CARTA APOSTÓLICA
ROSARIUM VIRGINIS MARIAE
(O Rosário da Virgem Maria)
DE JOÃO PAULO II
SOBRE O SANTO ROSÁRIO
Ir. Evilázio Teixeira
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Introdução
A cultura contemporânea é a cultura da suspeita. Aprendemos a aplicar a arte
do questionamento a tudo; mesmo aquilo que se apresentava como o mais sagrado e
essencial na vivência e nas convicções da humanidade. A suspeita pertence ao
processo humano da busca da verdade. Tampouco a teologia está isenta desta
dinâmica, já que, enquanto verbalização do divino dentro da experiência humana é
socioculturalmente condicionada. A mariologia1, por sua vez, se insere dentro deste
quadro e seu estudo traz uma suspeita ainda maior porque a mariologia não é
considerada uma disciplina central nos cursos de teologia e por outro lado sua
temática é das que mais toca o sentimento e o afeto na piedade católica tradicional e
popular. De qualquer modo a importância de Maria na vida da Igreja é um dado
notório. Além de diversas encíclicas e documentos que fazem referência explícita a
Maria, Karol Wojtyla, no início de seu ministério petrino coloca seu Pontificado sob a
proteção e bênçãos de Maria. Totus tuus! Este trabalho quer apresentar uma reflexão a
partir da última Carta Apostólica do Papa João Paulo II - Rosarium Virginis Mariae sobre o Santo Rosário. Mais que fazer uma síntese do documento em si, o presente
artigo quer recuperar alguns elementos que nos parecem importantes para a
redescoberta de Maria hoje, sobretudo, no que diz respeito à dimensão histórica,
bíblica, antropológica e teológica referentes ao estudo da mariologia atual. Pode
Maria satisfazer as buscas do homem e da mulher contemporâneos? Contemplando a
pessoa de Maria nos deparamos com uma mulher simplesmente encantadora,
riquíssima em valores humanos e em santidade. Mesmo sendo muito jovem
demonstra notável equilíbrio e maturidade. Generosa e decidida, reflexiva e ouvinte
da palavra do Senhor. Com ela todo o cristão é convidado a contemplar a beleza do
rosto de Cristo e a experimentar a profundidade de seu amor. Deste modo, qualquer
discurso sobre Maria desemboca numa cristologia.
I.
Um pouco de história
Os padres da Igreja foram responsáveis por uma imensa obra literária. As páginas
marianas, no entanto, não são tão numerosas. Aquelas que foram escritas
testemunham o interesse e um amor que busca a expressão da fé. Antes de tudo é
importante afirmar que sob o ponto de vista doutrinal a fé no mistério de Maria é uma
1
O termo Mariologia foi cunhado por Plácido Nigido, que em 1602 publicou em Palermo o livro Summae sacrae
mariologiae pars prima, no qual justifica um tratado separado referente à Maria.
2
afirmação Cristológica e por sua vez a fé em Cristo se desenvolveu como fé em Deus
e na Trindade das pessoas divinas. Embora se tratando de um estudo da evolução
doutrinal, é importante salientar que a crítica histórica atual quer evitar toda a espécie
de anacronismo, explorando o significado genuíno da linguagem de cada época.
Como se produziu o passo da linguagem bíblica aos concílios e dos padres da Igreja,
gregos e latinos? Como entender essa linguagem distinta da mentalidade e cultura
modernas? Que sabemos da fé dos cristãos que vai desde a morte do último apóstolo
aos anos 200? Os documentos convidam à prudência quando se trata de emitir juízos
sobre este período.
As cartas de Inácio, segundo sucessor de Pedro na Cátedra de Antioquia, e como
ele, morto mártir em Roma entre 107 e 110 mencionam Maria, virgem e mãe do
Salvador para mostrar a verdade da encarnação. Conhece três mistérios que
permaneceram ocultos e que, por sua vez, devem ser proclamados: a virgindade de
Maria, seu parto e a morte do Senhor. A pessoa de Maria, no entanto, alcança maior
relevância com o apologista Justino (+165). Em diálogo com Trifão chama Maria “a
Virgem”2. Justino estabelece um paralelo com Eva, comparando as duas virgens: o
caminho de desobediência e de morte descrito em Gen. 2, com o da fé e da alegria
apresentado no anúncio feito a Maria (Lc. 1, 26ss). O papel de Maria na nossa
salvação foi desenvolvido na teologia do “Padre da dogmática católica”, Irineu de
Lyon (+202)3, discípulo do bispo Policarpo de Esmirna (+156). Irineu representa a
tradição tanto do oriente quanto do ocidente4.
Tertuliano (+222), no século III, fala sobre a identidade entre o mistério de Maria
e da Igreja5. Defende-se, porém, com vigor, da concepção virginal do Senhor, não
conhece uma doutrina da virgindade de Maria no nascimento de Jesus, logo, Maria
havia dado à luz como as demais mulheres, com dor, e teria tido outros numerosos
filhos.
O séc. III nos apresenta um desenvolvimento importante: o título de Theotókos,
mãe de Deus. Orígenes é o primeiro testemunho conhecido dessa denominação6. Por
outro lado, Orígenes desperta uma importante tradição espiritual. Maria é o modelo
perfeito do discípulo. Temos que imitar a Maria a fim de que nasça em nós Cristo.
O século IV marca o fim das perseguições contra a Igreja em constante expansão.
Os imperadores Constantino e Licínio concederam à Igreja em 313 liberdade de
desenvolvimento, que se acelerou rapidamente. O próprio Constantino juntamente
com toda a sua família se fizeram cristãos. As basílicas construídas por este
2
SÃO JUSTINO, Diálogo com Trifão, 87, 2.
Seus escritos representam um grande desenvolvimento da doutrina mariana, sobretudo, contra os hereges, e sobre a
demonstração da predicação apostólica.
