JOSÉ HENRIQUE PRADO ATRAVÉS DO PRESTÍGIO: ATUAÇÃO DA CHEFIA AMERÍNDIA ENTRE OS KAIOWA DA TERRA INDÍGENA PIRAKUA DOURADOS – 2013 JOSÉ HENRIQUE PRADO ATRAVÉS DO PRESTÍGIO: ATUAÇÃO DA CHEFIA AMERÍNDIA ENTRE OS KAIOWA DA TERRA INDÍGENA PIRAKUA Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Antropologia da Universidade Federal da Grande Dourados, como parte dos requisitos finais para a obtenção do título de Mestre em Antropologia, na área de concentração em Antropologia Sociocultural. Orientador: Prof. Dr. Antonio Hilário Aguilera Urquiza. Co-Orientadora: Profa. Dra. Beatriz dos Santos Landa. DOURADOS – 2013 1 999 V123e Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Central - UFGD Prado, José Henrique. Através do Prestígio: atuação da chefia ameríndia entre os Kaiowa da Terra Indígena Pirakua / José Henrique Prado. – Dourados, MS : UFGD, 2013. 116p. Orientador: Prof. Dr. Antonio Hilário Aguilera Urquiza Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Universidade Federal da Grande Dourados. 1. Índios – Mato Grosso do Sul. 2. Kaiowa. 3. Liderança. 4. Chefia Ameríndia. 5. Pirakua. 2 JOSÉ HENRIQUE PRADO ATRAVÉS DO PRESTÍGIO: ATUAÇÃO DA CHEFIA AMERÍNDIA ENTRE OS KAIOWA DA TERRA INDÍGENA PIRAKUA DISSERTAÇÃO PARA OBTENÇÃO DO GRAU DE MESTRE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA – PPGAnt/UFGD Aprovado em ______ de __________________ de _________. BANCA EXAMINADORA: Presidente e orientador: Antonio Hilário Aguilera Urquiza (Dr., UFMS) _____________________________________ 2º Examinador: Levi Marques Pereira (Dr., UFGD) ______________________________________________ 3º Examinador: David Victor-Emmanuel Tauro (Dr., UFMS) _______________________________________ 3 À memória de meu avô, Aparecido de Oliveira Prado, e à comunidade Kaiowa do Pirakua. 4 AGRADECIMENTOS Ao terminar essa dissertação me deparo com este campo destinado aos agradecimentos. Sem dúvida esta é uma das mais desafiadoras tarefas do trabalho, pois são muitos os nomes de pessoas e instituições que eu gostaria de citar aqui. Primeiramente agradeço a minha família, pois sem o apoio e o amor de todos jamais teria conseguido realizar este trabalho. Meu muito obrigado bilateralmente aos meus avós e a toda a parentela. Especialmente agradeço a minha Mãe, Marina, e a meu Pai, Tadeu; sei o tamanho de seus esforços para que eu conseguisse realizar este sonho. Obrigado por sempre acreditarem em mim e pelo carinho e amor que me dedicaram mesmo a milhas de distância. Agradeço imensamente ao Povo Kaiowa e Guarani, sem a permissão e amizade de muitos de vocês eu jamais teria conseguido superar esse imenso e delicado desafio de compreensão. Expresso a minha gratidão a CAPES pela bolsa de estudos que possibilitou a realização dessa pesquisa e do mestrado. As pessoas que eu gostaria de agradecer são muitas, e não quero esquecer de nenhuma delas. Por isso dedico aqui meus agradecimentos a todos que passaram pela minha vida até este momento, e que de alguma forma, direta ou indiretamente, me ajudaram nessa trajetória. A todas/os de Sorocaba, minha cidade natal, onde tudo começou. Especialmente a amiga Andressa Bella, aos amigos Nilton Martins e André Menk. Agradeço também a minha irmã, Paula Prado Arriba e ao meu cunhado, Luís Arriba, que há poucos dias deram as nossas famílias a felicidade da renovação e da continuidade com o nascimento da pequena Beatriz. A todas/os de Campo Grande, cidade que aprendi a amar nos últimos anos, especialmente a Fernanda Serafim, Aretusa Carolina Brasil, Nayhara Almeida, Carla Fabiana Costa Calarge, Sthefani Guerra e Elis Lima. Agradeço também aos amigos Ricardo Grassi, Enéas dos Reis, Anédio Izumi, Jessé Marques, Saulo Conde Fernandes, Walterísio Camargo, 5 Alisson Pereira e Daniel Rossi. Pessoas sempre presentes nas comemorações e também nas horas de maior dificuldade. Agradeço também ao meu irmão Roberto Tadeu Prado Jr que – junto com a sua esposa Tatiana e o meu amoroso sobrinho Eduardo e a recém-chegada e sorridente Mariana – vive atualmente em Maceió. Vocês dão exemplos de perseverança ao encarar novos desafios e enfrentar a vida como desejavam, morando ao lado mar. As amigas e amigos que tive a oportunidade de conhecer e aprender a gostar nesse tempo que vivi em Dourados: Elisa Kuhn, Fabiane Rocha, Lais Botarelli, Lauriene Seraguza, Satine (in memoriam), Diógenes Cariaga, Fernando, Lilian, Sandra, Taiane, Sorrayla, Luis Mônaco e a todas as demais pessoas que de alguma maneira se tornaram especiais para mim. Não poderia deixar de mencionar a importância de ter vivido quase que integralmente nessa caminhada do mestrado dividindo uma casa em Dourados com pessoas fenomenais que com certeza me ensinaram muito sobre humanidade e respeito nesse tempo. Portanto, meu agradecimento vai para o Valter Monteiro, Sheyla J. Ramos Peres, Rafael Lemos, Nairon Martins e especialmente ao amigo Gabriel Ulian pela parceria de praticamente dois anos de sofrimentos com os prazos e alegrias com as festas. Gostaria de citar aqui também o nome dos amigos que viveram de maneira sazonal em nossa casa, seja para cumprir os créditos do mestrado ou para fazer trabalho de campo, são eles: Valdir Aragão (PPGAnt), Bruno Tulux (PPGHist), Rodrigo (PPGHist), Márcio (PPGHist), Saulo (PPGant), Rafael Lugo (PPGHist), Pedro Rabello (PPGAnt), Kristina (Áustria), Tatiane Klein (USP), Sullivan (Chicago) e outras pessoas que não me recordarei, foram muitas! A todas/os que estão longe: Heverson Rodrigues e Maurício Barros (Florianópolis/SC); Dani e Cissa (Salvador/BA); Lucho (Equador ou pela América Latina); Henrique Ghizzi (Alto Paraíso/GO); Especialmente agradeço a algumas pessoas que diretamente me ajudaram em meu trabalho: Carla Fabiana Costa Calarge por suas ajudas técnicas e pelas conversas que tivemos nos momentos que precediam a minha qualificação e aos irreverentes amigos Alisson Pereira e Valdir Aragão, ao primeiro por ter me ouvido por horas falar sobre o meu trabalho de campo e sobre a minha pesquisa e também pelo brain storm que me ajudou a elaborar, e ao segundo pelas imprescindíveis e cuidadosas correções e colaborações que fez em meu texto final. Ao Professor Felipe Vander Velden (UFSCar), avaliador da qualificação, que cuidadosamente escreveu um parecer me indicando caminhos que me ajudaram muito e que 6 infelizmente não pôde estar presente na banca de defesa pela incompatibilidade de agendas; No entanto, espero que possamos nos encontrar ainda muitas vezes em outros momentos mais oportunos e, com certeza, enriquecedores. Agradeço aos colegas de trabalho e as alunas e alunos que tive a oportunidade de conhecer na reta final dessa dissertação como docente na UFMS de Naviraí. Com certeza, essa têm sido uma experiência das mais intensa e importante que pude ter até o momento em minha iniciante carreira como professor/aprendiz. Aos Professores e Professoras do PPGAnt/UFGD: Jorge Eremites de Oliveira, Antonio Hilário Aguilera Urquiza, Graziele Acçoline, Mario Sá, Levi Marques Pereira, Marcio Silva, Roque de Barros Laraia e Simone Becker. Tenho certeza da imensa importância de todas e todos em minha formação. Um agradecimento especial ao meu orientador, Prof. Antonio Hilário, pela sua pedagogia da paciência, e por ter acreditado mais uma vez na minha capacidade para desempenhar essa pesquisa. Mais uma vez digo: tenho certeza que as aprendizagens mais válidas estão além dos estudos antropológicos. Não resta dúvida que ainda levarei muito tempo para compreender muitas palavras simples ditas por este mestre e amigo. Finalmente, gostaria de agradecer a todas as pessoas do Pirakua que, de maneira muito generosa, me receberam e abriram espaços em suas rodas de tereré para que eu pudesse participar. Especialmente a Darci Reginaldo Gomes, Jorge Gomes, Célio, Anália, Irene, Élida, Luana e as crianças que sempre me ensinaram a importância e a alegria de um bom banho no Rio Apa: Lucas, Raíssa, Godão, Érik, Luan, Shelleyn, Matheus, Raiane e Luan. Meu muito obrigado por todos os ensinamentos. 7 “O que se segue, portanto, não deve ser tomado como um otimismo sentimental, que ignoraria a agonia de povos inteiros, causada pela doença, violência, escravidão, expulsão do território tradicional e outras misérias que a ‘civilização’ ocidental disseminou pelo planeta. Trata-se aqui, ao contrário, de uma reflexão sobre a complexidade desses sofrimentos, sobretudo no caso daquelas sociedades que souberam extrair, de uma sorte madrasta, suas presentes condições de existência.” (Marshall Sahlins, 1997) 8 RESUMO A presente dissertação de mestrado tem como foco de investigação a atuação da chefia ameríndia entre os Kaiowa da Terra Indígena Pirakua, localizada no município de Bela Vista, Mato Grosso do Sul. A luz da perspectiva da antropologia política reelaborada por Pierre Clastres é construído um modelo para a análise, aqui determinado como grupo de suporte, que busca dar conta da observação da atuação da liderança como polo agregador de pessoas entre os Kaiowa. O movimento é constante na política Kaiowa e a ausência de uma instituição política de grande alcance, permite muita autonomia e dinamicidade para que, no caso Kaiowa, cada parentela e cada grupo de suporte tenha muita liberdade para tomar decisões, seguindo assim por um caminho de composição e decomposição constantes do social através da política. O objetivo principal desta dissertação é compreender as relações existentes entre o social e o político e, desse modo, fez-se necessário traçar um longo percurso etnográfico durante a escrita para se chegar à compreensão da tese de que a chefia ameríndia entre os Kaiowa não é a pessoa de poder e, sim, de prestígio. Palavras-chave: Mato Grosso do sul – índios; Kaiowa; Liderança; Chefia Ameríndia; Pirakua. 9 ABSTRACT This dissertation focuses on the role of amerindian leadership among the Kaiowa, from the Pirakua Indigenous Land, located in the municipality of Bela Vista, Mato Grosso do Sul. From the political anthropology perspective, reworked by Pierre Clastres, is built a model of analysis, here determined as a support group, that seeks to account the observation of the leadership actuation as a hub aggregator of people between the Kaiowa. The movement is constant in Kaiowa politics and, the absence of a far reaching political institution, allows for much autonomy and dynamism. Between the Kaiowa, every kindred and every support group has much freedom to make decisions, thus following a path of constant composition and decomposition of the social through politics. The main objective of this dissertation is to understand the relations between the social and the political and, thereby, it was necessary to trace a long ethnographic course during writing to achieve an understanding of the thesis that the amerindian leadership among the Kaiowa is not centered around persons of power but rather on prestige. Keywords: Mato Grosso do Sul – Indians; Kaiowa; Leadership; Amerindian leadership; Pirakua 10 RESUMEN Esta presente disertación de maestría tiene como foco de investigación la actuación del liderazgo (jefía) amerindia entre los Kaiowa de la Tierra Indígena Pirakua, localizada en el municipio de Bela Vista, Mato Grosso do Sul. A la luz de la perspectiva de la antropología política reelaborada por Pierre Clastres es construido un modelo para el análisis, aquí determinado como grupo de soporte, que busca comprender a través de la observación de la actuación del liderazgo como polo agregador de personas entre los Kaiowa. El movimiento es constante en la política Kaiowa y el ausencia de una institución política de gran alcance, permite mucha autonomía y dinamismo para que, en el caso Kaiowa, cada parentela y cada grupo de soporte tenga mucha libertad para la toma de decisiones, siguiendo así por un camino de composición y decomposición constantes del social a través de la política. El objetivo principal de esta disertación es comprender las relaciones existentes entre el social y el político y, de este modo, se hace necesario elaborar un largo recorrido etnográfico durante la escrita para llegar a la comprensión de la tesis de que el liderazgo amerindio entre los Kaiowa no es la persona de poder y, si, de prestigio. Palabras-clave: Mato Grosso do sul – indios; Kaiowa; Liderazgo; jefia Amerindia; Pirakua. 11 LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1 – Terras Kaiowa e Guarani em MS........................................................................31 Figura 2 – Terra Indígena Pirakua e Região.........................................................................60 Figura 3 – Regiões da Terra Indígena Pirakua.....................................................................61 Figura 4 – Núcleos de Moradia na Região da Ponte ...........................................................63 Gráfico 1 – Percentual de Pessoas por Região.....................................................................66 Gráfico 2 – Faixa Etária das Regiões da Terra Indígena Pirakua.........................................67 Gráfico 3 – Faixas Etárias dos Moradores do Pirakua.........................................................68 Gráfico 4 – Pessoas por Sexo e por Região da Terra Indígena Pirakua...............................73 Gráfico 5 – Produtos Cultivados nas Roças das Famílias Kaiowa da T.I. Pirakua..............76 Figura 5 – Ilustração das Esferas de Relacionamento do Modelo Concêntrico...................86 12 LISTA DE TABELAS Tabela 1 – Proprietários de cherogami e Moradores Abrangidos...........................................71 Tabela 2 – Ocupação dos Moradores da T.I. Pirakua, Dados Gerais e por Região ...............75 13 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS CAND – Colônia Agrícola Nacional de Dourados Cia - Companhia CIMI – Conselho Indigenista Missionário FUNAI – Fundação Nacional do Índio FUNASA – Fundação Nacional de Saúde IAGRO – Agência Estadual de Defesa Sanitária Animal e Vegetal INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária ISA – Instituto Sócio Ambiental MS – Mato Grosso do Sul PI – Posto Indígena PPGAnt – Programa de Pós-Graduação em Antropologia PPGHist – Programa de Pós-Graduação em História PR – Paraná RID – Reserva Indígena de Dourados RS – Rio Grande do Sul SC – Santa Catarina SESAI – Secretaria Especial de Saúde Indígena SP – São Paulo SPI – Serviço de Proteção ao Índio TI – Terra Indígena UEMS – Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul UFGD – Universidade Federal da Grande Dourados UFMS – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul UNICEF – United Nations Children’s Fund 14 SUMÁRIO Lista de ilustrações.......................................................................................................................8 Lista de tabelas.............................................................................................................................9 Lista de siglas.............................................................................................................................10 INTRODUÇÃO........................................................................................................................13 CAPÍTULO I– CONSIDERAÇÕES SOBRE O CONTATO: PERDA DA TERRA, ESPARRAMO, CONFINAMENTO KAIOWA E GUARANI E OS PROCESSOS DE RESISTÊNCIA..........................................................................................................................27 1.1 Povo Kaiowa e Guarani: Ação do Estado e Confinamento..................................................27 1.2 A Perda do Território (Ñane Retã) e os Processos Históricos Sobre os Territórios Kaiowa e Guarani em Mato Grosso do Sul...............................................................................36 CAPÍTULO II – PERCORRENDO CAMINHOS NA REGIÃO DO APA: A RESISTÊNCIA DO PIRAKUA ..........................................................................................................................45 2.1 A Resistência do Pirakua: os Caminhos e as Palavras da Região do Pirakua......................45 2.2 Linhas Históricas: os Caminhos Percorridos pelas Parentelas até o Pirakua.......................52 CAPÍTULO III – TERRA INDÍGENA PIRAKUA.................................................................57 3.1 Do Córrego Palmeira à parte Alta do Morro........................................................................57 15 3.2 Padrões de Assentamento no Pirakua...................................................................................64 3.2.1 Moradias............................................................................................................................64 3.2.2 Divisão Sexual de Tarefas, Formas de Subsistência e Padrões de Assentamento Kaiowa........................................................................................................................................71 CAPÍTULO IV – ATRAVÉS DO PRESTÍGIO.......................................................................78 4.1 Mba’e jehu............................................................................................................................78 4.2 Organização Social e Política da Terra Indígena Pirakua....................................................80 4.2.1 Interação Entre o Parentesco e a Política: esferas sociais de cooperação..........................81 4.2.2 Grupos de Suporte Político e Econômico do Pirakua........................................................88 4.3 O Líder e o Prestígio Político no Caso Particular do Pirakua...............................................92 4.3.1 A Chefia Kaiowa e o Prestígio..........................................................................................92 4.3.2 Atributos Qualitativos da Chefia Ameríndia.....................................................................97 CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................................105 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.................................................................................107 16 INTRODUÇÃO Esta introdução pretende apresentar brevemente parte dos pressupostos teóricos utilizados no trabalho – o restante será esclarecido, debatido, apresentado no decorrer dos capítulos e nas subsequentes discussões –, a delimitação do tema abordado na pesquisa e os procedimentos metodológicos utilizados durante o trabalho de campo. Por muito tempo, as pesquisas em Antropologia consideraram a instância política das sociedades não ocidentais apenas como um aspecto da estrutura social. Os primeiros estudos da Antropologia Política se iniciaram na década de 1940, a partir do estrutural-funcionalismo de Radcliffe-Brown e seus discípulos. No prefácio da obra “Sistemas Políticos Africanos”, de Fortes e Evans-Pritchard, Radcliffe-Brown reflete sobre o “poder” sob a perspectiva do “direito”. Dessa forma constituindo o campo político “fundamentalmente, pelo comum reconhecimento de regras ou como o espaço da vigência de um direito” (CARDOSO, 1995, p. 130). A perspectiva que é apontada por Radcliffe-Brown parte do pressuposto de que o direito, enquanto regra, está instituído “como uma justiça repressiva”. O teórico trabalha a questão do poder nas sociedades primitivas1 pelos cogitos da relação de poder coercitivo – como única forma legítima de existência do mesmo – ou mando-obediência. Nesse sentido, a Escola de Antropologia Britânica desenvolve uma teoria de Antropologia Política das sociedades africanas – baseada em uma estrutura social segmentar, compostas por grupos de descendência ou linhagens –, principalmente através da ideia de um consenso sobre as regras e da vigência imediata das mesmas (como se essas regras funcionassem de maneira “automática”), como reflete Lucy Mair, ao pensar a sociedade e o político através de “regras sociais” e “regras políticas” em que as primeiras são norteadas pelas relações pacíficas e as segundas por um caráter punitivo de resolução de conflitos. Em outras palavras, as regras políticas teriam o objetivo de reparar a infração cometida pelos 1 O uso do termo sociedades primitivas nesse texto remete-se a definição formulada por Pierre Clastres (2003; 2004) baseado na divisão das sociedades em primitivas (Contra o Estado) e Com Estado (em suas diversas formas). O termo é positivado pelo autor servindo como uma maneira de definir claramente um campo de estudos para a Antropologia Política, ao mesmo tempo, que refuta e justifica o uso dessa divisão de maneira positiva, não mais encarando as sociedades não ocidentais como incompletas politicamente, estando essas em estágios primários do desenvolvimento político social da humanidade, mas sim baseando-se na ideia de 17 membros do grupo social. Centralizando-se, assim, na ideia de que necessariamente a política contém em si essencialmente o poder repressivo da sociedade. Desse modo, por mais que nos estudos da Escola de Antropologia Britânica seja considerada a existência de uma política e de um poder nas sociedades não ocidentais, não se deixa de crer na existência de um órgão de poder; que sempre estará mais ou menos diluído no sistema social. Como pensado no caso dos grupos africanos que “mesmo descentrando a política em relação ao Estado (uma vez que as linhagens possuem funções políticas) – como o evolucionismo, aliás, descentrara a sociedade em relação ao contrato e ao indivíduo –, esse modelo desenvolvido pela antropologia britânica recentrou na ideia de um sistema social relativamente autônomo (como o evolucionismo recentrara a política no Estado)” (Lima; Goldman, 2012, p. 09, destaque meu). O poder do direito reconhecido por um grupo, pensado por Radcliffe-Brown, pressupõe a detenção da “justiça repressiva”, ou seja, do “domínio da coerção legítima, o que leva a definir a ‘organização política’ como campo do ‘exercício organizado da autoridade coercitiva” (Cardoso, 1995, p. 130). Tal abordagem pode fazer sentido se pensarmos que essas formulações foram desenvolvidas a partir do estudo de sociedades africanas. Torna-se, por outro lado, muito difícil acreditar que tais parâmetros teóricos possam dar conta da compreensão da instância do político e do poder nas sociedades ameríndias, principalmente nas sociedades dos campos e serras das terras baixas. Isso porque os relacionamentos políticos nessas sociedades, segundo Pierre Clastres, se dão por mecanismos outros, que fundamentalmente, se apresentam contra o Estado, ou seja, contra a formação de um determinado grupo ou instituição separado da sociedade que controlaria essas retratações sociais descritas por Lucy Mair como as regras políticas ou na ideia de mínimal government. Crer que o campo do político sempre estará necessariamente contido no poder constituído pelo direito à repressão pode nos colocar em labirintos sinuosos, já há muito superados. As formulações de Lapierre2, por exemplo, demonstram claramente o perigo de transpor modelos biológicos – regidos por regras instintivas – para um viés social. completude política de ambas. Porém tendo o poder, enquanto categoria de análise dos meandros políticos, lugar e funcionamento diferentes em cada uma delas – nas sociedades Contra o Estado e nas sociedades Com Estado. 2 São justamente as formulações de Jean-William Lapierre em um ensaio sobre a política e o poder (Essai sur le fondement du pouvoir politique, Faculté des Lettres d’Aix-en-Provence, Editions Ophrys, 1968), que servem de ponto reflexivo para Pierre Clastres, em seu texto de abertura da obra A Sociedade Contra o Estado intitulado “Copérnico e os selvagens” (2003), formular uma teoria antropológica para pensar a política e o poder das sociedades ameríndias em uma perspectiva não mais de rotação ao entorno do Estado. 18 As formulações de Lapierre, que de certa medida acabam aceitando as “classificações propostas pela antropologia anglo-saxônica para a África”, desse modo, ordenando a política das sociedades primitivas – às quais Lapierre apresenta como sociedades arcaicas – em cinco grandes tipos. Próximo ao ponto zero as sociedade que quase não apresentam poder político, “ou mesmo não apresentam, poder político propriamente dito” seguindo no sentido das “sociedades arcaicas” “nas quais o poder político é mais desenvolvido”. Desse modo, Lapierre acaba por ordenar “[...] as culturas primitivas em uma tipologia baseada, em suma, na maior ou menor ‘quantidade’ de poder político que cada uma delas oferece à observação” (Clastres, 2003, p. 25). Como afirmado por Clastres, crer que as sociedades ameríndias são incompletas por não se basearem politicamente na forma-Estado não passa de uma abordagem com fixação etnocêntrica. [...] as sociedades primitivas não são os embriões retardatários das sociedades ulteriores, dos corpos sociais de decolagem ‘normal’ interrompida por alguma estranha doença; elas não se encontram no ponto de partida de uma lógica histórica que conduz diretamente ao termo inscrito de antemão, mas conhecido apenas a posteriori, o nosso próprio sistema social (Clastres, 2003, p. 216). A partir da perspectiva de Clastres, as sociedades primitivas se diferem formando um bloco separado das sociedades com Estado, no sentido que não possuem um órgão separado do poder, ou seja, ignoram a divisão entre dominados e dominantes. “[...] determinar as sociedades primitivas como sem Estado é enunciar que elas são, em seu ser, homogêneas porque indivisas” (Clastres, 2004, p. 146). Desse modo, não se pode isolar a esfera do político da esfera do social. A pesquisa teve como foco a descrever as trajetórias de algumas parentelas da Terra Indígena pesquisada, descrever brevemente a conformação social e a formação de grupos de suporte da terra atualmente e – em um último momento – fazer algumas considerações sobre a atuação da liderança entre os Kaiowa, mais especificamente da liderança política (mburuvicha ou tendota). O trabalho de campo foi realizado na Terra Indígena Pirakua, localizada no município de Bela Vista/MS, com o objetivo de compreender de que maneira determinadas pessoas conseguem agregar em torno de si um grupo, onde atuam e acabam sendo 19 reconhecidas como referências ou liderança desse grupo, assim como, por quais mecanismos a comunidade reconhece e legitima a atuação da liderança. Levando em conta a perspectiva dos estudos de Antropologia Política, (re)elaborada por Pierre Clastres, que propõe uma mudança epistemológica do olhar (a revolução copernicana), de maneira que nos estudos de etnologia é necessário deixar de crer que a política ameríndia só existe em uma relação de rotação ou em um movimento centrípeto ao redor das sociedades ocidentais. Para realizar essas apreciações é necessário considerar a importância das relações de parentesco, da parentela3 e da formação de grupos de cooperação econômica e política na TI como centrais no desenrolar dos arranjos que compõem as relações políticas entre os Kaiowa. Desse modo, compreender a formação e a atuação de lideranças entre os Kaiowa e os meandros políticos da comunidade referida, na atualidade, pode contribuir concretamente para o pensar do trabalho de diversas políticas que incidem sobre esse povo, que muitas vezes, por falta de entendimento sobre a composição das relações políticas internas, acabam não se mostrando efetivas, fadadas ao que os Kaiowa consideram “resultados para os relatórios em Brasília”. Concretamente, o objetivo de compreender o processo de atuação do tendota (termo na língua falada pelos Kaiowa para designar a liderança, ou “aquele que vai à frente”) pode vir a se constituir como um importante elemento para facilitar a compreensão dos conflitos existentes entre os Kaiowa quando já tem garantidos os seus direitos territoriais, pois é pretensão da pesquisa compreender de que maneira ocorrem os processos de decisão e consenso da sociedade. Historicamente, esse povo passou por um violento processo de confinamento4 e de acomodação das comunidades Kaiowa e Guarani5 para um novo, e reduzido território após o contato com a sociedade não indígena e seus processos e procedimentos de ocupação da 3 Essa unidade sociológica é definida por Schaden (1974) como família extensa, porém adoto o termo parentela por acreditar, assim como Pereira (1999), que este termo facilita a leitura e não prejudica o entendimento sobre as formas de cooperação dos Kaiowa. Podendo ser caracterizada pela formação de um grupo de pessoas – normalmente parentes entre si, seja por consanguinidade, afinidade ou agregação – que se distinguem das demais através do reconhecimento de um vínculo de subordinação política a um determinado ego (cabeçante). 