A estória de João de Maria pag. 1 _________________________________________________________________________________ A estória de João de Maria Nelson A. Natalino ______________________________________________________________________________________ Original de Nelson A. Natalino A estória de João de Maria pag. 2 _________________________________________________________________________________ O cenário apresenta uma casa de um cômodo, onde estão os móveis básicos de uma casa. O fogão( se possível a lenha), as panelas estão penduradas (são poucas) as louças amontoadas sobre uma pequena pia. Uma cama de casal, sem lençóis. Uma mesa rústica com duas cadeiras. Uma gaiola vazia, com a portinhola aberta, pendurada na parede. Num canto qualquer, uma viola. João está só, agachado no meio do palco. Tem entre as pernas uma enxada. Apóia-se com as duas mãos nela. Luz em crescendo sobre ele. João - ( LEVANTANDO-SE, CAMINHA ATÉ A JANELA E OLHA PARA FORA. VIRA-SE, OLHANDO PARA A GAIOLA VAZIA) Óia lá fora, sabiá... Só tem o vento que sacode a rérva... A tarde tá caindo, já. Mansa, mansa. ( PAUSA ) Conta quí, preu, sabiá... Ocê já sabia di tudo, num é? (OLHA PARA AS MÃOS) Essas mão... Tão dura di calejada... ói aquí... Sabe o qui é ? É a enxada... ( PAUSA) Eu num tinha qui tá aquí, não... Eu tinha qui tá é lá fora, rancando da roça as erva daninha imprestávi.... Mai que o quê, sabiá ! Já se foro os tempo da bonança... Eu saio agora é pra carpí esperança... Esperança di um tempo mió... mió só um poco... Apaga o foco sobre João. O palco fica escuro total. Acende spot sobre o narrador, no canto do palco. Narrador - (SÉRIO, OLHA PARA TODO O PÚBLICO, SEM DEMONSTRAR NEM UM TIPO DE SENTIMENTO) Vocês vieram ? Bom! (PAUSA - APONTA PARA O PALCO) Tá lá um João... Não é um João Qualquer, um João Ninguém, não . Esse João carpia a esperança de um tempo melhor, só um pouco... Mas ele já vivia melhor que qualquer louco daquela cidade grande vazia. Vazia de amor. E de amor João vivia... João como muito João também tinha sua Maria... Maria de João e João de Maria.... (VIRA-SE PARA O PALCO) ______________________________________________________________________________________ Original de Nelson A. Natalino A estória de João de Maria pag. 3 _________________________________________________________________________________ Apaga o foco do narrador. No palco, Maria está no fogão e João está sentado numa cadeira, dedilhando a sua viola. Na gaiola que estava vazia na cena anterior, deve estar um sabiá. João - ( PÁRA DE DEDILHAR A VIOLA E FICA OLHANDO UM TEMPO PARA MARIA) Ocê tá bunita, Maria... Maria - Tá mi oiando, João ? João - Si num tô... Maria - Pra mó di quê, home ? Poi num mi vê todos dia, tar i quar ? João - Pra mó di vê tua boniteza, qui nunca é inguar, dia adispois di dia, noite adispois di noite, ano adispois di ano... Maria - ( FAZENDO UMA DOCE REPREENSÃO) SEUS AFAZERES) João - Ô Maria... Ocê si lembra du dia qui eu ti cunhecí ? Maria - Si mi lembro... João - Eu olhei procê... ocê olhô pra mim... Maria - Olhei não! Baxei os óio di vergonha... João - Ocê tava oiando pra mim, quando eu ví... Maria - Qui tava, tava. (ENVERGONHADA) Quano eu te ví a primera veiz, João, meu coração bateu disparado, qui só égua desgrenhada ! João - É... ocê avermeiô nas bochecha... Maria - Tava pegano é fogo... Se o pai tivesse perto dava inté pra acendê o cigarro de paia nas bochecha... (OS DOIS DÃO RISADA DA SITUAÇÃO) João - Era o amô fazeno traquinage no nosso coração... Maria - É... João ! (VOLTA A ______________________________________________________________________________________ Original de Nelson A. Natalino A estória de João de Maria pag. 4 _________________________________________________________________________________ João - Ocê ama eu ainda, Maria ? Maria - (VIRA-SE PARA JOÃO MUITO SÉRIA) Ocê num mi pregunte isso anssim, não, João... Parece inté qui num ti dô carinho e amô... Pois ti digo qui amo e