«UM OLHAR SOBRE O PÃO»
Exposição
Exposição de Fotografia de José Luís Santos
Santos
Todos os dias convivemos com ele desde os tempos da nossa mais
remota memória. É no supermercado, na padaria ou mesmo à mesa. O
pão é um alimento que nos acompanha diariamente e que faz parte dos
nossos hábitos. Quem nunca desfrutou do prazer de o abrir pouco depois
de sair do forno e barrá-lo com uma lasca de manteiga que se vai
derretendo à medida que se sente envolta no seu calor?
Estamos
habituados
à
sua
presença,
mas
muitas
vezes
desconhecemos o seu percurso até chegar ao produto final, aquele com
que a maioria de nós lida regularmente. Tudo começa na terra, com a
plantação dos cereais que mais tarde o sol da época quente do ano fará
crescer e doirar para depois, já no Outono, serem apanhados. Milho, trigo,
centeio, ou uma mistura de uns com outros, consoante o gosto de quem
depois o come, são os ingredientes do alimento base na nossa
alimentação. Para nós acaba por sobressair o primeiro pela familiaridade
que temos da sua presença nos campos lousanenses que ainda vão sendo
cultivados. Em meados de Setembro, ou mesmo em Outubro, mediante a
zona onde foi plantado, é altura de proceder à sua apanha. Quem tem
terras maiores chama os vizinhos, familiares ou assalariados para darem
uma ajuda numa tarefa que se pode estender por alguns dias. As leiras
vão sendo esvaziadas enquanto que o tom doirado das espigas se vai
acentuando nos baldes e nas sacas que se vão aos poucos enchendo para
depois serem carregadas para mais tarde se fazer a descamisada. É nesse
contexto
que
surgem
as
histórias
do
milho-rei,
o
que
tem
a
particularidade de se distinguir dos demais pela sua tonalidade cor de
vinho. Durante a descamisada, quem o encontrasse seria brindado pelos
colegas e daria a volta ao grupo a abraçar um a um.
Depois de apanhado, descamisado e debulhado, o milho segue para
a sua próxima etapa, a moagem. No concelho da Lousã ainda subsistem
alguns moinhos que movimentam as suas pesadas pedras pela força da
água. Um deles é, ou era, em Cacilhas. Quem produz o seu próprio pão ou
broa em casa deslocava-se ali semanalmente para adquirir este e outros
cereais já moídos. Esta tarefa estava longe de ser simples. Nestas lides, a
água é quem mais ordena e a moleira encontra-se constantemente
dependente das oscilações do caudal que a levada apresenta. Por isso, de
dia ou de noite, consoante as suas possibilidades, ouvia o ruído da força
hidráulica a chamá-la para o trabalho. Não há horário de funcionamento,
salvo o bom senso da rentabilização ou racionamento da água. A partir
daqui, tudo está já preparado para seguir para uma próxima etapa.
Outros moinhos há em funcionamento, como é o caso da zona da central
hidroeléctrica ou do Penedo.
Quem compra a farinha, leva-a para casa e junta-a na amassadura,
ao sal, ao fermento e ao crescente, o pedaço que restou na vez anterior,
dando assim continuidade a uma dialéctica que remonta aos tempos em
que o próprio forno, já com uma idade respeitável, muitas vezes superior
à de quem aí retira a broa, iniciaria as suas funções. Forno esse que já
assistiu à passagem de várias gerações da mesma família, sendo o único
membro que se manteve sempre presente e inalterável ao longo dos
tempos.