4 Sobre o conceito de confinamento Cf. BRAND (1997). 5 Por uma questão de facilidade utilizarei neste trabalho o termo Kaiowa e Guarani para me referenciar aos Guarani Kaiowa, que se autoafirmam somente como “Kaiowa” em Mato Grosso do Sul e aos Guarani Ñandeva, que se auto identificam somente como “Guarani”. Levando em conta o fato de cada um destes povos corresponder a um povo diferente e específico, porém muito próximo cultural, linguistica e territorialmente, ressaltando aqui, que ambos são povos que apesar de falarem línguas muito próximas e de apresentarem aspectos 20 região sul do estado de Mato Grosso do Sul. Ocupação que gerou fortes transformações nas formas de reprodução cultural, social, política e econômica dos Kaiowa e Guarani. Em meus estudos nos últimos anos foi possível compreender que existe uma lacuna no campo do debate sobre a atuação da liderança indígena. Os povos Guarani Kaiowa e Guarani Ñandeva, etnias da mesma família linguística (tupi-guarani), formam a maior população indígena em Mato Grosso do Sul, com aproximadamente 43 mil pessoas, com uma taxa de crescimento muito alta – quase metade de sua população ainda é de crianças (cerca de 48%)6. Acredito que este trabalho contribuirá na compreensão e no entendimento de processos internos da política ameríndia Kaiowa e do surgimento e atuação de lideranças entre os Kaiowa. Os grupos guarani de Mato Grosso do Sul, Guarani Kaiowa (também conhecidos como Paĩ-Tavyterã no Paraguai, se autoidentificando apenas como Kaiowa no Brasil) e os Guarani Ñandeva (Conhecidos como Xiripá ou Avá no Paraguai, e que em Mato Grosso do Sul se autoidentificam apenas como Guarani) ocupavam um território (ñane retã) que foi sistematicamente reduzido e fragmentado; desestruturando, assim, um importante elemento estruturante da vida do grupo: o território. Por exemplo, a desfragmentação e reelaboração de relações no contexto da família extensa (Te’yi), unidade sociológica e política do grupo, muito importante na formação da pessoa7 Kaiowa e Guarani em um contexto de comunidade, ou de tekoha. [...] los guaraníes estaban organizados socialmente en familias extensas o ‘linajes’ llamadas teyÿ, [...] El teyÿ constituía la unidad económica y política básica, la familia extensa, caracterizada por un importante grado de autonomía. (Wilde, 2009, p. 101). Egon Schaden (1974) já apontou, durante a década de 1950, que a família extensa se constituía como a unidade política agregadora, econômica, religiosa e social. Essa forma sociais, culturais e econômicos bastante similares, se constituem como povos diferentes e afirmam a sua diferença em diversos momentos oportunos. 6 Compreendo como essencial expressar esse dado neste trabalho, pois evidentemente tem sido muito ressaltado nos meios midiáticos a perspectiva de que ambos os grupos citados vivem um momento crítico e de vulnerabilidade, mortes, suicídios e muita violência nas Reservas, acampamentos a beira da estrada, retomadas e nas Terras Indígenas. No entanto, creio que entender os Kaiowa e Guarani por uma perspectiva de crescimento, devido a grande densidade populacional de crianças, evidencia – ou ajuda a evidenciar – as expectativas e a preocupações que ficam facilmente constatadas em campo a respeito da importância e do desejo de permanência que expressam, sendo as crianças consideradas como um forte fator de indicação desses desejos e expressões de permanência enquanto povo, grupo, parentela, etc. 7 Cf. SEEGUER, Anthony; DA MATTA, Roberto; VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo B.. A Construção da pessoa nas sociedades indígenas brasileiras. Rio de Janeiro; Boletim do Museu Nacional, 1979. 21 própria de organização em parentelas acabou sendo bastante modificada com o processo de reorganização territorial em Mato Grosso do Sul. Na clássica etnografia escrita por Bartomeu Melià junto com o casal Grünberg, George e Friedl, são descritos como básicos para a socialização do grupo Paĩ-Tavyterã8 dois sistemas de cooperação: a família extensa e o tekoha. A família extensa é uma unidade de produção comunal (roças, edificação de casas, viagens, pesca e etc.) de uma parentela composta por uma chefia que concentra o poder das decisões que interessam a família; O tekoha se constitui como a base política, social e religiosa das comunidades, se manifestando principalmente em festas religiosas, decisões políticas – a exemplo das Aty Guasu9 (grande reunião) – conflitos externos (resistência contra invasões de terras e retomadas), ameaças sobrenaturais como a feitiçaria má contra alguém ou contra a comunidade (Melià; Grümberg; Grümberg., 2008). É importante ressaltar que, para além da observação feita por Melià; Grümberg; Grümberg (2008), a parentela pode ser definida como um grupo ou unidade de pessoas ligadas por laços de sanguinidade, virtualidade e afinidade relativamente estáveis no tempo e com uma trajetória particular. Entre os Kaiowa sua conformação se dá atualmente pela agregação de um grupo de famílias nucleares, registrada por Pereira (1999; 2004) pelo termo nativo che ypykukera que pode ser traduzido para facilitar a compreensão como fogo familiar. Os pesquisadores Jorge Eremites de Oliveira e Levi Marques Pereira (2009) complementam essa ideia na elaboração do laudo antropológico sobre a Terra Indígena Ñanderu Marangatu ocupada por famílias Kaiowa e Guarani da região de Antonio João/MS, afirmando que o tekoha expressa ao mesmo tempo a comunidade (grupo social) e o espaço geográfico (território) em que essa comunidade vive do modo específico de suas práticas culturais (sistema cultural). Esse processo (de perda do território) desestruturou e reformulou a maneira ideal de compreensão do mundo por parte do grupo. Impossibilitando a efetivação do modo de vida ideal, ligado a relações de tradição com um passado mítico que determinam um modo de vida 8 Grupo falante de guarani e pertencente a da família linguística tupi-guarani, atualmente o grupo vive no Paraguai. Na literatura etnológica o grupo é apontado como sendo parte do mesmo povo que atualmente vive na região sul do estado de Mato Grosso do Sul no Brasil, conhecido como Kaiowa. 9 A AtyGuasu é uma reunião onde são convocados vários chefes políticos e religiosos. Esse encontro tem a finalidade de debater e resolver questões graves que ocorrem ao conjunto da população Guarani. Em Mato Grosso do Sul no ano de 2011 ocorreram duas AtyGuasu, em abril na Terra Indígena Arroio Korá no município de Paranhos/MS e em agosto na Terra Indígena Passo Pirajú no município de Dourados/MS. Segundo Brand (fala gravada durante Aty Guasu na Terra indígena Arroio Korá em abril de 2011) a primeira Aty Guasu ocorreu em janeiro de 1978 na Terra Indígena Takuapiry. 22 específico, que segundo Lévi-Strauss, é guiado por imagines mundi, construídas em edifícios mentais que facilitam a inteligência do mundo, na medida em que criam referências para assegurar e assemelhar o mundo a uma maneira de pensá-lo e de construí-lo: O próprio pensamento selvagem é ser intemporal, ele quer apreender o mundo, como totalização sincrônica e diacrônica ao mesmo tempo, e o conhecimento que dele toma se assemelha ao que oferecem num quarto espelhos fixos em paredes opostas e que se refletem um ao outro (assim como aos objetos colocados no espaço que os separa), mas sem serem rigorosamente paralelos. Forma-se simultaneamente uma multidão de imagens, nenhuma das quais é exatamente parecida com as outras; por conseguinte, cada uma delas traz apenas um conhecimento parcial da decoração e do mobiliário, mas seu agrupamento se caracteriza por propriedades invariantes que exprimem uma verdade (Lévi-Strauss, 1989, p. 291). Essa forma autorrefletida de construir o mundo, voltado para visões míticas que se reelaboradas em si mesmas, talvez possa ser pensada, em relação aos Kaiowa e Guarani, através da ideia de ñande reko10(nosso modo de ser), uma forma inclusiva de um modo de ser diferenciador e específico, onde inclui-se implicitamente a esse modo de ser uma socialização e uma historicidade que possibilitam essa alteridade sentida e ressaltada principalmente nos momentos de contato e de conflito com outros grupos: Ñande reko pone de relieve este aspecto de diferenciación cultural, que incluye un tipo especial de organización social, una lengua y un lenguaje propio (con sus formas peculiares de ‘pensamiento’ y de ‘simbolización’), una religión tradicional, una economía característica, una lengua propia. [...] El ñande reko hace que el Paĩ se considere, se sienta, se piense y se diga diferente. (Melià et al., 2008, p. 105) Adoto o princípio de que a identidade cultural não se apresenta como estática e desorientada no espaço/tempo, pois seus traços culturais como crenças, valores, símbolos, ritos, língua e demais aspectos estão em constante processo de apropriação e desapropriação – de certa maneira os processos de apropriação, principalmente nos processos de contato, 10 Além de ser possível constatar o uso e o entendimento dessa expressão – ñande reko – em etnografias e em trabalho de antropologia (Cf. BRAND, Antonio J. O impacto da perda da terra sobre a tradição Kaiowa/Guarani:os difíceis caminhos da Palavra. Tese de doutorado, História da PUC/RS, 1997, 382 p.; MELIÀ, Bartomeu; GRÜNBERG, Georg; GRÜNBERG, Friedl. Los Paĩ–Tavyterã: etnografia guarani delparaguaycontemporáneo. 2° edição. Asunción: CEADUC/CEPAG, 2008) já tive a oportunidade perceber o uso do termo nãndereko como relacionado a um modo de vida “mais tradicional” tanto entre grupos Guarani Kaiowa e Guarani Ñandeva de Mato Grosso do Sul como entre um grupo Guarani M’byaem São Paulo (Terra Indígena Tenondé Porã). 23 transcendem, em partes, as formulações de Lévi-Strauss – de elementos que se ressignificarão a partir do jogo de espelho (imagines mundi). Portanto, a cultura e a tradição podem ser entendidas como “[...]matéria de exclusão e inclusão, tomadas, não como diferenças ‘objetivas’, mas como elementos tornados significantes ou não.” (Schwarcz, 1999, p. 295). No caso da liderança o mesmo não deixa de ocorrer, pois “[...] a chefia é algo plástico, sendo constantemente redefinida ao longo da história.” (Sztutman, 2005, p. 262). Que Gorosito Kramer complementa: [Que] los liderazgos políticos guaraníes son fluidos y móviles, y el ascendiente de un jefe es el resultado de la práctica cotidiana de un estilo de conducta que es reconocida por sus seguidores como ajustado a las normas de la cultura (tekó) o estilo propio de vida. (2005, p. 14) (destaque no original) Desde a Guerra entre o Paraguai e a Tríplice Aliança (1864-1870), passando pelo primeiro empreendimento econômico da região sul do estado de Mato Grosso do Sul, a Companhia Matte Larangeira11 (1892), sistematicamente os Kaiowa e Guarani foram perdendo a posse sobre seus territórios. A propósito da importância da Companhia Matte Larangeira nesse período e até a expansão da sociedade nacional para o oeste nos anos de 1940 e 1950, consta que a empresa chegou a ter arrendado cerca de 5.000.000 ha12 – que coincidiam com o território de grupos Kaiowa e Guarani – para exploração dos ervais de mate da região. O crescimento da Companhia em questão deveu-se, também, à criação do Território Federal de Ponta Porã (1935) e pela instalação da Colônia Agrícola de Dourados (1943) pelo governo de Getúlio Vargas. Esse processo de diminuição e perda do território (ñane retã) foi agravado pelo evidente direcionamento ideológico favorável aos colonos e a colonização por parte do Estado brasileiro, que titulou muitas terras em Mato Grosso do Sul ocupadas por grupos Kaiowa e Guarani que eram tidas como devolutas. Soma-se a isso uma conduta de tutela por parte do órgão indigenista oficial (a partir de 1910, o SPI e, após 1967, a FUNAI), que se muniu de 11 Sobre as o período de exploração da Companhia Matte Larangeira em Mato Grosso do Sul, Cf.: FERREIRA, Eva Maria Luiz. A participação dos índios Kaiowa e Guarani como trabalhadores nos ervais da Companhia Matte Laranjeira (1902-1952). Dourados (MS): Universidade Federal da Grande Dourados (Dissertação de Mestrado), 2007. 12 Verificando que “No final da década de 1950, do território original de aproximadamente 20.000 km² restavam, legalmente, aos Kaiowa, apenas um total de 18.124 ha, incluídas as duas reservas predominantemente Guarani. E estes 18.124 ha estavam divididos em oito reservas distintas.” (BRAND, 1997, p. 119). 24 métodos bastante opressivos, com o intuito de levar esses povos a um ideal de “civilização”, aculturação e integração a sociedade nacional. A partir desse contexto um dos objetivos da pesquisa é compreender as formas como as lideranças Kaiowa atuam perante sua própria sociedade e por meio de quais representações elas se relacionam com o Estado e a sociedade não indígena. Tendo como pretensão metodológica uma prática, que Viveiros de Castro denomina de “rotação de perspectiva”. Ou seja, valorizando a possibilidade indígena de compreensão e de “colonização do colonialismo”. (1999, p. 115). A exemplo, a instituição da figura do capitão, que foi imposta junto à intervenção do Estado no controle desses povos, emergindo como um elemento exógeno à forma tradicional de organização política dos indígenas, que até então – 1910 com a criação do SPI – destinavam o papel da liderança, ou do chefe, a atores de relevância para a reprodução e orientação do modo de vida baseado na tradição (ñande reko). A figura do ñanderu (rezador) é exemplo do tipo de ator social tido como relevante, posto que é responsável pela ligação entre o mundo físico e o espiritual e o mburuvicha ou tendota que tem atribuído a si a função de orientar, liderar e negociar os interesses e conflitos dentro e fora (contato com outros grupos ameríndios, sociedade nacional ou autarquias do Estado) do grupo. Na cosmologia dos Kaiowa o aprendizado vem tanto das relações com as divindades, como das relações entre as pessoas, não havendo exatamente uma divisão entre esses mundos (físico e extraterreno). No entanto, a partir do momento em que a figura do capitão é imposta entre os grupos indígenas, como foi no caso dos Kaiowa em Mato Grosso do Sul, ela passa a fazer parte da vida da comunidade e a se relacionar e ter um valor e uma capacidade de articulação no socius. No caso da Terra Indígena pesquisada (Pirakua) é possível perceber que o capitão é uma pessoa de destaque, visto como o principal na resolução de problemas relativos aos relacionamentos que extrapolam os limites da terra. O trabalho de campo foi desenvolvido em três etapas. A primeira ocorreu no período de aproximadamente uma semana em dezembro de 2011. O objetivo desse primeiro período de trabalho de campo foi negociar com lideranças do Pirakua e com outras pessoas da comunidade a autorização para a execução da pesquisa. O primeiro contato com a 25 comunidade se deu através da minha pesquisa de monografia, que relaciona-se com a trajetória de vida da liderança Marçal de Souza Tupã’i13. Através de uma das filhas de Tupã’i, foi possível o contato com uma família que vive no Pirakua desde 1985. Tupã’i no final da década de 1970 e início da década de 1980 teve uma relação de proximidade com algumas das famílias que lá residiam e que reivindicavam a demarcação do Pirakua como Terra Indígena. Quando Tupã’i, com o apoio de integrantes do CIMI,14realizaram as primeiras denúncias de violências (principalmente as tentativas de expulsão do local por proprietários de terra) cometidas contra os grupos de famílias Kaiowa que viviam em um local denominado pelo nome de Pirakua15à beira do rio Apa no início da década de 1980 junto ao INCRA e a FUNAI com pedidos de reconhecimento do local ocupado e proteção do Estado as 43 famílias nucleares Kaiowa que lá viviam na época. Essa mesma filha de Tupã’i recomendou-me fazer contato com uma de suas primas que atualmente vive no Pirakua, Darci Reginaldo, casada com uma das lideranças da Terra Indígena (TI). Portanto, minha inserção foi intermediada pela família dessa liderança. Nessa primeira etapa (dezembro de 2011) fiquei hospedado na casa do Jorge Gomes, esposo de Darci, a partir do qual pude estabelecer contato com outras famílias e lideranças do Pirakua. Desse modo, após alguns diálogos com moradores do Pirakua e da apresentação do meu projeto para algumas lideranças, consegui constituir cenário favorável para a realização de um período de pesquisa de campo mais longo. 13 Marçal de Souza foi um importante líder na luta por direitos dos povos Kaiowa e Guarani em MS, batizado em guarani com o nome de Tupã’i (Pequeno Deus Trovão), nasceu em 1920 na região de Ponta Porã (Rincão Júlio), passou por diversas Reservas Indígenas durante sua infância (principalmente a Reserva Indígena de Caarapó e de Dourados), ficou órfão com aproximadamente 6 anos e foi adotado por uma família não indígena com a qual teve a oportunidade de morar em Campo Grande e em Recife e frequentar a escola. Em 1940 Tupã’i retornou para a Reserva Indígena de Dourados, inicialmente atuou como professor e depois formou-se enfermeiro em 1959 através de um curso promovido pela OMS (Organização Mundial de Saúde) e foi eleito capitão. O auge do alcance de suas palavras se dará no ano de 1980 quando discursou para o Papa João Paulo II em nome dos povos indígenas do Brasil. Lutou em muitas frentes pelos direitos dos Kaiowa e Guarani e morando na aldeia Campestre (município de Antonio João) foi assassinado em 1983, tendo sua morte repercussão na imprensa internacional e sendo rememorada nos encontros realizados pelos Kaiowa e Guarani como mártir da luta pela demarcação de terras até os dias atuais. Cf. PRADO. José Henrique. Marçal de Souza Tupã’i: trajetória de um líder Guarani.Trabalho de Conclusão de Curso, Ciências Sociais da UFMS, 2010, Campo Grande. 97 p. 14 Os nomes que constam no Laudo Antropológico de Demarcação da Terra Indígena Pirakua assinado em 25 de julho de 1985 pelo antropólogo Rubem Thomaz Ferreira de Almeida são de Antonio Brand e Hugolino Becker. Já em conversas com interlocutores (fev. 2013) que vivem atualmente no Pirakua e que acompanharam o processo de resistência e conquista da terra surge também a participação de um padre de nome Luis. 15 Provavelmente o nome “Pirakua” tem sua origem por conta de um acidente geográfico em uma das curvas do Rio Apa, que acabou formando um buraco na rocha que margeia o rio, os moradores dizem que havia uma fartura muito grande de peixe no rio e que o local onde existe o buraco era ótimo para a prática de pesca. O termo pode ser traduzido da língua falado pelos Kaiowa (guarani) como “buraco do peixe”, pois Pira = peixe e kua=buraco. 26 O segundo período do trabalho de campo teve duração de fevereiro a abril de 2012. Durante esse período, além das observações e interações na vida cotidiana do grupo, desempenhei as seguintes atividades: a) levantamento censitário do Pirakua, realizando visitas as famílias com a aplicação de questionários semiestruturados com questões sobre os moradores da Terra, tais como quantidade de moradores por casa, idade, ocupação, filiação, cultivos e atividades de subsistência, entre outros (quase a totalidade das casas da área); b) escrita diária das observações, informações e reflexões realizadas a partir da interação com os moradores do Pirakua em caderno de campo como instrumento para apreender dados observados empiricamente e as informações pertinentes ao tema da minha pesquisa; c) captação de áudio de conversas semiestruturadas que tive com lideranças e pessoas mais velhas da terra com os seguintes temas: breve história de vida do interlocutor; história de conquista do Pirakua; política e atuação da liderança; d) coleta de pontos para georeferenciamento dos locais de moradia da área. Infelizmente esses dados não puderam ser trabalhados em sua integralidade nesta dissertação como, por exemplo, a confecção de um mapa para a facilitação da visualização da distribuição das parentelas. O trabalho de levantamento censitário talvez tenha sido uma das atividades mais importantes para a minha inserção junto ao grupo, pois, através dessa atividade,foi possível conhecer e me aproximar de muitas famílias da área. Com o passar do tempo obtive distintividade para o grupo – acredito que em muito auxiliado pelas visitas feitas às casas dos moradores da TI, e, também, pelas partidas de futebol disputadas nos fins de tarde, quase que diariamente, no campo ao lado da escola. A atividade de recenseamento durou cerca de 55 dias para ser concluída. Nesse período alternei as atividades de levantamento com escrita do caderno de campo, leituras – principalmente nos dias de chuva – e conversas com as pessoas que estavam circulando pelo centro da aldeia16 e acabavam parando no posto de saúde para tomar tereré17. Durante o desenvolvimento dessa atividade os moradores que eu ainda não havia visitado me questionavam quando chegaria a casa deles e muitos me davam longas indicações de como chegar até as suas casas. 16 Utilizo o termo aldeia, pois é dessa forma que os próprios Kaiowa da Terra Indígena Pirakua e de outras Reservas e Terras Indígenas utilizam na língua portuguesa para se referirem ao território onde vivem. 17 Bebida preparada a partir da efusão em água fria da erva mate (Ilexparaguariensis), que é colocada em um copo ou em uma cuia (fruto da cuieira ou calabaça) sendo sugado através de uma bomba, que pode ser feita de metal ou do modo tradicional dos Kaiowa, feita de broto de taquara que possuí seu caule oco. 27 Durante o desenvolvimento dessa atividade de levantamento constatei uma grande velocidade de mudanças dentro da terra, pois um número relevante de deslocamentos, mudanças de local de moradia na área e até mesmo a chegada de novas famílias e a saída de outras, na maioria dos casos motivados por tensões políticas. Portanto, esse trabalho censitário me possibilitou, “estando aqui” (being here), realizar atividades primárias para um aprofundamento sobre a Terra Indígena Pirakua, como a contagem populacional, a percepção sobre a formação e a dimensão das famílias que, somados às anotações do caderno de campo, me auxiliaram na percepção de como se dão as divisões das parentelas e como se articulam as redes de reciprocidade na terra. O terceiro e último período de trabalho de campo na Terra Indígena Pirakua ocorreu após o exame de qualificação (setembro de 2012) em um período de cinco dias durante o mês de fevereiro de 2013. A proposta e finalidade desse último momento da pesquisa de campo foi a de conseguir maior profundidade no diálogo com alguns interlocutores sobre as trajetórias das parentelas que vivem atualmente no Pirakua e desse modo compreender melhor de que maneira essa Terra Indígena chegou à composição social que apresenta hoje. A dissertação esta divida em quatro capítulos. No primeiro capítulo é trabalhado o processo de perda do território dos Kaiowa e Guarani e os impactos que as ações de colonização e o regime tutelar do órgão indigenista oficial empreenderam contra os indígenas em Mato Grosso do Sul. O segundo capítulo desenvolve-se a partir de uma visão diacrônica elucidando uma possibilidade de contar a história de resistência dos moradores do Pirakua durante o final da década de 1970 até meados da década de 1980 quando o grupo consegue, através de um longo processo de organização e de luta conquistar a demarcação da terra. O terceiro capítulo tem um caráter voltado para a sincronia, onde são apresentados dados populacionais e demográficos sobre o Pirakua no momento em que realizei a pesquisa. Nesse capítulo são também apresentados alguns dados de campo que elucidam como se compõem e como se desenvolvem as relações sociais no Pirakua. O último capítulo reflete acerca das modalidades de organização social dos Kaiowa do Pirakua, em particular, a interação entre as relações de parentesco e as práticas políticas, propondo uma leitura que associa estas práticas com as esferas sociais e de cooperação de modo a construir um modelo que suporte a analise realizada em seguida sobre a chefia Kaiowa do Pirakua, sob a tese de que a chefia não detém poder e sim prestígio. 28 Levando em consideração que o todo se sobrepõe e orienta as relações entre as partes, é necessário frisar que a relação dos termos é mais importante que a própria disposição destes. Para compreender essas relações esta pesquisa focou na necessária apreciação entre os termos apreendidos quantitativamente. Durante a pesquisa foi essencial criar uma terminologia para agregar e evidenciar grupos de pessoas que cooperam entre si nas esferas do social, do econômico e do político. Para isso acredito que o termo grupos de suporte pode ser a chave para apreender como acorrem as agregações e as diferenciações no desenrolar da política interna e cotidiana do Pirakua. Como tratado no último subitem, somente a partir da análise das relações de parentesco e afinidade será possível compreender por quais meandros se desenrola a política Kaiowa e de que maneira ocorre a atuação da liderança. Pressupõe-se, assim, que essa liderança não é a autoridade que detém o poder coercitivo na sociedade, mas sim é a pessoa que, valorada pelo prestígio, consegue agregar entorno de si um grupo de parentes consanguíneos e “virtuais” que somado aos relacionamentos que se baseiam na afinidade articula-se como a pessoa que fala para o grupo internamento e sobre o grupo no exterior. 29 ... 30 CAPÍTULO I – CONSIDERAÇÕES SOBRE O CONTATO: PERDA DA TERRA, ESPARRAMO, CONFINAMENTO KAIOWA E GUARANI E OS PROCESSOS DE RESISTÊNCIA Este capítulo se constitui a partir de necessárias reflexões preliminares para se compreender basicamente o processo histórico do contato que ocorreu entre os Kaiowa e Guarani em Mato Grosso do sul e a sociedade nacional, migrante e colonizadora. São discutidas questões referentes à perda da terra pelos Kaiowa e Guarani, o processo de confinamento18 e de esparramo (sarambi) e a ação do indigenismo oficial que através de práticas colonialistas empreendeu ações que até hoje tentam ser revertidas pelos próprios Kaiowa e Guarani em MS que se organizam enquanto movimento indígena e passam a lutar pela devolução dos territórios e pela garantia e ampliação de direitos. O enfoque e as discussões teóricas, de certo modo, destoam do que será apresentando no restante do trabalho. No entanto, considerando que a antropologia – ou as antropologias – e suas teorias podem, até certo ponto, dialogar entre si, aqui a tentativa é buscar através da reflexão antropológica, que em parte pode ser compreendida, metaforicamente, como um olhar (ocidental, particular, relativizando, etc.) que necessariamente precisa ajustar o foco para compreender o que deseja observar. Portanto, no caso deste capítulo o foco é brevemente relatar como se deram os processos coloniais no sul de Mato Grosso do Sul, de modo a complementar as reflexões que surgem no próximo capítulo, basicamente focado na perspectiva de tentar sistematizar a história da resistência e da conquista contada pelos moradores do Pirakua. 