amo di muito... João - Fica brava cumigo, não... Foi só uma pregunta de mau jeito... Eu tomém amo ocê pur dimais... pur isso qui tava aquí trocando um dedo di prosa cum a minha viola e ti oiando ficá mais bunita cada dia qui passa... parece inté qui tem parte co demo... Maria - Esconjuro, Juão ! Vira essa boca pra lá, home! Tá besta ? Num si fala anssim no cão sarnento, qui ele vem pra mó di cobrá! Esconjura ocê tomêm! João - Uai! Mai foi só uma brincadera, Maria... Maria Maria - Tanto pió ! (DESESPERADA) Esconjura home ! Esconjura ! João - Tá bão... Se ocê qué mermo, esconjuro, uai... Maria - E num brinca mais co nome do tinhoso, de jeito manera ! se ocê brinca cum ele, i ele cisma di vim brincá cum ocê ? João - Deus mi livre, Maria ! Já esconjurei, pronto... Maria - Tá na hora di jantá... Guarda essa viola... E Apaga a luz sobre João e Maria. Acende spot sobre o narrador, no canto do palco. Narrador - Esse é o nosso João. Homem humilde... Ligava pra pobreza, não. Nào sentia a pobreza. Vivia respirando a natureza... Tinha seu sitiozinho a beira da estrada, seu cavalinho, a verdura para consumo plantada... tinha até uns pares de galinhas de criação. Só não tinha rádio nem televisão. Nào via novela. Mas também não ficava sabendo das desgraças do mundo, não. Dormia cedinho, acordava com a manhã clarinha, pegava a sua enxadinha, sorria seu sorriso banguela pra Maria, e ia cuidar do plantio. Lá ia ele. Chapéu de palha na cabeça, a caminho da roça... e não há no mundo quem possa, imaginar com que satisfação iam a enxada, o cavalo e João, debaixo do gostoso sol da manhã. Era apear do cavalo e já movia a ______________________________________________________________________________________ Original de Nelson A. Natalino A estória de João de Maria pag. 5 _________________________________________________________________________________ enxada. O sol lhe queimava a pele já queimada. Mas João, sem ligar pra nada batia com fé sua enxada na terra que comprou do Juca Topeira, fazia dez anos. Comprou com toda a sua economia. Fora o presente de casamento para Maria. O terreno e uma casinha de tijolos feitos na olaria do pai de João - Que Deus o tenha em bom lugar - Esse lhe deixou como herança alguns mil réis que João usou para plantar o seu milharal. (VIRA-SE PARA O PALCO) Maria está sozinha em cena. Está sentada costurando um remendo na calça de João. Maria - Êta, sabiá ! Ocê num pode cantá um poco pra mó di alegrá meu dia? Num farta muito vem o João em riba do cavalo alazão, bunito qui só... Eu tenho aquí qui ficá oiando pra fora, pra mó di vê quando ele aponta lá na picada , lá longe, preu corrê e lhi abrí a portera... Sabe, sabiá, carece di vê a filicidade do home quando vo-lhe abrí a portera... Eu fico oiaindo ele lá de baixo... ele em cima daquele baita cavalão... fica pur dimais garboso... Ele lá di cima mi sorrí aquele surriso banguelo e cheio de mimo dele... ( PAUSA) Inté a banguelice dele é bunita... Ói... óia lá, sabiá... lá vem ele... Vô lá. (SAI). Apaga a luz do palco. Acende spot sobre o narrador. Narrador - Maria. Mulher. Tinha para o seu homem, olhos e pensamento . Nada lhe era sofrimento. Como João queria. Assim sempre seria. A felicidade custa pouco, quando da vida não se exige muito. (PAUSA ) ( FALA DO SENTIMENTO DE MARIA) O verde despertou na plantação. (PAUSA ) Dormia abraçadinha com João. (PAUSA ) Isso para Maria, posso dizer sem medo da verdade... Isso pra Maria tinha só um nome. Se chamava felicidade. (PAUSA ) Só uma coisa de ruim acontecia. Deus negou o filho que João tanto queria... Mas joão se acostumou com isso. (VIRA-SE PARA O PALCO) Apaga o foco do narrador - sai. Maria entra em cena correndo. Maria - Sabiá, sabiá ! João tá cheio de alegria... Foi lá pra cochera pra ______________________________________________________________________________________ Original de Nelson A. Natalino A estória de João de Maria pag. 6 _________________________________________________________________________________ mó de guardá o alazão. ( CORRE PARA A MESA - ARRUMA OS PRATOS - PEGA DOIS COPOS E A MORINGA D’ÁGUA E COLOCA-OS NA MESA. FAZ TUDO ANSIOSA, A ESPERA DA ENTRADA DE JOÃO)Pruquê qui ele tá demorano tanto, sabiá ? (PAUSA). João entra sorrindo e joga o chapéu longe. Maria corre para os seus braços. Beijam-se. Maria - ( ACANHADA) Tava cum sardade !!! João - Eu tomém tava... Ah! Maria ! Ocê num sabe! ( FALA COM ALEGRIA ) Nascero os brotinho!!! Carece di vê! Tudo verdin, pequinin anssim, ó... brotando da terra qui é mãe di todos, como quem qué botá a cara pra fora no mundo... e si espaiaro tudo, pela roça toda! Acho que num faiô uma semente ! Maria olha-o com atenção, como que se encantando pelas palavras dele. Maria - Num diga, home de Deus ! Tava sintindo que tava acontecendo coisa boa... Assenta na mesa, qui vô lhe serví a janta... João - Num é só isso, não ! Maria - Tem mais ? ( VAI SERVINDO O JANTAR ENQUANTO JOÃO FALA - DEVEM COMER ENQUANTO CONVERSAM) João - Pois num disse ? Craro qui tem. A parte mais mió. O seo Zeca di Bibí me percurô na roça. Disse anssim qui o verdume que o miaral mostra di pequeno promete colheta boa. Disse que compra a produção toda. É só coiê qui ele paga preço bão. Maria - Êta ! Será qui vai dá pra comprá uma cabra ? Quiria tê leitinho fresquinho... João - Sei não... mai acho qui dá sim... Botá uns reboque nessas parede... Maria - Ih, João... vai ficá lindo dimais... E mais umas galinha ______________________________________________________________________________________ Original de Nelson A. Natalino A estória de João de Maria pag. 7 _________________________________________________________________________________ poedera? Será qui dá ? João - Isso cum certeza ! (PAUSA - COMEM - JOÃO FALA COM RECEIO). Maria... (ELA LEVANTA OS OLHOS SEM RESPONDER) Maria... num sei como falá... (PAUSA) Maria - Fala João... João - Sabe o que eu quiria memo ? Eu quiria tentá di novo... ocê sabe... fazê um fio nocê. Tá tudo dando certo... quem sabe... numa hora dessas... Maria - Puis é, Juão... ia memo te falá disso... Tô sintindo memo qui tô nos dia de emprenha... quem sabe, né? João - Ô Maria... ocê ia mi fazê o home mais feliz du mundo... Já pensô, ocê buxuda... cum aquele barrigão anssim, ó... Maria - Eu tomem ia sê muito feliz se isso contecesse di verdadi... (PAUSA) João - (DESCONVERSANDO UM POUCO) muié... essa comida tava dimais di boa! (BATE NA BARRIGA E ARROTA - OS DOIS RIEM MUITO) João se levanta da mesa e vai até a janela. Maria olha com ar de apaixonada. João - Óia lá Maria... já tá cheio de pirilampo alumiando a noite... Tão esperando eu ir pra varanda, pra mó di ouvi minha viola... (PAUSA) Iscuita... iscuita... o sapo... os grilo... tão tudo mi isperanu... Maria - (PEGANDO A VIOLA E ENTREGANDO NA MÃO DE JOÃO) Entonce vai lá , home... num podi deixá os bichinho esperanu.... João pega a viola, dá um beijo em Maria e sai. Ouve-se em off o som da viola. Maria dá um sorriso.Ouve-se a voz de João na varanda, cantando uma modinha Maria ouve feliz. Quando a lua beija a cor do entardecer ______________________________________________________________________________________ Original de Nelson A. Natalino A estória de João de Maria pag. 8 _________________________________________________________________________________ E a viola seu lamento vem cantar A passarada parte pra se recolher Pois a noite não foi feita pra voar E o luar então se espalha no horizonte E na fonte faz a água alumiar E alumia a mata virgem, o rio, monte E as picadas vendo o mato rarear Eu dedilho a viola neste avarandado Canto a festa dessa noite de luar E a noite traz também seus convidados Pirilampos e cigarras a cantar Quando a lua se faz dona até de mim Chama a brisa e vem o orvalho gotejar Então se espalha um cheiro de terra e capim E das flores os odores pelo ar Então eu calo da viola essa tristeza Pois já sei que até a lua percebeu