Comunicacoes ´ Modernidade, Instituicoes ´ e Historiografia Religiosa no Brasil ~ ~ A PRESENÇA DO MARAVILHOSO NO TEMPO DE JESUS ______________________________________ Prof. Dr. Josemir Nogueira Teixeira Doutor em Filosofia pela UFRJ [email protected] ______________________________________ O maravilhoso esteve presente no cotidiano da cultura hebraica, no tempo de Jesus, bem como, posteriormente na tradição Ocidental. Segundo Le Goff, “uma característica do maravilhoso é ser produzido por forças ou por seres sobrenaturais”1. Estes seriam inumeráveis, constituindo-se numa multiplicidade de forças. Para ele, o maravilhoso cristão foi reduzido ao milagre, sendo por este regulamentado. Haveria uma tendência para a racionalização do maravilhoso, até despojá-lo de seu caráter essencial, a imprevisibilidade2. Aceito a proposição de Lê Goff, bem como a partir dela podemos inferir que existem duas vertentes no processo de constituição da tradição cristã: uma que se funda na presença do maravilhoso, outra que se constituiu e se tornou dominante, como racionalização do sagrado, ou seja, conceitual. Utilizo os livros canônicos e não canônicos no sentido de perceber a presença do maravilhoso no processo de constituição da tradição cristã. O pensamento desenvolvido por ela, na relação com o maravilhoso, se constituiu, progressivamente, como conceituação do sagrado. Desta forma, afastando-se da tradição literária hebraica - fruto da concepção de ser Israel um povo eleito, guiado pelas leis mosaicas e comensal cotidiano à mesa do divino - e das narrativas que, embora consideradas como fontes originárias do surgimento do cristianismo, são consideradas não canônicas. A elaboração conceitual da tradição cristã constituiu-se como teologia. Eusébio de Cesaréia3, em sua “História Eclesiática”, procurou juntar argumentos que justificassem a preexistência e a divindade de Jesus, diante da experiência religiosa 1 LE GOFF, Jaques. O Maravilhoso e o quotidiano no Ocidente Medieval. Lisboa, Edições 70, 1985. p.24-25. 2 LE GOFF, Jaques. O Maravilhoso e o quotidiano no Ocidente Medieval. Lisboa, Edições 70, 1985. p.25. 3 Eusébio de Cesaréia, conhecido como “pai da história Eclesiástica”, nasceu entre os anos 260265, provavelmente em Cesaréia, na Palestina. Foi ordenado bispo em 311 e concluíu o oitavo volume de sua História Eclesiástica. Faleceu em 340. Introdução. In: História Eclesiástica. p. 9-28 . do povo de Israel. Ele acreditava ser Jesus o Salvador. Considerou seu trabalho como economia e teologia de Jesus Cristo de Deus, Salvador e Senhor, desígnio divino em relação às criaturas. Ao demonstrar a anterioridade do Salvador em relação à tradição religiosa de Israel, justificava que o Cristo não seria de um passado recente, mas de grande antiguidade4. Esta anterioridade não ocorre através de uma genealogia, mas através de um conjunto de argumentos que situam a anterioridade do Cristo em relação ao povo de Israel. Segundo os discípulos de Jesus, para os judeus, se Jesus fosse o Cristo5 ele seria reconhecido. Já para o grupo de discípulos era necessário demonstrar que Jesus era o Cristo que os judeus não haviam reconhecido. Essa demonstração não era possível dentro da lógica do pensamento hebraico, pois este se prendia a interpretação da lei mosaica, em toda a sua riqueza de detalhes, na regência da vida cotidiana do povo de Israel. Por outro lado, encontrou sustentação formal no pensamento grego. Reicke, ao tratar das escolas filosóficas gregas, observa que nenhuma delas exerceu influência positiva sobre o Novo Testamento. No entanto, afirma que o uso do linguajar filosófico teve uma ação formal sobre a literatura epistolar do Novo Testamento e que, desde o século II, teólogos cristãos esforçaram-se por uma adaptação objetiva à filosofia grega6. A relação com a filosofia grega resultou da campanha de Alexandre que realizou uma forte fusão dos elementos helenísticos e orientais, fato que se tornou característicos no âmbito de Mediterrâneo e do Oriente Próximo7. Diz ainda que a koiné8, mesmo nos séculos I e II do cristianismo, dominava do Tibre ao Tigre, sendo o Novo Testamento escrito nessa língua e só em torno do ano 200 d.C. traduzido para outras línguas populares9. Paul André observa que O grego que se difundiu depois das conquistas de Alexandre era a língua comum, chamada koiné. A koiné era a língua dos funcionários, dos homens de negócios e de leis, dos oradores, dos escrivães, documentado nos decretos e nas inscrições. Era em toda parte a língua da política e da administração, do comercio e da educação. Como língua internacional a sua tendência era suplantar o aramaico, que 4 EUSÉBIO, Bispo de Cesaréia. História Eclesiástica/Eusébio de Cesaréia. Tradução: monjas beneditinas do mosteiro de Maria mãe de Cristo. São Paulo, paulus, 2000. cap. 2. p. 31-38. 