18 Confinamento seria o processo histórico de ocupação do território por frentes não indígenas, que se seguiu à demarcação das reservas indígenas pelo SPI, forçando a transferência dessa população para dentro dos espaços definidos pelo Estado como posse indígena. Indica, portanto, o processo de progressiva passagem de um território indígena amplo, fundamental para a viabilização de sua organização social, para espaços exíguos, demarcados a partir de referenciais externos, definidos tendo como perspectiva a integração dessa população, prevendo-se sua progressiva transformação em pequenos produtores ou assalariados a serviço dos empreendimentos econômicos regionais (Brand, 1997). 31 1.1 Povo Kaiowa e Guarani: Ação do Estado e Confinamento O território ocupado hoje pelos atuais Estados Nacionais da Argentina, Brasil, Bolívia e Paraguai, em sua grande parte, pode ser considerado [o território] como espaços tradicionais de ocupação do povo Guarani19. Atualmente a população Guarani Kaiowa da região sul do estado de Mato Grosso do Sul é de aproximadamente 31.000 pessoas, enquanto que a Guarani Ñandeva20 é contabilizada entorno de 13.000 no Brasil (MS, PR, RS, SC, SP)21. No entanto, a população estimada para ambos os grupos, que dividem espaço em muitas das terras hoje em Mato Grosso do Sul, é de aproximadamente 40.000 pessoas, distribuídas em 28 áreas e com muitos outros grupos que hoje vivem em acampamentos a beira da estrada ou em processo de retomada à espera de decisões judiciais sobre a demarcação de terras indígenas. É possível mensurar o tamanho do território de ocupação Kaiowa e Guarani anterior ao contato com sociedades nacionais através de relatos de cronistas e missionários em pesquisas históricas e etnográficas. Eva Maria Ferreira (2007) relata que o território Kaiowa e Guarani apresentou no passado características e dimensões que se modificaram muito a partir do contato com a população nacional tendo esse território uma abrangência aproximada, por informações dispostas em registros do período colonial, que“[...]se estendia desde o rio Apa até o rio Miranda, tendo ao leste a serra de Amambai e, a oeste, o rio Paraguai.” (Ferreira, 2007, p, 23). 19 O termo “povo Guarani” neste contexto tem o intuito de servir como uma unidade sociológica que inclui vários povos de língua guarani. Cf. SCHADEN, Egon. Aspectos fundamentais da cultura Guarani. 3ª Edição. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1974, p. 11: “relativa uniformidade no tocante à língua, à religião, à tradição mítica e a outros setores da cultura”. 20 Refiro-me aos Guarani Kaiowa apenas como “Kaiowa” e os Guarani Ñandeva somente como “Guarani”, pelo fato dessa ser a forma de autoidentificação dada pelos integrantes do próprio grupo a sua identidade. Em diversos momentos do texto utilizo e utilizarei mais adiante o termo “Kaiowa e Guarani” como forma de incluir na argumentação ambos os povos (Guarani Kaiowa e Guarani Ñandeva), sabendo, e ressaltando aqui, que ambos são povos que apesar de falarem línguas muito próximas e de apresentarem aspectos sociais, culturais e econômicos bastante similares, se constituem como povos diferentes e afirmam a sua diferença em diversos momentos oportunos. 21 Sobre esses dados populacionais, consultar o sítio do Instituto Sócio Ambiental. http://pib.socioambiental.org/pt/povo/guarani-kaiowa e http://pib.socioambiental.org/pt/povo/guarani-nandeva . 32 Observando, mesmo que brevemente, a situação atual das comunidades de Kaiowa e Guarani de Mato Grosso do Sul, torna-se, portanto, perceptível a grande diminuição do território imposto a diversas famílias e comunidades Kaiowa e Guarani.22 O processo que levou os Kaiowa e Guarani a viverem em Reservas evidentemente se embasou em uma situação histórica23 guiada por elementos de cunho colonial. A dominação nas relações empreendidas pelo Estado Nacional de maneira nenhuma ocorreu de forma passiva para os dominados, pois esses reagem de maneira ativa no decorrer das ações realizadas na região “reinterpretando, selecionando e remanejando as pressões que recebe do polo dominante” (Pacheco de Oliveira, 1988, p. 10). Neste item da dissertação o processo histórico realizado pelo Estado e pelo órgão indigenista oficial em Mato Grosso do Sul durante o processo de territorialização dos Kaiowa e Guarani tem como fio condutor o conceito de confinamento desenvolvido por Antonio J. Brand (1997). E, desse modo, não é descartada a necessidade de se realizar uma breve análise sobre os impactos no modo de vida das comunidades no decorrer do processo de reservamento – e consequentemente de perda de uma grande parte do território de uso tradicional dos índios – para se compreender a história de resistência das famílias que vivem atualmente no Pirakua. O antropólogo Levi Marques Pereira, no quarto capítulo de sua Tese sobre as Imagens Kaiowá do sistema social e seu entorno (2004), realiza um movimento reflexivo sobre o conceito de confinamento. Acreditando na relevância dos pontos que Pereira levanta sobre o conceito de confinamento desenvolvido por Brand (1997) como relevantes para pensar o processo de territorialização24 imposto aos Kaiowa e Guarani em Mato Grosso do Sul – e também para compreender parte do processo de luta pela terra no Pirakua –, nos prenderemos à reflexão. Pereira (2004, p. 351) afirma que o confinamento exerce caráter duplo de funcionamento, “espacial e principalmente cultural”, como fator desestabilizante do sistema 22 Mesmo não tendo o principal enfoque nas teorias do contato nesta parte do trabalho faz-se necessário pontuar a grande importância das ideias relacionadas aos processos de territorialização desenvolvidas por Pacheco de Oliveira, que afirma: “A atribuição a uma sociedade de uma base territorial fixa se constitui em um ponto-chave para a apreensão das mudanças por que ela passa, isso afetando profundamente o funcionamento das suas instituições e a significação de suas manifestações culturais.” (1998, p. 55) 23 Pacheco de Oliveira (1988, p. 57) define situação histórica como a “noção que não se refere a eventos isolados, mas modelos ou esquemas de distribuição de poder entre diversos atores sociais” [destaques no original] 33 social kaiowa e gerador de diversos impasses entre lideranças consideradas como “jovens” e as lideranças “tradicionais” (como xamã; chefes de parentela; lideranças políticas (mburuvicha); anciãos da sociedade e etc.). No cenário multiétnico ou na dimensão espacial, estão confinados em relação aos segmentos majoritários das suas comunidades, alinhados com a perspectiva dos ‘brancos’, como as lideranças jovens, pentecostais, ‘índios letrados’, etc. O confinamento se reflete internamente na aplicação das categorias ‘jovens’ e ‘antigos’ (Pereira, 2004, p. 351). Portanto a perda do território e o processo de territorialização, em reservas, promovido pelo Estado Nacional, desfez e separou diversas parentelas. Desse modo, fragmentando politicamente diversas comunidades comprometendo a reprodução física e cultural de diversas parentelas Kaiowa e Guarani e criando uma série de problemas no interior das comunidades confinadas nas reservas: Tal situação comprometeu e segue comprometendo a reprodução física e cultural da população kaiowa e guarani, criando sérios impasses para a convivência da população aglomerada nas reservas, o que se expressa no agravamento de problemas sociais como a violência, conflitos internos, desnutrição infantil e mesmo em frequentes surtos epidêmicos de suicídios. (Pereira, 2010, p. 118) O Serviço de Proteção aos Índios (SPI), entre 1915 e 1928, delimitou oito reservas para os Kaiowa e Guarani no atual Mato Grosso do Sul25 (Dourados, Caarapó, Amambai, Limão Verde, Taquaperi, Sassoró, Pirajuí e Porto Lindo), assinaladas no mapa abaixo; o restante é resultado de demarcações realizadas pela FUNAI, a partir da década de 1980, fruto de mobilizações dos próprios Kaiowa e Guarani que em alguns casos resistiram (como é, por exemplo, o caso do Pirakua) no local que ocupavam e em outros retornam para retomar o local de ocupação tradicional (tekoha) fruto de esbulho no processo histórico de ocupação do estado de Mato Grosso do Sul. 24 Pacheco de Oliveira (1998, p. 54) define o processo da seguinte maneira: “[...] a atribuição a uma sociedade de uma base territorial fixa se constitui em um ponto-chave para a apreensão das mudanças por que ela passa, isso afetando profundamente o funcionamento das suas instituições e a significação de suas manifestações culturais”. 25 Antigo sul do estado de Mato Grosso, divido em Mato Grosso e Mato Grosso do Sul no ano 1977. 34 Figura 1 – terras Kaiowa e Guarani em MS Fonte: Geoprocessamentos do Programa Kaiowá Guarani, NEPPI, UCDB (2005). Disponível em: <http://www.trilhasdeconhecimentos.etc.br/mato_grosso_do_sul/guarani.htm>. Acesso em: 03 nov. 2012. O reservamento de terras para os Kaiowa e Guarani em Mato Grosso do sul realizado nas décadas de 1910 e 1920, cumpre, como afirma Lima (1995) o “melhor produto” da dinâmica tutelar. A ação do SPI ao demarcar essas reservas iniciais sinaliza e oficializa o processo de confinamento e de acomodação que os Kaiowa e Guarani sofreram, representando uma forte estratégia colonialista que se embasava na tutela para realizar a intervenção junto aos povos indígenas no Brasil. Nesse sentido a ação colonialista tem como principal caractere a unilateralidade das ações, desconsiderando as possíveis demandas e perspectivas do objeto da ação. Naquele momento não havia preocupação por parte do Estado em demarcar as terras que os Kaiowa e Guarani já vinham ocupando. A Reserva passou então a cumprir a função política e de áreas de acomodação26, como afirmam Jorge Eremites de Oliveira e Levi Marques Pereira. A finalidade era liberar as terras para a especulação imobiliária garantindo a 26 PEREIRA (2007, p. 03) propõe que as reservas podem ser consideradas como “áreas de acomodação”, pois lá se instituem espaços sociais geradores de novas características nas figurações Kaiowa que se “acomodam” a uma nova realidade. 35 posterior ocupação agropecuária, “[...]dessa maneira a reserva se transformou em área de acomodação para a população de diversas comunidades indígenas” (2009, p. 107). As reservas foram constituídas e definidas em processos de alienação, arbitrário e desrespeitoso às dinâmicas internas das comunidades. Lima (1995, p. 76) define as reservas indígenas da seguinte maneira: [...] porções de terra reconhecidas pela administração pública através de seus diversos aparelhos como sendo de posse de índios e atribuídas, por meios jurídicos, para o estabelecimento e a manutenção de povos indígenas específicos. (destaques no original) Segundo o mesmo autor, é possível pensar o poder tutelar27 integrado a elementos da sociedade nacional que pretendem a soberania (enquanto controle e administração dos territórios) e a disciplina (na busca de sedentarização dos povos tutelados e de inserção desses a um sistema de produção nacional). “O exercício do poder tutelar implica em obter o monopólio dos atos de definir e controlar o que seja a população sobre a qual incidirá.” (LIMA, 1995, p. 74). A estratégia do Estado até momentos bastante recentes de nossa história – o primeiro avanço mais significativo em relação à integração e tutela dos índios no Brasil se deu com a inserção do artigo 231 na Constituição de 1988 – era a de integrar e aculturar, através da prática da tutela – que considerava os povos ameríndios como incapazes de se autogovernar – exercida pelo órgão indigenista oficial. Os povos indígenas eram considerados como grupos transitórios. A criação de reservas indígenas e toda a estrutura de “proteção” eram consideradas apenas uma etapa no processo evolutivo que culminaria com o seu desaparecimento. Os indígenas passariam por etapas de humanização, através da religião católica e da educação escolar, até atingir um patamar superior considerado “civilização”. (Brighenti, 2010, p. 177) 27 O conceito de “poder tutelar” é definido no estudo do antropólogo Antonio Carlos de Souza Lima; Onde Lima demonstra que as práticas do Estado em relação aos povos indígenas mantinham em vista a ideia de assimilação, integração e a inserção desses povos em meio a sociedade nacional como trabalhadores rurais, dessa forma, agindo através de praticas embasadas em uma visão e uma ação bastante colonialista, ou seja, que reproduzia a ideia de metrópole e de colônia, sendo a sociedade nacional relacionada a primeira enquanto que os povos indígenas se relacionariam a segunda. Cf. LIMA, Antonio C. de Souza. Grande Cerco de Paz: poder tutelar, indianidade e formação do estado no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1995. 36 O poder tutelar não tinha como intenção ser uma ação perpétua por parte das políticas do Estado, seu término ocorreria quando os povos indígenas estivessem incorporados (“civilizados”) e ajustados à sociedade nacional.Assim sua função era de mediação entre a cultura dos índios e dos não índios, de forma política, disciplinadora e pacificadora, dessa forma “[...]regularizando minimamente o mercado de terras e criando condições para o chamado desenvolvimento econômico” (Pacheco de Oliveira, 1998, p. 52). A estratégia da administração era sedentarizar esses povos considerados empecilhos para o desenvolvimento econômico e social da Nação nas regiões em que esses povos habitavam, realizando sua fixação em lugares previamente definidos e coordenados por um Posto Indígena (PI) que era comandado por uma pessoa designada chefe de posto, um funcionário do órgão indigenista oficial, quase unanimemente não índio, com o encargo de tornar os índios produtivos. Produtivos ao modo ocidental de produção e nos parâmetros impostos pelo Estado Nação. Essa ação facilitava a atuação para as políticas do Estado e do órgão indigenista28. A prática de aldear os povos indígenas foi promovida pelo Estado desde o período colonial, até a promulgação da Constituição Federal de 1988, em que estava prevista a demarcação de terras indígenas respeitando as especificidades dos usos, costumes e tradições de cada povo. O processo histórico de aldeamento indígena estava intrinsecamente relacionado às ações e interesses das frentes de expansão agropecuárias, porém, para isso era necessário delimitar o espaço reservado aos indígenas – como o caso da demarcação das oito reservas iniciais – e convencê-los e em alguns casos até mesmo coagi-los a nelas se recolherem. Essa medida era vista como uma ação humanitária por parte do Estado, porque nos aldeamentos os índios teriam suas vidas preservadas e receberiam assistência e orientação para se tornarem cristãos e “civilizados”: O “aldeamento indígena” era visto, portanto, como o espaço privilegiado para o desenvolvimento da prática missionária, de programas de educação escolar e introdução de práticas econômicas voltadas para o atendimento das necessidades do mercado. Acreditava-se que o conjunto dessas ações iria preparar gradativamente a população indígena para o destino irrefutável da diluição da contrastividade étnica, resultando em sua plena assimilação. (Oliveira; Pereira, 2009, p. 47) 28 Ver BRAND, 1997; OLIVEIRA & PEREIRA, 2009; BRIGHENTTI, 2010. 37 Nas reservas destinadas aos Kaiowa e Guarani em Mato Grosso do Sul o chefe de posto era incumbido de implantar uma nova forma organizacional em busca de viabilizar a convivência da população que lá se acomodaria. Sendo ainda prática do chefe do Posto Indígena nomear entre os índios um capitão, que lhe serviria como seu ajudante de ordens. Na reserva a autoridade máxima era o chefe de posto, que detinha a prerrogativa de substituir a liderança indígena sempre que julgasse necessário. Ele também interferia em todos os assuntos internos da comunidade, decidindo sobre a convivência ou não da realização de festas, venda de madeira e contratos de trabalho para a prestação de serviços aos proprietários rurais, além de planejar e organizar mutirões para atender as necessidades produtivas do Posto Indígena. (Oliveira; Pereira, 2009, p. 49) Para exemplificar a atuação do chefe do posto, aponto abaixo a fala de uma liderança da Reserva indígena de Dourados, feita durante uma assembléia na Missão Bororo de Meruri no ano de 1975, em Mato Grosso, em que ele expõe brevemente o grau de interferência que o encarregado do posto indígena, através do órgão indigenista, poderia exercer sobre a população das reservas: Estou reclamando do que tem acontecido com os índios Caiouás que, por qualquer coisa, são transferidos. Como o índio pode possuir alguma coisa na vida, assim desse jeito? Os índios são transferidos como gado que a gente pega e põe num campo e no outro [...]. Outra coisa que eu quero dizer é que lá, os índios ganharam um trator, mas o trator fica nas mãos do capitão. (Prezia, 2006, p. 43) De fato a demarcação de áreas pequenas e descontínuas destinadas às populações Kaiowa e Guarani do sul de Mato Grosso do Sul demonstrava o evidente intuito de transformar esses povos em trabalhadores nacionais, tutelados pelas ações do órgão indigenista oficial, que passa a administrar e controlar tanto as terras quanto a inserção dos Kaiowa e Guarani à sociedade nacional, de forma local expressada diretamente nas ações e interesses do Posto Indígena e de seu chefe. As elites nacionais pretendiam “desindianizar” os Kaiowa e Guarani do sul de MS, fato que logicamente não ocorreu. Mas, como verificamos aqui, afetou de forma significativa suas condições de vida: 38 O confinamento dos Kaiowá e Guarani não significou apenas a perda de terras de ocupação tradicional e conseqüentemente problemas para a satisfação de suas necessidades e demandas por proteção, segurança alimentar, saúde, entre outros, mas impôs-lhes profundas transformações em relação a sua organização social (Brand; Colman; Costa, 2008, p. 173) Este processo de confinamento tem seu auge na década de 1980, dessa forma, tornando os Kaiowa e Guarani, aglomerados reservas, a passarem a ser a mão-de-obra barata e, portanto preferida para os trabalhos de plantio e colheita da cana nas usinas de álcool que estavam sendo instaladas na região. Objetivamente, o reservamento é uma última alternativa encontrada pelos indígenas em busca da manutenção da sua sobrevivência. A atividade nas usinas de álcool, que absorve a quase totalidade de mão-deobra indígena, ao contrário do desmatamento e da limpeza de pastos, que se caracterizou pelo esparramo, exigiu o confinamento e a sua concentração. (Brand, 1997, p.90, Destaques no original) Os trabalhos temporários praticados pelos índios fora das reservas foram substituídos pelo trabalho assalariado compulsório. Dentro das reservas não existem alternativas viáveis de subsistência e sob a ótica do capitalismo e do assalariamento quanto mais concentrada estiver a mão de obra, mais fácil é sua orientação e seu controle (Brand, 1997, p. 91). Em 1990 tem início a implantação de usinas de álcool na região, que exigiam o emprego intensivo de mão de obra: A changa, enquanto trabalho temporário prestado pelos índios fora das Reservas, cedeu lugar ao assalariamento continuo de até 10 meses por ano. Trata-se de um assalariamento compulsório, porque dentro das Reservas inexistem outras alternativas viáveis de subsistência. (Brand, 1997, p. 91) Esse processo histórico coloca as comunidades Kaiowa e Guarani em um contexto de negação de seus direitos. A atual situação desses povos é alarmante, tendo como principal fator desta degradação a falta de terras acarretada pela condução ideológica das políticas do Estado a favor dos colonos, que migraram para a região ao longo do século XX. As demarcações, seccionaram e fragmentaram o território tradicional, desmobilizando e desorientando muito os padrões de organização social, principalmente pelo cerceio do acesso a vínculos com a terra, relacionados à tradição e ao nosso modo de ser (ñande reko). 39 1.2 A Perda do Território (Ñane Retã) e os Processos Históricos Sobre os Territórios Kaiowa e Guarani em Mato Grosso do Sul Tinha este órgão [indigenista oficial] clareza sobre a importância do território para a continuidade do modode-ser tradicional; tinha clareza sobre o impacto do confinamento na economia, na sociedade e na religião tradicionais. (Brand, 1997, p. 262-263) Para compreender a relação entre modo de viver tradicional e território é preciso revisar o significado desses conceitos no interior da cultura Guarani, oferecendo elementos para a compreensão do impacto do processo de reservamento sobre a cultura tradicional. O conceito de ñande reko (nosso modo de ser) na cultura Guarani só é, obviamente, possível em uma situação dada no seio de seu contexto cultural, mais especificamente é um “nós” inclusivo de todo o grupo que possuí características e dinâmicas culturais bem específicas, onde se incluem implicitamente a esse modo de ser uma socialização e uma historicidade que possibilitam essa alteridade sentida e ressaltada principalmente nos momentos de contato e de conflito com outros grupos29. Espalhados por um vasto território mantinham uma organização social basicamente orientado em dois sistemas de cooperação, a família extensa e o tekoha. A família extensa é uma unidade de produção comunal (roças, edificação de casas, viagens, pesca e etc.) de uma parentela composta por uma chefia que concentrava o prestígio e a responsabilidade das decisões que interessam a família; O tekoha se constituí como a base política, social e religiosa das comunidades, se manifestando principalmente em festas religiosas, decisões políticas – a exemplo das Aty Guasu (grande reunião) – conflitos externos (resistência contra invasões de terras e retomadas), ameaças sobrenaturais como a feitiçaria má contra alguém ou contra a comunidade. (Melià; Grümberg; Grümberg, 2008) A terra para um Guarani esta relacionada à sobrevivência física, social, política e cultural. Os frequentes embates em reconquista de terras pelos Kaiowa e Guarani e a grande dificuldade de diálogo entre índios, Estado e agricultores acaba gerando um cenário 29 Além de ser possível constatar o uso e o entendimento dessa expressão – ñande reko – em etnografias (Cf. BRAND, Antonio J. O impacto da perda da terra sobre a tradição Kaiowá/Guarani:os difíceis caminhos da Palavra. Tese de doutorado, História da PUC/RS, 1997, 382 p.; MELIÀ, Bartomeu; GRÜNBERG, Georg; GRÜNBERG, Friedl. Paï–Tavyterã: etnografia guarani del paraguay contemporáneo. 2° edição. Asunción: CEADUC/CEPAG, 2008) já tive a oportunidade observar o uso do termo nãnde reko como relacionado a um modo de vida “mais tradicional” tanto entre grupos Guarani Kaiowa e Guarani Ñandeva de Mato Grosso do Sul como entre um grupo Guarani Mbya de São Paulo (aldeia Tenondé Porã). 40 contrastante na vida desses povos, que em pouco mais de 50 anos passou por intensas transformações. A economia tradicional Guarani30 se distingue muito da forma econômica encontrada em sociedades de tradição ocidental, pois se divide basicamente em unidades de produção e consumo coletivos que se orienta em torno da distribuição, redistribuição e reciprocidade, baseada principalmente no conceito de propriedade não individual: [...] la mayor repartición posible de los riesgos para poder garantizar la supervivencia de la comunidad. Es una economía de interés comunal (de familias extensas e del tekoha) orientada hacia el abastecimiento óptimo de sus miembros y dependiente da cooperación de todos ellos. (Melià; Grümber; Grümberg, 2008, p. 109) Portanto, no processo de trabalho não existe a apropriação individual dos meios de produção. A terra, até o início da disputa por ela com colonos e com a sociedade nacional era um bem comum, coletivo, que deve se integrar aos homens e que deve ser usada segundo as leis divinas. Somente Ñande Ru ou Ñane Ramõi possuí propriedade sobre a terra; terra e corpo são interpretados como parte da mesma coisa: “porque los cuerpos se convierten en la tierra después de la salida del alma y así somos nosotros la tierra, nuestros antepasados y nuestros hijos al mismo tiempo!” (Melià; Grümber; Grümberg, 2008, p. 111). A divisão do trabalho é realizada através dos sexos, o que Pierre Clastres vai chamar de oposição entre o arco e o cesto em sua etnografia sobre os Aché (subgrupo Guarani) do Paraguai: Cada um desses dois instrumentos [o arco e o cesto] é, com efeito, o meio, o signo e o resumo de dois ‘estilos’ de existência tanto opostos como cuidadosamente separados. [...] o arco, arma única dos caçadores, é um instrumento exclusivamente masculino, ([...]) o cesto, coisa das mulheres, só é utilizado por elas: os homens caçam e as mulheres carregam. (Clastres, 2003, p. 123) Aos homens destinam-se os trabalhos de derrubada de árvores e queimadas para o plantio; caça; coleta de mel, erva-mate e lenha; cuidados com os animais; edificações de casas e etc. Já as mulheres são encarregadas principalmente da produção de cerâmica e cestos, 30 Neste ponto, sobre a economia dos Guarani, de maneira mais genérica me remeto diretamente ao a etnografia de Melià, George e Paz Grünberg “Los Paĩ Tavyterã” (2008). 41 tecidos e de plantar o avaty morotï31 entre outros tubérculos comestíveis. Sendo que ambos os sexos participam de atividades de pesca, coleta e cuidados das criações domésticas. A agricultura tem uma função essencial na vida dos Guarani,32 se relacionando diretamente com : “Puesto que labrar su propia tierra no es considerado trabajo, sino más bien cumplimiento del deber religioso y social (teko ndaha’ei tembiapo), la agricultura está muy vinculada a su ideología.”(Melià; Grümberg; Grümberg, 2008, p. 116). No caso de Mato Grosso do Sul, a imposição de um progressivo assalariamento, primeiro na colheita da erva-mate, depois nas derrubadas e no trabalho de implantação das fazendas de gado, e atualmente, nas usinas de álcool é um fator que contribui para a desestruturação e a instabilidade das famílias, tanto as famílias extensas, como as nucleares (Brand, 1997, p. 263). O tempo que esta mão de obra, em sua maioria homens adultos, é retirada das reservas para trabalhar e acaba inviabilizando momentos importantes de socialização, como a realização de festas e o ritual de iniciação para a fase adulta dos meninos (mitã pepy33e o avatikyry34) – principalmente atividades relacionadas à agricultura, pesca e caça. É necessário compreender que a prática do ñande reko só se dá em um espaço geográfico e de uma “territorialidad política” (Melià; Grümber; Grümberg, 2008, p. 106), que, em guarani, recebe o nome de ñane reta. Sendo este o lugar designado por Ñande Ru ou Ñane Ramõi35 para uso e desfrute da terra pelos Kaiowa e Guarani. A particularização do termo ñane reta é ñande rekoha – lugar do nosso modo de ser, onde somos o que somos – ou seja, o lugar onde é possível o ñande reko (nosso modo de ser). 31 O avaty morotï (milho branco) é o cultivo mais sagrado dos Guarani; é como uma criança que recebe vários cuidados especiais. “Se preparan sus rozados aparte, en la mejor tierra y nunca se mezclan sus semillas con otras variedades de maíz. (…)[além de ser usado na produção da chicha (kãgui) é] objeto de un ciclo de rezos, cantos y bendiciones (ñembo’e, mborahéi y jeovasa). Cf. MELIÀ, Bartomeu; GRÜMBERG, Georg; GRÜMBERG, Friedl. Paï–Tavyterã: etnografia guarani del paraguay contemporâneo. 2° edição. Asunción: CEADUC/CEPAG, 2008. 