HIGIENE E CULTURA ESCOLAR1
José Gonçalves Gondra - UERJ2
I-
A questão da cultura escolar
Construído historicamente, o modelo escolar obteve crescente legitimidade, articulando um
variado conjunto de estratégias, promovendo empréstimos e realizando deslocamentos em relação à
modelos mais sedimentados. Nesse sentido, os contornos da escola foram sendo delineados em
contraste com o que deveria passar a ser reconhecido como diferente e inferior sem, contudo, negar
a existência de outras formas de sociabilidades, como a casa, a rua, a igreja e o quartel, para
enumerar algumas. Assim, instalada nessa zona de tensão, a organização escolar foi objeto e sujeito
de dispositivos de poder ancorados em instituições variadas, tais como as religiosas, militares,
jurídicas e médicas. Constituída nessa região, a escola funcionou (e funciona) menos como
instância de aplicação exclusiva de princípios importados de outros campos, definindo um sistema
de símbolos e práticas próprio que Chervel (1998) e Julia (2001) designam de “cultura escolar”.
No trabalho com essa categoria torna-se necessário reconhecer a existência de um debate,
em um primeiro nível, acerca do binômio natureza-cultura, fundamento para que se possa admitir a
ocorrência da produção de uma outra cultura, distinta daquela processada no aparelho escolar.
Haveria, assim, no mundo, elementos da natureza, ao lado de uma cultura escolar e não escolar.
Como distingui-los? Eis uma questão que tem ocupado vários pesquisadores3. No que se refere a
esse esforço de distinção de segundo nível (escolar e não escolar), uma primeira evidência consiste
na tese de conceber a escola não apenas como mera intermediária entre a sociedade mais ampla e as
crianças/jovens/adultos que habitam a sociedade escolar, por assim dizer. Supõe trabalhar com a
tese de que a escola também fabrica e produz, isso sem desprezar os constrangimentos aos quais a
mesma encontra-se submetida. Nesse sentido, os contratos pedagógicos engendrados na escola,
mais especificamente aqueles de caráter didático e também as relações historicamente criadas entre
a escola e a sociedade na qual a mesma se insere, como alerta André Chervel, concorrem para o
delineamento de um ramo da chamada cultura escolar. Uma segunda parte do “cahier des charges”
de que trata esse autor refere-se ao programa oficial ou às prescrições que a escola deveria seguir,
1
Registro meu agradecimento à Beatriz Galhardo e à Giselle B. Teixeira, cujos esforços forneceram elementos
indispensáveis para a realização desse trabalho. Extensivamente, agradeço ao Daniel, Maria Zélia e Inára pelos
animados debates que juntos desenvolvemos.
2
Professor adjunto, coordenador do Núcleo de Ensino e Pesquisa da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e do GT
de História da Educação da ANPEd.
3
No campo das ciências humanas e sociais, dentre muitos outros, podemos ver esse debate em GEERTZ, Clifford
(1989) e CERTEAU, Michel de (1995).
não tratando da cultura que resulta da ação da escola, do que aí tem origem ou é adquirido, ou seja,
não diz respeito ao que professores, alunos e demais agentes interessados na escolarização das
crianças fazem com o projeto a eles destinados. A combinatória desses dois componentes produziria
os aspectos/traços/dimensões da economia íntima do sistema educativo, isto é, sua cultura escolar.
O estudo de Dominique Julia (2001) também constitui-se em auxiliar nesse esforço de
precisão conceitual. Ao definir cultura escolar como conjunto de normas que definem
conhecimentos e condutas a inculcar, como conjunto de práticas que permitem a transmissão dos
conhecimentos prescritos e a incorporação das práticas e também como conjunto de práticas
inesperadas que ocorrem em espaços os mais diversos, como os dos pátios e recreios, aponta para a
extensão do conceito, bem como indicia possibilidades para se restringi-lo, de modo a circunscrever
precisamente os aspectos/traços/dimensões que integram o que se está concebendo como cultura
escolar. Visto desse modo, nota-se, com algum grau de clareza, a inexistência de consenso em torno
dessa categoria. Considero que realizar esse movimento, enfrentando essa questão cumpre um duplo
papel: evitar a idéia de universalidade do conceito e, segundo, evitar sua banalização4 que, do
mesmo modo que o efeito anterior, pouco ou nada contribui para aprofundar a compreensão dos
fenômenos que desejamos conhecer para neles melhor interferir.