5 Cristo significa o enviado de Deus para salvar o povo de Israel dos seus inimigos e opressores. 6 REICKE, Bo Ivar. História do Novo Testamento: o mundo bíblico de 500 a. C. até 100 d. C. Tradução: João Aníbal e Edwino Royer. São Paulo: Paulus, 1996. p. 58. 7 Idem, p.43. 8 KOESTER, Helmut. Introdução ao Novo Testamento. Volume 1: História, cultura e religião no período helenístico. Tradução: Euclides Luiz Calloni. São Paulo; Paulus, 2005. p. 112-113. Koiné. Os gregos falavam muitos dialetos. Os mais importantes eram: O jônico, falado na região central da costa oeste da Ásia Menor. O Ático, muito próximo do jônico, dialeto de Atenas e da Ática. Eólico, falado na parte norte da costa oeste da Ásia Menor. Dórico falado na região meridional e ocidental do Peloponeso. O ático foi usado por Alexandre Magno e seus sucessores como língua oficial da administração, e assim se tornou a língua franca do mundo helenístico, a koiné, isto é, a língua “comum”. 9 REICKE, Bo Ivar. História do Novo Testamento: o mundo bíblico de 500 a. C. até 100 d. C. Tradução: João Aníbal e Edwino Royer. São Paulo: Paulus, 1996. p. 47. 2 desde o 700 antes de Cristo era a língua da diplomacia, do exercito e dos negócios10. A mensagem da “Boa Nova”, à medida que se associou com a estrutura conceitual do pensamento grego, realizou um processo de distanciamento em relação ao maravilhoso, culminando com a reivindicação e necessidade da prova da existência de Deus. Os evangelhos não versam sobre a prova da existência de Deus. Narram sobre um homem que, por seus atos, se revelou filho de Deus, seu enviado ao povo eleito. Como se desenvolveu esse processo de distanciamento do divino maravilhoso para um divino conceitual? Acredito que esse distanciamento começa com o processo de delimitação do que deveria ser o cânon da literatura cristã. Os hebreus conseguiram fundir mito e história em uma única experiência. A história de uma aliança entre Deus e o povo de Israel. Ao mesmo tempo, a experiência desse povo com esse Deus é pessoal, cotidiana, de modo que Ele se fazia presente em todos os momentos da vida, individual e coletiva. A religião cristã, nasceu no coração do território de Israel e se afirmou como revelação deste mesmo Deus. Esta revelação não se deu através de uma tábua com códigos a serem seguidos, nem através de uma sarça ardente, ou de um solo sagrado. Deus que sendo conhecido como humano, revela-se como divino, em diálogo com o humano. Institui como seu fundamento a crença de que a divindade fez-se homem para viver com os homens e junto a estes revelar suas maravilhas. A documentação – canônica e não canônica - fonte originária do cristianismo, permite situar o seu núcleo fundante na revelação do maravilhoso. Para Le Goff, o maravilhoso, revelação de entes sobrenaturais, perturbaria o menos possível a realidade cotidiana, de modo que ninguém se interrogava sobre a sua presença e ainda que não tivesse ligação com esse cotidiano estaria inteiramente inserido no meio dele11. John Dominic Crossan observa que no início do século I, as visões e aparições eram possibilidades aceitas e até comuns, assim como são possibilidades aceitas e comuns no começo do século XXI12. Transe e êxtase, visão e aparição ele os considera como fenômenos perfeitamente normais e naturais. Estados de consciência alterados, como sonhos e visões, são algo comum à nossa humanidade, firmemente fixados em nosso cérebro, como a própria linguagem. Observa que os seguidores de Jesus pensavam que ele era o Messias. Mas ele foi executado e enterrado. Mais tarde seu túmulo foi encontrado vazio e ele apareceu aos antigos companheiros, ressuscitado dos mortos. Daí resultou o nascimento do cristianismo, num Domingo de Páscoa, no ano 30 d.C. 13 No entanto, isso não se caracterizava como um evento impar na consciência do homem do século I. O maravilhoso, no entanto, é que a ressurreição ocorre não por intervenção, mas a partir da força de ressuscitar do próprio Jesus. Sempre que houve ressurreição na tradição hebraica ela se 10 PAUL, André, 1933. O Judaísmo Tardio: história e política. Tradução Benôni Lemos. São Paulo: Ed. Paulinas, 1983. p. 19. 11 LE GOFF, JAQUES. O Maravilhoso e o Quotiano no Ocidente Medieval. Lisboa, Edições 70, 1985. p. 25-28. 12 CROSSAN, John Dominic. O Nascimento do Cristianismo: o que aconteceu nos anos que se seguiram à execução de Jesus. Tradução: Bárbara Theoto Lambert. São Paulo, Paulinas, 2004. p. 24. 13 Id,ibidem. p. 25. 