Depois de se arranjar uma panela de água quente, juntam-se os
ingredientes na gamela para misturar tudo de modo a criar a fórmula
ancestral que nós chamamos a massa. É uma tarefa árdua que exige
muita força, algum suor e persistência nos gestos. Bate-se tudo com a
força das mãos, seja com punhos fechados, mexer e remexer tudo
insistentemente, seja de mãos abertas e fechadas para apertar a massa e
energia extra para levantar a composição e batê-la repetidamente no
fundo da gamela. A dada altura, depois de muitas investidas, sente-se
que esta já se encontra em condições de prosseguir para o forno. Antes
disso, há que benzer a massa para que a providência faça a sua parte e
tudo saia à altura de um manjar dos deuses. Reza feita, transporta-se a
gamela para a casa do forno, um pequeno espaço, exíguo por natureza,
mas ideal para proceder à cozedura. O forno já à algum tempo que arde.
Foi aceso antecipadamente para estar bem aquecido e com todas as
condições necessárias para exercer a sua função. A pá já está à espera,
debruçada para receber a massa já com a forma arredondada que a tigela
lhe dá. Acomodam-se as brasas à entrada com o rodo e de seguida
coloca-se a primeira leva. Volta-se a polvilhar a pá com farinha para
colocar a segunda, depois a terceira e assim consecutivamente até acabar
a massa e encher o forno. Durante uma hora, a matéria a que se chamava
massa adquire o nome de broa. Neste espaço de tempo, ganhou
consistência, um odor suave mas não menos saboroso e já pede para sair
do ventre do forno. A pá que o pôs é a pá que o tira. A cesta de vime está
à espera para acolher a broa que, quando é posta no seu seio é tapada
com mantas parra não perder logo ali o calor que tão bem a caracteriza e
lhe dá sabor. Agora, há que pensar na próxima vez, para dar continuidade
à velha dialéctica. Com uma faca, raspam-se da gamela os restos de
massa que servirão de crescente para a próxima amassadura. Depois de
lavar os utensílios, a única coisa a fazer é mesmo desfazer a broa com as
mãos e barrar um naco com manteiga.
O lugar da padaria nesta história é algo indissociável. É daqui que
saem todas as formas de pão e de broa que consumimos diariamente. É o
trabalho noctívago dos padeiros que nos proporciona um dos prazeres da
manhã. Por volta da hora de jantar começam as lides num espaço que aos
poucos vai ganhando vida. A força dos braços é trocada pela das
máquinas. A amassadora industrial já foi ligada e metem-se agora os
componentes habituais: a farinha, a água, o fermento e o sal. Pouco
depois, já a ateria é deslocada para a enorme mesa para ser repartida e
vários pedaços que são os rebentos do que será posteriormente
denominado de pão. Depois, chega também a sua hora de ir ao forno,
este também aquecido pelas labaredas da lenha. Enquanto se faz uma
cozedura, prepara-se já outra, num gesto já tão metodizado pelos anos de
experiência destes profissionais das artes da panificação. As máquinas não
param. Eles também não. O odor a pão quente assinala a hora da tirada
da primeira fornada. Nesse compasso de espera, a segunda está já pronta
a entrar no forno. Mais um pedaço de lenha é colocado para dar mais
vigor ao forno e ao calor que aquece o espaço e cria a sensação de refúgio
naquela noite de Inverno. Quando a noite já vai longa, aquece-se lá pelo
meio qualquer coisa parra comer. Após o efémero intervalo que nem
chega a sê-lo por haver sempre algo para fazer, já se está a tirar outra
fornada de pão, agora de centeio, dizem. «É uma tiragem diferente»,
apontam, «e a quem vem a caminho também o será». O universo do pão
é vasto, talvez se confeccione de quase tantas maneiras como o bacalhau,
seu companheiro de longa data nos prazeres do Pantagruel. Os ponteiros
do relógio já passam das três da matina. O pão está disperso por vários
caixotes que vão sendo levados por alguém que os há-de deixar à porta
de casa de cada um de nós. É tempo de fazer limpezas, contas e o
balanço do dia. A noite de trabalho acabou.
De manhã, pegamos no pão e damos-lhe o uso que o nosso apetite,
ou gula, nos indica. E mal sabemos que ele tem um percurso e uma
história por contar.
José Luís Santos
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Um Olhar sobre o Pão - Castanheira de Pera