4
Irineu parte da idéia paulina da recapitulação: o Plano divino da salvação recomeça a obra da criação na pessoa de
Cristo, convertido no novo Adão e cabeça da humanidade. “Ele recapitulou em si a série dos homens e nos deu a
salvação para restaurar em nós a imagem e semelhança do Pai”. SANTO IRINEU, Adv.Haer. III. 18, 1.
5
TERTULIANO, Adv. Marc, 2, 4. 4 –5.; CM 1, 377.
6
Em um papiro egípcio datado desse século aparece um texto muito significativo de uma oração a Maria
correspondente a nosso Sub tuum praesidium e dirigido a Theotókos: “Sob a tua proteção e a tua misericórdia, ó
Theotókos, nos refugiamos. Não rechaces as petições que te dirigimos em nossas tribulações, mas salva-nos do perigo,
oh! casta e bendita”.
3
3
imperador e por sua mãe, santa Helena, inauguraram uma época de grande
desenvolvimento da arquitetura e da arte cristã.
A Igreja, no entanto, experimentou as dificuldades internas das controvérsias
trinitárias e cristológicas. Os quatro primeiros concílios ecumênicos (Nicéia, 325;
Constantinopla I, 381; Éfeso, 431; Calcedônia, 451) as superaram. A doutrina
mariana ficou precisada. Uma garantia da verdadeira fé era Maria, a Theotókos.
Falando em termos de doutrina todo este progresso é de natureza cristológica, e o
fundo, trinitário.
No âmbito do ocidente da Igreja latina, Ambrósio na Itália e Agostinho na África
expressaram a doutrina em termos que foram fundamentais para a tradição. Como
Efrém na Síria, traçaram um retrato da pessoa de Maria. Foi um progresso definitivo
para a devoção. Maria é a digna mãe do Senhor, do Filho de Deus. Maria, sobretudo,
é o modelo da Igreja. A verdade de Maria e a verdade da Igreja formam um único
mistério de salvação realizada por Cristo.
O culto mariano foi sendo organizado lentamente. Em Roma, após Éfeso, Sixto III
dedica a basílica liberiana restaurada de Santa Maria Maior. Nos finais do séc. VII em
Roma se celebrava quatro festas importantes nesse sentido: a Purificação
(apresentação de Jesus no templo); a Anunciação, a Assunção e a Natividade de
Maria. Com o passar do tempo essas festas começaram e ser celebradas em toda a
Igreja.
Anselmo inaugurou uma nova época teológica, a escolástica, dando a Maria seu
posto na teologia ocidental. O séc. XII pode ser chamado de mariano. Sua piedade, a
conhecemos, sobretudo, através dos célebres sermões de São Bernardo (+1153), sobre
os mistérios de Cristo e de sua mãe, em particular sobre a anunciação e a assunção.
Outro elemento importante é o fato de as ordens religiosas darem ênfase a Maria na
liturgia, na homilética e nos livros de espiritualidade. Entre as novas ordens, algumas
tomaram Maria como patrona (Ordem de Nossa Senhora do Monte Carmelo; Os
Servos de Maria...). Os monges compuseram um “pequeno ofício” mariano para
acrescentá-lo ao ofício divino aos sábados. Converteu-se com freqüência o ofício das
associações laicas. Como o latim distanciava a liturgia da compreensão popular,
inventaram-se novas formas de oração. O rosário é a mais importante.
Teólogos como São Boaventura, Tomás de Aquino precisam a teologia
soteriológica, preparando, assim, uma verdadeira elaboração da doutrina mariana,
fundada na fé na Theotókos. A maternidade divina é compreendida não como uma
maternidade somente física, mas sim na sua perspectiva espiritual enunciada já por
Agostinho prius mente quam ventre (Maria concebeu o Filho de Deus “primeiro em
seu espírito depois em seu ventre)”.
O renascimento humanista que começou na Itália tomou lugar em toda a Europa.
Jesus e sua Mãe se humanizaram. Maria se transformou numa elegante senhora
italiana, francesa, flamenga, alemã, espanhola. As virgens de Leonardo da Vinci, de
Rafael, de Miguel Ângelo, de Rembrandt, Durero, Velásquez aspiravam por uma
beleza que se aproximasse dos cânones da arte grega.
Se de um lado a cristandade européia se dividiu, no caso da reforma, vê-se
reforçada graças a uma renovação que começou na Espanha com o surgimento de
novas fundações religiosas, como a de Santo Inácio de Loyola e com as reformas
4
como a de Teresa de Jesus. A expansão cristã se estende a novos territórios: o
descobrimento da América, as missões na África e Ásia. Em todos esses setores está
manifesta a presença de Maria. Uma presença discreta. O Concílio de Trento, por
exemplo, se limita a afirmar a legitimidade do culto à Virgem Maria (DS 1821- 1825).
As transformações políticas, sociais e culturais causadas pela Revolução Francesa,
as perseguições à Igreja e a supressão das ordens religiosas na França provocaram de
modo inesperado novas fundações7.
Poderíamos falar de uma “hora de Maria”, especialmente durante o pontificado de
Pio XII (+1958). Sua consagração episcopal coincide com a primeira aparição de
Fátima, em 13 de maio de 1917. Em plena segunda guerra mundial Pio XII consagrou
o mundo (1942) e especialmente a Rússia (1952), ao coração imaculado de Maria.
João XXIII abriu solenemente o Concílio Vaticano II na festa da maternidade
divina de Maria, celebrada no dia 11 de outubro (1962). Paulo VI o concluiu na
vigília da imaculada conceição no dia 7 de dezembro de 1965. Um documento
conciliar importante é a Lumen Gentium, sobretudo o capítulo VIII. Apresenta a
doutrina clássica em termos modernos; a mãe de Deus, protótipo da Igreja, é vista
como uma pessoa que se oferece livre e conscientemente à graça de Deus. Não se
trata de colocar Maria no cristianismo, mas apenas de achá-la e aceitá-la (LG 52);
quem penetra no conhecimento de Cristo, cedo ou tarde fará a descoberta do lugar de
destaque que ocupa Maria, enquanto que, quem se aproxima de Maria, se dá conta da
sua relação essencial com Jesus Salvador (LG 57); Maria Viveu na fé, na palavra do
Senhor. Progrediu na fé, cresceu no conhecimento de Deus e do seu plano de
salvação. Perseverou na fé, apesar das duras provas a que foi submetida. É o lado
dramático do consentimento de Maria; Foi-lhe pedido mais que Abraão (LG 58).