Ao lado desse breve esforço de conceituação, ainda que sumariamente, dado os limites desse
trabalho, a título de advertência, cabe lembrar que o conceito de cultura vem sendo objeto de
inúmeras e intermináveis reflexões no âmbito das ciências sociais, particularmente no da
antropologia. Sua apropriação por parte dos historiadores da educação não deve se furtar à
realização de um esforço de melhor precisá-lo, tendo em vista transformá-lo, não em um “abre-teSésamo”, como ironiza Geertz (1989), mas em uma ferramenta mais eficaz e eficiente, na medida
direta da formulação de uma definição mais rigorosa, ou de sua redução a uma dimensão justa,
como acentua esse mesmo autor (p. 14)5.
Levando-se esse aspecto em consideração, nesse trabalho, procuro refletir acerca do
processo de configuração da escola primária na Corte Imperial, a partir do exame da circulação dos
elementos doutrinários da higiene6 e de sua apropriação por parte de instâncias do aparelho escolar
4
Sobre a índole polissêmica e o efeito negativo da banalização do termo reforma escolar e uma tentativa de sua
conceituação, cf. Viñao Frago, Antonio (2001). Evidente que não se trata da mesma categoria. Essa indicação deve
funcionar mais como um contraponto e alerta para a necessidade de nos preocuparmos com a definição nítida das
categorias que tomamos de empréstimo para realizarmos nossos trabalhos.
5
Preocupação assemelhada deve-se ter com o próprio conceito de higiene, também objeto de flutuações ao longo do
tempo que, hoje, muito associado à idéia de asseio pessoal, teve ao logo do século XIX, no Brasil, uma carga de
significado associada ao bom governo da sociedade e, particularmente, das escolas/colégios. A esse respeito, cf. Costa
(1989), Ferreira (2000), Gondra (2000) e Machado (1978).
6
Higiene entendida em sua acepção mais difundida no século XIX recobre um vasto arco de objetos, temas e questões,
como verificado nos estudos referidos na nota anterior.
existente à época, sobretudo, a Inspetoria Geral da Instrução Primária e Secundária da Corte
(IGIPSC). Para tanto, examino um conjunto de programas de matérias relativo ao ensino primário,
encaminhados por professores e professoras primários da Corte7, elaborados em resposta à
solicitação do Inspetor Geral de Instrução, o Sr. José Bento da Cunha Figueiredo8. A título de
exercício, detenho-me de modo particular no programa proposto por Januário dos Santos Sabino9,
professor da 2ª escola pública de meninos da Ilha do Governador, redigido em 12 de setembro de
1872, apoiando-me, secundariamente, no “resumo” das propostas dos professores, elaborada pelo
Prof. Manoel José Pereira Frazão10 e em um conjunto de documentos relativos às conferências
pedagógicas (minutas de ofícios e teses de professores).
II- Higiene na escola
No documento do professor Sabino, ele reconhece os limites dos estudos teóricos e também
a “falta d’aquelle cunho prático11”utilizados na elaboração do programa. Fragilidade e ausência que,
no entanto, não impedem o emprego de prescrições da ordem médico-higiênica, aspecto perceptível
na definição da idade escolar, repartição das matérias, distribuição do tempo, nas preocupações com
os exercícios e com a qualidade dos professores. Ao se referir à idade escolar, defende sua elevação
já que não lhe parecia que a criança aos 5 anos tivesse inteligência e “aquelle desenvolvimento
preciso para entrar em laboração, mui principalmente na roça, onde, em geral, a falta de cultura
intellectual dos pais e a sociedade pouco instruida em que vivem não apressam nem provocam esse
desenvolvimento”. Aqui, um interessante registro merece ser feito. Frequentemente alçado à
condição de modelo a ser seguido, os Estados Unidos comparecem como contra-exemplo, o que
pode ser confirmado pela próprias palavras do Prof. Sabino:
7
14 professores encaminharam seus trabalhos individualmente, sendo 6 mulheres e 8 homens. Um grupo de 35
professores respondem coletivamente, abordando a divisão do tempo escolar, programas, a questão dos adjuntos/as,
passagem de uma classe para outra, duração do curso, qualidade dos compêndios, exames, premiação dos alunos,
catecismo de agricultura, guia de matrículas e tempo das férias.