Que o intruso nessa bela natureza É o canto da viola e sou eu... Eu dedilho a viola neste avarandado Canto a festa dessa noite de luar E a noite traz também seus convidados Pirilampos e cigarras a cantar... Luz desce até apagar o palco. Foco no narrador. Maria dá um sorriso. Luz desce até apagar o palco. Foco no narrador. Narrador - João corria pra se sentar na varanda com a sua viola, dedilhava uma ciranda ou modinha... e quando via o vagalume com sua luzinha se punha a cantar. E cantavam com ele o sapo, o grilo e todos animaizinhos do mato. Então o céu se enchia de estrelas, a lua iluminava a mata e João fazia serenata a té o sono bater. Então João se levantava de sua ______________________________________________________________________________________ Original de Nelson A. Natalino A estória de João de Maria pag. 9 _________________________________________________________________________________ cadeira de balanço, e em passo de ganso ia se deitar. Maria como sempre estaria a cochilar. João deitava de mansinho, abraçava Maria de levinho e se punha a noite a escutar. O pio da coruja... O latido do cachorro lá longe... O vento a chacoalhar a árvore... A água batendo no regato. O tempo foi passando. Dia após dia. Quando na roça João olhava para o sol a pino, marcando meio-dia, pegava o seu cavalo alazão e corria, corria até chegar em casa e ver Maria terminando o almoço no fogão a lenha. João fazia sua oração a Nossa Senhora da Penha, lavava as mãos de terra , agradecia o almoço e comiam, ele e Maria, aquela comida gostosa que só Maria sabia fazer. João comia com todo o prazer e depois estendia a rede nos arvoredos, se deitava na sombra e dormia uma hora inteirinha. Então Maria vinha, lhe beijava o rosto. João acordava, espreguiçava e sem demora se levantava, e no lombo do alazão, voltava pra roça carpir... Era assim todos os dias . E quando caía a tardinha, Maria jogava milho pras galinhas, estendia a roupa no varal e depois voltava ao fogão de lenha pra preparar o jantar de João. E a noite voltava então... a luz de lampião Maria ouvia o cavalo alazão, via o vulto da enxada... o vulto de João na picada e corria feliz pra lhe receber... Mas nessa noite...algo estranho parecia acontecer... (VIRA-SE PARA O PALCO) Maria está sozinha em cena. Anda de um lado para outro, nervosa. Fala com o sabiá, meio chorosa. Maria - Ô, sabiá ! Hoje, nem teu canto pode me alegrá... João tá chegando e hoje eu não queria vê o João chegá... Sabe, passarin... Tem dia que a gente num sabe porque qui amanhece... por que qui inzinsti dia anssim, ruim qui nem a peste... (BATE NA BOCA). Deus que me perdoe... João chama Maria em off. Ela corre para a porta. João já vem entrando. João - Ô Maria.. qui susto ocê mi deu... Oce num foi lá fora abri a portera... qui nem tudo dia... I aí eu já pensei bestera... Maria - Adicurpi João.. tavaquí tarefada cum minhas coisa qui nem vi a hora passá... ______________________________________________________________________________________ Original de Nelson A. Natalino A estória de João de Maria pag. 10 _________________________________________________________________________________ João - Maria.. hoje o dia num foi dos meió não... Maria - Qui qui conteceu, home ? João - Sabe o tar di Zeca di Bibï ? Maria - O tar que vai comprá os mio ? João - Pois intão... foi lá pra mó de proseá cumigo i dicidí os preço que podi pagá pelo miaral... Maria - Intonce? João - Intonce ? Intonce Maria ? Teve o dispaupério de oferecê cento e cinquente mil réis pelo miaral.. Maria - E ocê ? ocê aceitô João ? Óia qui o home mi pegô meio de carça curta... mai intão eu disse prele qui isso mar dava pra comprá uma cabritinha leitera procê... Ocê sabe o que ele falô ? João Maria - Sei não, João... João - Qui era um home bondoso, e sabedô das nossa carencia... qui intão alem dos 150 mil réis, ele dava uma cabritinha leitera procê. Maria - Intonce ? João - Intonce, Maria eu acho qui