A devoção mariana e o culto a Deus não podem ser separados; Maria nos ensina a
docilidade ao Espírito Santo (LG 59). A espiritualidade dos filhos de Maria é uma
espiritualidade eminentemente prática... e toda orientada para Cristo (LG 62).
A exortação apostólica Marialis Cultus (fevereiro de 1974) orienta o futuro da
devoção mariana. Dotrinalmente o mistério de Maria deve ser compreendido como
um mistério trinitário, cristológico, eclesial e pneumatológico. A devoção
corresponderá às necessidades contemporâneas através de quatro orientações: bíblica,
litúrgica, ecumênica e antropológica. A nota antropológica requer uma renovação da
imagem de Maria proposta ao mundo moderno. Mostrar Maria como o modelo de
pessoa humana, tendo em conta as atuais exigências do fenômeno da libertação da
mulher e do reconhecimento de seus direitos na sociedade moderna.
João Paulo II quer ser o apóstolo da mensagem de Jesus a todas as nações. Em
suas viagens pelo mundo proclama esta mensagem de liberdade e de dignidade
fazendo ver a função confiada por Deus a Virgem Maria na história de nossa
salvação. Insistindo em suas orientações de fundo, o papa publicou em 25 de março
de 1987, dedicada a Maria, a sua sexta Encíclica intitulada Redemptoris Mater (RM),
a Mãe do Redentor, aprofundando a realidade de Maria no mistério de Cristo e na
7
E Bergh enumera umas 700 congregações femininas (séculos XIX e XX), que levam uma denominação Mariana,
segundo Ch. Molette, 150 foram fundadas após a revolução francesa. O que chama atenção na história desses dois
séculos é o surgimento de célebres santuários e centros de peregrinação. São conhecidos nomes como: La Salette
(1846), Lourdes (1858), Pontmain (1871), Fátima etc.
5
vida da Igreja peregrina, de acordo, sobretudo, com o já citado cap. VIII da Lumen
Gentium e da também exortação apostólica Marialis Cultus de Paulo VI8.
II.
Fundamentação bíblica.
Comparando com outros setores da teologia, a mariologia deve enfrentar um
problema que lhe é típico. De um lado a figura de Maria cresceu muito na Igreja, ao
longo desses dois mil anos. De outro lado seu desenvolvimento devocional, litúrgico e
dogmático em termos quantitativos e qualitativos foi muito maior do que a sua base
bíblica. Isso requer um estudo sólido dos dados da Escritura sobre Maria, bem como
uma compreensão clara da relação entre Escritura e Tradição.
Poucos livros do NT falam de Maria, mas são densos de significados. A busca da
verdade sobre Maria, mais do que apresentar teses abstratas, busca o aprofundamento
da imagem evangélica, concreta, existencial de Maria de Nazaré. Nesse contexto, a
imagem de Maria que se manifesta nos Evangelhos é um reflexo da teologia das
comunidades onde seus autores viveram; é uma reflexão de fé: Maria símbolo perfeito
do discípulo de Jesus. Qual imagem de Maria nos apresentam os Evangelhos? Antes
de tudo é importante enfatizar que nos próprios textos do NT se constata uma
descoberta progressiva do significado de Maria na História da Salvação. Em primeiro
lugar aparece a imagem da virgem noiva, depois esposa de José; mulher pobre de
Nazaré. Num segundo momento a imagem da Mãe, sempre unida ao filho e presente
nas etapas decisivas da vida de Jesus. Em terceiro lugar Maria como uma presença
orante e atuante no cenáculo de Jerusalém.
Na concepção de Marcos, Maria não desempenha nenhum papel especial. Há
apenas uma cena em qual aparece (3, 31-25) e outra na qual é claramente mencionada
(6, 1-6). Ambas passagens vinculam Maria aos “irmãos de Jesus” e é apresentada
como “Mãe de Jesus”. Ela aparece junto aos familiares de Jesus que não crêem nele,
ou seja, como a mãe do rejeitado. O centro das atenções de Marcos é Jesus. Maria
aparece apenas para acentuar e confirmar o escândalo que Jesus representa.
A figura de Maria ganha uma feição de relevância no Evangelho de Mateus.Os
textos em que fala da Mãe de Jesus são: cap 1 e 2; 12, 46-50; 13, 53-58. No entanto,
apresentando a genealogia de Jesus, parte de José, não de Maria. E é no final desta
genealogia que Maria entra em cena. Ela é a esposa do antigo povo que gera o novo
ovo de Deus. Jesus não é filho de José (antigo povo), mas é filho de Maria por obra
do Espírito Santo. Em José, Mateus personifica todo o povo da Antiga Aliança, que
consegue compreender e aceitar a novidade de Jesus. Mostrando a Maternidade de
Maria, o segundo Evangelista o faz com um escopo bem definido: mostrar que Jesus é
Filho de Deus.
Lucas, por sua vez, aprofunda e amplia a percepção sobre Maria. A
característica mais relevante é que este Evangelista apresenta Maria como a crente.
“Feliz és tu que acreditaste...” É assim que Lucas define Maria (1, 45). Ela recebe a
palavra de Deus trazida pelo anjo, por Isabel, por Simeão, pela mensagem dos
pastores no presépio. Ela penetra no mistério de Jesus por revelações sucessivas. Não
lhe é dado tudo de uma vez. A revelação de Maria progride no tempo. Neste sentido,
8
Sobressai na Encíclica Redemptoris Mater algumas características profundas: a amplitude dos comentários bíblicos, o
enfoque trinitário, cristológico e pneumatológico, a importância basilar da fé na Virgem Maria.