8
O nobre pernambucano, Visconde do Bom Conselho, bacharel em ciências sociais e jurídicas pela faculdade de
Olinda, exerceu a função de senador e conselheiro de Estado, tendo presidido as províncias de AL, PE, MG e PA, foi
também Ministro dos Negócios do Império no gabinete de 25 de junho de 1875, além de ter sido parlamentar. O filho
José Bento C. F. Junior seguiu os passos na carreira acadêmica e política (cf. Blake, 1938). Quanto ao objetivo da
consulta, de acordo com o prof. Frazão, era fazer com que os professores/as discorressem sobre os meios práticos de
dirigir os trabalhos nas escolas.
9
Códice 10.4.2 do AGCRJ (p. 110-120). Programa das matérias que constituem o ensino primário de primeiro grau,
dividido em duas partes: 1ª - distribui as matérias em 4 anos, individualizando cada lição em cada matéria. 2ª determina o dia e a hora de cada lição, bem como o tempo de sua duração.
10
Cf. p. 160-176 do códice 10.4.2, no AGCRJ. O prof. Frazão recebera a encomenda em 21/10/1872, entregando-a 8
dias depois, em 29 de outubro.
11
Esse professor iniciara seu exercício de docência em junho de 1872.
“É verdade que nos Estados Unidos, um dos paízes em que mais florece a
instrucção, é de 5 annos o minimo da idade exigida para a matricula nas escolas
publicas. Cumpre, porem, observar que ahi, ao entrar o alumno para a escola, nada
exige o professor de sua intelligencia: é ás faculdades perceptivas que elle se
dirige por meio das lições de objectos, esperando, para pôr em acção a rasão e a
intelligencia, a idade em que as faculdades reflexivas estão sufficientemente
desenvolvidas, como se lê á pagina 43 do Relatorio do professor Hippeau.”12
Assim, o professor primário da Corte brasileira reconhece o fato praticado no norte da
América, reparando, contudo, que a perspectiva do trabalho com crianças de 5 anos, lá, era outra e
distinta do programa por ele proposto para as escolas primárias. Ao prosseguir na defesa do
programa apresentado, o prof. Sabino recorre explicitamente ao que designa “razão de higiene”
como argumento para redefinir a idade de ingresso na escola. Dirigindo-se ao Inspetor afirma:
“Como v. Ex. sabe são as lições n’estas escolas dadas em uma secção de
cinco horas, terminando no verão a uma e no inverno às 2 horas da tarde. Por mais
valente que seja a constituição physica de um menino dessa idade não me parece
que elle, depois de algumas horas de trabalho intellectual, se possa expôr, por
extensos e desabrigados caminhos, a um sol de verão, sem grandes riscos de
‘adoecer’”.
Como se pode observar, fisiologia, geografia e meteorologia comparecem como ciências de
fundo, credenciando a prescrição de elevação da idade de entrada na escola, encampada pelo
professor. No que se refere ao tempo escolar, o Prof. Sabino defende o curso primário com duração
de 4 anos, formando uma única classe, ainda que reconhecesse um inconveniente na aplicação
dessa regra que, no caso, seria o de ter que “retardar os progressos” de algum aluno que tivesse se
destacado em alguma matéria, para não “abandonar a inactividade os outros alumnos da mesma
classe.” Tal aplicação sugere um passo no processo de consolidação das classes de idade como
critério de organização das escolas, afastando-se de um modelo escolar montado com base nos
níveis de adiantamento dos alunos. Tratava-se, portanto, de uma iniciativa voltada para a
homogeneização das classes, com base na adoção de um novo critério, o da cronologia.
No que se refere aos professores, defende que os mesmos deveriam ter condições para
acompanhar os “progressos da sciencia pedagogica nos outros paises, facultando-lhes livros”, a fim
de que pudessem introduzir entre nós “aquelles melhoramentos que o estudo e a pratica forem
aconselhando”. Com isso, afirma a tese da necessidade de que a escola estivesse sintonizada com os
progressos da ciência.
12
Sobre as características e alguns aspectos da circulação desse Relatório no Brasil, cf. Gondra (2002).