fiquei vermeio de réiva e toquei o home cum quente e dois fervendo pras banda da terra dele... Maria - Ocê feiz isso, home? João - Mais si num fiz, Maria... Essi num vorta nunca mais... Maria - E agora, João ? João - E agora dexa nas mão de Deus, Maria... Tem mais Deus pra dá que o tinhoso pra tirá ! Esconjuro di novo esse nome do safado sarnento... mais é verdade... Deus dá... ______________________________________________________________________________________ Original de Nelson A. Natalino A estória de João de Maria pag. 11 _________________________________________________________________________________ Maria - Amém... João - Amém nóis dois... (PAUSA) Vô inté a casinha pra mó di mi lavá... tem toaia ? Na casinha... Maria João sai de cena. Maria fica nervosa, andando de um lado para outro de novo. Maria - Ô, sabiá ! Me ajuda, passarin... Como é que vou conversá coesse home que te um dia anssim? Cumo é que eu vô falá cum ele ? Meu Deus me acuda ! (PAUSA - MARIA SENTA-SE NA MESA, PÕE AS MÃOS NO ROSTO E CONTINUA FALANDO, SEM PERCEBER QUE JOÃO VOLTOU PRA LHE FALAR ALGUMA COISA) Me ajuda, sabiá... Eu tenho que falá pro João... ele vai ficá danado di triste... será que vai brigá cumigo? Nem janta eu fiz ainda, nesse dia mardito !! João - Maria ! O que conteceu, muié ? (MARIA LEVANTA-SE ASSUSTADA) Maria - João ! ocê taí... nem percebí ocê entrá... João - É qui num tem toaia na casinha... Maria - É mermo ! taquí ó... João - O que ocê tem pra mi falá Maria ? Purque eu ia brigá cocê ? Maria - Ai, João... uma desgracera ! João - Intão fala ! Maria - João...(CHORANDO) João... conteceu qui me veio as regra !! João - (CARINHOSO) Maria, Maria... Temportância... Nóis sabia disso... eu é que sô uma mula teimosa... Se Deus Nosso Sinhô qué anssim, qui qui si há di fazê ?? Num carece di chorá desse jeito... (MARIA CONTINUA CHORANDO) chorá num dianta nada... ói... numsi fala mais nesse assunto i pronto.. tácabado. Se Deus num qué... assim será ! Maria - (AINDA CHORANDO) João... ai, João... ocê quiria tanto esse fio... ______________________________________________________________________________________ Original de Nelson A. Natalino A estória de João de Maria pag. 12 _________________________________________________________________________________ João - Intonce, Maria, ocê pára di chorá... fica bunita preu, que hoje ocê vai lá pra varanda cumigo pra mó di cantá umas modinha pros bichinho... Elis nem sabe qui ocê canta bunito qui nem o teu sabiá... Maria abraça João, João beija-lhe a testa e ficam abraçados até cair toda luz do palco. Foco sobre o narrador. Narrador - O tempo passou rapidamente. Todo o carinho que João colocou em cada semente, converteu-se em vida e alimento... A terra fora generosa . O milharal se estendia a cada palmo de solo, cada milimetro do chão, exuberante e graúdo, como jamais se vira na região...Tinha em sí cada gota de suor, cada gesto de amor, cada dia de vida de Maria e de João.. Aprazava o momento da colheita. e João orgulhoso olhava sua plantação. (PAUSA) Até que um dia... (VIRA--SE PARA O PALCO) João - Sei lá, Maria, sei não.... Num tarda e passa do ponto essa hora da coieta... Maria - I qui qui ocê qué fazê João ? João - Careço di í inté a cidade pra vendê esse mio, qui daqui a poco só servi pra mó di animar ruminadô... Maria Maria - Vrige Santa ! Intonce num vai valê nada... João - Nem os cento e cinquenta qui aproveitadô do Zeca de Bibí fereceu vai valê... Maria - Mai a cabritinha leitera, né Jão ? João - Puis é... Maria - Intonce percura ele, home ! João - Ocê tá maluca da cabeça, Maria? Adispois di tudo qui eu falei prele naquele dia o home é capaiz inté di querê mi batê... Maria - Intonce, João vai lá na cidade e... (ALGUEM BATE PALMAS EM OFF - PAUSA - MARIA OLHA ASSUSTADA PARA JOÃO) Quem havéra de sê João ? (PALMAS EM OFF NOVAMENTE) ______________________________________________________________________________________ Original de Nelson A. Natalino