6
ela não tem privilégios, é uma fé como a nossa. A lição admirável de Lucas: “Maria
guardava todas essas coisas, no seu coração (Lc 2, 19-51). Maria escuta a palavra de
Deus e reflete. Isso aparece desde a anunciação (1, 29), onde põe perguntas (1, 34).
Tematiza que a chave de compreensão de Maria não é a sua maternidade, mas a fé
(Lc 11, 27s). Em Maria a fé se realiza como dom e conquista. Lucas é o que nos
permite melhor descobrir a humanidade da fé de Maria. Ela recebe revelações
maravilhosas, mas as recebe na obscuridade da fé, numa reflexão, num engajamento
de toda a sua vida. Maria é a peregrina na fé, levando a bom termo a obra de Abraão.
O Vaticano II confessa Maria como aquela que “avançou em peregrinação de fé “ (LG
58). Lucas além “daquela que acreditou”, vê em Maria e no-la apresenta na sua
Maternidade virginal, no seu discipulado, na sua união ao Filho, como a ouvinte da
palavra, como a serva do Senhor e bendita entre as mulheres. No magnificat, Maria é
apresentada como a profetiza.
São dois os textos marianos em João: 2, 1-12 e 19, 25-27. Maria participa do
primeiro momento da manifestação de Jesus. Em Caná, exerce função significativa
enquanto mulher e mãe. Ela personifica a redenção messiânica empreendida por seu
Filho. Maria aparece em Caná como a mulher que acredita, desejosa de expandir a fé,
não só como a mulher que escuta e pratica a palavra, mas que pede aos demais que
façam o que Jesus, que é palavra, mandar. No episódio da cruz, Maria assume, por
desígnio seu, a maternidade de todos os homens. Faz-se mãe e companheira do
discípulo amado, figura da comunidade cristã do quarto evangelho (Jo 19, 25-27).
João mostra a presença significativa de Maria em toda a obra salvífica de Jesus.
III. Nível do culto
O capítulo VIII da Lumen Gentium incluiu Maria no “mistério de Cristo e da
Igreja” (LG 52-65). Deste modo se evita uma perigosa anomalia de uma mariologia
maximalista e não subordinada à Cristologia. Paulo VI (Marialis Cultus) é até mais
ousado. Reconhece que as manifestações da piedade mariana têm se revestido de
formas múltiplas, de acordo com as circunstâncias de tempo e lugar, com a diversa
sensibilidade dos povos e com as suas diferentes tradições culturais. Sujeitas ao
desgaste do tempo, necessitam de renovação, para valorizar os elementos perenes e
substituir os caducos, incorporando os dados da reflexão teológica e do magistério. O
culto mariano deve seguir os seguintes critérios: ser cristológico e trinitário (MC 25),
colocar Maria no lugar que ocupa na Igreja (MC 27) ter um cunho bíblico e litúrgico
(MC 30) ser sensível às novas concepções antropológicas e a realidade
psicossociológica (MC 34), e alimentar o senso ecumênico (MC 32). Atualmente
florescem novas formas de culto e devoção a Maria que podem ser compreendidas
dentro do contexto de “volta do sagrado”. A Igreja alerta, porém, que este culto não
pode nutrir-se de meros elementos exteriores, carregados de um sentimentalismo
estéril e passageiro que desembocam numa vã credulidade (LG 67, MC 38). A
finalidade última do culto à Bem-Aventurada Virgem Maria é glorificar a Deus e
levar os cristãos a aplicarem-se numa vida absolutamente conforme à sua vontade
(MC 39).
IV.
Nível dogmático
O nível dogmático compreende os quatro dogmas marianos: a virgindade, a
maternidade, a Imaculada Conceição e a Assunção. Os dois primeiros dogmas
7
(virgindade e maternidade) encontram suas raízes nas Sagradas Escrituras e se
desenvolveram, sobretudo nos primeiros séculos em paralelo com as definições
cristológicas. Os dois últimos têm a ver com a “fé atual” da Igreja e com o
crescimento vertiginoso do culto a Maria nos últimos séculos. Os quatro dogmas
marianos apresentam diferente valor para o conjunto da fé. Se de um lado há uma
discrepância entre o catolicismo e as denominações cristãs evangélicas, começando
pela ausência de dados bíblicos. De outro lado cabe lembrar a orientação do Vaticano
II, no decreto sobre a Prática do Ecumenismo: existe uma hierarquia de verdades de
fé na doutrina católica, já que o nexo delas com o fundamento da fé cristã é diverso
(UR 11). Os dogmas marianos requerem uma contínua reinterpretação. Eles não só
asseveram verdades de caráter histórico-fatual, como também simbólico-relacional.
Falam não somente de Maria, mas também do cristão, da Igreja e da humanidade. O
sentido profundo de cada dogma deve ser buscado, levando em conta a sua posição
em relação ao centro da fé, as contribuições recentes da teologia, e a sensibilidade
atual das pessoas e culturas.
V.
Suspeitas levantadas contra a Mariologia
Com relação a mariologia, algumas suspeitas são levantadas hoje. Tais
desconfianças se colocam basicamente em três planos distintos: psicológico e
psicanalítico, o sociológico e sociocultural e o da história das religiões.
No que se refere ao caráter psicológico e analítico a psicologia mostrou que, desde
o seio materno, a imagem da mãe é condicionante para a psique humana. A partir
dessa experiência primordial, a imagem da mulher-mãe em cada pessoa é bem
complexa e concomitantemente determinante para a saúde psíquica. É fácil
compreender que, na piedade e teologia mariana, possa haver erros e desvios
patológicos9. Certas formas de devoção poderiam tornar-se legitimação de
imaturidade, seja pessoal como coletiva. O abandono à mãe possibilita legitimar e
sustentar as dificuldades em aceitar a maioridade. Infantilismo, imaturidade, exaltação
patológica da mãe manifestam fixação afetiva e conseqüente dependência da mãe
idealizada. O filho se faz escravo da mãe, mas como escravo torna-se tirano, porque
quer a mãe só para si. O problema pode ter origem na mãe possessiva que exige amor
exclusivo numa espécie de chantagem10.