32 Com exceção de alguns grupos nômades. Como é o caso dos Aché do Paraguai. Cf. CLASTRES, Pierre. Crônica dos índios Guayaki: o que sabem os Aché, caçadores nômades do Paraguai. Traduzido por Tânia Stolze Lima e Janice Caiafa. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995 33 O mitã pepy é considerado uma festa de grande importância para o grupo, é a celebração da incorporação de novos membros masculinos a comunidade adulta, onde se realiza a perfuração labial e a colocação do tembeta ou tembequa . 34 Avatikyry é uma festa da chicha (bebida sagrada para os Guarani feita a base de milho) geralmente envolve quase toda a comunidade do tekoha. Sendo a chicha preparada exclusivamente pelas mulheres. 35 Ambos referem-se à entidade criadora e doadora do mundo para uso dos Guarani (Kaiowa, Ñandeva e Mbya). 42 O processo de transformação do território de ocupação tradicional dos Kaiowa e Guarani de Mato Grosso do Sul iniciou-se com o fim da Guerra entre o Paraguai e a Tríplice Aliança (1864-1870). Uma vez que, a partir daí tem início a incipiente ocupação por frentes de colonos e criadores de gado no estado, que atinge em cheio locais onde os indígenas radicavam seus tekoha. Essa ocupação é gradativa, sendo concretizada com mais veemência a partir da década de 1950 com os incentivos por parte do Estado para a ocupação do CentroOeste36. As áreas que apresentavam ervais nativos37 em abundância sofreram impactos pela instalação da Cia Matte Larangeira, isso a partir de 1890, que segundo Brand (1997, p. 91) “[...] ela [Cia Matte Larangeira] atingiu especialmente, as regiões de Caarapó, Juti, Ramada, Amambai, Campanário e outras”. No entanto a relatos dos moradores da região do rio Apa (entre Bela Vista e Antonio João) que era comum na região a exploração da erva-mate por empreendedores não índios. A primeira frente de expansão econômica e de contato que causou impacto sobre o território e vida dessas populações foi, portanto, a ação extrativista realizada pela Cia Matte Larangeira. Nesse sentido, observa-se que: Com o final da Guerra [entre Paraguai e a Tríplice Aliança], as autoridades locais veem a necessidade de proteger as fronteiras, adotando como medida urgente radicar aí homens “brancos” e estabelecer postos militares, para impedir a entrada de estrangeiros. Dessa forma, o pós-guerra assistiu a um incremento na vinda, para o Sul de Mato Grosso, de inúmeros migrantes tanto paraguaios como brasileiros vindos de Minas Gerais, São Paulo, Paraná e Rio Grande do Sul. (Ferreira, 2007, p. 28) A exploração da erva-mate correu sobre diversas áreas de ocupação Kaiowa e Guarani, desestabilizando a forma e os sentidos de uso, consumo e reprodução que esses tinham da terra. Muitos indígenas estabeleceram relações de trabalho com a Cia Matte Larangeira, sofrendo exploração e endividamento quando adquiriam mercadorias, quase sempre superfaturadas, nos barracões da Cia Matte. Talvez seja possível fazer um paralelo com a ideia de regime de “barracão”. Onde, Roberto Cardoso de Oliveira em sua obra “O índio e o Mundo dos Brancos” (1981) e suas 36 Cf. OLIVEIRA & PEREIRA, 2009. No entanto, segundo o Professor Jorge Eremites de Oliveira existem trabalhos de arqueologia que afirmam que a região dos ervais explorada pela Companhia Matte Larangeira eram obra de anos de manejo dos povos autóctones que viviam naquela região. 37 43 pesquisas com o Povo Tikuna do Alto Solimões, afirma que o regime de barracão se constitui basicamente na empreitada de um não índio que se apropria de um determinado espaço utilizado por um povo, ali estabelece um sistema de exploração da mão de obra baseado no pagamento em mercadorias exógenas à cultura local gerando um sistema de endividamento, que o sujeito que trabalha, sendo explorado em parte de seu próprio território, acaba por não conseguir sair desse ciclo de divida a não ser fugindo para outra área38. Tratando-se de um sistema de exploração da mão de obra dessas populações, e em decorrência disso, numa espécie de servidão por dívida. Como é possível conferir novamente aqui Serejo (1986, p. 144, apud BRAND, 1997, p.68-69) diz que “caso raro raríssimo mesmo – nos ervais, um peão com Haber na caderneta”. Brand (1997, p.68-69), adiante, situa a estratégia do “adiantamento” como forma de “selar o compromisso” sendo um “forte mecanismo de forçar a manutenção dos trabalhadores nos ervais”. Conclui que a estratégia de “prender o trabalhador aos ervais através da divida foi usada por mais de meio século”. Paralelo a isso ocorre o esparramo39 ou sarambi40, fazendo com que parte da população Kaiowa e Guarani, ao se encontrarem em uma relação de exploração e dependência inesgotável, acabe fugindo para outras áreas onde ainda poderiam viver em busca de manter as práticas culturais e sociais sem o contato e a opressão da Cia Matte Larangeira e de seus encarregados. Esses locais eram, por exemplo, fundos de fazendas que ainda mantinham algum resquício de mata nativa. Todas essas transformações desmantelam vários tekoha e grupos de parentelas que acabaram se acomodando durante a década de 1980 nas reservas que serviram como áreas de acomodação e, desse modo, também como espaços de reorganização política. O monopólio da Cia Matte Larangeira foi quebrado, Segundo Ferreira e Brand (2009, p. 110), a partir do decreto Lei nº 725, de 24 de setembro de 1915: “[...] quebrou-se o 38 Cf. FERREIRA, Eva Maria Luiz. A participação dos índios Kaiowá e Guarani como trabalhadores nos ervais da Companhia Matte Laranjeira (1902-1952). Dourados (MS): Universidade Federal da Grande Dourados (Dissertação de Mestrado), 2007.sobre a participação dos índios Tikuna da região do Alto Solimões conferir LÓPEZ, Claudia L. .“Procesos de formación de fronteras en la región del alto Amazonas/Solimões:La historia de las relaciones interétnicas de los Ticuna”, 2005. 39 BRAND (1997) define o processo de esparramo (sarambi) como um movimento dispersivo de diversas comunidades Kaiowa e Guarani pela região sul de MS. O esparramo tem seu inicio marcado pela exploração da erva mate (final do séc. XIX) e segue até a fim do processo de formação das fazendas e o início da mecanização da produção (déc. 1970 e 1980), antecedendo o momento mais forte do reservamento das populações indígenas da região. 40 Sarambi: dispersão; confusão; falta de sentido e orientação. Cf. PEREIRA. Levi. Demarcação de terras kaiowa e guarani em MS: ocupação tradicional, reordenamentos organizacionais e gestão territorial. In: Tellus. Campo Grande. Ano10, n. 18, p. 115 – 137. Jan – Jun 2010. 44 monopólio da Companhia Matte Larangeira, embora seu domínio tenha permanecido até 1943.” quando então o Presidente Getúlio Vargas, que criou o Território Federal de Ponta Porã anulando definitivamente os direitos da Matte. Ao romper com os direitos da Cia Matte Larangeira, o Estado tinha como objetivo liberar as terras do sul de Mato Grosso para a colonização. A criação da Colônia Agrícola Nacional de Dourados (CAND) em 1943 pode ser considerada como um fator incentivador da migração em busca de terras na região sul de Mato Grosso. O impacto do processo é bem maior que o da exploração de erva-mate pela Cia Matte Larangeira, principalmente porque nesse momento ocorria a exploração efetiva do território, pela agricultura e principalmente pela pecuária (bovinocultura) até a década de 1960. A partir da criação da CAND, em 1943, a especulação pela terra se acirrou no sul de Mato Grosso do Sul, surgindo um novo modelo econômico e, por conseguinte, colonizador na região: o da formação das fazendas e dos empreendimentos agropecuários que se somavam paralelamente ao processo de retirada das populações Kaiowa e Guarani que ainda viviam em “fundos de fazenda” – em matas que ainda não tinham sido alcançadas pela ocupação agropecuária. Esse processo tornou-se mais intenso no período que vai da década de 1940 à 1980, quando as fazendas foram definitivamente implantadas, a mata foi totalmente derrubada e os índios refugiados em “fundos de fazenda” foram “descobertos” e dali retirados. Nas reservas ainda hoje em dia é comum presenciar a chegada de “índios de fazenda”, que muitas vezes são as últimas famílias de comunidade que foram sendo retiradas aos poucos, como no caso da comunidade Cerro’i, também chamada de Ita Vera’i, localizada no municio de Guia Lopes da Laguna, da qual o Ministério Público Federal, a FUNASA e a própria FUNAI tomaram conhecimento muito recentemente. O certo é que ainda existem casos em que esse processo não se consumou plenamente, gerando conflitos e disputas pela posse da terra entre índios e fazendeiros. (Oliveira; Pereira, 2009, p. 118) Após o processo de mecanização da agricultura na década de 1970 e o fim dos trabalhos de derrubada das matas e abertura de estradas (onde houve participação efetiva dos grupos indígenas citados neste trabalho) tornou-se inconveniente para os “novos” proprietários manter os indígenas em “suas terras”. Sobreveio então uma mobilização, em alguns casos com apoio do órgão oficial indigenista, para expulsar de vez esses grupos ou famílias. Acreditava-se, por parte do Estado, que “lugar de índio era dentro da reserva”. 45 Esse processo se intensificava cada vez mais com o passar das décadas e com a vinda cada vez maior de imigrantes, sendo possível pensar em um ápice entre os anos de 1970 e 1980; marcado como o período de integração entre o oeste e o leste do Brasil, que tinham como propostas e ações a mecanização da produção agrícola; a divisão do estado de Mato Grosso pelo Presidente Geisel, o aumento da produtividade agrícola através do uso de insumos agroquímicos e a expansão das fronteiras agrícolas no Cerrado (que, no caso de MS, “vitimou” uma série de trabalhadores do campo que se viram obrigados a migrarem para as cidades)41 e interesses estratégicos. Para o Estado já se tinha como resolvida a questão de terras para os Kaiowa e Guarani com a pretensão de reservamento dos grupos nas oito reservas demarcadas e destinadas a eles entre 1915 e 1928. Por outro lado, foi justamente nesse período que os Kaiowa e Guarani de Mato Grosso do Sul lograram reconquistar aldeias perdidas, ou resistir com êxito à expulsão das mesmas, rompendo com o processo de transferência e o confinamento em áreas já reservadas. Era o início da organização de um movimento indígena. Rancho Jacaré e Guaimbé [...], conseguiram a demarcação legal de suas terras em 1984. Representam as duas primeiras áreas indígenas demarcadas na região após 1928. Takuaraty e Yvykuarusu, Pirakuá, Cerrito, Jaguari, jaguapiré, Sete Cerros, Guasuty e Jarará são outras aldeias que, a partir da década de 1980, conseguiram resistir à pressão dos fazendeiros e de órgãos governamentais e obtiveram êxitos legais no que se refere à posse da terra. (Brand, 1997, p. 106-107) É possível verificar que essa organização de um movimento indígena durante as décadas de 1980 e 1990 não se deu apenas com os Kaiowa e Guarani, existem exemplos no Equador, México e Bolívia. Em decorrência da consolidação de um neoliberalismo agressivo e expansivo a partir da década de 1990, houve uma série de eclosões de movimentos indígenas cada vez mais organizados e propensos ao diálogo com os instrumentos legais, assim como com os códigos da sociedade nacional, que se fundava, inicialmente, a partir do nascimento de uma ordem civilizatória com os processos colonizadores na América promovidos pelos europeus. O momento se torna bastante favorável pela confluência de uma série de processos ocorridos também nos anos de 1970 e 1980, como por exemplo, o fortalecimento da Teologia 41 Cf. MORO, Nataniél Dal. O Poder Legalizado no Processo de Formação das Fronteiras Econômica e Demográfica no Sul do Estado de Mato Grosso (Décadas de 1960-70). In: História em Reflexão: Vol. 3 n. 6 – 46 da Libertação (que no caso do Brasil atuou e atua através do da Comissão Indigenista Missionária (CIMI)), somado à emergência de processos democráticos na América Latina que afetam diretamente a formação e auxiliam na criação de condições para a formação de um movimento indígena que reivindica uma série de direitos até então sistematicamente negados a esses povos. (Dávalos, 2005) Verifica-se, portanto, que a partir da década de 1980 ocorre um processo muito contraditório. Ao mesmo tempo em que ocorria a radicalização do confinamento e o simultâneo crescimento das taxas de violência nas reservas, culmina justamente com o início da quebra deste mesmo processo histórico de confinamento, mediante a luta pela retomada de terras que nesse processo de mais de 100 anos42foram perdidas. O Povo Kaiowa e Guarani continua sua luta por direitos, dos anos 1990 até a atualidade, principalmente quanto à retomada de seus territórios de ocupação precedente a expulsão incentivada pelo processo de colonização da região sul de Mato Grosso do Sul. A terra significa a garantia de uma vida digna “segundo seus usos, costumes e tradições” em um espaço destinado ao uso do grupo, conforme reconhece a Constituição Federal de 1988, no seu art. 231. Em muitos casos as tentativas de reação por partes dos Kaiowa e Guarani foram cerceadas de maneira brutal pelas elites agropecuárias do estado de Mato Grosso do Sul. a participação do Estado Nacional no desvendamento desses crimes tende a ser um processo lento, gerando um grande sofrimento para todos os envolvidos.43 UFGD – Dourados jul/dez 2009. 42 Levando em conta desde o início da atuação da Cia Matte Larangeira (1892) até os dias atuais. 43 Para citar apenas alguns exemplos de assassinatos e o desaparecimento de lideranças que até o momento não tiveram resolução ou que se arrastam nos tribunais brasileiros podemos apontar os seguintes nomes: Marçal de Souza, Marcos Verón, Nísio Gomes, etc. 47 48 CAPÍTULO II – PERCORRENDO CAMINHOS NA REGIÃO DO APA: A RESISTÊNCIA DO PIRAKUA Durante os períodos em que realizei o trabalho de campo, ouvi de muitos interlocutores histórias sobre como o Pirakua surgiu enquanto Terra Indígena. Basicamente, a principal tese das pessoas da comunidade é a de que o Pirakua é uma terra de resistência44. A ideia de resistência se explica pelo fato de – na região onde hoje é situado o Pirakua – haver famílias Kaiowa que viviam basicamente do cultivo da terra e de trabalhos esporádicos em fazendas da região. Quando um fazendeiro da região inicia o processo de expulsão as famílias que ali viviam, elas se unem contra a pressão da expulsão e se mobilizaram de modo a resistir às tentativas do referido fazendeiro que reclamava os direitos legais sobre a terra e que, naquele momento, pretendia iniciar a exploração econômica do local; transformando-o em pastagem para a criação bovina. 2.1 A Resistência do Pirakua: Os Caminhos e as Palavras da Região do Pirakua “conhecemos enquanto caminhamos e não antes de caminhar.” (Ingold, 2005, p. 12) O Pirakua nem sempre teve esse nome. Segundo os moradores da Terra Indígena, anterior à luta, Pirakua era apenas o nome de um buraco existente em uma das margens do Rio Apa que atualmente não faz parte dos limites da Terra Indígena. Nos três parágrafos que seguem, trabalho basicamente com as conversas que tive com um interlocutor de minha pesquisa nascido onde hoje atualmente é considerado o Pirakua. 44 Quem me explicou com muita paciência e clareza esse ponto crucial da história do Pirakua em uma conversa informal foi o Prof. Júnior, um Kaiowa, nascido no próprio Pirakua, que atualmente é professor da Escola Indígena do Pirakua e esta desenvolvendo o seu trabalho de conclusão da licenciatura intercultural indígena justamente defendendo a tese de que o Pirakua é uma terra de resistência e não de retomada como é possível identificar em vários outros lugares de onde os Kaiowa foram expulsos e agora retornam para reivindicar o direito de uso novamente do local. 49 Argemiro Escalante, m’borahei jara (dono da reza) de aproximadamente 65 anos, afirma que nasceu exatamente no lugar onde hoje é o Pirakua, no entanto, afirma que na época o nome do local, ou como afirma Argemiro: “o nome desse mato, chamava yvy hu... que significa terra preta mesmo.” Na época em que o lugar era chamado pelos Kaiowa da região como yvy hu “o mato não tinha dono, mas um dia chegou o Astúrio Monteiro e falou que esse mato era dele”. Com a reivindicação feita por Astúrio Monteiro de Lima (já falecido), João Vargas, finado esposo de Valentina que atualmente tem por volta de 92 anos, deu para o fazendeiro “dois corotinho” de ouro. “O fazendeiro pegou e falou para ele... agora você vai ficar aqui e morar”. Sobre a história do ouro, tive a oportunidade, durante o trabalho de campo, de ir até a casa de Dona Valentina. Na oportunidade, tive muita dificuldade em compreender as histórias que essa senhora, já bastante idosa, me contou em um guarani bastante arrastado e cansado. Por sorte, na ocasião, estava comigo um dos agentes de saúde da TI (Valmir Franco) que fez a tradução. Dona Valentina conta uma história muito parecida com a versão de Argemiro. Segundo ela, seu esposo na época tinha guardado uma certa quantidade de ouro e quando Astúrio apareceu pedindo para que eles deixassem a terra seu marido “comprou” o direito de permanecer no local lhe entregando o ouro. No entanto, segundo Dona Valentina, esse acordo foi “esquecido” pelo filho de Astúrio, Líbero Monteiro de Lima que nos anos finais da década de 1970 começa uma longa disputa com as famílias que viviam onde hoje é o Pirakua. Os mais velhos da TI contam que no passado não havia delimitações e marcos territoriais como existem hoje em dia. Esses interlocutores relatam que na região existia uma série de aldeias (tekoha) que foram se desfazendo – ou esparramando, como muitas vezes dizem os próprios Kaiowa – pela ação dos novos proprietários das terras (meados da década de 1950 e 1960) e também pela chegada de doenças até então desconhecidas pelos grupos que acabavam se tornando epidemias e acabavam por fazer com que as famílias se dispersassem para outras localidades da região ou então para trabalhos em fazendas. Argemiro Escalante conta que nesse tempo era comum os índios andarem muito nas matas em busca de caça, de mel e de frutas silvestres. Em conversas com Argemiro, Augusto Gomes, Jorge Gomes, Coche e outros interlocutores foi possível fazer um levantamento dos nomes de alguns desses antigos espaços de habitação que atualmente estão dentro de fazendas. Sendo eles: Suvirandó; Gua’a kua; Ñakã Puku(Cabeceira Comprida; Cabeceira Puku); Yvy hu; Candiré; Naraña ty; Guaxupé; Bakaiowa; Itaverá; y said’ju; 50 Porém a trajetória e os caminhos percorridos pelas famílias, expulsas desses antigos tekoha, não foram esquecidos pelos mais velhos que sempre fazem questão de apontar as direções e os marcos que permaneceram – notadamente para indicar que ainda se lembram dos antigos rios que frequentavam e também dos cemitérios que ali estão. Lembram-se, ainda, de antepassados com quem conviveram na região e ressaltam sempre aos mais novos a importância de se lembrarem onde estão localizadas as terras das quais seus antepassados foram expulsos. Quando cito a ideia de caminhos percorridos, busco orientar o meu pensamento em analogia à ideia trabalhada por Ingold (2005) que discute a ideia de descobrir-caminho pelo movimento de um lugar a outro de uma região. Estando em campo, ficou evidente que todos os Kaiowa com mais de 35 anos – ou seja, antes da luta pelo Pirakua – com quem conversei haviam percorrido uma série de caminhos antes de chegarem ao Pirakua. Desse modo, são exímios conhecedores da região e com o passar do tempo conseguiram elaborar histórias e nutrir sentimentos por esses lugares, mesmo que atualmente não estejam mais disponíveis para o seu uso. Como analisa Ingold (2005, p. 7): “[...] separar a tradição da localidade ou a cultura do lugar significa, também, divorciar o conhecimento tradicional do contexto de sua produção, na experiência de seus participantes situada no ambiente.” Portanto, é possível pensarmos nesses caminhos como trilhas que foram percorridas pelos Kaiowa dessa região, levando em consideração que uma “[...] trilha deve ser compreendida não como uma série infinita de pontos discretos, ocupados em instantes sucessivos, mas como um itinerário contínuo de movimento” (Ingold, 2005, p. 8). No próximo item (2.2) serão, brevemente, descritos quais foram algumas das trilhas/caminhos percorridos por algumas parentelas até chegarem ao Pirakua. Em agosto deste ano tive a oportunidade de passar rapidamente pelo Pirakua e lá foi possível ter acesso a um texto em fase de elaboração pelo Professor Junior Joel Lopes Machado sobre a história de resistência do Pirakua. No referido texto, ele demonstra que o contato e os relacionamentos em troca de serviços já eram bastante comuns na região: Conversando com alguns dos mais velhos da minha aldeia, contaram que antes de ter uma área limitada, segundo Argemiro Escalante 64 anos as 51 pessoas tinham espaço para caçar, pescar, plantar e praticar suas danças e rezas. Naquela época eram somente matas, tinham aldeias que era localizada distante uma das outras aonde eles iam a dias festivos quando tinha batismo de milho, chicha e o (mitã ka'u) era o ritual de perfuração dos lábios das crianças. Eram localizadas várias aldeias conhecidos como yvy hü, suvirando, naranha ty, guaxupe e outros, Augusto Gomes disse que conhece essas regiões porque em um desses lugares eles moravam com seus pais antes de vir para essa aldeia. Argemiro Escalante lembra quando tinha catorze anos foi a época em que acompanhou a colheita de erva mate em um lugar chamado Rincón na região de Antonio João ele vivia na aldeia suvirando hoje extinto. Gentil e Olimpio iam da aldeia suvirando para trabalhar na colheita da erva, eles estavam desde começo da luta pela aldeia Pirakua hoje Gentil já e falecido. Muitas pessoas trabalhavam na colheita da erva em troca de comida, ferramenta e outros. Argemiro lembra que a erva era colhido e levado a um buraco para ser secado o chamado (voravakua) eles erguiam cerca de 150 kl de ervas nas costas. Além da erva tinha muita laranja azeda naquela região, as pessoas que mandavam na erva aproveitava tudo as folhas e frutos para fazer doces e remédios. Argemiro relata que naquela época na colheita da erva apareceu umas pessoas que começaram a demarcar terras para serem fazendas, eles iam fazendo picadas no meio da mata. Vendo aquelas pessoas demarcando terras quem moravam na aldeia suvirando pediu a ele que deixassem a aldeia deles para que ali pudesse morar então a aldeia foi deixada aos índios, mas com aumento das fazendas a aldeia foi vendida aos fazendeiros sem eles saberem, a única saída foram eles saírem da aldeia deles e irem para outros lugares. (LOPES MACHADO, s/ data, p. s/n) Retornando a história da resistência: dizem os Kaiowa do Pirakua que nos anos finais da década de 1970, Líbero Monteiro de Lima assume a fazenda Serra Brava após o falecimento de seu pai, Astúrio Monteiro de Lima. Argemiro conta que primeiro ele (Líbero) em parceria com outro fazendeiro, Rachid (já falecido), “tocou” os índios do Gua’a Kua (atualmente localizado na Fazendo Dois de Ouro). Argemiro conta que: Aqui, o Dama Kuê... aqui tudo era aldeia mesmo. Em 1980 eu morava no poção, perto do pirizinho... nessa época o Lázaro era solteiro ainda, eu trabalhava na fazenda Pirakua, o dono, um dia chegou e disse que o Líbero ia tocar todos que viviam na beira do Apá. Em seguida Líbero começou a desmatar uma parte próxima ao local onde residiam algumas famílias Kaiowa. É fato que essas famílias viviam na região e mantinham contato com os não índios e em muitos casos trabalhavam esporadicamente para os novos proprietários de terras da região. No entanto, enquanto viviam nos “fundos” da fazenda 52 conseguiam ser autônomos e como diz Jorge: “Naquela época o índio não se preocupava em pedir o documento da terra... tudo que ele queria era caçar, plantar a sua roça, pescar, rezar e tomar chicha... depois com o tempo o fazendeiro começou a desmatar e a querer tirar o pessoal da terra... aí começou a luta”. Argemiro conta que um dia Líbero mandou um de seus empregados, de nome Floriano, “tocar todos os índios que viviam ali”, no entanto, Floriano se recusou a executar o serviço e Líbero o despediu e colocou um outro “rapaz bom pra fazer esse serviço... aí veio o Rômulo, né... Rômulo Gamarra... paraguaio também... aquele chegou aqui e começou a derrubar o mato lá no fundo [apontando para a região do morro] e mandou nóis tudo sair”. Argemiro diz que na época tinha 29 anos e que agora (2012) esta com 64. Por essa indicação é possível pensar que essa “ofensiva” de Líbero através do seu novo gerente tenha ocorrido por volta do ano de 1977/78. Segundo Coche, um dos lideres da resistência Kaiowa no Pirakua, em 1979 Marçal de Souza, Antonio Brand45 e um padre chamado Luís foram até a casa do Jacinto46. Chegaram de manhã, comeram peixe e mandioca assada e conversaram sobre a situação das famílias (entre 25 e 30) que estavam correndo o risco de serem expulsas por Líbero, que já havia mandado Jacinto plantar colonião (capim-guiné - panicummaximum) na região onde hoje é a escola, na beira do rio Apa, e depois se mudar para outro lugar. Nesse momento começam as primeiras articulações dos moradores do Pirakua para conseguirem a demarcação de suas terras. Portanto, quem inicialmente começou a “mexer” – como diz Coche – com o reconhecimento da terra foi Jacinto Ireno junto com um de seus filhos Luiz Ireno. Eles foram auxiliados por Marçal de Souza, liderança de grande expressão no cenário político regional em MS àquela época e com muito acesso a informações legais de como fazer as denúncias às autoridades responsáveis pelo reconhecimento do TI em questão. Luiz Ireno ainda permaneceu mais um tempo liderando o processo de resistência, no entanto, sua grande dificuldade em compreender e falar o português se configurava como uma grande barreira para as negociações com as autoridades do Estado. 45 Segundo uma fala do falecido Professor Antonio Brand feita durante uma Aty Guasu na aldeia Arroio Korá em abril de 2011, ele chegou ao Mato Grosso do Sul no ano de 1978 para fundar e dirigir a regional do CIMI no estado. 46 Quando realizei meu trabalho de campo em 2012 o neto de Jacinto Ireno, Marciano, me informou que seu avô já estava com cerca de 98 anos de idade. Jacinto era conhecido no Pirakua como “vovô Jacinto”, já não andava mais e raramente saia da cama ao lado de sua esposa de idade bastante semelhante, Narcisa Gomes. Infelizmente quando retornei ao Pirakua este ano (fev. 2013) recebi a notícia do falecimento do vovô Jacinto. 