. Tese (Doutorado em História Social) – FFLCH/USP, São Paulo. GONÇALVES, Carlos Barros. O protestantismo missionário em Mato Grosso: caso Dourados (1929-1946). 2006. 32 p. Relatório Final (Iniciação Científica) – PIBIC/UFMS/UFGD, Dourados. OLIVEIRA, Benícia Couto de. A política de colonização do Estado Novo em Mato Grosso (1937-1945). 1999. 243 p. Dissertação (Mestrado em História) – FCL/UNESP, Assis. REILY, Duncam Alexander. História documental do protestantismo no Brasil. São Paulo: ASTE, 1993. RIBEIRO, Darci. Os Índios e a Civilização: a integração das populações indígenas no Brasil moderno. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1970. Jornal O Expositor Christão: 1920-1946. Jornal O Puritano: 1901-1950.