No plano religioso essa dinâmica pode traduzir-se numa idealização da mãe
projetada sobre a figura de Maria. Esses fenômenos podem estar mais presentes e
freqüentes em homens celibatários que não têm as relações habituais com o outro
sexo. Maria pode assumir em sua vida o papel do feminino inacessível, o “eterno
feminino”, capaz de substituir todas as mulheres concretas. Uma sublimação que pode
ser sinal de desprezo, – uma rejeição – consciente ou não às mulheres concretas11. No
caso da devoção mariana, há o agravante onde a mãe a que o filho se apega
possessivamente é também virgem. O que acentua a exclusividade e o obriga à
reciprocidade: também o filho deve ser virgem por fidelidade à mãe12.
9
F. TABORDA, Todas as gerações me chamarão bem-aventurada: desafios atuais ao tratado de mariologia:
Perspectiva Teológica, 24 (1992), p. 30.
10
F. TABORDA, Op. Cit., p. 31.
11
Ibid., p. 31.
12
Cf. A. ROUET, Maria e a vida cristã, São Paulo, Paulinas, 1980, pp. 18 – 19.
8
Observa-se em psicologia que o celibatário permanece muito ligado à própria mãe.
De um certo modo há a suspeita que Nossa Senhora possa ser uma transposição
religiosa desses laços afetivos que seriam assim reforçados13. A suspeita aumenta
ainda, quando se constata que a mariologia – como toda a teologia – foi feita
fundamentalmente por celibatários masculinos. Por trás dessa suspeita está presente
como pano de fundo uma pergunta: não seria a mariologia um reforço à fantasia
masculina que vê na mulher ou a grande santa ou a grande pecadora e não a pessoa
humana concreta feminina14? Merece aceno à psicologia analítica, sobretudo a
abordagem de C. G. Jung, pelo seu particular interesse pela mariologia. Não se trata
de aprofundar toda a sua teoria sobre os arquétipos, mas sim aquilo que ele afirma
sobre Maria. Segundo a psicologia junguiana dos arquétipos, o arquétipo feminino –
como todo arquétipo – é ambivalente: luz e sombra, boa e má, acolhedora e terrível.
Justamente nessa ambivalência do arquétipo da mãe se encontra a sua crítica a
mariologia, embora Jung reconheça a importância psicológica do culto mariano
católico. Para Jung o cristianismo não integrou o arquétipo feminino em sua
totalidade, isto é, em sua polaridade negativa e positiva. O cristianismo rejeitou e
reprimiu a sombra. Maria é só luz, o que leva a uma crescente espiritualização
unilateral do feminino. Jung observa que o cristianismo não integrou os dois pólos,
logo os separou, conferindo a luz ao arquétipo Maria e o aspecto destrutivo da Grande
Mãe, a Eva. A questão que se coloca é justamente essa: como fazer com que o culto a
Maria, a cheia de graça, só luz, não leve ao recalque do pólo negativo do arquétipo
que, assim reduzido ao inconsciente, passaria a agir negativamente (inclusive nas
mulheres) na forma de hostilidade contra a mulher e a sexualidade, numa espécie de
racionalismo teológico onde prepondera o intelectual sobre o simbólico15.
Para Jung a veneração católica a Mãe de Jesus é sinal de saúde psíquica, a aversão
protestante, pelo contrário, corre o risco de neurose. Ele dedicou atenção especial ao
dogma da assunção de Nossa Senhora16. Reconhecendo nesse dogma a manifestação
profunda da psique humana por uma glorificação e redenção do feminino. O dogma
da assunção era uma resposta às leis arquétipicas que reivindicavam uma
quarternidade (já que a fórmula do inconsciente representa uma quaternidade)17.
Em relação às suspeitas ditas sociológicas ou socioculturais, nos deteremos
somente naquelas advindas a partir do feminismo. Maria sempre foi apresentada à
mulher como modelo. Entre o século I até o início do século XX o modelo
sociológico da mulher é a mulher do lar, dos afazeres domésticos, dedicada aos filhos,
ao marido e à cozinha18. As amplas mudanças que aconteceram ao longo do século
13
F. TABORDA, Op. Cit., p. 32.
“O elemento maternal, a autoridade mágica do feminino, a sabedoria e a elevação espiritual para além do intelecto; o
que é bom protetor, paciente, que sustenta, que favorece o crescimento, a fecundidade, a alimentação; o lugar da
transformação mágica, do renascimento, ou ainda o outro lado da medalha que seria o que existe de secreto, de
escondido, de obscuro: o abismo, o mundo dos mortos, aquilo que devora, que seduz, que envenena, que provoca a
angústia, inelutável”. P. IWASHITA, Maria e Iemanjá. Análise de um sincretismo, São Paulo, Paulinas, 1991, p. 204.
15
Ver P. IWASHITA, Op. Cit., p.293 – 299.
16
Cf. C. G. JUNG, Resposta a Jó, Petrópolis, Vozes 1980, pp. 103 – 112.
17
Cf. C. G. JUNG, Psicologia e religião, Petrópolis, Vozes, 1990, p. 64. Para Jung a concepção de Deus como Trindade
não é equilibrada do ponto de vista psíquico. O catolicismo, ‘divinizando’ Maria pela assunção, segue o caminho da
saúde mental, ao contrário do protestantismo que a rejeita.
18
Ver R. LAURENTIN, “Marie et l’anthropologie chrétienne de la femme”, NRTh (1967) 485 – 515, p. 486.