3 deu por intervenção de alguém, um profeta, por exemplo. De modo que neste caso a ressurreição não obedece aos cânones da tradição hebraica, mas se constitui como um evento autônomo, inaugural, portanto, originário. O sagrado manifestou-se de muitos modos para solucionar problemas da comunidade, o que o tornava familiar. Além dos milagres14, fatos maravilhosos foram narrados como tendo acontecidos na vida de Maria, José15 e de Jesus e, por conseqüência na comunidade onde estes viviam, na cidade de Nazaré, na Galiléia. Estes fatos maravilhosos não eram interpretados como uma quebra no cotidiano da comunidade. Ao contrário, eram elementos que contribuíam para o discernimento, para o bem julgar, que referendavam a presença da divindade na orientação da comunidade e de suas autoridades. O maravilhoso revela-se, antes de tudo, como a presença do sagrado que se manifesta como fator decisivo nas questões de ordem cotidiana. Podemos afirmar que o modo de ser dessa presença configura o modo de ser da consciência mítica. Podemos fazer uma breve distinção entre consciência mítica e consciência religiosa. Esta supõe a fé, pela qual o crente admite a existência de um Deus, no caso do cristianismo, um Deus único. Principalmente à medida que o tempo se interpõe entre a experiência originária, com Jesus, e a conversão de novos cristãos. A consciência mítica não precisa do ato de fé, ela se constitui como uma experiência existencial do humano com o sagrado. Estes convivem numa proximidade espacial e temporal. O sagrado enquanto experiência mítica, não se historiciza, pois não há distância entre o tempo originário e o agora. Já a consciência religiosa que supõe a fé, constituí-se como história, pois entre o fato originário e o agora existe um distanciamento temporal. No que diz respeito a Jesus, o reconhecimento de sua ressurreição é considerado pela tradição cristã como fator preponderante para a consolidação da própria religião. Fato que se constitui com dupla face: experiência mítica e fundamento do ato de fé. Outros fatores possuem o mesmo vigor simbólico para esta consolidação: a descida das línguas de fogo sobre os apóstolos e a aparição de Jesus aos mesmos, a sua subida ao céu e sua aparição em forma de luz a São Paulo são elementos constitutivos do núcleo maravilhoso fundante do cristianismo. No processo histórico de sua constituição, parece que a tradição ocidental da religião cristã foi se apropriando e sendo apropriada por uma necessidade de justificativa conceitual ou uma intelctualização do sagrado, chegando a construir uma necessidade da prova lógica da existência de Deus. Parece que este processo conduz a um esvaziamento das formas de manifestação do sagrado como maravilhoso. A religião cristã se constitui historicamente sobre uma dupla face: revelação e historicidade, portanto mito e história. A mesma que se faz presente no povo hebreu, ou seja, fé na revelação de um Deus único que se manifesta na história deste povo. O Deus da tradição bíblica, portanto hebraico, revelou-se ao povo judeu na 14 LE GOFF entende o milagre como uma forma de redução do maravilhoso, consistindo numa parte desse maravilhoso. LE GOFF, op. cit., p.24. 15 PROTO EVANGELHO DE TIAGO. A História do nascimento de Maria. Petrópolis, Vozes, 1991. 4 forma do maravilhoso. Primeiro como Deus criador16, depois na aliança estabelecida com Abraão. Abraão e Sara, em idade avançada e sem descendência receberam de Deus a graça de gerar um filho, Isaac. Deus, pondo à prova a fé de Abraão, pediu-lhe que sacrificasse seu único filho e Abraão obedeceu. Por essa obediência, foi reconhecido como o pai da fé e escolhido por Deus como o primeiro patriarca do povo de Israel17. Entre os cristãos, este Deus foi e é aceito como tendo se revelado aos homens. Esta revelação deu-se numa cidade, portanto, em um lugar socialmente demarcado e culturalmente constituído. O maravilhoso faz-se presente desde a preparação para o nascimento de Jesus. Joaquim e Ana não possuíam descendência, já estavam em idade avançada, isto era visto como castigo em Israel. Alguém sem descendência, numa sociedade regida pelo sagrado, onde aquela correspondia a uma benção de Deus e a esterilidade uma ignomínia para a mulher18, sofria preconceitos vários e perdia o respeito diante dos outros membros da comunidade. Joaquim fora preterido, no templo, como o primeiro a fazer sua oferenda, por não possuir descendência. Retirou-se para o deserto, onde jejuou por quarenta dias e quarenta noites dizendo a si mesmo: “Não descerei daqui nem para comer nem para beber, enquanto o Senhor meu Deus não me visitar. A oração me servirá de comida e de bebida19”. Temos aqui a manifestação de uma convicção. Um homem que se considerasse justo poderia desafiar ao senhor seu Deus e exigir deste, por conta de sua lealdade, que intercedesse em seu favor. Deus é concebido como o todo poderoso, exatamente, por aceitar se submeter à vontade daqueles que a ele suplicam com determinação. Também Ana por seu lado, sofrendo as conseqüências da não descendência suplicava ao seu Deus: “Ó Deus de meus pais, abençoa-me e ouve minha oração, como abençoaste