53 Em Pirakuá, os Kaiowá discutiam o futuro da comunidade e as possibilidades de permanência na terra. Aos poucos a comunidade foi se mobilizando e criando um consenso em torno da defesa intransigente da terra. Mobilizados, passaram a pressionar a FUNAI para que reconhecesse a terra, entretanto o tempo passava e a comunidade não aferia maiores resultados com as gestões e pressões junto ao órgão indigenista oficial. Cansados de esperar por uma solução diplomática e não suportando mais as pressões do fazendeiro que com frequência ameaçava a comunidade de despejo, através da presença constante de seguranças armados, resolveram agir por conta própria. (Pereira, 2003, p. 139) No entanto, Marçal foi assassinado a tiros no ano de 1983 em sua casa na aldeia Campestre (cerca 40 km de distância do Pirakua). Após a morte de Marçal as famílias do Pirakua perderam o apoio que tinham de fora da terra e, desse modo, uma nova liderança, Lázaro Morel, que já tinha iniciado um processo de liderar o grupo, se levantava (como costumam dizem os próprios Kaiowa) e encabeçava o movimento de resistência. Segundo Pereira (2003), da mobilização mencionada: [...]surgiu um líder de nome Lázaro Morel, já falecido, que assumiu a responsabilidade de convencer líderes de outras comunidades a apoiar a comunidade de Pirakuá na demanda pela demarcação da terra. Lázaro realizou uma verdadeira peregrinação por diversas áreas guarani expondo para seus líderes os problemas enfrentados por sua comunidade e a importância de contarem com o apoio para a realização de uma mobilização de grande impacto. Cobrou também da FUNAI e de outras organizações indigenistas que se posicionassem ao lado da comunidade na disputa com os fazendeiros. A postura firme e determinada na cobrança de apoio para a resolução do problema da terra também foi adotada pelas lideranças de outras comunidades e isto surpreendeu muitos dos representantes destas agencias, pois estranharam a mudança de comportamento das lideranças indígenas, que antes pareciam aceitar com resignação os desmandos impostos pelos fazendeiros, administradores e políticos na região. (Pereira, 2003, p. 139) Lázaro faleceu no Pirakua no ano de 2006, no entanto, hoje em dia seu nome é lembrado de maneira quase mítica pelos moradores do Pirakua, sempre que algum morador relembra o momento da luta cita o nome de Lázaro Morel como o grande articulador e responsável pela conquista. Lázaro Morel, antes de ir viver no Pirakua, trabalhava para Líbero na derrubada de mata para a formação de espaço de pastagem. Por volta de 1979 ele abandona essa atividade e vai morar no Pirakua. No começo dos anos 1980 ele se intitula– e é confiado pela comunidade – como “o representante” da luta. Segundo Coche, Lázaro sabia ler um pouco e tinha um 54 gravador. Desse modo, ele começa a participar de reuniões em outras terras, principalmente na Reserva Indígena de Dourados (1983-84), onde ele passava para as outras pessoas qual era a situação das famílias no Pirakua. Segundo vários moradores do Pirakua nesse período Lázaro Morel percorreu diversas outras aldeias Kaiowa e Guarani. Coche conta que no ano de 1984 “os fazendeiros” também se organizaram e derrubaram parte da mata da região do Morro (a descrição das regiões do Pirakua é feita no capítulo III), cerca de 400 hectares. Em contrapartida os índios também se organizaram para defender a área que estava sendo invadida. Lázaro e Coche vão para a Reserva Indígena de Dourados onde passam cerca de 30 dias em busca de mais pessoas para ajudar na resistência do Pirakua. Lá encontraram Amilton Lopes47 que se junta a eles e, desse modo, facilita muito os necessários trabalhos de leitura e de tradução de falas e de documentos, pois Amilton quando criança fora adotado por uma família não indígena e cresceu na cidade de Campo Grande onde pôde cursar o ensino fundamental, estudar teatro e conhecer com muita profundidade o mundo dos não índios. Entre 1982 e 1983 os conflitos se acirraram e a resistência dos Kaiowa do Pirakua começou cada vez mais a ser ameaçada. Lázaro continuou suas viagens por várias aldeias, recrutando mais pessoas para lutar contra o processo de esbulho que estavam sofrendo no Pirakua. Enquanto isso, as famílias que ficaram na terra dedicavam-se ao plantio de uma grande roça de milho e mandioca na parte que foi derrubada e queimada pelo proprietário de terra Libero Monteiro de Lima. Coche afirma que “conforme a luta foi crescendo foi chegando mais gente.”; motivando o grupo a erguer barracos de lona e a fazer refeições coletivas para garantir a permanência dos que tinham chego para ajudar na resistência. Foi assim que em 1986, Lázaro Morel dirigiu um amplo movimento de desintrusão da terra reivindicada pela comunidade de Pirakuá, contando com o apoio de guerreiros armados, oriundos de diversas comunidades guarani de MS. Da mobilização participaram inclusive os Terena de Dourados. Tal evento teve um grande impacto na imprensa e em setores da sociedade civil (nacional e internacional) simpáticos à garantia dos direitos indígenas, forçando a FUNAI a encaminhar uma solução definitiva para o problema. Disto resultou a inclusão da referida área no rol das terras que seriam objeto de estudos de demarcação. (Pereira, 2003, p. 139 - 140) 47 Amilton Lopes foi uma importante liderança Kaiowa e Guarani que infelizmente se afogou e faleceu no rio Apa ano de 2012 enquanto pescava com sua esposa. 55 A morte de Marçal em 1983 deu visibilidade para a luta do Pirakua, pois os indiciados pelo crime foram o gerente da Fazenda Serra Brava, Rômulo Gamarra como executor, e Libero Monteiro de Lima como mandante do crime, apesar do caso ter sido dado como inconcluso por falta de provas.48 Diversas denúncias já haviam sido feitas em relação aos mandos e ameaças que os moradores do Pirakua estavam sofrendo e o Estado interviu impedindo Libero de executar qualquer tipo de serviço na área em litígio. No entanto, as atividades de desmatamento para a formação de pasto continuavam na região do Morro. Desse modo os índios planejaram uma “emboscada”. Pelo que relatam, havia um grupo de jagunços que estava cuidando da região do Morro a mando de Libero, no local os Kaiowa haviam feito roças de milho e de mandioca. Lázaro e Coche serviram de isca para render o grupo. Quando os homens do Libero abordaram a dupla, foram surpreendidos por um grupo grande e armado de índios que estavam escondidos ao redor. Em uma das viagens de Lázaro, ele foi até Campo Grande reclamar das autoridades da FUNAI na época a demarcação da TI Pirakua; no entanto, como era de praxe, lhe foi entregue uma documentação. Todavia,Lázaro tinha minimamente conhecimento sobre as letras, pois havia estudado os anos iniciais da educação escolar na escola do Dama Kuê. Argemiro conta que: “o delegado da FUNAI [de Campo Grande] entregou um documento prô Lázaro, que sabia ler um pouco e procurou o Antônio [Brand] na vila São Pedro em Dourados, Antônio disse que ele precisava ir pra Brasília”. Lázaro retornou ao Pirakua e informou para o grupo que viajaria para Brasília e voltaria em quinze dias: “deu quinze dia ele voltou... chegou e fez reunião com nóis... lá onde é a casa do Lídio [região do Piri atualmente]”. Segundo Argemiro na reunião ele transmitiu para o grupo que em dois dias chegaria um representante da FUNAI na aldeia, de nome Arceu. Junto com Arceu havia um padre e Argemiro se recorda que “naquele tempo a Juvelina, minha filha, tinha 6 meses.”49. A partir desse momento começa então o processo de reconhecimento que se desfecha no ano de 1985 e de demarcação e homologação que só têm seu fim no ano de 1992. Contudo 48 Existem ainda na região mais outras duas versões sobre a morte de Marçal de Souza que ouvi, a primeira é que Marçal foi assassinado a mando de um grupo de fazendeiros por pistoleiros paraguaios por “estar incomodando demais” e a segunda que Marçal havia sido assassinado por um desafeto que havia feito na região não tendo nenhuma relação com a luta pela terra. No entanto, essa discussão não cabe nesta dissertação sendo oportuna trabalhá-la em outro momento. 49 Atualmente Juvelina Escalante tem 30 anos (2012), esta casada e mora na região do morro. A partir dessa informação de Argemiro é possível calcular como data aproximada o ano de 1982. 56 esse feito não pode ser visto apenas e simplesmente pelo prisma de uma ação que parte do Estado em demarcar a Terra Indígena do Pirakua. Para os moradores da TI o espaço em que vivem hoje é fruto de uma longa resistência que terminou na conquista e na demarcação do Pirakua. Entretanto, esse processo só foi possível a partir desse movimento de mobilização feitos pelas diversas famílias que ali viviam. Como diz Augusto Gomes: “Nós conseguimos a terra pela nossa união!”. 2.2 Linhas Históricas: os Caminhos Percorridos Pelas Parentelas até o Pirakua Na realização do trabalho de campo fui hospedado na região do Palmeiras e participei mais ativamente das atividades desenvolvidas pelo fogo doméstico da família do Jorge e de Darci, cabeçantes de uma parentela bastante influente no Pirakua, com uma composição sui generis em relação às demais, pois apesar de não ser uma parentela muito extensa (em número de pessoas) mantém sua influência bastante vinculada ao poder aquisitivo que conseguiu acumular desde sua chegada a TI em 198550. Jorge nasceu em um lugar conhecido antigamente como Cabeceira Puku51, como ele mesmo diz, “nessa região, do outro lado do Rio Apa” e quando ainda era criança sua mãe veio a falecer, provavelmente atingida por uma epidemia que houve na região aproximadamente na década de 1960. Após a morte da sua mãe seu pai foi trabalhar em uma fazenda na região e lá Jorge foi criado. Após sofrer um acidente quando tinha 18 anos, cuidando de um cavalo acabou sendo levado para o hospital da Missão Evangélica Caiuá que oferecia na Reserva indígena de Dourados atendimento específico para os índios da região sul do estado de Mato Grosso do Sul. Durante sua recuperação do acidente Jorge conheceu D. Darci, com quem se casou em 1979 e permaneceu morando na Reserva Indígena de Dourados (RID). No período que viveram em RID Jorge sobreviveu trabalhando em diversas atividades, entre elas em 50 A parentela de Jorge e Darci é dona de várias cabeças de gado de corte e algumas de leite no Pirakua, destoando da maioria das outras parentelas que não possuí, ou que não se empenha na aquisição de “posses” desse gênero. 51 Cabeceira comprida. 57 “changas”52nas lavouras da região de Presidente Prudente/SP, como auxiliar de enfermagem do hospital da Missão Evangélica Caiuá e em uma fábrica de tijolos próxima à Reserva Indígena de Dourados. Entre o ano de 1984 e 1985, Jorge decidiu retornar para a região do Apa. Inicialmente na fazenda onde foi criado, lá o “velho” (o dono da fazenda) disse a ele que poderia ficar, e que os animais que Jorge havia ganho (boi e vaca) já haviam dado cria e a tropa estava aumentando. Como a propriedade não era grande (300 ha) com o tempo seria necessário vender os animais. Nesse período Jorge ficou sabendo do processo de reconquista das terras do Pirakua e resolveu fazer uma visita, pois havia no local muitos parentes. Chegando ao Pirakua “os parentes” – termo bastante genérico para os Kaiowa e que pode ser uma categoria com vários níveis – disseram a ele para retornar a área, pois aquela terra também pertencia a ele. No dia 17 de julho de 1985 Jorge voltou para o Pirakua, inicialmente morou onde é hoje a antiga casa do posto de saúde; desde então Jorge acompanhou os processos de disputa e de definição da Terra Indígena, ajudou a garantir a ocupação da região do Morro, que em 1987 que estava sendo reivindicada por um proprietário rural da região. A participação de Jorge no processo de retomada, na época, tendo como principal figura a atuação de Lázaro Morel como cabeçante da disputa pela demarcação do Pirakua rendeu a Jorge a possibilidade de formar sua parentela e conseguir prestígio suficiente para hoje ser considerado uma liderança importante no Pirakua. Outra caso que podemos enunciar aqui é o de Augusto Gomes, que apesar de ter o mesmo sobrenome que Jorge não é, ao menos penso que não seja, um parente próximo de Jorge. Augusto nasceu “por aqui mesmo”, na beira do Rio Apa, “chamava isso tudo aqui de yvy hu”, como ele afirma: “não se chamava Pirakua”. O local onde Augusto vive hoje na região do Morro era conhecido como Ña Roka (lugar de demônio). Segundo Augusto “antigamente o pessoal saia muito... não ficava muito em um lugar, era comum andar bastante pela região”. Augusto morou e trabalhou por cerca de 10 anos junto com “brancos” e depois voltou a morar onde hoje é o Pirakua. Quando retornou ao Pirakua afirma ter por volta de 25 anos, hoje (2012) Augusto esta com 59. Com isso é possível presumir que esse retorno ocorreu por volta de 1978, período que coincide exatamente com o fim da formação das fazendas da 52 Termo usado para designar os trabalhos temporários que são realizados durante alguns períodos do ano em 58 região, onde a mão de obra dos índios para a derrubada de matas, plantio de pastos, cercamentos e abertura de estradas deixa de ser necessária pois as fazendas já estavam formadas.53 A última trajetória que será exposta é a de José Conceição, conhecido no Pirakua e na Reserva Indígena de Dourados apenas como Coche. No ano de 1979 Coche foi contratado para ir a região do Pirakua para uma derrubada de mata. Até então Coche viva na Reserva Indígena de Dourados. Um dia, enquanto trabalhava na região, encontrou um grupo de Kaiowa (Erázio, que hoje em dia vive na RID; Salomão, já falecido, irmão de Alexandre Barbosa que atualmente vive no Pirakua), esse grupo o convidou para participar de uma festa de chicha54. Nesse evento conheceu Bibiana Ireno (já falecida), filha de Jacinto Ireno, com quem se casou e foi morar na fazenda onde Coche estava trabalhando. O nascimento do primeiro filho do casal em 1981, Gerson, motivou o casal a retornar para próximo da família da esposa de Coche, onde hoje é conhecido como Pirakua. Lá Coche construiu uma casa e começou a plantar sua roça. Justamente nesse momento começa o processo de resistência pela terra e Coche será de grande importância nesse movimento, pois como havia sido criado na Reserva de Dourados pôde contribuir muito nas articulações que foram coordenadas por Lázaro. Sendo, após a saída de Lázaro com o fim do processo de demarcação do Pirakua, o próximo capitão. Essa breve descrição das histórias de vida de Jorge Gomes, Augusto Gomes e José Conceição podem, de alguma maneira, servir como parâmetro para compreender como se deu o processo de retorno de uma série de outras famílias que compõem o Pirakua que durante o processo de formação das fazendas na região entre as décadas de 1950 e 1980 acabou gerando um “processo de esparramo”55de diversos grupos de famílias Kaiowa56 que em seguida se reagruparam no Pirakua. fazendas. 53 Cf. EREMITES DE OLIVEIRA, Jorge; PEREIRA, Levi Marques. Ñande Ru Marangatu:laudo antropológico e histórico sobre uma terra Kaiowa na fronteira do Brasil com o Paraguai, município de Antônio João, Mato Grosso do Sul. Dourado, MS: UFGD, 2009. 54 Bebida tradicional feitas por grupo ameríndios de língua guarani à partir da fermentação natural do milho, cana ou batata doce. As reuniões de chicha são sempre lembradas pelos Kaiowa como importantes motivos para reunir pessoas tanto para a reza como para festas. 55 Sobre o conceito de processo de esparramo Cf. BRAND, 1997. 56 Durante o levantamento censitário no Pirakua encontrei pessoas que afirmam ter nascido em vários tekoha que hoje são propriedades rurais, como exemplo é possível citar Cabeceira puku, Suvirandó, Gua’a kua, Córrego Estrela e Pysyry e Yvy Jaú no Paraguai. 59 60 CAPÍTULO III–TERRA INDÍGENA PIRAKUA Este item dedica-se a realizar as primeiras aproximações sobre a Terra Indígena (TI) Pirakua, como objetivo de contextualizar o leitor a respeito do locus da observação empírica dessa pesquisa. Para isso, o tópico se desenvolve a partir de documentos e principalmente das observações realizadas durante o período do trabalho de campo, tendo como estrutura discursiva a descrição básica das regiões que compõem a TI. Cooperação, ocupação e o uso do espaço na Terra Indígena Pirakua. Os temas discutidos nesse capítulo buscaram trazer elementos para pensar as relações políticas na sociedade estudada. Na mesma linha, expor dados quantitativos é parte de uma estratégia que busca percorrer um diálogo essencial, que tem como objetivo a confecção de uma etnografia a partir da materialização de dados coletados durante o trabalho de campo, esses servindo para a construção de um modelo sociológico – grupo de suporte – que possibilita, em parte, a compreensão das relações sociais e políticas através de esferas do sistema social Kaiowa. 3.1 Do Córrego Palmeira à Parte Alta do Morro Os Kaiowa consideram a Terra Indígena do Pirakua como uma das aldeias mais adequadas para as práticas do modo de vida tradicional. O Pirakua tem ainda preservado cerca de 1.000 hectares de mata nativa, que segundo informações dos Kaiowa que vivem lá, isso possibilita a preservação e o manejo de boa parte da flora e da fauna nativa, permitindo que as famílias realizem regularmente a coleta de ervas e plantas para produção de remédios, de mel, pratiquem atividades de caça e pesca – embora essas atividades não estejam apenas limitadas as fronteiras da terra – vistos como momentos de lazer e divertimento importantes para o resguardo de uma série de conhecimentos tradicionais de seu povo. Cabe esclarecer que o termoñande reko, citado acima, pode ser definido como um aspecto de diferenciação cultural dos povos guarani, sendo relacionado ao tipo de organização 61 social em que a terra e a posse do território têm um papel fundamental. Sua importância pode ser percebida se considerarmos que esse “modo de ser” é determinado pelo uso de uma língua e uma linguagem própria, uma religião específica e uma economia característica, sendo esse um forte traço de distinção em relação a outros povos. Como afirmaram Melià e o casal Grünberg em sua clássica etnografia sobre os Paĩ-Tavyterã57 do Paraguai “El ñande reko hace que el Paĩ se considere, se siente, se piense y se diga diferente.” (2008, p. 105). A Terra Indígena Pirakua esta localizada no estado de Mato Grosso do Sul, entre os municípios de Bela Vista, Ponta Porã e Antonio João, conforme Certidão de Registro de Imóvel, Matrícula 8.624, Ficha 01, Livro 2, Registrado no 1º Cartório de Registro de Imóveis de Bela Vista: Área indígena Pirakwá, localizada neste município de Bela Vista, Estado de Mato Grosso do Sul, com superfície total de 2.384,0554ha. (DOIS MIL, TREZENTOS E OITENTA E QUATRO HECTARES, CINCO ARES E CINQUENTA E QUATRO CENTIARES) e perímetro de 23.387,10 (Vinte e Três Mil, Trezentos e Oitenta e Sete Metros e Dez Centímetros), com a seguinte descrição: OESTE/NORTE A presente descrição inicia-se no Marco 01 de coordenadas geográficas aproximadas 22º 00’55,4’’S e 56º04’35,6’’Wgr., localizado na confluência do Córrego Pirizinho com o Rio Apa; daí segue por uma linha reta confrontando com o Sr. José Ferreira de Camargo, com azimute e distância de 53º58’55,7’’ e 3.917,74metros, até o Marco 05 de coordenadas geográficas 21º59’40,5’’S e 56º02’45,1’Wgr., daí segue por uma linha reta confrontando com o Sr. Olan Garcia de Souza, com azimute e distância de 28º41’59,6’’S e 3.785,26metros, até o Marco 04 de Coordenadas Geográficas 21º57’52,6’’S e 56º01’41,7Wgr. LESTE; Do marco antes descrito, segue por uma linha reta, confrontando com o Sr. Libero Monteiro de Lima, com azimute e distância de 165º24’39,6’’ e 5.938,63metros, até o Marco 03 de coordenadas geográficas 22º01’01,0’’S e 56º00’49,1’’Wgr., localizado na margem direita do Córrego Palmeira, daí segue por este, a jusante, com uma distância de 3.122,71metros, até sua confluência com o Rio Apa no Marco 02 de coordenadas geográficas 22º02’06,1’’S e 56º01’56,7’’Wgr. SUL: Do Marco antes descrito segue pelo referido rio, a jusante, com uma distância de 6.572,75metros até o Marco 01, inicial da descrição desse perímetro [sic, destaque no original]. Conforme o mesmo documento, a área foi homologada pelo Decreto Presidencial de 13 de Agosto de 1992, publicado no Diário Oficial da União de 14 de Agosto de 1992: “(...) trata-se de terras de posse imemorável e tradicional dos Grupos Indígenas GUARANY E KAYOWÁ” (BRASIL, 1992). 57 Os Paĩ-Tavyterã, no Brasil são conhecidos e auto identificados como Kaiowa. Ao conversar com um de meus interlocutores durante o trabalho de campo a explicação para a fixação do nome do grupo como Kaiowa seria pelo fato de que nos primeiros contatos com a sociedade não indígena ao perguntarem sobre quem eram, eles respondiam em Guarani “kaaguy gua” que em uma tradução livre seria “moradores da mata” que com o passar do tempo acabou se transformando em Kaiowa. 62 Figura 2 – Terra Indígena Pirakua e Região (FUNAI, 2012) – i3Geo/Google Earth Para chegar à Terra Indígena Pirakua é necessário seguir uma estrada vicinal, que fica na altura do Km 60 da estrada MS-384, que liga os municípios de Antonio João a Bela Vista, ao lado do posto fiscal da IAGRO (Agência Estadual de Defesa Sanitária Animal e Vegetal). São cerca de 20 quilômetros até a entrada da Fazenda Pedra Branca. Por dentro da fazenda segue-se a estrada por mais três quilômetros até a entrada do Pirakua,que fica após atravessar a ponte sobre o Rio Apa. A Terra Indígena Pirakua é dividida em quatro regiões, chamadas pelos moradores de Palmeiras, Ponte, Piri e Morro. Todas as regiões têm seus nomes originados em acidentes geográficos, ou no caso da Ponte que é a “entrada da Terra”, a Ponte que passa sobre o Rio Apa. A Região do Palmeiras, nome originado pela proximidade com o Córrego Palmeiras, fica na parte sudeste da TI, onde vivem 85 pessoas, sendo 42 homens e 43 mulheres, em 21 moradias58. Essa região apresenta uma extensa parte de mata nativa preservada, sendo comum que pessoas das outras regiões do Pirakua vão até ela praticar atividades de caça. A Região do 58 Uso o termo “moradia” por compreender que o uso de outro termo, como, por exemplo, família nuclear, poderia causar confusão pelo fato de que em algumas moradias existe mais de uma família nuclear residindo junto. 63 Palmeiras tem seu acesso limitado para veículos somente até a casa de uma das lideranças da Terra. A partir desse trecho, o caminho só pode ser feito a pé, de moto ou a cavalo. Figura 2 – Regiões da Terra Indígena Pirakua – adaptado (ISA, 2012) – Google Earth A economia nessa região é baseada fortemente nas atividades agrícolas. Podemos justificar essa informação por alguns fatores que corroboram para uma espécie de isolamento geográfico. A região é circundada ao Sul pelo Rio Apa, ao Leste pelo córrego Palmeiras (as fronteiras da Terra) e a Oeste e Norte por uma morraria. Não há na região escola, nem posto de saúde, sendo que esses atendimentos são realizados na Região da Ponte. Aparentemente, essa área apresenta as melhores condições para os plantios59, pois, segundo alguns interlocutores da pesquisa, apresenta boa qualidade de terra, extensos espaços planos e poucas pedras na superfície. A Região da Ponte, como dito, principal entrada da Terra Indígena é compreendida pelos Kaiowa como dividida em duas, a Ponte e a Ponte Centro. Essa é a região mais populosa da terra com 184 moradores, sendo 94 homens e 90 mulheres, em 38 moradias e onde se encontram a escola e o posto de saúde. 59 Durante o trabalho de campo foi possível conhecer boa parte das variedades de cultivo agrícola das famílias, os itens que mais tiveram ocorrência são: milho, mandioca, abóbora, moranga, batata-doce, banana, melancia, mamão, mexerica, limão. 64 A parte considerada como “Ponte Centro” é onde precisamente se encontra a “Escola Indígena do Pirakua”, o “Posto de Saúde” e o campo, que tem jogos de futebol quase todos os dias no final da tarde com os moradores. Ao redor da escola e do posto de saúde moram a maioria dos professores, com exceção de um que mora na Região do Morro. É importante pontuar que alguns desses professores não mantêm o cultivo do roçado, no entanto é bastante comum ver em suas casas muitas criações de animais de pequeno porte que servem para a subsistência da família que é complementada com a compra de produtos alimentícios com o salário que recebem pelas funções exercidas na escola. A justificativa para o não cultivo da terra é que nas proximidades, além de haver animais de criação como gado de corte e cavalo, existem muitas pedras na superfície e a terra “não é boa”. A “Escola Indígena do Pirakua” possui apenas quatro salas, cinco professores e um coordenador em atividade, sendo que uma das salas é utilizada como Sala de Professores e as outras para atividades de aula, em regime multi-seriado, ou seja, não há separação entre os anos escolares. Existe também uma extensão da “Escola indígena do Pirakua” na parte baixa da região do Morro. Já o Posto de Saúde fica sob os cuidados do Auxiliar de Enfermagem, Gelson, que apesar de residir na Reserva Indígena de Dourados permanece no Pirakua durante quase todo o mês, retornando para sua casa em média a cada dois finais de semana. Ao lado do Posto há uma construção precária que serve de alojamento para Gelson, o prédio apresenta goteiras, rachaduras, incidência de mofo, e está em péssimo estado de conservação. O Posto disponibiliza atendimentos de saúde preventiva através de um calendário específico com agendamento dos dias de visita dos agentes as SESAI (Secretaria de Saúde Indígena) do Polo localizado no município de Antônio João. O Polo atende além do Pirakua as Terras Indígenas Campestre, Ñanderu Marangatu e Kokuê’i. Quando ocorrem casos de emergência ou urgência, Gelson promove os primeiros socorros, solicita o atendimento ao Polo pelo rádio que envia um veículo para o transporte do paciente até o Posto de Saúde de Antônio João (cerca de 45 km) ou ao Hospital em Bela Vista (cerca de 70 km). No Centro há também um orelhão acoplado a uma espécie de antena, que nem sempre funciona, e que aparentemente deixou de ser usado pela comunidade. Apesar de ser difícil conseguir sinal em aparelhos de telefonia móvel nas partes baixas da TI, algumas famílias têm antenas em suas casas ou encontram soluções para conseguir o sinal em determinados lugares (pequenos morros ou clareiras – como o escanteio do campo de futebol). 65 O Centro também é o lugar de maior movimento de pessoas durante o dia, entre elas as crianças que frequentam a escola, os moradores que utilizamos serviços de atendimento de saúde preventiva oferecido através da SESAI, as visitas de representantes de órgãos externos (autarquias governamentais, ONG’s e Universidades), entre outros. Há ainda uma espécie de galpão construído de sapê e toras que fica ao lado da Escola, nele são realizadas as reuniões de pais e professores, reuniões gerais da comunidade60, reuniões com representantes externos e eventualmente festas. Figura 4 –Núcleos de Mordia na Região do Morro– adaptado (ISA, 2012) – Google Earth Os outros moradores da Região da Ponte (não central) estão distantes uns dos outros, formando núcleos de parentelas na área. Desse modo, foi possível observar que existem quatro locais distintos de ocupação. O primeiro fica na margem do rio Apa, no sentido da estrada que leva para a Região do Palmeiras sendo ocupado por moradores de praticamente uma mesma parentela que plantam suas roças na Região do Palmeiras; o segundo esta localizado beirando a estrada que segue para a Região do Morro, ocupado por casas construídas em áreas abertas em meio à vegetação de pastagem (principalmente colonião) e de mata nativa, os moradores desse local têm suas roças plantadas nas margens do Córrego 60 As reuniões não têm frequência para acontecerem, são realizadas apenas quando ocorre algum incidente mais 66 Pirizinho (que passa próximo à fronteira leste da terra) ou em clareiras abertas no interior da mata (oeste); o terceiro e o quarto são núcleos de famílias que vivem e cultivam suas roças em clareiras abertas no interior da mata nativa, tendo, cada um dos núcleos, apenas uma estrada como acesso principal das moradias (ver figura 4). A Região do Piri é de uso predominante de uma única família extensa, a Família Escalante – apenas uma moradia pertence a outra parentela que aparentemente está fragmentada na terra, pois não foi possível encontrar parentes próximos dessa família morando no Pirakua. São seis moradias com 30 pessoas, 17 homens e 13 mulheres. O nome da região tem origem por conta do Córrego Pirizinho, e é delimitada pela estrada que leva ao Morro e a divisa Oeste da Terra Indígena. Os moradores mantêm roças próximas das suas casas ou na região do Morro, argumentando a dificuldade de cultivo pela incidência de vegetação de pastagem (Colonião), o que torna mais trabalhosa a manutenção da área de cultivo do roçado. No núcleo dessa parentela, há uma igreja evangélica (filiada à Igreja Universal do Reino de Deus) coordenada por Urbano Escalante e Sabino Escalante, que acaba por agregar pessoas de outras parentelas, frequentadoras dos cultos que ocorrem principalmente nos sábados de manhã. A Região do Morro fica no Norte da Terra Indígena Pirakua e para descrevê-la farei a divisão em “parte baixa” e “parte alta”. É também uma região bastante populosa com 128 pessoas, entre 73 homens e 55 mulheres, em 27 moradias. Na parte baixa existe uma espécie de vale entre os morros que separam a Região do Morro e a Região do Palmeiras. A Região não apresenta áreas extensas de mata nativa, foi bastante desmatada porque, segundo alguns interlocutores, foi reconquistada – juntamente com a parte alta do Morro – tendo pertencido aos proprietários rurais locais que, com a intenção de garantir a posse da terra, promoveram desmatamentos e queimadas no fim da década de 1970 e início da década de 1980. Hoje esse espaço é tomado, em grande parte, por cobertura de pastagem (Colonião e Brachiaria). Boa parte das famílias dessa região possui roças. Existe na parte baixa uma extensão da Escola Indígena do Pirakua que funciona com duas salas muti-seriadas, onde as crianças do entorno realizam seus estudos escolares. Essa escola é atendida apenas por dois professores, um que tem a casa ao lado da escola e outro grave. 