O modo como tais aspectos são tratados constituem-se em uma apropriação por parte dos
professores, de elementos do corpo doutrinário higienista que, desse modo, se vê deslocado do
circuito médico convencional (a Faculdade e Academia Imperial de Medicina) para dar forma à
escola primária da Corte. Presente na escola primária, visível na palavra dos professores e no modo
como abordam determinadas questões, as prescrições higiênicas aí comparecem com o grau de
detalhamento que lhe é característico; traço evidenciado, por exemplo, no modo como o prof.
Sabino se posiciona em relação à escrita, alertando para a posição do corpo e no modo de pegar
uma pena, bem como na repartição do tempo e na distribuição das tarefas pelos 4 níveis (anos)
presentes em uma mesma classe. No primeiro caso, a prevenção dos problemas da coluna é
convertida em argumento e, no segundo, o preenchimento do tempo e sua ocupação racional,
buscando manter os meninos dirigidos, deveria funcionar como medida de combate ao tempo
vazio/ocioso, sem direção. Dupla preocupação que encontra na higiene suas bases “científicas”.
Incorporando razões de higiene e outras razões a ela associadas (fisiologia, geografia,
meteorologia, cronologia e progresso), o programa proposto pelo prof. Sabino e, com pequenas
variações, nos demais apresentados em 1872, pelos/as professores/as primários da Corte13,
demonstram alguns pressupostos higiênicos irradiados que, impregnados no discurso dos docentes,
concorrem para marcar o modo dos mesmos conceberem a escola e a cultura que, desse modo,
fabricam. No entanto, cabe assinalar que tal presença não pode ser percebida apenas como um
evento. Com vistas a fornecer sustentação a essa posição, realizei incursões bem determinadas nas
Conferências Pedagógicas e no regulamento de um internato público destinado à meninos pobres da
Corte.
Em 3 de agosto de 1872, o Inspetor Geral da Instrução encaminhou ao Ministro dos
Negócios do Império, João Alfredo Corrêa de Oliveira, um projeto contendo instruções especiais
“para regular as reuniões pedagógicas14”. Seu primeiro artigo determinada que todos os professores
das escolas primárias do Município da Corte deveriam ser convocados pelo Inspetor, com 8 dias de
antecedência, para se reunirem nas férias de Páscoa e na do mês de dezembro, a fim de
“conferenciarem sobre todos os pontos que interessarem o regime interno das escolas, methodos de
ensino, systema de recompensas e punições para os alunos, expondo as observações que hajão
colhido de sua pratica, e das leituras das obras que tenhão consultado”. O projeto das
“Conferências” também definia as regras que deveriam presidir os encontros, como sintetizado no
quadro 1.
13
Nesse caso, apoiei-me no extrato redigido pelo prof. Frazão que, ao apresentá-lo ao Inspetor, assegurava “Posso,
entretanto, garantir a V. Exª que elle é o extracto fiel e consciencioso das opiniões que se contêm nas peças que me
foram confiadas”. (cf. Códice 10.4.2, p. 160-176)
Quadro 1- Funcionamento das Conferências Pedagógicas
Temas
Regras
Composição
Delegados dos distritos, membros do Conselho Diretor, Diretores dos estabelecimentos particulares
que o inspetor julgar conveniente avisar e todos os professores das escolas primárias do Município da
Corte.
Duração
Até 3 dias consecutivos, com 3 horas de duração, começando às 10 horas, podendo ser prorrogada por
mais 1 hora.
Presidência
Inspetor Geral ou membro do Conselho Diretor, secretariado pelo professor mais moço.
Uso da palavra Facultada exclusivamente aos professores públicos.
Pontos
de 1- Capacidade atual e eventual das casas das escolas, seus cômodos e utensílios necessários.
discussão
2- Estudo, exame e aplicação de métodos e sistema de ensino.
3- Apreciação dos livros usados nas escolas e dos que convirá adotar.
4- Tudo quanto se considerar necessário e profícuo em relação ao melhor e mais pronto
desenvolvimento da instrução e educação primária.