14
9
passado suscitam a emancipação da mulher e o movimento feminista19. As críticas do
movimento feminista à mariologia podem ser resumidas basicamente em duas: a)
Maria é um modelo perigoso para a mulher, um modelo opressor criado pela
dominação masculina; b) Maria significa a idealização da maternidade em detrimento
da mulher concreta. A confluência das duas características torna Maria inimitável. De
outra parte, o fato de não poder ser respectivamente virgem e mãe, a mulher concreta
terá de escolher entre uma e outra. Isto quer dizer que, na Igreja católica a mulher, ou
será mãe ou freira. Dito em outros termos: ou a mulher segue a natureza e será mãe,
ou a transcende e será freira. “O cume da história da sexualidade feminina é o seu
não-uso. Numa época em que as mulheres descobrem sua sexualidade e se tornam à
vontade com esse dom, tais ideais, incorporados em Maria, é rejeitado
energicamente20”.
Sob o ponto de vista da história das religiões a suspeita se baseia na tese de
que as religiões da humanidade conhecem não somente deuses (do sexo masculino),
mas também deusas (de sexo feminino). O Cristianismo, seguindo a teia do Judaísmo,
adora um Deus masculino, patriarcal. Somente que o ser humano tem necessidade do
feminino também no âmbito da religião. A repressão do feminino na compreensão
cristã de Deus é equilibrada por Maria, que desempenha então o papel do feminino
numinoso que seria uma espécie de substitutivo cristão da deusa-mãe das religiões do
Oriente Próximo antigo e, ao mesmo tempo, das deusas virgens da religião grega21.
No que diz respeito a Maria, faz-se analogia à deusa Ísis que apresentada como
modelo de mãe, já que concebeu de forma maravilhosa (depois da morte de Osíris).O
culto vertiginoso do culto a Maria, não poucas vezes misturou-se acriticamente com
elementos da cultura, por exemplo, as figuras da “deusa-mãe”. Na arte copta (séc.
VI), há semelhanças entre Maria e Ísis também no campo iconográfico. Ambas são
apresentadas amamentando o filho. A virgem que dá o peito levou a pensar numa
possível influência no Egito da imagem da deusa Isis, que sustenta ao deus Horus.
VI. Por uma Mariologia pós-suspeitas
Todas estas suspeitas nos obrigam a fazer uma correção de perspectiva. Elas
previnem contra uma mariologia demasiadamente centrada em Maria como mãe e
mulher (esposa) ideal, para acentuar seu discipulado. Jung contribui à mariologia
chamando a atenção sobre a importância da integração do masculino e do feminino na
psique humana e nesse particular a figura de Maria como arquétipo. O sentido de
Maria na história da salvação responde a uma necessidade profunda do psiquismo
humano. Ela é, enquanto mulher, arquétipo do ser humano integrado, não da mulher.
A pesquisa empírica do cérebro mostra que o dualismo sexual é problema tipicamente
masculino22. Neste caso é um problema para os homens que tendem a distinguir, não
integrar as diferenças. Esta integração de masculino e feminino na psique humana
pertence também à volta ao símbolo e ao mito como expressões humanas e, portanto,
19
Ver F. TABORDA, “Feminismo e Teologia Feminista no Primeiro Mundo. Breve panorâmica para uma primeira
informação”. PT 22 (1990) 312 – 322.
20
Ver E. A. JOHNSON, “The Marian Tradition and the Reality of Women”, Horizons 12 (1985) 116 – 135.
21
Cf. F. TABORDA, Op. Cit., p. 39.
22
Cf. F. TABORDA, Op. Cit., p. 41.
10
a legitimação de seu lugar na teologia contra tendências racionalistas23. Neste sentido
cabe buscar o equilíbrio entre emoção e razão. Desenvolver a aptidão de vivenciar e
experimentar sentimentos, mas também a capacidade da razão, da ordem que organiza
e dá clareza24. Quer dizer nenhum racionalismo teológico, nem mera poesia são
caminho para a mariologia. A solução está na dosagem do simbólico com o racional.
Referente às suspeitas levantadas pela problemática feminista cabe reconhecer
o uso opressor da figura de Maria, no fato que sua exaltação não influenciou na
estrutura de poder na Igreja. Por outro lado, as teólogas feministas reconhecem que a
imagem evangélica de Maria pode ser libertadora da mulher. Mas isto implica uma
mariologia que não faça de Maria simplesmente a figura dócil e submissa de mulher.
Neste particular, por exemplo, a valorização da virgindade feminina possui também
seu aspecto libertador: a mulher que se reconhece e mostra que pode realizar-se
plenamente sem o varão.
Uma das grandes contribuições da teologia feminista à mariologia é ensinar
que Maria não deve ser pensada como o símbolo da mulher, mas como o símbolo da
humanidade nova que entre outras coisas reúne racionalidade e emotividade. Porém, é
importante sublinhar que não basta que Maria seja reconhecida como símbolo da
humanidade nova, mas que ela o seja enquanto mulher. Um outro elemento da
teologia feminista é também a valorização da mariologia popular como forma
alternativa à imagem patriarcal da mulher, enquanto preserva até hoje a tradição da
mãe-terra autônoma que distribui o poder da fecundidade e da renovação do mundo25.
A suspeita no plano da história das religiões, historicamente a relação entre
Maria e as deusas, sejam mães ou virgens, não passa de uma hipótese muito difícil ou
mesmo impossível de ser demonstrada. No que se refere à iconografia de Ísis e as
mais antigas figuras de Maria amamentando o Menino, diferenças são palpáveis. Ísis
é uma figura rígida, hierática, com chifres de vaca e círculo solar de Hator. Maria pelo
contrário é uma figura próxima, humana, juvenil, com vida interior. A história das
religiões poderia contribuir à teologia, no sentido de fazer emergir o imperativo de um
“rosto materno de Deus”. A teologia feminista deu a sua contribuição ao explorar os
traços femininos do Deus de Jesus, negligenciados por uma tradição patriarcal. Na
mariologia não faltaram tentativas como, por exemplo, a de Leonardo Boff, embora
não represente grandes progressos.
VI.
Rosarium Virginis Mariae
O papa começa abordando já na introdução, que o Rosário é uma oração apreciada
por numerosos santos e fomentada pelo Magistério. Ainda que se distinga pelo seu
caráter mariano, o Rosário é uma oração centrada na cristologia. O povo cristão
23
Ver B. FORTE, Maria, a mulher ícone do Mistério. Ensaio de mariologia simbólico-narrativa, São Paulo, Paulinas,
1991, 15 – 18.