67 que mora na região da Ponte, mas que se desloca até lá de moto61nos dias letivos para dar aula. É também no prédio da Escola que são feitos os atendimentos de saúde destinados à população dessa Região. A maioria das famílias mora ao pé do Morro e tem suas roças plantadas no vale que é cortado por um córrego. A parte alta do Morro é de difícil acesso por dentro da Terra, a estrada é muito ruim, não sendo possível o trânsito nem mesmo de trator criando, desse modo,certo isolamento entre ambas as partes (baixa e alta). Existe outra entrada para a Região do Morro ao norte da terra, através de uma estrada que leva à Cabeceira do Apa, um vilarejo pertencente ao município de Ponta Porã. Especificamente, a estrada que leva ao Morro, por fora do Pirakua passa pela Rodovia MS-270. Pelo isolamento com o centro da TI, as famílias preferem que as crianças estudem na Escola da Cabeceira do Apa, inclusive utilizam para isso o transporte escolar rural oferecido pela prefeitura. As roças, nessa parte alta, são plantadas próximas às casas. 3.2 Padrões de Assentamento no Pirakua Por entendermos a íntima relação da ocupação (padrões de assentamento) com o modo de ser dos Kaiowa ñande reko, no próximo item faremos breve e detalhada descrição das moradias e distribuição populacional, assim como a divisão sexual do trabalho e as distinções entre os padrões de assentamento da TI Pirakua. 3.2.1 Moradias 61 Uma reflexão interessante: Alguns kaiowa e pessoas da região que pude conversar alegam que nos dias atuais ter uma moto é menos custoso que um cavalo, por exemplo, pois a moto cumpre a função de facilitar o deslocamento, no entanto, sua manutenção e até mesmo o valor para adquirir são menores que o de manter um cavalo ou outro equino. 68 Pelos dados levantados constatei que no Pirakua residem aproximadamente 427 pessoas morando em cerca de 92famílias nucleares, distribuídas em aproximadamente 12 famílias extensas.Em alguns casos não foi possível visualizar a unidade de parentela pela fragmentação que apresentaram e também pelo tempo necessário para compreender com profundidade a composição de redes tão complexas. Segundo Pereira, a parentela, ou a família extensa, é caracterizada pela formação de um grupo de pessoas que se distingue as demais através do reconhecimento de um vínculo de subordinação política a um determinado ego (cabeçante), “[...] não sendo possível descrevê-la enquanto um grupo de conformação estável no tempo e permanente em termos de ocupação territorial” (Pereira, 2004, p. 90). Gráfico 1 – Percentual de pessoas por região Total de Pessoas por Região 9% Morro 30% Palmeiras Piri 34% Ponte 20% Ponte Centro 7% A partir do gráfico acima é possível verificar que as famílias se distribuem de forma heterogênea pelas regiões da TI. Observando que as maiores concentrações de pessoas estão nas regiões da Ponte, Ponte Centro e do Morro, ambas somando juntas 73% das pessoas. Em relação à região da Ponte é evidente a sua alta densidade, é possível relacioná-la a oferta e demanda de serviços do Estado que ali se realiza. A população do Pirakua apresenta dados de uma população bastante jovem, com uma taxa de crescimento alta, como é possível visualizar no gráfico abaixo: 69 Gráfico 2 – Faixa etária das regiões da terra Indígena Pirakua Faixa Etária por Região 5 5 Ponte Centro 12 13 3 16 Ponte 20 32 55 23 1 6 Piri 5 9 9 2 16 19 18 Palmeiras 4 20 Morro 0 Mais de 60 (Idoso) 31-59 (Adulto) 16-30 (Adulto Jovem) 5-15 (Idade Escolar) 0-4 (Idade Pré-escolar) 10 Morro 4 20 24 54 24 20 Palmeiras 2 16 19 30 18 30 24 24 54 30 Piri 1 6 9 9 5 40 50 Ponte 16 20 32 55 23 60 Ponte Centro 5 5 12 13 3 É possível verificar também um equilíbrio entre as pessoas de sexo masculino e feminino no Pirakua (ver gráfico 2 abaixo). Para determinar os recortes geracionais foram seguidos os seguintes critérios: para a primeira e a segunda faixa etária, de zero a cinco anos e de cinco a 15 anos, o critério foi o início da escolarização, dado que as crianças na primeira faixa etária ainda não frequentam a escola e as da segunda, em sua grande maioria, estão estudando ou na “Escola Indígena do Pirakua” ou em sua extensão na Região do Morro ou, no caso de algumas famílias que moram na parte alta da Região do Morro na escola da Cabeceira do Apa. Para a terceira faixa etária o critério foi que nessa faixa de idade, de 16 a 30 anos, é comum os homens começarem a procurar trabalhos em fazendas da região e também é nessa faixa etária que são consumados o primeiro casamento, desse modo, constituindo-se em novos fogos familiares. A quarta faixa etária foi determinada a partir do critério de que as pessoas 70 dessa faixa de idade, de 31 a 59 anos, normalmente já possuem filhos e apresentam-se como pessoas constantes dentro da parentela. A quinta e última faixa etária é destinada às pessoas idosas que normalmente já têm três ou quatro gerações de descendentes, sendo comum as pessoas que nela estão, serem tratadas pelas pessoas da TI pela forma de tratamento de vovó ou vovô, por exemplo: “vovô Jacinto” ou “vovó Valentina”. Gráfico 3 – Faixas etárias dos moradores do Pirakua Faixa Etária por Sexo 13 15 Mais de 60 (Idoso) 30 31-59 (Adulto) 37 48 48 16-30 (Adulto Jovem) 5-15 (Idade Escolar) 79 82 30 0-4 (Idade Pré-escolar) 43 0 F M 0-4 (Idade Préescolar) 30 43 5-15 (Idade Escolar) 79 82 20 40 16-30 (Adulto Jovem) 48 48 60 80 31-59 (Adulto) 30 37 100 Mais de 60 (Idoso) 13 15 Compreendo que a divisão feita pelo pesquisador na tabela acima é um tanto quanto desconexa da forma como os Kaiowa pensam suas gerações. No entanto, o objetivo da exposição do gráfico é oferecer subsídios para pensar a população Kaiowa da Terra Indígena em questão.62 62 Um outro “caminho” para pensar as divisões geracionais talvez seja o que pude ter contato durante a disciplina de Parentesco e Organização Social, oferecida pela PPGant/UFGD no primeiro semestre de 2012 e ministrada pelos professores Levi Marques Pereira e Márcio Silva. Durante as discussões na disciplina foi possível pensar um modelo à partir do largo conhecimento e dos trabalhos de Pereira sobre a organização social Kaiowa em apenas três gerações, porém em cinco categorias para a observação. A geração do ego (G0) que seria a “própria geração”; a G+1 uma geração acima de G0; a G-1 uma geração abaixo de G0. Sendo que as gerações acima de G+1 (G+2, G+3, ...) são englobadas e reconhecidas pelos Kaiowa como uma única geração, a dos ascendentes 71 Durante a pesquisa identifiquei basicamente três tipos de moradia na área: com paredes feitas de taquara batida e cobertas com sapê ou folhas de bacuri; com as paredes feitas de toras de guariroba e cobertas com sapê ou com folhas de bacuri; casas feitas de material (cimento, tijolos e coberta com telhas de cerâmica) doadas pelo governo – cherogami, que segundo as informações dos interlocutores significa “minha casinha”, sendo este também, provavelmente, o nome dado ao programa governamental que construiu as casas. Abaixo segue algumas fotos sobre as casas: Moradia (esquerda) e cozinha (direita) feitas de taquara batida e sapê Casa feita de toras de guariroba coberta de folhas de bakuri (avôs e avós) ou ramoy (avô) e jarí (avó); as gerações abaixo de G -1 (G-2, G-3, ...) são reconhecidas pelos 72 Che rogami Kaiowa como a geração dos descendentes ou reamirirõ. 73 Essas últimas, cherogami, pertencem a apenas algumas famílias do Pirakua. Tendo sido construídas no mesmo estilo das casas de conjuntos habitacionais que vemos em algumas cidades brasileiras, com dois quartos, sala/cozinha e um banheiro. Abaixo segue a relação de famílias e a quantidade de moradores abrangidos pelo programa de construção de casas. Tabela 01 - Proprietários das cherogami e moradores abrangidos. Região Cabeçante Quantidade de Moradores 1. Palmeiras Jorge Gomes 4 2. Palmeiras 2 3. Palmeiras 4. Palmeiras Roberto Mendonça Feliciano Mendonça Lúcio Fernandes 5. Piri Lauro Benites 7 6. Piri Felipe Vargas 2 7. Piri Lídio Escalante 4 8. Ponte Arlindo Vargas 8 9. Ponte Claudina Barbosa 9 10. Ponte Cassiano Barbosa 10 11. Ponte Vicente Morel 2 12. Ponte 7 15. Ponte Cândido Lopes Machado Arnaldo Alves Franco Gerson Franco da Silva João da Silva 11 16. Ponte Severino Franco 7 17. Ponte Centro 7 18. Ponte Centro Gerson Lopes Machado Jacinto Ireno 19. Ponte Centro Marciano Ireno 6 20. Ponte Centro Nímia Cristina Romero Élcio Canteiro Gomes Junior Joel Lopes Machado Pedro Canteiro 3 Alexandre Barbosa Leonardo Alves de Souza Roberto Carlos Richard Total 4 13. Ponte 14. Ponte 21. Ponte Centro 22. Ponte Centro 23. Ponte Centro 24. Ponte Centro 25. Ponte Centro 26. Ponte Centro 5 6 6 3 2 3 2 1 4 6 131 74 Como é possível observar, no total existem vinte e seis cherogami no Pirakua, sendo que essas atendem a 131pessoas. Na Região do Morro não há nenhuma família de moradores que foi beneficiada com essa moradia. Sobre esse assunto, a alegação de alguns moradores é que durante a construção das cherogami não havia possibilidade de chegada dos materiais até a região e por isso apenas algumas famílias conseguiram receber a casa. É comum que as famílias que receberam a cherogami empreendam modificações arquitetônicas nas casas, construindo em seu entorno, cozinha (tataypy) e outros espaços de cobertura feita com materiais encontrados na região e que garantem abrigo para os dias mais frios ou chuvosos e sombra para os dias de sol. 3.2.2 Divisão Sexual de Tarefas, Formas de Subsistência e Padrões de Assentamento Kaiowa Durante o período de levantamento foi possível perceber que as relações de produção e trabalho mantêm sua distribuição de tarefas baseadas na divisão sexual – e quando digo que elas se mantêm é pelo fato dessa divisão de tarefas ser amplamente conhecida na literatura antropológica sobre povos ameríndios, portanto não quero aqui conotar um caráter de permanência e sim de composição. Até mesmo em uma observação rápida é possível notar que as tarefas são executadas, vinculadas e baseadas na divisão sexual, ou seja, existem atividades e responsabilidades destinadas às mulheres e atividades e responsabilidades destinadas aos homens. Basicamente, os cuidados com o fogo doméstico (che ypykukera), as criações pequenas (galinhas, porcos, patos, gansos e etc.) são atividades controladas pelas mulheres. Assim como, em grande parte, a educação e o acompanhamento das crianças até a escola e a responsabilidade de manter da roga (casa) e do okarapylimpos (pátio – retornarei a descrição deste espaço), a coleta de remédios e produtos agrícolas plantados ao redor do okarapy. 75 Gráfico 4 – Pessoas por sexo e por Região da Terra Indígena Pirakua Pessoas por Sexo por Região 16 Ponte Centro 22 74 72 Ponte 13 Piri 17 43 42 Palmeiras Mulheres 55 Morro 0 Mulheres Homens 10 Morro 55 73 20 Palmeiras 43 42 30 40 Piri 13 17 50 60 Ponte 74 72 Homens 73 70 80 Ponte Centro 16 22 É importante ressaltar que evidentemente é a mulher quem controla a economia (monetária) de sua casa. Sendo comum ser designada à mulher a tarefa de realizar os deslocamentos mensais para a cidade, onde comumente são feitos os saques dos benefícios governamentais (“bolsa família”, aposentadoria e etc.), essas viagens à cidade normalmente são aproveitadas para a compra de produtos industrializados como açúcar, arroz, feijão, sal, óleo entre outros produtos como biscoitos, doces, salgadinhos e refrigerante. O Pirakua está localizado a cerca de 45 km do centro de Antonio João e 70 km do centro de Bela Vista, sendo essa última priorizada nas viagens à cidade, principalmente por ter um comércio maior – por sinal, muito conhecido pelos índios – e por possibilitar a travessia da fronteira para o Paraguai, onde são encontrados diversos produtos com preços menores que no Brasil. Os Kaiowa que vivem no Pirakua utilizam com maior frequência três maneiras de chegar aos centros comercias de Antônio João e de Bela Vista: a primeira e mais comum é conseguir um lugar na Van que a comunidade possui. Essa Van fica sob os cuidados de uma das lideranças que vive na região da Ponte Centro, a única pessoa habilitada para conduzi-la. Normalmente as viagens da Van ocorrem uma vez por semana e nos dias de recebimento de benefício.As despesas da viagem são custeadas pelos passageiros que contribuem com valores que são estabelecidos para as seguintes categorias: professores (R$30), beneficiados do programa “bolsa família” (R$20), aposentados e outras pessoas que não se enquadram nessas categorias (R$25). Os valores arrecadados servem para pagar os custos de combustível e 76 manutenção do veículo, bem como um salário no valor de R$400 (quatrocentos reais) ao motorista; A segunda forma é pagar por uma corrida de taxi. O taxi é chamado da cidade e normalmente cobra valores que variam de R$120 (cento e vinte reais) a R$200 (duzentos reais) onde está incluso a ida à cidade e o retorno ao Pirakua. Normalmente usado em casos de maior urgência ou rateado por diversas pessoas que desejam ir à cidade para fazer compras ou para resolver algum problema burocrático na FUNAI em Ponta Porã (cerca de 90 km de distância da TI Pirakua) ou no polo da SESAI em Antônio João; A terceira é limitada apenas a algumas famílias que possuem motos. Normalmente essas motos não têm permissão para rodar em território brasileiro, pois são veículos de origem paraguaia – em sua maioria em condições precárias pelo falta de manutenção e pelo constante uso na zona rural. A quarta forma de chegar até o centro das cidades mais próximas, menos comum atualmente, é percorrer a pé uma distância de aproximadamente 23 km até o asfalto da estrada que liga os municípios de Bela Vista e Antônio João; e de lá é possível ou pegar um ônibus intermunicipal ou pedir carona para os veículos que passam na rodovia. A mulher desempenha um papel importante na estrutura da familiar, pois é dela a responsabilidade pelo preparo dos alimentos que serão consumidos. Para isso, é a mulher que normalmente colhe os produtos da roça mais próxima da casa (normalmente mandioca, milho, abóbora e batata-doce) sendo esta uma atividade quase diária63. Porém os trabalhos de preparo e manutenção da roça, ou seja, o arado da terra e a capina são atividades normalmente realizadas pelos homens. Aos homens, além do preparo e manutenção da roça que é feito em alguns momentos com a ajuda das crianças, cabem principalmente as tarefas de construção e conserto de casas, cozinhas, bancos, mesas e de demais objetos que se apresentem como uma demanda da família, além dos cuidados com as criações maiores como, por exemplo, o gado e cavalos, comum em algumas famílias com maior poder aquisitivo no Pirakua, a coleta de remédios na mata, atividades de caça e em muitos casos o trabalho temporário como peão em fazendas da região. 77 Tabela 2 – Ocupação dos moradores da Terra Indígena Pirakua, dados gerais e por regiões. Ocupação Geral Palmeiras Ponte Centro Ponte Piri Morro Profissional da Educação 11 0 5 3 0 3 Profissional da Saúde 6 3 1 0 1 1 Roça 61 15 6 17 6 17 Aposentado 9 1 4 3 0 1 Trabalha em Fazenda 30 2 2 13 1 12 Estudante 146 16 14 63 9 41 Dona de casa 74 17 6 26 7 18 Outros 13 4 2 6 1 0 Os grupos guarani e especificamente os Kaiowa são conhecidos na literatura etnográfica como povos motivados fortemente pelas atividades agrícolas. É possível verificar na tabela acima que das 92 moradias da área 61 delas possuem suas próprias roças. Sendo importante ressaltar que especificamente a esse questionamento foi atribuída resposta para todos os moradores das casas que tinha idade igual ou superior a escolar. A atividade de trabalho em fazenda é uma ocupação quase que exclusivamente dos homens mais jovens (entre 16 e 40 anos), sendo essa desempenhada durante períodos de tempo que são passados nas próprias fazendas – entre cinco e 15 dias – intercalados por períodos que são passados na TI junto à família64. Os homens que trabalham em fazendas, em sua maioria, desempenham atividades de “peão”, ou seja, na lida de lavouras ou no trato de animais de grande porte como o gado de corte predominante na região do Rio Apa. Algumas famílias têm mais de uma roça, uma mais próxima da casa e outra mais distante. As roças que ficam próximas da casa são mais diversificadas onde podem ser encontrados com facilidade mandioca, milho, abóbora-moranga, batata-doce emelancia. Tendo esses cultivos a finalidade do uso mais cotidianoda família, demandando maiores 63 No Pirakua é comum que no meio da manhã seja feita, pela esposa em companhia das crianças, uma ida a roça para buscar alguns produtos que serão consumidos na refeição feita para o almoço (normalmente entre 11h e 12h). 64 Quando retornei ao Pirakua para o último período de trabalho de campo (fevereiro de 2013) vários homens (cerca de 20) haviam sido contratados para trabalhar por um período de dois meses na colheita de maças na região noroeste do Estado do Paraná. As discussões referentes ao trabalho masculino feito fora da aldeia com certeza ainda pode render muito para as reflexões acerca do relacionamento interétnico entre os Kaiowa e a sociedade não indígena, no entanto, não pude trabalhar com mais profundidade esses dados nesta dissertação. 78 cuidados pela sua diversidade. Já as roças que ficam mais distantes, comumente, são de monocultura e os plantios mais comuns são o arroz, o milho e a mandioca. Gráfico 5 – Produtos cultivados nas roças das famílias Kaiowa da Terra Indígena Pirakua Produtos Cultivados nas Roças Quantidade de Vezes Mencionada Variedade de Frutas 2 8 Milho Manga 54 9 1 49 Laranja 4 18 Cana 10 9 Banana 23 12 Amendoim Abacaxi 2 21 1 O padrão de assentamento de uma família Kaiowa é, em muito, determinante para a sua subsistência. A “casa” de uma família na realidade é composta também por um pátio, um espaço limpo, ou seja, sem a presença de mata, onde são desenvolvidas as atividades cotidianas da família, designado pelo termo em guarani com o nome de okarapy. Foi possível perceber um padrão de assentamento das famílias nucleares kaiowa do Pirakua. O okarapy normalmente é composto por uma casa (roga), utilizada apenas durante o período da noite, para dormir. Existe no okarapy também uma tataypy, construída independente da casa. A tataypyé feita com materiais disponíveis na área (taquara, toras de guariroba, bakuri, sapê e etc.) sendo esse o local onde são preparados os alimentos, servindo também de local de reunião da família no período da manhã, onde, principalmente, os adultos se reúnem para tomar mate e conversar à beira do fogo, ao mesmo tempo em que é preparada a primeira refeição65 do dia pela mulher que é responsável pelo fogo familiar. Após essa refeição matinal os homens saem para fazer suas atividades, isso, quando não estão trabalhando durante a semana em alguma fazenda da região. Já as mulheres se 65 Normalmente as famílias fazem três refeições durante o dia, todas baseadas na ingestão de proteína e amido. Por exemplo, macarrão, arroz, feijão, carnes, milho e mandioca, sendo comum o consumo de ao menos um desses itens em todas as refeições feitas durante o dia. 79 encarregam de atividades como alimentar as criações pequenas, varrer o pátio e designar atividades para as crianças que permanecem no okarapy. Normalmente todo okarapy tem ao redor da casa um pomar (cheyvytĩ).A variedade de frutas pode ser vista como um indicativo do tempo de ocupação da família no local e também do local como moradia, pois é bastante comum a existência de “invernadas” – como dizem os índios do Pirakua – que estão abandonadas e a qualquer momento podem voltar a ser utilizadas por alguém que procura um novo lugar para construir sua casa. Um cheyvytĩ antigo apresenta árvores bastante produtivas, sendo comum encontrarmos uma variedade grande de frutas, como mexerica, maricota, pôkan, tangerina,laranja, manga, goiaba, abacate, limão, mamão, seriguela e etc. Esse pomar é muito utilizado durante o dia pelas crianças, que entre as refeições costumam comer as frutas que estão maduras na época. Em relação ao fogo familiar é importante ressaltar o papel da mulher no controle desse elemento. A função de manter o fogo garante à mulher o controle de quase todas as atividades que estão ocorrendo no okarapy durante o dia. Pois sua função de garantir a subsistência e a nutrição do grupo dá a ela uma posição muito privilegiada sobre a designação de tarefas às crianças, na recepção de pessoas que chegam de outras casas e também na administração dos recursos que a família tem (dinheiro, alimentos, etc.). Demonstrados os tipos de moradia, os dados populacionais e os padrões de moradia que apontaram alguns caminhos para se pensar a composição das atividades divididas pelo sexo, pretendo discutir no próximo capítulo, aspectos da organização social e política da Terra Indígena Pirakua que serão pensados através do parentesco como relação mediadora das interações econômicas e políticas. 80 81 CAPÍTULO IV – ATRAVÉS DO PRESTÍGIO “[...] povos que sobreviveram fisicamente ao assédio colonialista não estão fugindo à responsabilidade de elaborar culturalmente tudo o que lhes foi infligido. Eles vêm tentando incorporar o sistema mundial a uma ordem ainda mais abrangente: seu próprio sistema de mundo.” (Shalins, 1997, p. 52) Nesse capítulo as redes de relacionamento da organização social e política da Terra Indígena Pirakua são pensadas através da ideia de cooperação, suporte e cisões. Sendo compreendidas através do entendimento de que as interações políticas se dão – para essa observação – em basicamente três instâncias do “modelo concêntrico” elaborado por Levi Marques Pereira, precisamente entre o fogo familiar (che ypykukera), um grupo formado por consanguíneos e afins que residem próximo e pode ser compreendidopelo termo nativo de che ñemonare e também pela ideia de jehuvya parentela (Te’yi). 4.1 Mba’ejehu Nem bem os primeiros raios da manhã começam a aparecer e Ava Yvyra’ijá está colhendo a lenha, ainda bem úmida pelo sereno que caiu durante a madrugada. Ava Yvyra’i leva os troncos e toras de guariroba, cortados no dia anterior, para a tataypy; a cozinha da moradia. Calmamente ele acende o fogo e se esquenta enquanto Jacy Tata Poty, sua esposa, traz uma vasilha com água e coloca sobre a grade de ferro que está sobre o fogo recém-aceso. Nenhuma palavra é dita até que Ava Yvyra’i me convida a sentar “d’jahajaguapy”. Fora da tataypy ouvem-se os pássaros cantarem na mata ao lado do okarapy. Enquanto a água esquenta Ava Yvyra’i prepara uma cuia com ka’a para tomar o primeiro mate do dia. Os primeiros raios de sol acendem o dia, mas ainda não conseguem alcançar o okarapy, clareiam a copas das arvores maiores e aos poucos vão penetrando a mata recolhendo o orvalho novamente para a atmosfera. 82 O mate é servido quente por Ava Yvyra’ique fala pausadamente. A rotina matinal, que acompanhada do mate, é seguida por uma fala que relembra momentos vividos no yma guare; em tempos antigos. Nessa manhã Ava Yvyra’i fala do tempo de criança e das expedições de caça que realizava em família. Acompanhado de seus pais e dos avós, passavam alguns dias coletando e caçando na mata. O sol já está mais forte, não se pode mais ver a lua. Ava Yvyra’i diz, em português, “é a moto do Kurumbe”, consigo perceber o som do motor. Kurumbe é o único filho homem de Ava Yvyra’i, que teve mais três filhas com Jacy Tata Poty. Kurumbe senta conosco na tataypy para o mate, enquanto os dois filhos que o acompanham brincam no okarapy. Jacy Tata Poty prepara a primeira refeição do dia, peixe ensopado, pescado por Kurumbe na noite anterior. E alguns cascudos que são assados nas cinzas ao lado do fogo. Kurumbe avisa que deixará as crianças aos cuidados da mãe para ir pescar em um afluente mais distante. Sua mãe responde em guarani que não há problemas das crianças passarem o dia lá. Com o dia já bem claro, reinando o sol em um esplêndido céu azul, Ava Yvyra’i sai da tataypy para iniciar o dia de trabalho na construção da nova tataypy para a esposa: “esta já está muito velha e não tem mais concerto”, por isso seu empenho nos últimos dias para finalizar a nova construção. Enquanto conversávamos sobre antigas aldeias da região do rio Apa, Jacy Tata Poty sai até a porta e chama “ed’ju tembi’u”, a comida está pronta, as crianças largam a bola, eu e Ava Yvyra’i seguimos em direção a tataypy. Segundo Ava Yvyra’ia primeira refeição do dia tem que ser reforçada, pois o trabalho é sempre puxado, e “esse negócio de comer pão de manhã não sustenta... tem que comer carne mesmo”. Ñahatĩ, filha mais nova do casal, chega depois da refeição carregando sua filha. Ava Yvyra’i faz uma pausa em seu trabalho para tomar tereré com Ñahatĩ. A conversa é sobre a escola, na qual Ñahatĩ é professora. Ava Yvyra’i faz um longo discurso dizendo que os professores precisam aprender que é importante que se transformem em yvyrad’ja. Jacy Tata Poty traduz otermo dizendo que o mesmo faz referência a um aprendiz, a alguém que está próximo de um mestre. Para Ava Yvyra’i,as lideranças novas e os professores devem tornar-se yvyraid’ja, pois são os “caciques”– ñanderu (rezador) e o mburuvicha (liderança política)– que sabem o verdadeiro passado, “nós temos um passado e os professores tem que saber”.De repente a fala 83 de Ava Yvyra’i é interrompida pelos gritos de Akekẽ, que chega ofegante falando em guarani, apontando para a mata e gesticulando muito. Um dos mitã (criança) olha para mim e com os olhos arregalados e diz: “Onça!”