Integrantes de um modo de governar, a pauta das conferências impõe temas, controlando,
em certa medida, os próprios discursos emitidos nesse forum. Pauta que indicia temas largamente
desenvolvidos pela doutrina higienista. Portanto, é de se esperar que, ordenado nesses termos, os
enunciados, ainda que variando nas estratégias, compartilhassem dos princípios formulados no
âmbito da ordem médico-higiênica, como se pode perceber, por exemplo, na tese do professor
Vidal, apresentada em 24 de novembro de 187415, bem como na do professor Frazão, de 28 de
dezembro de 187516. Esse último, valendo-se do argumento de que seu “sistema disciplinar fora
aperfeiçoado ao longo de 14 anos de prática, com resultados bastante satisfatórios”, apresenta a
“memória” sobre a disciplina escolar apresentada ao Conselho Diretor da Instrução Pública da
Corte na 3ª Conferência. Criticando os “nossos pedagogistas”, os livros e a família existentes17,
organiza um sistema disciplinar com vistas a combater os 3 defeitos das crianças: insolência, o fato
de confundirem o respeito devido à autoridade com humilhação e baixeza e a confusão que faziam
entre lei e capricho. Como alternativa aos defeitos, seu modo de governar as crianças encontrava-se
ancorado nos princípios da moralidade, economia e trabalho, considerados como uma trindade
sagrada na condução das práticas pedagógicas, delineando, portanto, os fundamentos dos padrões
culturais a serem inculcados na nova geração.
Em 9 de janeiro de 1875, o Ministro dos Negócios do Império, João Alfredo Corrêa de
Oliveira aprova o decreto de nº 5849, que consiste no Regulamento do Asilo dos Meninos
Desvalidos18. Gesto que aponta a preocupação do Estado no que se refere ao recolhimento e
14
Códice 15.3.9 – AGCRJ.
Códice 15.3.10, do AGCRJ, sendo essa uma das 34 teses apresentadas nesse ano.
16
Códice 11.3.11 do AGCRJ.
17
Representada como uma sociedade pequena e qualificada de incompetente.
18
Códice 13.3.6 do AGCRJ.
15
educação de meninos desvalidos entre 6 e 12 anos19. O capítulo I determina que os meninos
recolhidos deveriam ser logo vacinados e se fossem acometidos de moléstias contagiosas ou
epidêmicas seriam tratados fora do estabelecimento. Além disso, impunha que não deveriam ser
admitidos nem os que já tivessem contraído moléstias contagiosas ou incuráveis, nem os portadores
de defeitos físicos, já que o objetivo era o de instruí-los nas artes e ofícios. Caso alguém
“reclamasse” de algum menino asilado, alegando poder cuidá-lo, caberia ao Ministro julgar
conveniente ou não. O recolhimento e educação previstas não implicavam em compromisso
incondicional com os desvalidos, já que a figura da expulsão encontrava-se igualmente
regulamentada. De acordo com o regulamento de 1875, seriam expulsos:
1- Os incorrigíveis, que acabavam prejudicando a disciplina e a moral do lugar
2- Os inaptos que nada tivessem aprendido durante 3 anos
3- Os que tivessem concluído sua educação no asilo e já tivessem completado a exigência
imposta de permanecer e trabalhar nas suas oficinas por 3 anos. A metade do dinheiro recebido
nesse período seria depositado na Caixa Econômica para serem entregues no final, à sua saída do
asilo (em torno de 480$000/ano).
5- Os menores expulsos seriam entregues a seus pais ou colocados à disposição de algum
juizado no caso de ser órfão.
Traços da matriz higienista, presentes no Capítulo I do Regulamento20, a ele não ficam
circunscritos, insinuando-se igualmente no Titulo II “Regime Escolar e Disciplinar”, bem como na
previsão da presença da figura do médico, capelão e inspetor. Ao lado da norma que regula o
funcionamento do estabelecimento destinado aos desvalidos, um ofício do seu diretor, Rufino
Augusto d´Almeida, torna perceptível o emprego do argumento higiênico na escolha do próprio
local de instalação do Asilo. Segundo ele, a chácara possuía grande quantidade de árvores frutíferas,
com bastante terreno acidentado, próprio à variada cultura e, cortada por um braço do Rio
Maracanã, prestava-se, segundo os entendidos, à erguer uma escola de ensino teórico e prático de
agricultura. As condições higiênicas eram boas: ar, luz, água em abundância, mais alimentação
suficiente, sadia, variada e apropriada às idades dos asilados, com dormitórios altos, espaçosos, bem
ventilados e sem os perigos de correntezas de ar. As salas de aula e os refeitórios encontravam-se
nas mesmas condições. Os exercícios eram feitos ao ar livre pela manhã e à tarde em grandes pátios
e, algumas vezes ao sol, pela chácara. Tomava-se banhos frios, em geral pela manhã, as camas eram
de arame (sistema Spyler) com os lastros forrados de lona no verão e de lã, no inverno, munidas de
19
A idéia era a de oferecimento do ensino primário e de oficinas voltadas para a preparação de mão-de-obra, sendo o
Ministro do Império quem decidia o número de meninos a ser asilado.