nossa mãe Sara, dando-lhe um filho Isaac20”. Ana reivindica para si o status de sua ancestral, o que significa reivindicar a seu marido o status de Abraão, pois ambos estavam, diante de Deus, em idade avançada. A resposta vem através de um anjo do Senhor que lhe diz: “Ana, Ana, o Senhor Deus ouviu a tua oração, conceberás e darás à luz e, em toda a terra, se falará de tua descendência21”. Por outro lado, um anjo do Senhor aparece a Joaquim que cuidava de seus rebanhos e lhe diz: “Joaquim, Joaquim, o Senhor Deus ouviu a tua oração, desce daqui, pois a tua esposa Ana, concebeu em seu seio22”. Para o narrador o intercâmbio entre o divino e o humano é algo natural. Recorrer ao divino é um direito e um dever, implica um duplo reconhecimento: o poder de Deus em realizar o que se pede; já o ato de pedir confirma o limite do que pode o homem fazer. Ana prometeu e entregou sua filha, aos três anos de idade, no templo, como 16 GÊNESIS, 1-2. GÊNESIS, 11-25. 18 GÊNESIS 30, 23; 1Sm 1, 5-11. 19 PROTO EVANGELHO DE TIAGO. A História do Nascimento de Maria. Petrópolis, Vozes, 1991. p. 28-29. 20 Id., Ibid., p. 31. 21 Id., Ibid., p. 32. 22 Id., Ibid., p. 33. 17 5 oferenda ao Senhor seu Deus23. Esta, no templo, era alimentada pelas mãos de um anjo24. Isto não aparece como milagre, mas como experiência cotidiana, ou seja, a confirmação de uma predileção e afirmação da presença do divino no templo. Ser oferecida ao templo era ser oferecida ao lugar santo e sagrado, habitat do divino. A súplica a Deus e o impor-se um sacrifício para provar a veracidade do pedido, a resposta de Deus, confirmando o merecimento da súplica e o oferecimento do fruto desta a Deus, compõem a estrutura dessa relação familiar entre o divino e o humano. Maria era predileta de Deus, por pura gratuidade deste. Esta gratuidade se manifesta pela escolha de um anjo para dar-lhe de comer. Isto não causa espanto ou admiração entre os sacerdotes, ao contrário apenas confirma a presença corriqueira do divino. Quando Maria completou doze anos, os sacerdotes, em assembléia, procuravam decidir o que fazer, pois não podiam ficar com ela por toda a vida, a servir o templo. Zacarias, Sumo sacerdote, entrou no Santo dos Santos e rezou por ela, para que o Senhor Deus indicasse o que fazer. Um anjo apareceu a Zacarias e o mandou convocar os viúvos, dentre o povo, e cada um devia trazer uma vara. Aquele de quem o senhor mostrasse um sinal, deste ela seria mulher. Os mensageiros percorreram toda a Judéia e todos acorreram ao templo, levando suas varas, José entre eles. O sacerdote recebeu-as de todos, entrou no templo e rezou. Terminada a oração, recolheu-as, saiu e entregou uma a cada um. José recebeu a última vara. Eis que uma pomba saiu da vara e pousou sobre a cabeça de José. Então o sacerdote lhe disse que coubera a ele receber a virgem do Senhor, para tomá-la sob sua guarda. Poderíamos dizer que a narrativa nos revela um milagre. Isto seria reduzir o sentido da narrativa. O que ela nos revela é o modo de ser de uma consciência, a do narrador, e à medida em que a narrativa fora aceita nas comunidades primitivas, revela também o modo de ser da consciência coletiva. Nenhum espanto, desequilíbrio ou transtorno surge com esta manifestação no meio da coletividade. Ao contrário, é por ela que se chega a uma decisão. Existia a plena convicção de que o sagrado se manifestaria, pois foi por sua ordem que os viúvos foram convocados. Surpreendente seria a não manifestação daquele que devia se manifestar para revelar qual o destino de Maria. A divindade aparece como quem indica o caminho porque se tem a certeza de sua presença. José recusou dizendo que tinha filhos, que era velho, ao passo que ela era jovem. Receava tornar-se objeto de zombaria para os filhos de Israel. A recusa de José não ocorre por temor da manifestação do divino,mas por receio de como seria olhado pela comunidade. Mas o sacerdote instiga-o a conservar o temor de Deus25. José atemorizado tomou Maria sob sua guarda26. O maravilhoso não é um acontecimento esporádico ou inusitado, causador de desequilíbrio, mas presente no cotidiano. O diálogo entre o sagrado e o huma23 Id., Ibi., p. 39 Id., Ibi., p. 40 25 A narrativa da revolta dos três e do castigo encontra-se em Nm 16, 1-35. 26 PROTO EVANGELHO DE TIAGO. A História do Nascimento de Maria. Petrópolis, Vozes, 1991. p. 40-42. 