. “Onça?”, questiono sem compreender de imediato. Todos se levantam rapidamente, Ava Yvyra’i pega seu facão, as crianças se armam (lanças, foices, podão e os estilingues, que raramente saem do pescoço). Decido seguir o grupo, ainda sem entender o que estava acontecendo. Próximo à casa de Akekẽ seguimos por um tape po’i, uma trilha que adentra a mata. Os dois quilômetros de caminhada são percorridos em pouco tempo, encontramos ainda dois homens e duas mulheres que espreitavam uma jaguatirica no alto da árvore. Akekẽ é o primeiro a tentar acertá-la com seu arco e flecha, mas percebe que o animal está em um galho muito alto, difícil de mirar. Ava Yvyra’i vai ao centro da aldeia buscar uma espingarda. Esperamos o retorno de Ava Yvyra’i. Ñahatĩ me disse que a jaguatirica “come muito as criações e pode acabar atacando alguma criança”, justificando a caçada. Ava Yvyra’i retorna acompanhado de outro professor da escola, dono da arma, só havia quatro projéteis de calibre 22. Os três primeiros foram usados pelo professor, que acertou apenas um no pescoço do animal. Ava Yvyra’i disse que atiraria o último. Certeiro, no ouvido da jaguatirica que caiu de quase 30 metros e logo foi recolhida pelos homens que estavam aguardando. As crianças se aproximaram do animal e passaram a mão em seu couro. Ava Yvyra’i disse que não comeria a carne e deu o animal abatido ao anciãoCarai, pedindo apenas o couro para si. No caminho de volta para a casa, com um brilho nos olhos,Ava Yvyra’i celebra o êxito da caçada e rememora em voz alta outras histórias das caçadas bem-sucedidas. Essa expedição será mais uma no repertório do grande caçador Kaiowa. 4.2 Organização Social e Política da Terra Indígena Pirakua Como dito anteriormente, desde os primeiros clássicos da Antropologia Social Britânica, em especial Radcliffe-Brown, a dimensão da organização social e política passa a ocupar o centro das pesquisas e reflexões da antropologia, inicialmente a partir de pesquisas 84 com sociedades africanas e, posteriormente, em outras regiões do mundo. Sendo repensada essa Antropologia Política por Pierre Clastres. Neste momento do trabalho, nos propomos a descrever e refletir acerca das modalidades de organização social dos Kaiowa do Pirakua, em particular, a interação entre as relações de parentesco e as práticas políticas, propondo uma leitura que associa estas práticas com as esferas sociais e de cooperação. 4.2.1 Interação Entre o Parentesco e a Política: esferas sociais de cooperação “Se deixarmos de considerar o equilíbrio como objetivo, não haverá mais lugar para falar em ameaça ao equilíbrio ou em esforço para a sua restauração.” (Perrone-Moisés, 2011, p. 870) Pretendo desenvolver a ideia de que as relações políticas são, em parte, determinadas pelas relações de parentesco e da afinidade. Podendo ser apreendidas também pelas manifestações no campo da cooperação econômica entre grupos de pessoas ligadas através das relações de parentesco e das relações de afinidade. Para designar esses grupos utilizarei o termo “grupos de suporte”, realizando uma apreciação teórica análoga aos escritos de Clastres (2004) em seu ensaio “A Economia Primitiva” no qual realiza a escrita do prefácio à obra de Marshall Sahlins (1976)66, considerando que torna-se impossível pensar as relações econômicas no exterior das relações políticas. Clastres ao falar da obra de Sahlins afirma que as sociedades primitivas são compostas de “unidades de produção e consumo”. Com efeito, cada uma dessas unidades funciona como um grupo autônomo do conjunto da sociedade. Isso é justificado pelo fato dessas unidades de produção e consumo – aqui, no caso, definidas como grupos de suporte – apresentarem “tendências centrífugas”, ou seja, cada grupo de suporte, sendo um grupo econômico e político, busca sua independência em relação aos outros grupos que compõem o corpo do social. E também “tendências centrípetas”, ou seja, cada família e pessoas que compõem o 66 Prefácio escrito por Pierre Clastres à obra de Marshall Sahlins “Âge de Pierre, age d’abondance” (Paris: Gallimard, 1976). A obra em questão tem como título original “Stone Age Economics”. 85 grupo de suporte buscam sempre alternativas para escapar de uma centralização em apenas um cabeçante. Como nos indica Perrone-Moisés (2011): Afinal, ser, entre os ameríndios, é sempre devir; devir contrário, acima de tudo (Viveiros de Castro, 2009 et passim). [...] sugere, com efeito, uma constante dinâmica entre tendências centrípetas e tendências centrífugas; igualmente perceptível no ciclo de vida das aldeias, entre constituição (fundação), crescimento e dissolução (abandono) (Perrone-Moisés, 2011, p. 868). Portanto, é importante que a reflexão seja sempre feita levando em consideração esses elementos que perpassam a visão – ou cosmovisão – empreendida pelos ameríndios. Ao modo que Perrone-Moisés (2011) propõe que esse movimento da política ameríndia que interage dinamicamente através dessas forçar contrárias e não complementares, pois se o fossem chegaríamos à ideia de uno – e bem sabemos as ressalvas feitas por Clastres em relação tal caráter de unidade – abominado por sociedades que lutam permanentemente contra a formação de um Estado. Desse modo, deve-se observado e pensar o modelo a seguir de maneira dinâmica; ou através de um movimento pendular. A “filosofia da chefia” estaria englobada num pensamento segundo o qual o social, como tudo mais, situa-se no intervalo de oposição entre ser e não ser, nem uma coisa nem outra, tampouco a soma dos dois. Uma coisa e outra. Feita de relações entre polos opostos, a política entre os ameríndios parece bem ser (também) movimento entre-dois. Movimento pendular cujo retorno é sempre deslocado, sempre transformado, de modo que o ponto de “chegada” jamais é exatamente o de “partida”: quase o mesmo, mas não completamente. “Perpétuo desequilíbrio”, sempre. (Perrone-Moisés, 2011, p. 869) O sistema social Kaiowa apresenta uma gama variada de esferas que determinam a proximidade das relações econômicas e políticas entre as parentelas. Pereira (1999; 2004) expõe, através de um modelo concêntrico, essas escalas de interação e solidariedade, das quais pretendo aqui suscitar quatro. Utilizando como recurso metodológico a descrição das unidades sociológicas de menor abrangência passando às mais gerais. Nas palavras de Pereira (2004, p. 48), “nas quais algumas dessas unidades são englobadas por outras de maior amplitude”. 86 Diferente do que aponta, por exemplo, Clastres, os relacionamentos econômicos e políticos não se dão de maneira generalizada entre os Kaiowa, pois existem esferas cosmológicas e sociais, que organizam e dão sentido às relações, determinando, assim, o sentido e a forma como são construídas e articuladas as redes e esferas de reciprocidades. Como afirma Pereira (2004): A conduta econômica entre os Kaiowa não se pauta por uma reciprocidade generalizada, como nos sugeriria uma leitura acrítica da bibliografia. Na verdade, combina a existência de pequenos círculos de pessoas que se consideram próximos e entre os quais existe um alto grau de solidariedade, com unidades sociológicas maiores e mais abrangentes (Pereira, 2004, p. 49). Acreditando que através da observação dessas esferas sociais de interação que se torna possível um caminho para observar a formação, a manutenção e interação dos grupos de suporte do Pirakua; que se constituem como políticos e econômicos. Dessa maneira, possibilitando o recorte para a observação aqui pretendida. Sendo elas: Che ypykykuera ou o “fogo familiar” seria a unidade de solidariedade mais íntima e intensa da vida de um Kaiowa, pois esta unidade – que pode ser entendida em nossos termos como a família nuclear – é formada basicamente por pais, filhos e agregados, sendo a “unidade mínima fundamental”, ordenadora das relações em um nível micro sociológico contida pelas relações econômicas e gozando como a esfera de relacionamento com maior autonomia. Tendo como significado próximo “meus ascendentes próximos, da mesma origem”. “Qualquer pessoa tem que estar ligada a um fogo para que sua existência social se torne viável, quando a pessoa rompe com um fogo por casamento ou dissensão, imediatamente se insere num outro fogo” (Pereira, 1999, p. 83); Ñemoñare “minha prole” ou descendentes é constituído pelo “agrupamentos de um certo número de fogos e tem como base a ênfase as relações de consanguinidade que os une” (Pereira, 2004, p. 155). O che ñemoñare é basicamente delimitado pelo reconhecimento de um ancestral em comum a todos – que torna o grupo semelhante entre si – compondo essa esfera do sistema social Kaiowa. Jehuvy pode ser compreendido através do verbo “jehu” que pode ser traduzido para o verbo em português “ajudar”, já o termo jehuvy enfoca a cooperação e significa “aqueles que se ajudam”. Essa esfera do modelo concêntrico desenvolvido por 87 Pereira (2004) designa núcleos de adensamento de fogos no interior da parentela extensa (te’yi). Segundo Pereira (2004) geralmente o jehuvy é formado por um número pequeno de fogos que pode variar entre 2 a 6 fogos e sua principal característica de agregação se dá através da economia, diferentemente do ñemoñare espaço de predominância da consanguinidade. Te’yi ou “parentela” se apresenta a esfera de agregação mais ampliada de solidariedade, baseada principalmente em relações políticas e composta principalmente por relações consanguíneas, que, porém, permitem a incorporação e o englobamento de afins e aliados, reunindo um número variável de fogos domésticos. A identificação de uma parentela normalmente é dada através do nome de seu cabeçante, é muito comum ouvir “tal pessoa da família do Sr. Fulano”. No Pirakua, tive a oportunidade de visualizar com mais proximidade a interação entre as parentelas que residem na área e o relacionamento nas diversas esferas do sistema social kaiowa apontadas acima. Observando as formas de cooperação entre elas pude apreender que, de fato, o planejamento econômico e político mais estratégico está contido, principalmente, nas relações do fogo familiar (ypykukuera) e que o âmbito mais amplo da parentela, a te’yi, acaba sendo ordenado através do casal de cabeçantes67, denominados pelos termos de hi’u para o homem e ha’i para a mulher ocupando assim um lugar central na hierarquia da parentela. O hi’u e a ha’i são pessoas geralmente mais velhas, ainda bastante ativas economicamente, com filhos já casados que compõem o entorno da parentela. É possível pensar que as redes formadas e as esferas de organização parental e de afinidade dos Kaiowa são compostas por um centro (referenciado pelo casal de cabeçante – hi’u e há’i) e por uma periferia. Em termos sócio-políticos, a parentela possui um centro e uma periferia. O centro constitui uma espécie de cidadãos de primeira classe, uma elite política que acumula prestígio, poderes, atribuições e privilégios, sendo formada pelos fogos vinculados diretamente ao cabeça da parentela, geralmente seus parentes próximos. A periferia, por sua vez, é composta pelos fogos mais distantes do cabeça de parentela em termos genealógicos e políticos. (Pereira, 2004, p. 126) 67 O “casal de cabeçantes” apresenta em uma relação matrimonial estável, servindo como referência – muitas vezes econômica e política - para o restante da parentela. Tendo esse casal a capacidade de manter próximo de si suas filhas e seus filhos casados, netos e em alguns casos os bisnetos. 88 Para tentar visualizar essas relações do modelo concêntrico e também a ideia de centro e periferia da parentela foi elaborada uma figura (segue abaixo) que busca de maneira singela ilustrar esses relacionamentos. Figura 4 – Ilustração das esferas de relacionamento no modelo concêntrico É possível pensar a mulher como a base da reprodução física e cultural do povo Kaiowa e Guarani, pois sem a mulher não há fogo. Assim a mulher desempenha um papel muito importante nas relações mais horizontais e cotidianas, é através das atividades que desempenha a mulher Kaiowa que se institui e que se organiza a vida social das pessoas do che ypykukuera. A existência do fogo enquanto unidade sociológica depende da existência do fogo culinário aceso no interior da casa, ou em um pequeno compartimento construído ao lado desta, funcionando como cozinha externa. O fogo culinário é o símbolo da vida, portanto, nunca deve se apagar. Mesmo nos momentos em que não estão sendo preparadas refeições, é comum encontrar uma chaleira com água quente ou batatas [doce] e frutos assando sobre a brasa, um dos passatempos das crianças. (Pereira, 2004, p. 68) 89 Cada fogo doméstico é autônomo e responsável pelo sustento das pessoas que fazem parte dele, portanto, cada família nuclear é responsável pela produção de seu sustento. Dessa forma as práticas agrícolas, principal atividade de sustento da maioria das famílias no Pirakua, é desenvolvida no âmbito da família nuclear à beira de seu próprio fogo. Em diversos momentos foi possível constatar que o casal de cabeçantes é sempre consultado para a tomada de decisões que necessitam de uma habilidade maior, assim como é comum que esse casal ajude financeiramente, pois uma das características para estar em lugar de referência dentro da parentela (te’yi) é ter a capacidade de produzir um excedente, que no caso dos Kaiowa do Pirakua está diretamente ligado a ter uma roça grande o suficiente para suprir possíveis necessidades que venham a ter os parentes que residem em outros fogos domésticos e também em ter condições financeiras para a obtenção de produtos e serviços negociados com as sociedades ao entorno do Pirakua. Essa capacidade de produzir excedente foi possível de ser observada durante o trabalho de campo no Pirakua. A grande movimentação de pessoas que pude observar no okarapy de alguns cabeçantes de parentelas apontaram para uma relação intrínseca das reciprocidades e da (re)produção econômica, talvez em uma observação mais atenta seja possível compreender esse movimento como o próprio jehuvy, ou seja, como uma das esferas de compreensão do sistema social Kaiowa com tendências mais voltadas para a cooperação econômica (que não deixa de ter implicações políticas). Durante o tempo que estive no Pirakua era muito comum na casa do casal de cabeçantes em que eu estava alojado o trânsito de pessoas que chegavam para trocar serviços (limpeza de roçado, pequenos consertos, alimentar animais, debulhar milho...) por produtos da roça do casal, pelo pagamento de diárias de trabalho e também por produtos industrializados advindos de comércios da cidade. Outro fator importante de status do casal de cabeçantes é dispor de membros ocupantes de cargos assalariados na escola, posto (ambulatório), no serviço de saúde ou mesmo em trabalhos contratados por produtores rurais da região. É o caso, por exemplo, da família de uma das lideranças mais importantes e respeitadas do Pirakua que tem atualmente suas três filhas atuando como professoras (duas no Pirakua e uma no Campestre), o único filho homem trabalha em fazendas da região entre Bela Vista e Antônio João e um dos genros do casal de cabeçantes, morador do Campestre, é agente de saúde no polo de atendimento da SESAI de Antônio João. Essas relações permitem ao casal privilégios na aquisição de produtos que só podem ser obtidos na cidade (óleo, açúcar, sal, sabão em pó, refrigerante, bolachas, etc.). Dessa maneira, colocam o casal em uma posição de privilégio para o 90 estabelecimento de trocas com pessoas de outras famílias e de outros grupos de suporte no Pirakua. Durante o período que permaneci na casa do casal Jorge e Darci, quase diariamente aparecia algum parente, chamado por eles muitas vezes de “parente’i”68 oferecendo serviços que em troca eram recompensados com as refeições durante o tempo de serviço e produtos agrícolas da roça do casal. A atuação do casal de cabeçantes pode ser pensada através da circulação da parentela na sua casa e também pela frequência que as filhas e os filhos casados os visitam para negociar demandas que acreditam ser essenciais. Nessas visitas é comum a socialização ser feita em meio a uma roda de tereré, sendo a bebida servida por uma criança que, na maioria das vezes, não participa da conversa permanecendo apenas como ouvinte dos assuntos discutidos. Esses intervalos dedicados ao tereré, além de ser um momento de descanso, dedicado a conversas cotidianas, servem também para o pedido de conselhos, para pleito de auxílios financeiros para viagens à cidade com o objetivo de comprar produtos ou algum tipo de serviço necessário dos quais os parentes do entorno da parentela não têm condições financeiras para realizar sem a ajuda do casal de cabeçantes – que quase sempre apresenta estabilidade e maior disponibilidade de recursos. Como o caso de um dos filhos de Jorge e Darci que estava se preparando durante o período que estive em campo para tirar habilitação de motorista. A habilitação seria custeada pelo pai, em contrapartida – sempre que possível – os filhos auxiliam o pai em serviços diversos, como o corte de madeira, o concerto de objetos entre outros. Porém, não se estabelecendo essa prestação de serviços como uma “troca” negociada diretamente (habilitação em troca de serviços gerais). Nesse subitem foi desenvolvida basicamente a ideia de que é possível apreender as relações políticas cotidianas na interação entre as esferas que perpassam do fogo familiar ao da família extensa acrescida das relações de afinidade, compreendendo assim um grupo que pode ser denominado como grupo de suporte. 68 Na língua guarani o lexema “i” pode ser interpretado/traduzido com a conotação de diminutivo ou “pequeno”, “menor”, diferentemente do lexema “guasu” que conota aumentativo, como exemplo: “aty guasu” (grande reunião). 91 4.2.2 Grupos de Suporte Político e Econômico do Pirakua Como citado na introdução desta dissertação e no terceiro capítulo, a T.I. Pirakua é composta basicamente por quatro regiões (Palmeiras, Ponte, Piri e Morro). Essas regiões não são de uso exclusivo de apenas uma parentela, porém é possível perceber que a formação de grupos de suporte econômico e político que se conforma em relações de vizinhança. Ou seja, esses grupos são possíveis de serem apreendidos através da observação das relações de parentesco e afinidade imbricadas fortemente a aspectos da territorialização; realizando uma análise é possível verificar que cada uma das regiões apresenta características particulares na ocupação e na territorialização. É importante ressaltar que os grupos de suporte69 se conformam como uma espécie de unidade de cooperação que desempenham atividade de trocas com a finalidade de obter a produção e o consumo simbólico e material dessa unidade, que, em parte, podem ser identificadas com o “estilo de parentela”, já brevemente discutido no capítulo 2 da dissertação. Desse modo, esses grupos têm uma dinâmica sociológica atuando, dentre outras possíveis perspectivas, através das relações de parentesco e de afinidade que podem ser ativadas/positivadas através do estabelecimento de alianças. Essas relações de parentesco se positivam, ou seja, são rememoradas, passando de uma relação não tão próxima no passado a uma relação de proximidade e de cooperação com muita fluidez e elasticidade, mesmo que a consanguinidade70 seja algo difícil de comprovar, com muita rapidez e destreza política dos Kaiowa (Pereira 1999). Não havendo regras de prescrição e de assentamento pós-matrimônio a agregações que formam os grupos de suporte se pautam, em muito, na capacidade do casal de articuladores (hi’u e há’i) de criar e recriar de maneira quase ininterrupta, as demais 69 Acredito que o “grupo de suporte” deve ser compreendido em uma perspectiva de formação de redes complexas de relacionamento. Compreendendo que a sócio-lógica, e tudo que ela necessariamente implica para sua existência – associações, dissensos, cooperações, cisões, reciprocidades e relacionamentos que compõe e fragmentam, necessárias para a sua criação e permanência no tempo e no espaço. Ou como apresenta Viveiros de Castro (2006, p 298) “Em sentido particular, (uma) sociedade é uma designação aplicável a um grupo humano com algumas das seguintes propriedades: territorialidade; recrutamento principalmente por reprodução sexual de seus membros; organização institucional relativamente auto-suficiente e capaz de persistir para além da vida de um indivíduo; distintividade cultural”. 70 Mesmo compreendendo que não é só pela consanguinidade que o parentesco se estabelece, é importante ressaltar sua importância estrutural e fundadora de regras negativas que alicerçam e geram outras positivas obrigando o estabelecimento da aliança para além das relações incestuosas. 92 esferas sociológicas que estão para além do fogo familiar – no caso o ñemoñare, juhuvy e em uma perspectiva mais ampliada dessas relações a te’yi e o tekoha. Ouvi de alguns interlocutores a seguinte afirmação “tal pessoa é meu primo” isso quando ambos, o interlocutor e a pessoa referenciada, apresentavam idades equivalentes, ou então “tal pessoa é meu sobrinho” ou “meu tio” quando apresentavam idades e posicionamento político que se diferenciavam o suficiente para que não pudessem pertencer a mesma geração. Um exemplo cotidiano dessa “elasticidade” das relações que sustentam os grupos de suporte econômico e político no Pirakua pode ser observado em três conversas que mantive com um interlocutor, Lúcio Gomes, morador na Região da Ponte. Em uma tarde fui até a sua casa para fazer o meu trabalho de recenseamento. Durante nossa conversa disse a Lúcio que estava hospedado na casa de Jorge na região do Palmeiras e prontamente ele afirmou que esse era seu primo. Em outro momento, conforme fui conhecendo melhor as famílias e as relações de parentesco do Pirakua percebi que Lúcio Gomes não era exatamente “primo” de Jorge e sim um aliado político considerado como tal, pois ambos não têm nenhuma relação de parentesco concreta (através da consanguinidade). Sendo que até mesmo outras pessoas da parentela de Lúcio não veem Jorge como um aliado político e sim fazem oposição e reclamam do tempo em que Jorge foi capitão71do Pirakua. Nesse caso, e em outros possíveis de observar no Pirakua, percebemos que as apreciações de Viveiros de Castro sobre o parentesco amazônico, referenciadas em Dumont, fazem sentido no caso dos Kaiowa, pois, a “[...]afinidade engloba hierarquicamente seu contrário, a consanguinidade” (Viveiros De Castro, 2006). Ao passo que a afinidade tem como matriz o relacionamento com o cosmos e a consanguinidade se constitui como “província do construído”, ou seja, constitui a intenção e a ação de atualizar as relações humanas. 71 Sobre o cargo ou posição de “capitão” a seguinte consideração deve ser feita: por mais que seja amplamente conhecido que essa figura – capitão – surge entre os Kaiowa e Guarani em MS durante o processo de colonização realizado pelo indigenismo oficial do SPI e FUNAI (pós 1967) hoje esse cargo/posição é apropriada pela organização social Kaiowa se tornando uma “coisa” Kaiowa também. Desse modo, essa figura acaba sendo também um exemplo de chefia que acaba se evidenciando muito pela incumbência de resolver e desenvolver relações que dizem respeito principalmente pelo funcionamento dos atendimentos de educação, saneamento e saúde na aldeia, no entanto, a pessoa que ocupa essa posição de status diferenciado acaba também sendo um chefe que se mantém pela referência da formação e manutenção do seu próprio grupo de suporte que de maneira alguma deve liderar através de relações coercitivas de mando e obediência. 93 No caso dos Kaiowa, a identificação de uma relação de parentesco virtual72 é a chave para uma aproximação e para o reconhecimento da aliança que em seu cerne surge de uma “afinidade potencial” que possibilita o desdobramento de relações de cooperação econômica e política. Na segunda conversa foi possível compreender que essa relação entre Lúcio Gomes e Jorge Gomes se dá muito mais no campo da afinidade e do reconhecimento de Jorge Gomes como cabeçante de um grupo, e por isso muito respeitado no Pirakua, do que pelo campo do parentesco real ou de uma aliança efetuada pelo matrimônio, por exemplo. Nessa visita a casa de Lúcio Gomes, sua mãe, Mari Canteiro Gomes, estava presente. Ao me fazer a mesma pergunta, onde eu estava hospedado, após a minha resposta D. Mari expressou uma reação de total desaprovação ao trabalho desenvolvido por Jorge como liderança no Pirakua. Nesse momento Lúcio não se pronuncia, apenas abaixa a cabeça em tom de abnegação de expressar qualquer opinião. No terceiro momento que estive na casa de Lúcio sua mãe, moradora da Região do Morro, não estava presente e Lúcio claramente afirmou para mim que Jorge era a “verdadeira liderança da terra”, pois ambos eram muito amigos e Jorge o ajudava muito. E isso se confirma pelas várias visitas que Lúcio fez a Jorge e vice-versa durante o trabalho de campo. Era comum nessas visitas combinarem trabalhos para cooperarem um com a atividade do outro. Importante dizer que no momento Lúcio construía uma nova casa, pois acabara de se casar novamente e Jorge estava reformando o telhado de um galpão que tem em seu okarapy onde são guardados o trator que fica na região do Palmeiras e também suas ferramentas. Desse modo, a parentela extrapola o parentesco baseado apenas na consanguinidade. E as relações dentro da categoria de análise proposta (grupo de suporte) extrapolam o parentesco concreto se expandindo também para o parentesco virtual, desse modo, apresentando em seu caráter econômico e político o englobamento, em muitos momentos, das relações consanguíneas pela afinidade ou pelo parentesco virtual. Como demonstra Pereira (2004) em sua tese sobre os Kaiowa: “[...] pertence à parentela quem se identifica com o grupo, sendo que essa identificação passa necessariamente pelo reconhecimento da posição de liderança de seu cabeça” (Pereira, 2004, p. 102). Portanto os grupos de suporte do Pirakua não são formados apenas por relações de parentesco consanguíneo. No entanto, é necessário ponderar o fato de que a parentela se 72 Definida por Viveiros de Castro (2006) como “afinidade potencial”. 94 apresenta como referência do grupo, muitas vezes identificado pelo nome de seu cabeçante, como um traço de diferenciação entre pessoas que compõe os grupos de suporte econômico e político diferentes. Em uma análise sucinta das relações cotidianas, não é possível afirmar que na política interna do Pirakua essas relações políticas e econômicas se deem baseadas na ideia de sociedades ameríndias “igualitárias” (Clastres, 2003; 2004). Com o passar dos dias, na convivência, passa a ser cada vez mais evidente que a sociedade Kaiowa é extremamente fragmentada, e nesse ponto é possível concordar com Pierre Clastres (2003): “contra o uno”, ou seja, contra a formação de um poder institucional, separado da sociedade. No entanto, é possível perceber um intenso “jogo” de disputas por espaços privilegiados de relacionamento dentro da parentela, na relação entre parentelas e nas relações com o entorno da sociedade. Esse jogo ou essas disputas marcam uma forte hierarquia, deixando evidente que a capacidade de mobilização do cabeçante de um determinado grupo com a sua própria parentela e com os seus aliados marca o ponto possível de assumir uma ideia de unidade articulada através da representação de um grupo de suporte econômico e político ou até mesmo, em momentos oportunos, da ideia de tekoha, principalmente em reuniões do conselho Aty Guasu (grande reunião de lideranças de diversas TI e acampamentos Kaiowa), em negociações com órgãos governamentais (como a FUNAI, SESAI, universidades) e não governamentais. Desse modo, os grupos de suporte têm uma configuração fluída, porém hierarquizada, pois existe um “polo agregador”, representado pelo casal de cabeçante da parentela que centraliza relações sob si e tenta manter e ditar relações de produção, consumo e troca que em momentos precisos, onde há agregação (como no caso das festas) testa o prestígio e reconhecimento como pessoas que lideram um grupo. E em casos de cisão – afinal não podemos encarar a formação desses grupos de suporte apenas na perspectiva da composição – e desentendimento, a capacidade da chefia é em muito testada pelo grupo que, de certo modo, aguarda que a chefia se utilize do prestígio e do reconhecimento que tem para pacificar (principalmente através da fala) e reorganizar as relações no interior do grupo. 