24
“O ser humano assemelha-se a uma Mesopotâmia. Um dos rios é a emocionalidade, a capacidade de permitir seus
sentimentos, de vivenciá-los, de experimentá-los como correnteza caudalosa sui generis e deixar-se levar por ela...
Sabemos que emoções nos dão profundidade e altura, mas que também nos podem transbordar e aprisionar. Mas
também há o rio da racionalidade, da razão, da ordem, ou pode criar clareza, visão de conjunto e prudência. Ambos os
rios são de importância, ambos são necessários, e só quem ousa revigorar-se em ambos pode viver em equilíbrio”.
HALKES, US 1977, 328.
25
Vale a pena A. GONZÁLEZ – DOURADO, Mariologia popular latinoamericana. De la Maria conquistadora a la
Maria liberadora, Asunción, Loyola, 1985, 47 – 50.
11
aprende de Maria a contemplar a beleza do rosto de Cristo e a experimentar a
profundidade de seu amor.
Compreendido em seu pleno significado o Rosário conduz ao coração mesmo da
vida cristã e oferece uma oportunidade ordinária e fecunda espiritual e pedagógica,
para a contemplação pessoal, a formação do Povo de Deus e a nova evangelização
(RVM 3).
João Paulo II insiste num cristianismo que se distinga, antes de tudo, pela arte da
oração. Enquanto na cultura contemporânea, incluindo tantas contradições, aflora uma
nova exigência de espiritualidade, impulsionada também pelo influxo de outras
religiões, torna-se mais urgente do que nunca que nossas comunidades cristãs se
convertam em “autênticas escolas de oração”. Neste sentido: “O Rosário forma parte
da melhor e mais reconhecida tradição da contemplação cristã. Iniciado no Ocidente,
é uma oração tipicamente meditativa e corresponde de algum modo com a “oração do
coração”, ou “oração de Jesus” surgida sobre o húmus do Oriente cristão (RVM 5).
O documento é composto de três capítulos. No primeiro, Contemplar a Cristo
com Maria, inicia com a cena evangélica da transfiguração de Cristo que pode ser
considerada como o ícone da contemplação cristã. “Fixar os olhos no rosto de Cristo,
descobrir seu mistério no caminho ordinário e doloroso de sua humanidade, até
perceber seu fulgor divino manifestado definitivamente no Ressuscitado glorificado à
direita do Pai, é a tarefa de todos os discípulos e, portanto, também nossa” (RVM 9).
A contemplação de Cristo encontra em Maria seu modelo insuperável. E o Rosário é
uma oração eminentemente contemplativa. Como sublinhou Paulo VI: “Sem
contemplação, o Rosário é um corpo sem alma e sua reza corre o perigo de converterse em repetição mecânica de fórmulas... Por sua natureza a reza do Rosário exige um
ritmo tranqüilo que favoreça a quem reza a meditação dos mistérios da vida do
Senhor, vistos através do coração d’Aquela que esteve mais perto do Senhor, e que
desvela a sua insondável riqueza”. A contemplação de Maria é antes de tudo um
recordar. A Bíblia é a narração de acontecimentos salvíficos, que têm seu cume no
próprio Cristo (RVM 13). Não se trata apenas de compreender as coisas que Jesus
Cristo ensinou, senão de compreendê-lo. Nesse sentido afirma o Papa “No Rosário o
caminho de Cristo e o de Maria se encontram profundamente unidos. Maria não vive
mais que em Cristo e em função de Cristo” (RVM 15).
No segundo capítulo, Mistérios de Cristo, Mistérios da Mãe, o Papa continua
ressaltando o caráter cristológico do Rosário, no sentido que essa oração permite
contemplar também os mistérios da vida pública de Jesus desde o Batismo até à
paixão. Em todos esses mistérios contemplamos aspectos importantes da pessoa de
Cristo como revelador definitivo de Deus (RVM 19). Maria faz-nos compreender que
nossa vida cristã é chamada a ser evangelion, ‘boa notícia’, que encontra seu centro,
seu conteúdo na pessoa de Cristo, o Verbo feito carne, único Salvador do mundo
(RMV 20). Quem quiser conhecer profundamente a pessoa humana, tem de saber seu
sentido, sua raiz e seu cumprimento em Jesus Cristo. O Concílio Vaticano II insiste
12
que quem contempla Cristo recorrendo às etapas de sua vida, descobre também a
verdade sobre o homem26.
Passando da infância da vida de Nazaré à vida pública de Jesus, a contemplação
nos leva aos mistérios que se pode chamar de modo especial “mistérios de luz”27. Na
realidade todo o mistério de Cristo é luz. Esta dimensão, porém se manifesta,
sobretudo, nos anos da vida pública, quando anuncia o evangelho do Reino (RVM 21).
O Papa indica cinco momentos significativos: 1) O Batismo no Jordão; 2) As bodas
de Caná; 3)O anúncio do Reino de Deus; 4) A Transfiguração; 5) Instituição da
Eucaristia, expressão sacramental do mistério pascal.
O Rosário promove este ideal oferecendo o ‘segredo’ para abrir-se mais
facilmente a um conhecimento profundo e comprometido de Cristo. João Paulo II o
chama o caminho de Maria (RVM 24). Em seu testemunho pronunciado em 1978
sobre o Rosário como sua oração predileta, o Papa afirmou: “A simples reza do
Rosário marca o ritmo da vida humana28”.
