Recordações de um primeiro dia de escola – Ponta Delgada 1949 Jornal Online AÇORIANO ORIENTAL Artigos de Opinião | 2011-09-06 12:23 O meu primeiro dia de escola foi a 7 de Outubro de 1949. Meu Pai tinha-me levado ao velho edifício da Escola Masculina da Freguesia de São José num dos primeiros dias do mês para me matricular. Foi preciso apresentar a cédula pessoal e pagar uma multa, visto eu não ter ainda completado 7 anos de idade. Na manhã do dia do começo das aulas, antes das 8 horas da manhã, já estava no passeio em frente à escola, pela mão de minha Mãe, tal como os outros meninos. A escola ficava no Campo de São Francisco, um dos lugares mais emblemáticos da cidade de Ponta Delgada. Para chegar lá, saindo da casa de meus Pais, na Rua de Lisboa, tinha apenas de virar à esquerda, seguir ao longo da contígua Fábrica de Cerveja e Refrigerantes Melo Abreu, contornar a cervejaria da esquina e descer a Avenida do Coliseu, sempre sem sair do passeio. Só tinha de atravessar a rua em frente à Igreja da Esperança para entrar no recinto do Campo, com os seus bancos e árvores frondosas e o coreto no meio, cercado por um tanque com peixes, rãs e nenúfares em toda a volta, no qual a Banda Militar dava concertos ao fim das tardes de Verão, às quintas e domingos, antes do toque de recolher no vizinho castelo de São Brás. Era um espaço bem conhecido, onde as famílias da vizinhança passavam ao fresco os serões da estação quente. Havia largueza para os rapazes correrem e brincarem ao berlinde, ao pião, aos polícias e gatunos, enquanto as meninas faziam rodas e cantavam modas antigas. Por isso passei logo a ir sozinho para a escola, que não havia perigo, de trânsito ou qualquer outro, para as crianças. Levava na mão a mala, de cartão verde, estreada nesse mesmo dia e que iria acompanhar-me ao longo de toda a instrução primária. Dentro dela iam o Livro de Leitura para a Primeira Classe, que já tinha servido ao meu Irmão mais velho e à minha Irmã e viria ainda a ser utilizado pelo meu Irmão mais novo. Estava forrado de novo, por artes de meu Pai, com um papel forte, próprio para o efeito. Levava também na mala um caderno de duas linhas, para aprender a escrever, e a Tabuada. Na caixa dos lápis, de madeira, iam um lápis preto e um azul e vermelho, uma borracha, a caneta e os aparos respectivos, cada coisa na sua correspondente divisória. Havia ainda um lápis de pedra e a pedra de ardósia ia também na mala, destinada a fazer as contas que viessem a ser indicadas no quadro, sem desperdício de papel. A sociedade de consumo ainda não tinha sido inventada ou, pelos menos, não tinha chegado aos Açores! Meus Pais estavam muito satisfeitos por me ter caído em sorte o professor António Botelho, avô do poeta Emanuel Jorge Botelho, que já tinha sido professor do meu Irmão. Nesse tempo os professores acompanhavam a mesma turma de alunos ao longo das quatro classes da Instrução Primária. Seria a derradeira missão do professor Botelho, que nos deixou no começo da 4ª classe, por ter atingido o limite de idade. À hora certa, abriram-se as portas da escola e, com olhos de surpresa e nervosismo, subimos todos, as escadas até ao primeiro andar. A sala de aula era grande, com três varandas do lado esquerdo rasgadas sobre o Campo, abertas de par em par a uma bela manhã do suave Outono açoriano. As carteiras ordenavam-se em três filas, cada uma com lugar para dois alunos. Nesse primeiro dia fomos sentados conforme a ordem alfabética da chamada. Ao fundo da sala ficavam a mesa e a cadeira do professor. Por detrás o grande quadro preto, por cima do qual espreitavam, ladeando o Crucifixo, num plano um pouco mais baixo, os retratos amarelados de Carmona e Salazar. A um canto estava o armário da chamada Caixa Métrica e na parede um mapa de Portugal e outro do Império Colonial Português. A primeira lição foi sobre as vogais. Posto o livro numa estante alta, o severo professor Botelho apontava uma a uma as letras com o seu ponteiro de bambu – que servia também para trazer à ordem os desatentos e os renitentes na aprendizagem… pronunciava cada uma delas em voz alta e nós repetíamos em coro: a, e, i, o, u. Assim demos o primeiro passo para a grande aventura de aprender a ler! Do conteúdo do meu primeiro dia de aulas não me lembro de mais nada, excepto que saímos à badalada do meio-dia, como sempre iria acontecer enquanto frequentei a Escola do Campo. Mas dos colegas então conhecidos lembro-me de muitos. Alguns iam descalços para a escola, que na freguesia havia então muita pobreza. A bata branca era obrigatória, mas ainda assim nem todos a tinham. Dos quase quarenta rapazes do início talvez só metade continuou estudos no Secundário e contam-se pelos dedos os que concluíram licenciatura na Universidade, tantas eram as dificuldades de acesso ao ensino para os jovens açorianos da minha geração. Muitos dos meus colegas de escola vieram mais tarde a emigrar e tive o gosto de os ver, por ocasião de viagens oficiais, em regra bem estabelecidos e com as suas famílias, nos Estados Unidos e no Canadá. Quase todos foram mobilizados para a guerra colonial e houve quem perdesse a vida nos sertões africanos. Entre os meus colegas do primeiro dia de escola conto alguns dos meus melhores amigos. Luís, Carlos, António João, João Jacinto, Luciano, Manuel, João Manuel, João de Brito, cada um com o seu projecto e percurso de vida, partilhando experiências, bons e maus momentos, continuam a ser companhia apreciada e estimulante. Evoco-os agora pelo nome próprio, com familiaridade, mas na escola o costume era o professor chamar-nos pelo nome de família e assim nos tratávamos também uns aos outros. Dos que já morreram, guardo uma lembrança saudosa. Na fotografia junta aparecem vários dos acima identificados. Ladeados pelo professor Rafael Estrela, estamos saindo da Escola para sermos conduzidos, com as nossas batas brancas e bandeirinhas da Mocidade Portuguesa, até às Portas da Cidade, a fim de abrilhantarmos, conforme os usos do tempo, a cerimónia de recepção ao Ministro das Obras Públicas, Eng. José Frederico Ulrich, que chegava de Lisboa para uma visita aos Açores… O rapazinho que está fora do grupo, de mãos nos bolsos, veio mais tarde a ser meu companheiro de carteira, na primeira fila. Chamava-se Raul e não o tornei a ver depois de termos concluído a 4ª classe.