A estória de João de Maria pag. 13 _________________________________________________________________________________ João - Num sei, não... devi di sê argum viajante cum fome ou com sêde. Deixa eu vê... Vóz em offoff- ô de casa !!! Tem alguém aí ? (NA PORTA) ( PARA MARIA) É um cavaleiro.... ( PARA FORA) Apeie, cavaleiro, vamo entrá... (PAUSA - O HOMEM CHEGA À PORTA) João - Homem - Licença... (CURIOSA E DESCARADAMENTE ELE OLHA DETALHE DA CASA DE JOÃO - MARIA ENVERGONHADA SE ESCONDE ATRÁS DE JOÃO) A casa é di pobre, sim sinhô... mais tá sempre aberta pra quem qué um copo di água, um prato di comida ou mermo o discanso do corpo... A mó di que o sinhor veio ? João - Homem - (O HOMEM CAI EM SÍ) Ah! Pois é... Desculpe eu entrar assim nas suas terras... mas a porteira estava aberta, e aí... senhor que é o dono desse milharal que tá lá fora ? O (DESCONFIADO) Eu mermo... mó di que o sinhô qué sabê? João - Homem - Sabe o que é ? Eu tava passando pela estrada e não pude deixar de adimirar sua plantação... Gradeço... Mai... é só mio, dotô... João João - Homem - Pois é o meu negócio... (TENTA FAZER COM QUE JOÃO FALE O SEU NOME) “seo”... “seo”.... (JOÃO OLHA PARA MARIA E NÃO ENTENDE)Qual é o seu nome, mesmo ? Ah! É João, sim sinhô.... ao seu dispô... João - Homem - Muito prazer... meu nome é Aderbal... Aderbal Conceição Tavares... Pois então... como eu dizia... milho é o meu negócio... tenho aí pelas estradas uma tal de Tenda da Pamonha... já ouviu falar? ( SEM TIRAR OS OLHOS DO HOMEM) nunca ouví falá, não sinhô Arde... Ardebaldo... Ardebal... Sinhô Tavaris João - Homem - Bem... isso não importa... São lugares nas estradas onde os ______________________________________________________________________________________ Original de Nelson A. Natalino A estória de João de Maria pag. 14 _________________________________________________________________________________ viajantes param para comer um cucuz... um curauzinho... um milhozinho quente... umas pamonhas... Apois ? João - Homem - Apois ? Bom, apois me interessa sua palantação... porque faz muito tempo que não vejo um milharal tão bem cuidado e milho de tão boa qualidade... João Apois ? - Homem - Sua plantação há de me garantir o bom andamento do negócio.. João Apois ? Homem - - Bom... eu acho que esse seu “apois” quer dizer dinheiro, é isso ? Posso lhe garantir que dou um bom dinheiro pela sua colheita... Ara ! Quanto ? João - Homem - Trezentos ! João - Homem - Quinhentos... (JOÃO FICA PASSIVO E NÃO RESPONDE) Quero não ! (MARIA BELISCA JOÃO POR TRÁS) Quieta, muié ! É poco... setecentos e nem mais um tostão... Maria - (COTUCANDO JOÃO) Ói João... Setecentos home ! Setecentos ! João - Só si fô setecentos mai uma cabritinha leitera aquí pra Maria... aí intão tá feito ! (ESTICA A MÃO PARA O HOMEM) Homem - Concordo. Bom ! Muito bom ! Vou mandar fazer o contrato e trazer aquí para o senhor assinar. Carece nada disso não ! O sinhô manda o dinhero, leva o mio e tá cabado ! É no fio do bigode. Nem siná meu nome eu sei... João - Homem - Então está acertado ! É no fio do bigode ! (APERTAM NOVAMENTE AS MÃOS) ______________________________________________________________________________________ Original de Nelson A. Natalino A estória de João de Maria pag. 15 _________________________________________________________________________________ Sim sinhô ! Im déis dia podi manda vi panhá o mio que vai tá tudo ensacado pro sinhô ! João - Homem - Então tá fechado! Até a vista Sr. João... até logo senhora! Pode esperar sua cabritinha leiteira...(MARIA ENVERGONHADA DÁ UM TCHAUZINHO DE TRÁS DE JOÃO ) Inté Seu Ardebal... Ardebal... Tavaris !