No terceiro capítulo, Para mim a vida é Cristo, o Papa reitera a idéia que, para
compreender o Rosário, deve-se entrar na experiência universal do amor humano. Na
dinâmica psicológica que é própria do amor. A repetição favorece o desejo de uma
configuração cada vez mais plena com Cristo, verdadeiro programa da vida cristã
(RVM 26). São Paulo o enunciou com as palavras ardentes: “Para mim a vida é Cristo,
e a morte uma ganância”(Fil. 1, 21). E ainda “Não sou eu que vivo, mas é Cristo que
vive em mim” (Gl 2, 20). Neste particular, a escuta e a meditação se alimentam do
silêncio. A redescoberta do valor do silêncio é um dos segredos para a prática da
contemplação e da meditação. Um dos limites de uma sociedade tão condicionada
pela tecnologia e pelos meios de comunicação social é que o silêncio se faz cada vez
mais difícil (RVM 31). O que realmente importa para o Papa é que o Rosário venha
compreendido e experimentado como um itinerário contemplativo. (RVM 38).
“Enquanto nos faz contemplar Cristo, o Rosário nos faz também construtores da paz
no mundo. Pelo seu caráter de petição insistente e comunitária, em sintonia com o
convite de Cristo de ‘rezar sem cessar’(Lc 18, 1), nos permite esperar que hoje se
possa vencer também uma ‘batalha’ tão difícil como a da paz. Deste modo o Rosário,
em vez de ser uma fuga dos problemas do mundo, nos impulsiona a examinarmo-nos
de maneira responsável e generosa, e nos concede a força de afrontá-los com a certeza
de que a ajuda de Deus e com o firme propósito de testemunhar em cada circunstância
a caridade” (RVM 39). O Papa encerra sua Carta Apostólica conclamando a todo povo
26
“Seguindo o caminho de Cristo, no qual ‘recapitula’ o caminho do homem desvelado e redimido, o crente se situa
ante a imagem do verdadeiro homem. Contemplando seu nascimento aprende o caráter sagrado da vida, olhando a casa
de Nazaré instrui-se na verdade originária da família segundo o desígnio de Deus, escutando o Mestre nos mistérios de
sua vida pública encontra a luz para entrar no Reino de Deus e, seguindo seus passos até o Calvário, compreende o
sentido da dor do salvador. Por fim, contemplando a Cristo e sua Mãe na glória, vê a meta a que cada um de nós está
chamado, se se deixa sanar e transfigurar pelo Espírito Santo. Deste modo, se pode dizer que cada mistério do Rosário,
bem meditado, ilumina o mistério do homem” (RVM 25).
27
O Papa aconselha que os Mistérios da luz sejam meditados na quinta-feira. “Segundo a práxis corrente, nas segundas
e nas quintas estão indicados os ‘mistérios gozosos’, nas terças e nas sextas os ‘mistérios dolorosos’, nas quartas,
sábados e domingos os ‘gloriosos’. Onde introduzir os ‘mistérios da luz’? Considerando que os mistérios gloriosos se
propõem seguidos os sábados e domingos, e que o sábado é tradicionalmente um dia de marcado caráter mariano,
parece aconselhável transladar ao sábado a segunda meditação semanal dos mistérios gozosos, nos quais a presença de
Maria é mais destacada. Ficam assim livres as quintas feiras para a meditação dos mistérios da luz.
28
Ângelus de 29 de outubro de 1978. L’Osservatore Romano, ed. Semanal em língua espanhola, 5 novembro 1978, 1.
13
de Deus a tomar nas mãos o Rosário, descobrindo-o novamente à luz da Escritura, em
harmonia com a Liturgia e em contexto com a vida cotidiana (RVM 43).
Considerações finais
A dimensão antropológica vem sendo muito acentuada. A abordagem sobre Maria,
de um certo modo, não está isenta de uma certa antropologia. Pode Maria satisfazer as
buscas do homem e da mulher contemporâneos? Acreditamos que sim. Em Maria o
ser humano projeta seus desejos e anseios mais profundos. Ela é a pessoa humana
realizada, aquela que mais atingiu a perfeição. Se quisermos saber como o ser
humano se humaniza somos convidados a contemplar e nos defrontar com a pessoa de
Maria de Nazaré. Ela representa uma antropologia sobrenatural realizada. A pessoa
humana tem necessidade de um ente como Maria. Neste sentido o Cristianismo tem a
felicidade de ter Maria, que não é um mito, mas uma pessoa histórica.
Maria foi a criatura que, durante toda sua vida e sem interrupção cooperou plena e
totalmente com a graça de Deus. Admirável também é o fato dela ter sempre
permanecido livre. Ela é a fiel ouvinte da palavra de Deus. Esta palavra, sempre
antiga e atual, possui um duplo efeito em nossas vidas. Em primeiro lugar, a palavra
de Deus ajuda a desembaraçamo-nos do egoísmo e dos apegos que impedem de
progredir na resposta ao Espírito. Num segundo aspecto, a palavra de Deus, nos
indica a direção certa para seguir o caminho da verdade, e da vida.
Maria é a esperança realizada. Ela é em primeiro lugar a filha amada do Pai, em
relação de confiança filial, e por isso mesmo obediente. Nela, por viver desde o seu
ser o sonho de amor do Pai, há uma total identificação do sonho de Deus com a sua
realidade. A grandeza de sua maternidade está na sua fé. Sua vocação é ao mesmo
tempo única e idêntica à nossa. Com ela toda pessoa é convidada a confrontar-se e
colocar-se nas pegadas de Jesus. Toda a sua existência é plena comunhão com Cristo
(Puebla 292). Maria é elevada ao máximo na participação com Cristo. Puebla ainda
continua no número 303, “esta é a hora de Maria na América Latina. Maria é a estrela
da evangelização”.
Por meio de Maria temos certeza que Deus ao nos abandona na nossa desgraça.
Nela se abre uma perspectiva de esperança de que não estamos sozinhos. “Não serás
mais chamada abandonada, nem a tua terra, solitária! Mas chamar-te-ão: Esta me
agrada! Porque o Senhor se comprazerá em ti e a tua terra terá esposo... Assim, como
o jovem desposa uma virgem... Teu Deus se alegrará em ti” (Is. 62, 4-5). É então que
as palavras tornam-se balbucio e contemplação constante; “Ave Maria, cheia de
graça...”.
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