24 6 no não fere a dignidade da divindade, nem caracteriza uma divinização do humano. Por ele, se tomam decisões fundamentais. É a confirmação de que a divindade faz-se presente e está junto com aqueles que a ela se submetem. Ao interpretar a postura destes dois personagens, podemos perceber que, numa sociedade em que a consciência da presença do sagrado na vida cotidiana da comunidade pertence ao modo de ser desta consciência, recorrer à divindade é procedimento de senso comum. A interlocução com o sagrado independe da fragilidade ou do poder individual. Também a concepção de Maria dá-se por intervenção do sagrado. Ela foi entregue a José virgem, e escolhida entre as virgens, para tecer a púrpura e o escarlate para o véu do templo. Maria apanhou um cântaro e saiu para tirar água. Uma voz lhe disse: “Alegra-te cheia de graça, o Senhor está contigo, bendita és tu entre as mulheres”. Ela olhava à esquerda e à direita para saber de onde vinha a voz. Trêmula, entrou em casa, deixou o cântaro, tomou a púrpura, sentou-se no banco e começou a tecer. Um anjo apresentou-se diante dela e disse: “Não tenhas medo, Maria, porque encontraste graça diante do Soberano Senhor de todas as coisas. Tu conceberás por sua palavra”. Maria perguntou: “Eu conceberei do Senhor Deus vivo e darei à luz como todas as mulheres?” O anjo respondeu: "O poder de Deus te cobrirá com a sua sombra. Por isso o santo que nascerá de ti será chamado filho do altíssimo. Tu lhe darás o nome de Jesus, porque ele salvará seu povo de seus pecados.” Disse Maria: “eis que a serva do Senhor está diante dele, faça-se em mim segundo a tua palavra27”. A concepção de Maria apresenta-se como mais uma intervenção direta da divindade. Neste caso uma intervenção erótica. Sua perturbação ocorre ao ouvir uma voz que não sabe de onde vem, se da esquerda ou da direita. Não porém por receber o anúncio de sua escolha para conceber um filho do senhor seu Deus. Na tradição hebraica, é o único fato de que se tem narrativa do envolvimento erótico da divindade com uma virgem. O divino a escolhe, ela torna-se sua predileta. Foi por ele encoberta, envolvida. Aqui insinua-se a possibilidade em se tentar uma analise da erótica do divino. Dominic Crossan observa que ao século I não faltava apenas uma clara separação entre igreja e estado, faltava também uma separação entre o céu e a terra. Afirma que o início da vida de Jesus narrado por Lucas28 informa que Jesus nasceu de Maria e do Espírito Santo, de mãe humana e Pai divino. Observa que o paganismo não contestou tal fato, pois era bastante provável. Os pagãos sabiam do nascimento de Enéas de mãe divina e pai humano. A afirmação de que Augusto em pessoa fora concebido de pai divino e mãe humana era mais conhecida. Ácia passou a noite no templo de Apolo, o deus a visitou em forma de serpente e “no décimo mês depois disso Augusto nasceu e foi considerado por isso filho de Apolo”29. Os textos canônicos e não canônicos nos permitem perceber o modo de ser de uma determinada consciência, basta levarmos em conta que o Proto-Evangelho 27 PROTO EVANGELHO DE TIAGO. A História do Nascimento de Maria. p. 43-45. EVANGELHO DE LUCAS. 1,26-38. 29 CROSSAN, John Dominic. O Nascimento do Cristianismo: o que aconteceu nos anos que se seguiram à execução de Jesus. Tradução: Bárbara Theoto Lambert. São Paulo, Paulinas, 2004. p. 26. Narrativa tirada de SUETÔNIO. A vida dos Cesares:Augusto Divinizado. 94, 4. 28 7 de Tiago data do século segundo depois de Cristo. Isto significa que, antes de seu registro, havia uma tradição oral. A narrativa do Evangelho de Lucas começa assim: “no sexto mês o anjo Gabriel foi enviado da parte de Deus para uma cidade da Galiléia, chamada Nazaré, a uma virgem prometida em casamento a um homem chamado José, da casa de Davi30”. Isto não se refere a um ato de fé, mas ao modo de ser de uma consciência, para a qual o diálogo entre o divino e o humano pertence-lhe naturalmente. A interferência da divindade ocorre até nos detalhes. José estava ausente de casa por conta de sua profissão de carpinteiro, Maria sob sua custódia. Embora vivessem sob o mesmo teto, ele não poderia tocar-lhe senão depois do casamento. Seis meses depois de estar fora de casa, José regressa e encontra Maria grávida de Jesus. Engravidar antes do casamento constituía falta gravíssima junto à comunidade e aos sacerdotes, pois a estes pertenciam os mais diversos tipos de julgamentos no que dizia respeito à vida cotidiana do povo hebreu, inclusive o adultério. José cobriu-se de saco e chorou amargamente. Desconcertado e preocupado se perguntava: “com que semblante olharei para o Senhor Deus? Eu a recebi virgem e não soube guardá-la”31. José interroga Maria, lembra-lhe ser ela a predileta de Deus. Como deixara acontecer tal coisa? Ela também chora amargamente, afirma sua virgindade diante dele e afirma que tão certo como vivia o Senhor seu Deus, não sabia como lhe tinha acontecido tal fato32. Atemorizado pelo castigo que poderiam lhe advir mediante tal descuido, José pensava num meio de abandoná-la. À noite, enquanto dormia, um anjo do Senhor apareceu-lhe em sonho, dizendo: “não temas por esta jovem, pois o que ela traz em seu seio é fruto do Espírito Santo”. A interferência do divino é decisiva para manter a