20
Da organização, ensino e inspeção do asilo e do número, atribuições e vencimentos dos empregados.
bons lençóis, cobertores e travesseiros. Os meninos usavam camisas de lã no inverno e de linha no
verão e bom calçado, segundo as estações. Previa-se também que as roupas do corpo e de cama
deveriam ser trocadas com freqüência. Do mesmo modo, exercícios ginásticos deveriam ser
praticados diariamente.
O exercício ora desenvolvido, nos limites desse trabalho, sugere que a doutrina da higiene
não ficou contingenciada ao ambiente da corporação médica. Circulou amplamente, tendo sido
apropriada no circuito da organização escolar pelo código jurídico-normativo, em teses de
professores e de diretores, por exemplo. Voltou-se para as escolas regulares, estendendo-se
igualmente aos estabelecimentos destinados a recolher e educar os pobres da cidade. Sinais de
legitimidade obtida. Com isso, a instituição médica fornece fortes evidências de que alcançava o
direito de governar instituições outras que inscrevia em seu horizonte de dominação, nesse caso, a
organização escolar, cujo resultado teria sido a produção de uma “cultura” peculiar.
III- Uma cultura da higiene?
Observados os registros de professores (adotando como contraponto, o discurso de diretores
e da própria legislação), diferenças no que se refere às motivações, destinatários, remetentes e
conteúdos; é possível detectar traços da doutrina higienista acionados para definir a idade mínima
de ingresso dos alunos, distribuição do tempo, desenvolvimento da inteligência e de outras rotinas
da organização escolar. Admitindo que os argumentos de base para configuração do modelo escolar
integram o corpo doutrinário da higiene, ao concluir, cabe recolocar a hipótese inicialmente
formulada. Trabalhar com a idéia da construção de uma “cultura escolar” que forja princípios
próprios conduz, igualmente, à necessidade de não perder de vista a tese de que a escola não
funcionou (e não funciona) apenas como instância de aplicação de regras e princípios importados de
outras esferas de governo da sociedade, sendo igualmente alvo de projetos de modelação forjados
em seu exterior. No caso da higiene, há que se pensar, a partir dos elementos aqui disponibilizados,
na hipótese de que os temas sobre os quais os professores escrevem podem já não ser, eles mesmos,
determinados exclusivamente pela higiene. Se os professores se viam constrangidos a empregá-los,
as prescrições médico-higiênicas podem ter sido apropriadas pelos sujeitos da escola e ajustada aos
códigos dessa ordem em processo de consolidação. Assim sendo, talvez fosse mais adequado, para
uma interpretação densa da cultura escolar no Brasil oitocentista, considerar que a mesma convive e
compete com uma cultura da higiene na escola. Contudo, sustentar essa tese requer mais e mais
estudos, de modo a possibilitar uma reflexão mais rigorosa desse ponto.
Finalmente, nesse jogo, torna-se razoável admitir que a norma médica, organizadora do
corpo doutrinário da higiene, atingiu parte de seu ambicioso objetivo de medicalização do social,
concorrendo para modelar a organização escolar como parte da estratégia calculada de, por
intermédio de sua higienização, construir uma Corte instruída, argumento produzido, difundido e
constituído em exigência para que o Brasil pudesse vir a ingressar no concerto das nações tidas e
ditas como civilizadas. Tal desejo assinalado por fração expressiva da elite ilustrada do século XIX,
nem sempre foi perseguido com a determinação e continuidade necessárias. Estratégia que
simultaneamente aprofundava e alargava os poderes da medicina na regulação da ordem social, cuja
eficácia pode ser creditada à capacidade de se apresentar como um saber atual e necessário, ainda
que repisando temas e recaindo no reemprego de fórmulas já prescritas.
Bibliografia
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CERTEU, Michel. (1995) A cultura no plural. Campinas: Papirus.
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