(O HOMEM SAI - JOÃO GRITA DA PORTA) Num isqueci di mandá tomém o dinhero! Setecentos e cinquenta ! João - Homem - ( EM OFF) Setecentos Sr. João... Setecentos ! Pode deixar ! João encolhe os ombros sorrindo e depois abraça Maria - Saem pulando e rindo de felicidade. João - Sim sinhô ! Vai dá inté pra ponhá o reboque nas parede... Maria - E eu vô ganhá minha cabrinha leitera... João - I eu vô comprá uns par de galinha... Maria - I pato, i ganso... João - Dois leitãozinho... Maria - Ara, João é bão dimais pra sê verdade... Quero inté comprá um vistido novo procê lá na cidade... João Maria - Num credito, João ! João - Num ti falei qui tem mais Deus pra dá qui o Tinhoso... esconjuro... pra tirá ? Maria - Tem memo qui gradecê a Deus num é? João - Poi intão num gradeçu todo dia, Maria... dia bão e dia ruim... (PAUSA) Maria.. daquí dois dia eu cumeçu a coieta.. Maria - Pois queru ti ajudá... ______________________________________________________________________________________ Original de Nelson A. Natalino A estória de João de Maria pag. 16 _________________________________________________________________________________ João - Carece disso, não, Maria... Maria - Num importa... quero qui quero memo.... João - Uai... ocê é qui sabe... pra mim vai sê bão, né ? Maria - Ô João... João... amo ocê dimais.... Maria abraça João, beijam-se e ficam abraçados até cair toda luz do palco. Foco sobre o narrador. Narrador - João de Maria.... Maria de João... João dos calos na mão... Maria do sabiá-passarin e do fogão... Sairam para a plantação... Um dia e mais outro... trabalho duro sob o sol a pino. Mas nesse dia.... João chega, trazendo em seus braços... Maria. (VIRA-SE PARA O PALCO) João entra com Maria em seus braços. Coloca-a sobre a cama. João - Tá doendo Maria? Maria - Tá ardendo João... João - Acho qui vô chamá o Dotô. Maria - Carece não... Amanhã tô boa... João - Deixa eu vê o pé aquí... (EXAMINA O PÉ DELA) Óia aquí... Tá vermeio qui só a peste... Tem uma marquinha aquí... Tú num viu qui bicho foi esse, Maria ? Maria - Num ví João... o danado entro di baxo das paia antes di eu vê... João - Acho méio chamá o dotô... i si foi um bicho peçonhento qui ti mordeu aí? É pirigoso, Maria. ______________________________________________________________________________________ Original de Nelson A. Natalino A estória de João de Maria pag. 17 _________________________________________________________________________________ Maria - Num carece não, João... é só ponhá uma água com sar pra tirá essa inchadura... amanhã tô boa... ocê vai vê só... João prepara um pano com água e sal, coloca sobre o ferimento de Maria. Fica acariciando os cabelos de Maria. A luz vai descendo suavemente. João deita ao lado de Maria. Acordes suaves de viola. De repente, ecoa fortemente um trovão. Barulho de chuva forte. Tempestade. Raios. Novos trovões. Narrador - Essa noite choveu. Choveu que fez dó. Quando o dia amanheceu, não se viu a cara do sol. O dia parecia noite... Caia um aguaceiro danado que parecia uma açoite, sobre a casa de João de Maria. Mas já era dia. E João, não quiz acordar Maria pra nada. Saiu sorrateiro pra roça. Sem a sua companheira... e sem a sua enxada. (VIRA-SE PARA O PALCO) João levanta-se e sai - Novos acordes de viola. Chuva ao fundo. Maria geme de quando em vez. João entra correndo, ensopado de chuva. João - Maria ! Qui disgraça! Chuveu pedra di gelo, muié ! O miaral tá todo alagado... Os pé tão tudo quebrado... as ispiga qui nóis coiemo tão lá, boiando na água... (MARIA NÃO RESPONDE)carece di vê qui tristeza! Maria.. quando eu cheguei lá e ví tudo... mi deu um nó na garganta... mi deu um aperto no peito... qui só ocê venu... (MARIA NÃO RESPONDE) Maria ! Maria ! (CORRE PARA PERTO DA CAMA - PÕE A MÃO NA TESTA DE MARIA )Nossa Senhora da Penha! Ocê tá ardeno em febre... Eu vo lá buscá o dotô... i si foi um bicho peçonhento qui ti mordeu ? Num falei, Maria ! É pirigoso, Maria. João levanta-se e sai - acordes de viola. Chuva ao fundo. Maria permanece quieta. Um tempo de silêncio total, com luz baixa. Apaga a luz por instantes. Deve ser retirada a gaiola com o pássaro e colocada a gaiola vazia com a porta aberta. João chega com o médico. ______________________________________________________________________________________ Original de Nelson A. Natalino A estória de João de Maria pag. 18 _________________________________________________________________________________ João - Podi entrá dotô... Óia alí.. tá lá Maria ardendo em febre! (FICA OLHANDO POR UM TEMPO O DOUTOR TOMAR O PULSO DE MARIA-QUANDO ELE EXAMINA A PERNA DE MARIA, JOÃO SENTA-SE NA MESA) Ô Maria, ocê tinha qui ficá duente? Carece di vê a roça qui tristeza! (O MÉDICO PEGA O ESTETOSCÓPIO E PÕE NO PEITO DE MARIA - JOÃO ESTÁ DE COSTAS PARA ELES) Maria... Cumé qui nóis vai fazê agora ? Acho qui num sobrô nada da prantação... (O MÉDICO BALANÇA A CABEÇA E COBRE A CABEÇA DE MARIA COM O LENÇOL) num sobrô nada... Médico - Seu João... João - Médico - Seu João... João - (SEM PERCEBER QUE O MÉDICO CHAMA) Alagô tudo... i num pára di chovê... (REPETE COMO QUE HIPNOTIZADO) Alagô tudo... i num pára di chovê... O médico coloca a mão no ombro de João. João vira-se rápido e assustado. Qui qui foi, Dotô... Como é que ela tá ? João - Médico - Sinto muito ... não posso fazer mais nada... João - Médico - Ela faleceu João. João - Médico - João... o que mordeu ela foi um escorpião... Ela devia ter `Como assim, num posso fazê mais nada? Qui qui foi ? Pru quê ela tá cuberta ansim? Não, Dotô... acho qui o sinhô tá inganado... óia lá direito.. éra só uma febrinha, dotô... gritado de dor... João - Intonce... ela num gritô não... acho qui o sinho si enganô... vê direito lá, dotô.... ______________________________________________________________________________________ Original de Nelson A. Natalino A estória de João de Maria pag. 19 _________________________________________________________________________________ Médico - Sinto muito, João... ela está morta... sinto muito... (SAI) João caminha hesitante até o leito de Maria. Senta-se na cama. Pega Maria inerte nos braços. João - Maria... acorda, Maria... num faiz isso cumigo Maria... pruque qui ocê num gritô ! Pra mó di num mi acordá, muié! Acorda Maria ! (GRITA) Maria! Apaga a luz totalmente no palco. Acende foco no narrador. Narrador - Já não adiantava mais. João encostou sua cabeça nos seios dela, pegou-lhe as mãos que o acariciavam tantas noites atrás e chorou... chorou até não poder mais. Quem ia cuidar agora dos animais? Pra quem ele ia sorrir seu sorriso banguela? Quem ia gargalhar do seu arroto? E aporteira, quem ia abrir? Fazer serenata? Por que tanto desatino? Agora quando o sol estivesse a pino, João não tinha mais o almoço pronto, e tonto, nem mais estenderia a rede, porque não teria quem lhe acordar. Não cantaria mais com o sapo e o grilo na varanda, Não haveria mais modinha ou ciranda, que lhe alegrasse o coração. Apaga a luz do narrador e acende foco em João simultaneamente. João está agachado no centro do palco, como no inicio da peça. João - (DÁ UM GRITO DESESPERADO) Nãããõooo!!!! Deus não existe não ! Entram alguns homens e mulheres portando velas e cantando uma música sacra e triste. Vem trazendo uma rede nos ombros. Enquanto ______________________________________________________________________________________ Original de Nelson A. Natalino A estória de João de Maria pag. 20 _________________________________________________________________________________ João fala eles vão colocando Maria na rede e saindo vagarosamente. Não param de cantar. João - Que me tirasse a roça tava bão... Me tirasse os dedo... me tirasse a mão! Eu dava um jeito... Mais Maria??? Por que, meu Deus ? Será que o Sinhor num é meu amigo ? Não... Deus num existe, não. (LEVANTA-SE, VIRA-SE E VAI EM DIREÇÃO À PROCISSÃO) Narrador - (ENTRANDO EM CENA, ATRÁS DE JOÃO)A enxada ainda calejaria a mão do pobre João... Fora-se o tempo da bonança... João agora carpiria a esperança de algum tempo melhor... Melhor só um pouco. (SAINDO DE CENA CASA) ATRÁS DE JOÃO FECHA A PORTA DA FIM ______________________________________________________________________________________ Original de Nelson A. Natalino