tranqüilidade do ancião e na disposição para enfrentar as barras do tribunal33. O escriba Anás indo à casa de José percebeu que Maria estava gestante. Foi contar ao sacerdote, dizendo que José havia maculado a jovem que recebera para ser sua esposa. José e Maria foram levados ao tribunal. Maria por primeiro. Diante do tribunal ela confirmou o que dissera a José: “tão certo como vive o Senhor meu Deus, eu sou pura diante dele e não perdi a virgindade34”. José por sua parte respondeu que tão certo como vivia o Senhor seu Deus, ele era puro em relação a Maria35. Mas o Sumo Sacerdote não acreditou em ambos, considerou que mentiam e que haviam consumado o casamento antes do tempo. Em matéria de sexo, nem a jovem que, por seu histórico, fora considerada como a preferida do Senhor seu 30 EVANGELHO DE LUCAS. 1, 26-27. PROTO-EVANGELHO DE TIAGO. XIII, 1. 32 PROTO-EVANGELHO DE TIAGO. XIII, 2. 33 Dt. 22, 22-27. A lei mandava que se lapidassem as mulheres adúlteras, seus comparsas e também o homem que violasse uma jovem desposada. Mas a lei tinha exceção. Se um homem for apanhado dormindo com uma mulher casada, ambos serão mortos. Se um homem encontrar na cidade uma moça ainda virgem, noiva de outro e dormir com ela, levareis os dois às portas da cidade e os apredejareis até à morte: a jovem por não ter gritado apesar de estar na cidade, e o homem por ter desonrado a mulher do próximo. Mas se foi no campo que o homem encontrou a jovem noiva lhe fez violência, só o homem que a violentou deverá morrer. Mas nada farás à moça. Ela não cometeu um pecado digno de morte. (...) A jovem gritou mas não havia ninguém para socorrê-la. 34 PROTO-EVANGELHO DE TIAGO. História do nascimento de Maria. XV, 3. 35 PROTO-EVANGELHO DE TIAGO. História do nascimento de Maria. XV, 4. 31 8 Deus, nem o justo ancião José, eram confiáveis. Resolveu o sacerdote submetê-los a beberem da prova da água36 do Senhor. Beberam, foram para o deserto e voltaram de lá com a saúde perfeita. Tal causou admiração porque a falta deles não apareceu37. O divino atua nos limites do poder humano em dar solução aos problemas. A ausência de efeito revela a proteção do divino e a predileção deste por um determinado casal. A água era preparada segundo as orientações de Deus, para os casos de suspeita dos homens sobre a fidelidade de suas mulheres. Confirma-se, assim, a fidelidade de Maria a José, a sua honestidade para com este e para com Deus, a pureza e retidão de sua vida. Quando do nascimento de Jesus, José dirigia-se a Belém para o recenseamento. Na metade da viagem, Maria sentiu a pressão do parto. José encontrou uma gruta para onde a conduziu. Foi à procura de uma parteira que o acompanhou até a gruta. Chegando lá, viram uma nuvem escura que a cobria, a nuvem afastou-se e apareceu uma luz tão forte que os olhos não podiam suportá-la. A luz afastou-se e apareceu um recém-nascido38. A parteira encontrou Salomé e contou a esta sobre o ocorrido, onde uma virgem havia dado à luz. Ela não acreditou. Só acreditaria se tocasse a natureza de Maria39. Foram juntas, Salomé e a parteira, Salomé colocou o dedo em sua natureza e soltou um grito: “ai de mim! Pela minha incredulidade. Tentei o Deus vivo. Eis que minha mão atingida pelo fogo se desprende de mim40”. Ela se ajoelhou e suplicou para que o Senhor a salvasse daquela situação humilhante. Eis que aparece um anjo e diz: “Salomé, Salomé, o soberano Senhor de todas as coisas ouviu tua prece. Aproxima do menino a tua mão, toma-o em teus braços, e ele será a tua salvação e tua alegria41”. No mesmo instante em que pegou o menino em seus braços, ela ficou curada. Esse intercâmbio entre o sagrado e o humano não acontece no universo da consciência de fé ou da consciência racional, ele só se dá nas condições da consciência mítica. Há um outro fato, no que diz respeito ao nascimento de Jesus, que nos mostra o modo de ser dessa consciência mítica onde vige o maravilhoso. O Proto-Evangelho de Tiago narra que por ocasião do nascimento de Jesus, houve grande tumulto em Belém da Judéia, porque chegaram uns magos perguntando pelo paradeiro do rei dos judeus que acabava de nascer. Ao serem indaga36 Nm. 5, 11-31. A água da prova do Senhor a que eram submetidas pela lei mosaica as mulheres suspeitas de adultério. Se fossem culpadas, seus ventres ficariam inchados e se descairiam seus quadris. 37 PROTO-EVANGELHO DE TIAGO. História do Nascimento de Maria. XIII-XVI. 38 EVANGELHO DE LUCAS, 2, 1-18, narra que estando José em Belém, nasceu Jesus. Mas acrescenta que naquela região havia uns pastores no campo velando à noite e vigiando o rebanho. Apresentou-se um anjo do Senhor e a glória do Senhor os envolveu de luz e ficaram possuídos de grande temor. Disse-lhes o anjo : “Não temais, pois vos anuncio uma grande alegria, que é para todo o povo: Nasceu-vos hoje um salvador que é o Cristo Senhor, na cidade de Davi. Este será o sinal: encontrareis o menino envolto em pano e deitado numa manjedoura. Imediatamente ao anjo se achegou uma multidão do exercito celeste que louvava a Deus dizendo: Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens por ele amados. 39 Id., Ibid.,XIX. 40 Id., Ibid., XX, 1. 41 Id., Ibid., XX, 3-4. 9 dos por emissários de Herodes42 sobre o sinal que lhes teria indicado esse nascimento, responderam que uma estrela de tamanho extraordinário e que brilhava mais do que as outras. Fora este sinal indicador de que havia nascido um rei para Israel, motivo pelo qual teriam vindo adorá-lo. Imaginar que uma estrela se movesse por conta própria, em determinada direção, indicando o lugar exato onde se poderia encontrar alguém, isto para a consciência racional seria interpretado como ficção. Porém isto se torna possível à medida que a consciência admita a interferência do divino como ordenadora e orientadora de todos os procedimentos da vida e do cotidianos. A infância de Jesus aparece como uma infância miraculosa, onde todas as suas palavras tornam-se realidade. Aparece como uma criança cheia de poderes, realiza coisas maravilhosas, porém, é intolerante e vingativo. Reage com dureza a quem o incomoda. Num sábado, estava ele brincando na correnteza de uma chuva. Juntou barro e fez doze passarinhos. Porém, o sábado era dia de repouso absoluto de modo que fazer qualquer atividade era profaná-lo. Alguém conta a seu pai, José, o que ele fizera no sábado. É advertido por José que o interroga perguntando por que fizera aquilo. A sua resposta é mandar os passarinhos voarem. Os judeus ficaram admirados do poder que tinha aquela criança e foram contar a seus chefes43. Há uma longa narrativa de feitos atribuídos a Jesus de Nazaré, considerados como testemunhos da sua divindade44. A fé na divindade desse homem decorre, portanto, segundo o cristianismo, de sua realidade histórica. O ato de fé, nele, foi decorrente da experiência de sua historicidade. Nos documentos originários do cristianismo não encontramos uma conceituação de Deus, nem a necessidade de uma demonstração de sua existência estabelecida por Jesus de Nazaré. Encontra-se apenas a expressão pai, que lhe é atribuída. “Não me retenhas que ainda não subi para meu pai. Subo para meu pai e vosso pai, meu Deus e vosso Deus45”. “Como o pai me enviou assim também eu vos envio46”. Pai diz-se daquele que tem poder para enviar em missão, do chefe de família, o que guia47, que revela pelo filho seu apreço48, portanto, alguém familiar, 42 EVANGELHO DE MATEUS 2, 1-12 diz que a inquietação deu-se com Herodes e toda Jerusalém. Ele teria chamado secretamente os magos e informado-se cuidadosamente sobre o dia e a hora em que aparecera a estrela. Tinham visto a estrela no Oriente e ela ia em sua frente até para no lugar onde estava o menino. 43 EVANGELHO DO PSEUDO –TOMÉ, 2, 1-5. p.68. In: São José e o Menino Jesus. Petrópolis, Vozes, 1990. 44 EVANGELHO DE MATEUS, 8, 1-3; 28-34; 12, 22-24; 14, 14-21; 15, 29-31. 45 EVANGELHO DE JOÃO, 20, 17. 46 Id; Ibidem. 20, 21. 47 ÊXODO, 13, 17- 18. Quando o Faraó deixou sair o povo, Deus não o guiou pelo caminho da terra dos filisteus, embora mais curto. Deus fez o povo dar a volta pela rota do deserto do mar vermelho. 48 EVANGELHO DE MARCOS. 1, 10-11. E logo que saiu da água viu os céus abertos e descer sobre ele o Espírito como uma pomba, enquanto uma voz dos céus dizia: Tu és o meu filho amado, de ti eu bem me agrado. 10 próximo, com quem se conversa, por quem se clama49, de quem entramos em acordo ou discordamos, fazemos pedidos, obedecemos ou desobedecemos, desenvolvemos sentimentos de afeto, de respeito. Deus, como familiaridade, é convivência do cotidiano. Ele é o pai daquele que se apresenta como seu filho, portanto, testemunha ocular dessa paternidade. Este homem que se apresenta como filho de Deus, dá testemunho dessa filiação à medida que é capaz de realizar gestos maravilhosos. A revelação dá-se através do maravilhoso. Deus é revelação, ou seja, experiência existencial. No caso de São Paulo, essa experiência é corporal, pois ele ouve uma voz que lhe fala: De repente se viu envolto em uma luz vinda do céu. Caindo por terra, ouviu uma voz que lhe dizia: Saulo, Saulo, por que me persegues? Saulo respondeu: quem és tu Senhor? E ele: Eu sou Jesus a quem persegues. Mas levanta-te, entra na cidade e serás informado do que deves fazer. Os homens que o acompanhavam encheram-se de espanto, pois ouviam perfeitamente a voz, mas não viam ninguém. Saulo se levantou do chão, mas abrindo os olhos, não via nada. Tomaram-no pela mão e o conduziram a Damasco, onde esteve três dias sem ver, sem comer nem beber50. Essa narrativa sobre Saulo é eloqüente como testemunha de historicidade da revelação. Saulo houve a voz de Jesus que é, ao mesmo tempo, o verbo originário. É o verbo originário e o Deus das relações cotidianas quem se revela. Ele foi envolvido por uma luz, a luz originária da vida. Diante dele não se ergueu uma nuvem tenebrosa como se erguera diante dos soldados egípcios que perseguiam o povo de Israel51. Envolvido em luz ele ouviu a voz de Jesus que o interrogava. A revelação ocorreu no espaço, no tempo, com pessoas, que nada tinham em comum com o cristianismo, para que essa revelação afirmasse sua historicidade. Mas entre as quais era possível revelar-se o divino. Eis o maravilhoso de manifestação do sagrado. Há uma outra manifestação pela qual se procura fundamentar a historicidade dessa revelação através do maravilhoso. Diz respeito à presença do Espírito Santo. Nos Atos dos Apóstolos, consta a seguinte narrativa: Chegando o dia de pentecostes, estavam todos reunidos no mesmo lugar. De repente, veio do céu um ruído, como de um vento impetuoso, que encheu toda a casa em que estavam sentados. E viram então, uma espécie de línguas de fogo, que se repartiram e foram pousar sobre cada um deles. 49 EVANGELHO DE MARCOS. 15, 34. Pelas três da tarde Jesus gritou com voz forte: Eloí, Eloí, lemá sabachthani. O que quer dizer: Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste? 50 ATOS DOS APÓSTOLOS. 9, 3-9. 51 ÊXODO. 14, 19-20. Então o anjo de Deus que ía na vanguarda das tropas de Israel, foi para a retaguarda. A coluna de nuvem que estava na frente passou para atrás, metendo-se entre as tropas dos egípcios e as de Israel. Para uns a nuvem era tenebrosa, para outro iluminava a noite, de modo que durante a noite inteira uns não podiam ver os outros. 11 Ficaram cheios do espírito Santo e começaram a falar em outras línguas52. O maravilhoso é um forte elemento do cristianismo originário, ele não está vinculado a um conceito sobre o sagrado, mas a uma experiência ocorrida em um lugar, num determinado tempo, com pessoas consideradas fidedignas, que transformam a sua narrativa em veracidade histórica. Por sua dimensão de historicidade, ocorre na tradição cristã o entrelaçamento do ser da revelação com os conceitos. Podemos fazer uma análise dos Evangelhos dessa perspectiva, principalmente se o objeto da análise for o discurso de Jesus. A abertura do Evangelho de São João, nos coloca diante de uma das formas dessa procura conceitual, diz ele: “no princípio era o verbo e o verbo estava com Deus, e o verbo era Deus. No princípio estava ele com Deus. Todas as coisas foram feitas por intermédio dele e sem ele nada se fez de tudo que foi feito. Nele estava a vida e a vida era a luz dos homens. E o verbo se fez carne e armou tenda entre nós”53. Isto nos revela o vínculo do cristianismo com a tradição hebraica. Ao mesmo tempo, nos coloca diante de uma duplicidade de sentido, pois o verbo é também expressão do pensamento. Deus como verbo remete para uma abstração, ao mesmo tempo, à palavra originária criadora. É no Gênesis que se encontra essa demarcação da palavra originária de Deus. “No princípio Deus criou o céu e a terra. A terra estava deserta e vazia, as trevas cobriam o oceano e um vento impetuoso soprava sobre as águas. Deus disse faça-se a luz e a luz se fez”54. A palavra se constitui como fundamento da existência e permanece como existência daquilo que faz existir. Ao mesmo tempo está dissociada daquilo a que dá existência. Esse Deus, palavra criadora encontra-se em São João, com uma outra referência, como Deus pai. Diz ele: “vimos a sua glória, a glória do unigênito do pai, cheio de graça e verdade”55. Por um lado temos a continuidade com a tradição hebraica e, por outro, um elemento que se acrescenta a essa cultura: Deus concebido como pai, ou seja, um ser cotidianamente próximo, tal como seu filho. Essa interpretação que os discípulos de Jesus dão da presença do sagrado entre os homens rompe com toda ritualística hebraica, pois coloca o humano e o divino em convivência indiferenciada, de tal modo que o único caminho para se encontrar o divino é o outro. A revelação enquanto experiência existencial não exige que se prove a existência de Deus. Não encontramos nos documentos originários do cristianismo a exigência de uma tal prova. No entanto, a prova lógica de sua existência tornou-se presente no processo de fundamentação conceitual do cristianismo, à medida que este deixa de ser uma evidência. Este processo se constitui em apropriação do sagrado pelo conceito. Entendo isto como esvaziamento do sagrado e da manifestação do maravilhoso como fundante da religião cristã. Como começou esse processo de apropriação do sagrado pelo conceito na tradição cristã? Eis o que procuramos entender. 52 ATOS DOS APÓSTOLOS. 2, 1-4. EVANGELHO DE JOÃO. I, 1-4; 14. 54 GÊNESIS. I, 1-3. 55 EVANGELHO DE JOÃO. I, 14. 53 12