95 Portanto, ao contrário do que foi aventado por Clastres (2003), que a sociedade existe e antecede o líder e este trabalha em prol do desejo e da vontade daquela, na verdade, constatamos, no caso particular do Pirakua, que o líder73 é aquele que cria/funda a sociedade. 4.3 O Líder e o Prestígio Político no Caso Particular do Pirakua O papel da liderança política na sociedade do Pirakua constitui-se muito mais através de um status de “prestígio”, como pensou Pierre Clastres, do que de “poder”. Para Clastres “prestígio não significa poder, e os meios que o chefe detém para realizar sua tarefa de pacificador limitam-se ao uso da palavra” (2003, p. 223). Sendo perceptivelmente de incumbência da pessoa que detém o status de prestígio, de chefia, a tarefa de mediar conflitos entre pessoas, famílias ou parentelas principalmente pelo uso de suas habilidades discursivas. É necessário então fazer uma reflexão: o que seria esse status de prestígio? De que maneira ele se amplia ou se perde? E, finalmente, quais elementos/coisas/qualidades estão ligadas ao acúmulo de prestígio por determinadas pessoas que ocupam cargos de liderança entre os Kaiowa? 4.3.1 A Chefia Kaiowa e o Prestígio Inicialmente já é possível pensar que o primeiro questionamento exposto acima (o que seria esse status de prestígio?) está diretamente relacionado à ocupação de uma posição de distintividade em relação à sociedade. Basicamente esse “ocupar” um lugar socialmente distinto, nesse caso, se dá por um processo dialético. Dialético pelo fato que, em um primeiro 73 Quando falamos em um líder ou em uma chefia temos que nos atentar para o fato de que a pessoa que têm o status de chefia, na maioria dos casos entre os Kaiowa um homem, na realidade só pode ocupar esse papel estando casado. Portanto, a liderança ou chefia é na realidade sempre a “síntese” de um casal que encabeça um grupo. 96 momento – diferentemente do que foi postulado por Pierre Clastres – a sociedade não préexiste a chefia, é necessário que essa sociedade seja criada e é a chefia, que se torna chefia por ter como papel fundamental a criação de seu próprio grupo de liderados. Já em um segundo momento para que essa chefia continue a ser chefia é preciso que o grupo o reconheça e o legitime como tal e isso se dará através do prestígio, do apreço social, que o grupo tem por essa pessoa-líder. Para que a chefia mantenha um grupo entorno de si, é preciso muita habilidade. Inicialmente é enfrentado o desafio de criar o grupo e em seguida é preciso que ele seja mantido no tempo.Nesse segundo ponto é possível concordar com as colocações feitas por Pierre Clastres em seu ensaio sobre a filosofia da chefia ameríndia. Cabe ao chefe ser um apaziguador, ser generoso com os bens que consegue através do seu trabalho de representante do grupo, ter a responsabilidade da palavra, porém, não de qualquer palavra, sim de uma palavra que faz a reflexão que o grupo quer ouvir, que diagnostica os problemas e capaz de convencer, pois como bem colocou Clastres, convencer através da coerção, da ação de mando-obediência, é inaceitável, e isso é válido também no caso do Kaiowa do Pirakua. Tanto Pierre Clastres quanto a pesquisadora Graciela Chamorro (2008) nos indicam caminhos quando discutem a palavra como um elemento essencial para o reconhecimento dessa liderança perante sua sociedade. Clastres afirma que “Na obrigação exigida ao chefe de ser homem de palavra transparece, com efeito, toda a filosofia política da sociedade primitiva.” (Clastres, 2003, p. 171). A teoria de Clastres, de que é o “chefe” quem detém a obrigação e a responsabilidade pela manutenção da palavra nas sociedades indígenas, ela – a palavra – apresenta-se como elemento essencial da cosmovisão dos povos Guarani e está intrinsecamente relacionada não só ao mundo material, mas também ao mundo extraterreno. Já Chamorro (2008), quando escreve sobre a cosmologia Guarani, complementa e dá foco para o grupo estudado neste trabalho traduzindo os lexemas referentes à palavra da seguinte maneira: Uma das associações mais frequentes com a qual se costuma traduzir os lexemas básicos (ñe’ẽ e ayvu) é palavra-alma, que é a palavra divina e divinizadora. (...) mas os termos em questão na associação palavra-alma são ñe’ẽ e ayvu, que podem tanto ser traduzidos como ‘palavra’ como por ‘alma’ com o mesmo significado de ‘minha palavra sou eu’ ou ‘minha alma sou eu’. (Chamorro, 2008, p. 57/58) 97 Ñe’ẽ é uma das distinções do conceito de alma realizado pelos Kaiowa em Mato Grosso do Sul e também por outros grupos Guarani. Ñe’ẽ seria a alma espiritual, correspondendo à palavra-alma, e se manifesta através da fala, tendo sua morada durante a vida das pessoas na garganta, e se manifestando através da fala (Melià; Grümberg; Grümber, 2008). Nesse mesmo sentido, Friedl Paz Grümberg complementa a importancia da palavra e sua ligação com o sagrado: En principio los guaraní distinguen dos tipos de alma. El alma espiritual ñe’e y el alma corporal ã. Los seres humanos poseen las dos durante toda su vida en la tierra. El alma espiritual se expresa por medio de la palabra, se ubica en la garganta y después de la muerte sale del cuerpo para regresar directamente a su ‘morada celestial’ que se encuentra en uno de los siete niveles celestiales. (Grümberg, 2003, p.02) Seguindo este caminho da importância da palavra, pretendo aqui levar adiante os debates referentes à atuação da liderança Kaiowa, tomando como ponto de partida a importância da palavra na atuação da liderança e na permanência dessa liderança como chefia, pois enquanto esta puder realizar a manutenção desse elemento, essencial no fazer cotidiano da política entre os Kaiowa do Pirakua, permanecerá em uma posição de prestígio em relação ao grupo. Pois o simples fato de pedir a palavra, por exemplo, em uma reunião por qualquer motivo que seja na aldeia, já é uma grande demonstração da posse desse status de prestígio. Portanto, a reflexão possível é a seguinte, essa “posse” na realidade acaba sendo posse por doação do grupo, doação do espaço para a fala e do respeito (e da responsabilidade) que o grupo apresenta durante a fala. Quando uma liderança esta falando, por mais que pessoas pertencentes a grupos não aliados dessa liderança estejam ouvindo e não concordem com o posicionamento jamais há uma situação de interrupção abrupta ou de retruque com truculência. Durante o tempo que permaneci no Pirakua foi possível acompanhar situações como essa, onde percebi claramente que o posicionamento de um grupo dos “ouvintes” era outro ao da liderança que estava falando, porém, no entanto, aguardaram que a fala terminasse para assim ser conduzido o uso da palavra por outra chefia que não necessariamente contrariava a fala anterior, mas sim buscava contornar os argumentos. 98 É possível perceber também o esvaziamento durante uma fala que não agrada algum grupo. Para suscitar melhor essa afirmação exponho uma breve observação feita durante o trabalho que desenvolvi como assistente de pesquisa em um levantamento de percepção de direitos no ano de 201174 na Reserva Indígena de Dourados. Na referida experiência, estávamos (eu mais o grupo que compunha o projeto) realizando um grupo focal com lideranças na aldeia Bororó, na oportunidade os participantes do grupo focal falavam sobre as suas perspectivas sobre diversos assuntos de interesses para a elaboração do relatório (saúde, segurança, alimentação, moradia, educação, etc.). Era perceptível a presença de ao menos dois grupos bastante distintos na reunião. Ao perceber que um dos grupos (o que estava em maior número) “monopolizou” a palavra, integrantes do outro grupo de lideranças não interferiram nas falas, no entanto, aos poucos foram esvaziando o local, até que ao fim do encontro do grupo focal restará apenas um dos grupos de liderança, que, no caso, era composto pelo capitão, no momento representado pelo vice. A liderança não se relaciona com a sua sociedade pelo estabelecimento de um aparato de poder coercitivo. O que possibilita a sua atuação é o prestígio, ou seja, o grau de consideração que suas palavras, ações e representações podem alcançar perante a sociedade. No entanto, a garantia de permanecer líder, ou de permanecer como um tendota (aquele que vai à frente), não se resume apenas no uso da palavra, é preciso considerar também a importância da demonstração e da manutenção de uma série de habilidades qualitativas que devem ser colocadas à serviço da sociedade. Seria um erro crer que a atuação da liderança se efetiva como um exercício de aumento de poder – principalmente se isso pressupor controle da violência e do mando de ordem na perspectiva da coerção – , sendo importante, nessa perspectiva, denominar essa atuação como uma busca, ou como o aumento e a manutenção do prestígio perante o grupo. Da boca do chefe escapam não palavras que sancionariam a relação de mando-obediência, mas o discurso da própria sociedade sobre ela mesma, através do qual ela se proclama comunidade indivisa e desejosa de perseverar neste ser indiviso. (Clastres, 1982, p. 108-109) Um dos atributos da chefia é fazer o grupo “aparecer”, visto que nem a liderança, nem o grupo já estão dados no universo, mas precisam ser criados. E nesse processo de construção 74 UNICEF. Análise Comparativa do Grau de Conhecimento e Realização de Mulheres e Crianças Indígenas Em Dourados e Alto Solimões. Brasília, 2011. [no prelo] 99 é a chefia que acaba se evidenciando como uma espécie de “polo agregador”, encabeçando sua parentela e sendo reconhecido por outras parentelas e pessoas aliadas e afins como tal. Isso se evidenciou em alguns momentos em campo e também pode ser verificado nos trabalhos etnográficos de Pereira (1999; 2004), sendo comum ouvir-se que uma pessoa é da parentela de uma determinada pessoa, como, dizem os Kaiowa “fulano kuera”75. Nesse movimento de criação realizado pela chefia ameríndia é comum entre os Kaiowa que, na política cotidiana, sua voz afirme “sua unidade frente às outras unidades” (Clastres, 1982, p. 108), ou como afirma Sztutman: Embora destituído de poder político como mando e coerção, o chefe possui um papel fundamental: criar uma aparência de unidade – identidade – capaz, de sua parte, de eclipsar a multiplicidade dos pontos de vista divergentes que poderiam irromper a todo momento. Nota-se que eclipsar não significa anular, tampouco aniquilar, pelo contrário. Não se trata de dissolver a heterogeneidade que compõe o social, mas dar a ela um ar de homogeneidade. (Sztutman, 2005, p. 255) [destaques meus] Essa atividade de representação de uma unidade, principalmente de falar pela ideia de unidade “da” e “para” a sociedade requer muita habilidade, muito “jogo de cintura” do portador da fala, pois, necessariamente o líder precisará conciliar e apaziguar os diferentes conflitos que a comunidade apresenta para se manter na posição que ocupa e que é destinada a ele pelo corpo do social. Gallois (1988) também faz algumas contribuições nesse sentido e quando em suas reflexões sobre a constituição dos grupos políticos entre os Waiãpi expõe a relevância de se atentar para a importância da palavra, que funda, unificando e dando sentido e identidade para o grupo – mesmo a partir de uma sociedade de composição evidentemente heterogênea. Esse caráter de unidade só é possível com um intenso trabalho da chefia de abrandamento dos conflitos. Um contínuo trabalho de pacificação das animosidades que se desenvolvem no interior da sociedade: A estabilidade dessa unidade, enquanto associação de diversas famílias ligadas por laços de consanguinidade e de afinidade, depende do equilíbrio nas relações entre posições muitas vezes conflituosas: equilíbrio que deve ser garantido pelo chefe, cuja a função é justamente ‘falar e apaziguar’. (Gallois, 1988, p. 22) 75 O termo kuera pode ser compreendido como coletivo de algo. 100 Portanto, a chefia, através de seu prestígio, de sua posição assimétrica de destaque em relação às demais pessoas que compõe a sociedade, funda e da forma a um grupo – aqui entendido como grupo de suporte – ao qual ele “deve” um constante desempenho para permanecer como tal. 4.3.2 – Atributos Qualitativos da Chefia Ameríndia A partir de Pierre Clastres uma preocupação se evidenciou durante o desenvolvimento desta dissertação: compreender por quais atributos qualitativos a chefia ameríndia – nesse caso Kaiowa – precisa se articular para ser considerada uma liderança no momento contemporâneo. Assim, inevitavelmente é necessário se atentar para o processo de contato pelo qual essas etnias passaram, desde o processo de esparramo, bastante estimulado pela concessão de terras a Cia Matte Larangeira (final do século XIX) e depois, pelo incentivo na ocupação dos territórios do Centro-Oeste brasileiro nas décadas de 1940 e 1950 (criação da CAND em 1943), concomitante a um forte processo de confinamento realizado pelo Estado a essas populações, o qual se intensifica com o fim das derrubadas de matas e o incremento da mecanização da produção agrícola a partir da década de 1970, e em um outro momento pelos movimentos de organização dessas etnias com o intuito de reclamar e retomar suas terras tradicionais a partir da década de 1980 em diante, que organiza processos próprios de luta e resistência – como é o caso do Pirakua. Desse modo, a chefia, basicamente, necessita estabelecer um forte domínio sobre os conhecimentos do mundo não indígena, ter um forte apreço valorativo e conhecimento das tradições mantendo um equilíbrio entre ambos os conhecimentos; ser generoso e dedicado ao seu povo; ser paciente; saber falar, levando em consideração sempre os parâmetros e os desejos de seu grupo; realizar um trabalho de pacificação nos conflitos da comunidade; Encontramos alguns desses traços nos escritos de Pierre Clastres, que, no entanto, apresentam em campo limites que o extrapolam suas colocações, que não “perdem” sua 101 validade, porém servem como parâmetro para iniciar a reflexão sobre tal tema que aqui se apresenta seguido de uma série de outros apontamentos feitos em outras etnografias. Desse modo, Clastres afirma sobre tais atributos qualitativos: Em um texto de 1948, Robert Lowie, analisando os traços distintivos do tipo de chefe anteriormente evocado, por ele denominado titular chief, isola três propriedades essenciais do líder índio, cuja recorrência ao longo das duas Américas permite apreender como condição necessária do poder nessa região: 1] O chefe é um “fazedor de paz”; ele é a instância moderadora do grupo (...) 2] Ele deve ser generoso com seus bens, e não se pode permitir, sem ser desacreditado, repelir os incessantes pedidos de seus “administrados”. 3] Somente um bom orador pode ter acesso a chefia. (Clastres, 2003, p. 47) A antropóloga Ana María Gorosito Kramer (2005) indica, em sua pesquisa realizada entre os M’bya de Misiones na Argentina, outros elementos qualitativos da liderança que podem ser relacionados como “complementares” aos que foram expostos por Clastres. Sobre a liderança política (ruvicha) Gorosito Kramer (2005) afirma que necessariamente essa – a liderança política – é encarregada de: 1) organizar a vida material e as atividades cotidianas; 2) gerenciar conflitos internos; 3) negociar com a sociedade nacional interesses do grupo ou da comunidade; 4) conhecer a tradição e ter domínio sobre os valores religiosos; 5) realizar um trabalho constante de consenso no interior do grupo; 6) ter domínio sobre a língua os códigos da sociedade não indígena (oral e escrita) para poder, por exemplo, realizar a tradução e interpretação e elaboração de documentos. Segundo Wilde (2009), descrições dos jesuítas do século XVII já continham informações sobre a forma de atuação da liderança e da forma como se estabelecia a autoridade entre os povos indígenas, onde são muito valorizadas as relações que estas – lideranças – estabelecem com a sociedade através, principalmente, de relações de parentesco e alianças. Tanto a família extensa quanto um grupo de famílias extensas e em um nível mais amplo o tekoha – no caso Kaiowa e Guarani - compunham esferas políticas diferentes entre si e autônomas: Cada uno de estos niveles (ruvicha o mburuvicha) que mantenía relaciones de alianza o conflicto con los demás, siendo flexible su posición en la que 102 podrían acumular o restar prestigio mediante la agregación-desagregación de nuevos miembros para su grupo. (Wilde, 2009, 101) Para uma maior elucidação é possível recorrer às reflexões feitas por Lévi-Strauss em sua obra Tristes Trópicos na parte destinada ao grupo Nambikuara em Mato Grosso. Em seu artigo “Homens, mulheres e chefes” ele afirma que o “prestígio pessoal e a aptidão para inspirar confiança” (2010, p. 293) se constituem como elementos essenciais da política diária na sociedade Nambikuara. Se atentando também para a importância da liderança ter um conhecimento sobre o território que o grupo ocupa – o que no caso dos grupos Nambikuara se constitui como algo de relevância, principalmente pela prática de ocupação nômade em um vasto território de perambulação. Desse modo, acaba ficando sob a responsabilidade da chefia decidir, por exemplo, quais os cultivos que devem ser feitos e em qual lugar serão feitas as expedições de coleta e de caça. Só alguém com muitos conhecimentos das possibilidades territoriais e do entorno que compõe o território é capaz de liderar atividades de subsistência, passando a confiança que o grupo necessita para continuar o seguindo. A liderança, como já indicado, aparece nos trabalhos de Clastres como portadora de alguns necessários atributos necessários para a manutenção desse status de prestígio, que não podem ser observada sem uma correlação de trocas consequentes ao “cargo” como Clastres afirma, tem como cerne conter em si um “poder esvaziado”, sem voz de comando (mandoobediência), em uma relação que não se baseia na noção de “poder” como controle de instrumentos coercitivos. Ficando esse líder então na posição de fiel depositário da sociedade pela posição diferenciada que ocupa, confiada pela sociedade à pessoa do líder na forma de prestígio, ou seja, de respeito pela suas capacidades de interpretação, tradução e pelos conhecimentos que tem sobre como manter o grupo coeso apesar das constantes contendas que surgem no convívio social. A chefia em troca dessa posição de prestígio tem que recompensar com palavras, interpretações, representações, e em momentos de maior importância para o grupo terá o papel de exprimir reflexões sobre acontecimentos que ocorreram ou que estão ocorrendo na comunidade. Sobre a necessária capacidade de diagnosticar acontecimentos que dizem respeito direto ao grupo atributo valorado à chefia, cabe um parênteses para uma reflexão feita durante uma observação. No ano de 2011 tive a oportunidade de passar um período curto, de 103 apenas três dias, na aldeia Tenondé Porã do grupo Guarani M’bya localizada no município de São Paulo/SP. Na oportunidade, possibilitada pela generosidade do colega e também mestrando em antropologia Jan-Arthur Eckart na época, pude acompanhar os encontros noturnos que aconteciam na casa de reza (opy). Segundo este colega os encontros na opy são momentos de grande importância para a manutenção das relações de reciprocidade e dos laços sociais, voltados, principalmente, para práticas de cantos, rezas, conversas e brincadeiras. Em uma dessas oportunidades de estar na opy pude observar um momento onde as lideranças da comunidade falavam sobre uma festa que havia ocorrido e que, de certa forma, entrava em desacordo com a imagem que gostariam que fosse passada da comunidade para a sociedade externa. As lideranças, uma a uma, fizeram falas trazendo a tona uma discurso crítico e moralizante que desaprovava as músicas que tocaram na festa e a presença de bebidas alcoólicas, ressaltavam a importância de não deixarem que esses elementos da cultura no juruá (não indígena) passassem a fazer partes dos próximos momentos de confraternização da aldeia pois isso poderia desmoralizar o grupo perante a sociedade envolvente a área que ocupam. Lévi-Strauss ao escrever a Introdução à obra de Marcel Mauss aponta que a troca se constitui como um elemento necessário às relações entre indivíduo e sociedade, sendo a troca sempre fruto de uma construção. Essa troca não está posta para o etnólogo, necessitando a esse descobrir uma “fonte de energia que opere sua síntese” (Mauss, 2003, p. 34). Essa troca não é possível de ser visualizada simplesmente nos fatos, só a observação empírica não é suficiente para fornecer às relações de trocas, mas sim “três obrigações: dar, receber e retribuir” (Mauss, 2003, p. 33). A troca não é um edifício complexo, construído a partir das obrigações de dar, receber e retribuir, com o auxílio de um cimento afetivo e místico. É uma síntese imediatamente dada ao e pelo pensamento simbólico que, na troca como em qualquer outra forma de comunicação, supera a contradição que lhe é inerente de perceber as coisas como os elementos do diálogo, simultaneamente relacionadas a si e a outrem, e destinadas por natureza a passarem de um a outro. (Lévi-Strauss In Mauss, 2008, p. 40-41) É possível perceber que as apreciações de Lévi-Strauss ao escrever a introdução à obra de Marcel Mauss apontam uma importante nuance do trabalho de campo na pesquisa 104 etnológica. A “dádiva” da troca não existe objetivamente, como uma propriedade física dos bens trocados. Pois, os bens trocados extrapolam os objetos físicos – como é o caso da relação que a liderança tem com a “obrigação da fala” –, são trocadas dignidades; cargos; privilégios; prestígio e etc.E, dessa maneira, pela produção etnográfica e em algumas experiências de campo que tive a oportunidade de incorrer que é possível apontar a liderança política relacionada como uma liderança de parentela, aparentemente como um “polo agregador” de outros parentes e pessoas afins em torno de suas qualidades de chefia. No trabalho de Gallois (1988) com os Waiãpi, a liderança se constitui e é evidenciada como “polo agregador” pelo fato do líder [deter] a primazia sobre a escolha dos sítios agrícolas,sobre os percursos de caça e coleta, justamente por ter ele ‘reconhecido’ a área “ocupada pelo grupo” (1988, p. 23), onde Gallois complementa: [...] prestígio acumulado pelos chefes em função de sua qualidade de ‘fundador’ e de ‘organizador’ nas atividades de subsistência, se relaciona diretamente com os laços de afinidade e, sobretudo, é reforçado pela regra de residência uxorilocal observada pelos Waiãpi. (Gallois, 1988, p. 23) A partir destas colocações de Gallois é possível fazer algumas considerações sobre os Kaiowa. Como já foi exposto o status de prestígio da chefia se dá por conta da sua condição de cabeçante da sociedade, no caso dessa dissertação, pela sua capacidade de criação e das articulações para a manutenção de um grupo de suporte. No entanto, em relação a necessária função desempenhada pelo parentesco, nesse processo, o grupo Kaiowa se diferencia pois não existem regras (como no caso Waiãpi) de residência nem prescrições de matrimônio, sendo determinante para a definição da residência pós-marital a capacidade de agregação desempenhada pelo cabeçante de um ou do outro grupo dos cônjuges. Nesse caso a agregação ou desagregação será determinada entre outras coisas pela quantidade de prestígio acumulado pelo cabeçante, ou, no caso, do casal de referência do grupo de suporte. Ao pensarmos a relação entre o líder e seu grupo, percebemos que o relacionamento vital da estrutura política se dá entre o líder e sua aldeia (Rivière). Sendo que ambos acabam sendo intimamente associados em uma relação de dependência, e dessa forma, a sociedade (na forma de aldeia) acaba dependendo, para a sua existência, da sobrevivência do líder. Que em muitos casos acaba dando reconhecimento linguístico para o local de ocupação: 105 A aldeia é referida como lugar de determinado líder. [...] por ocasião de sua morte a aldeia normalmente é abandonada.” (2001, p 106) Para isso, para um bom relacionamento entre o líder e a aldeia, é necessário que a pessoa que está na chefia corresponda a uma série de atributos que são medidos pelos outros integrantes da aldeia de maneira qualitativa para a ocupação do cargo, na forma de competências. Uma aldeia é acima de tudo um fenômeno social, e uma liderança bemsucedida deriva da capacidade de lidar com a rede social que constitui a aldeia e a comunidade. Isso exige a posse de determinadas competências. (Rivière, 2001,p. 106) Rivière elabora uma lista dessas qualidades/competências que são requeridas ao líder. As quais serão apresentadas logo abaixo de forma resumida, de maneira a facilitar a apreensão, pois é através delas que a permanência da aldeia se torna possível: 1. Comando de atividades: a liderança tem que buscar conciliar e favorecer a realização de atividades pelo seu próprio exemplo, sempre buscando uma postura que não se paute na distribuição de ordens e sim de exemplos; 2. Competência para formular julgamentos: é papel da liderança organizar e dar andamento a questões rotineiras de modo a saber determinar, por exemplo, a construção e o planejamento da aldeia e dos roçados; assim como auxiliar na composição do grupo nos momentos onde ocorrem desavenças e brigas por parte das demais pessoas que compõem a aldeia; 3. Falar bem: tanto “para fora” (discursos energéticos e diplomáticos) com a finalidade de representar a sociedade como uma totalidade una, quanto “para dentro” (discursos persuasivos) com a finalidade de convencer a sociedade a realizar atividades comunitárias, assim como a obrigação de apaziguar e mediar conflitos; 4. Generosidade: a liderança deve participar ativamente das redes de relacionamento de troca de bens, alimentos, assim como a recepção de visitantes ocasionais da aldeia; 106 5. Deter conhecimentos específicos: O líder deve ser um profundo conhecedor sobre os rituais, mitos, xamanismo e sobre o que diz respeito à tradição. Como Clastres bem ressalta em sua filosofia da chefia indígena (2003) o líder nas sociedades sem Estado (ameríndias) jamais se efetiva através do domínio de um poder coercitivo ou em relações estabelecidas através de comandos baseados em uma relação de mando-obediência. Algo que o líder de modo algum se pode permitir é ser autoritário. O líder não tem meios de impor a sua vontade aos outros. Tendo em vista a baixa tolerância em relação a coerção. (Rivière, 2001, p. 106) Porém, na prática é realmente muito difícil que uma pessoa que esteja ocupando um cargo de representação e que seja possuidora de uma série de conhecimentos sobre o passado e sobre a tradição não acabe extrapolando alguns limites. Para isso Rivière aponta que existem duas exceções para o caso do líder se impor através da coerção. A primeira exceção demonstrada por Rivière, no caso da Guiana, se relaciona a tolerância pela proximidade de parentesco com a liderança, quanto mais próximo o parentesco com o líder mais fácil será a possibilidade de perdoar suas falhas, sendo assim torna-se menor a possibilidade se considerar que as suas ações sejam autoritárias. Para este ponto é interessante notar que na maioria das sociedades indígenas a liderança se constitui como uma pessoa agregadora de parentes76, o que no caso das sociedades ameríndias guianenses se comprova pela forma preferencial de moradia uxirilocal77. A segunda exceção a forma de poder coercitivo é baseada nas relações de gênero e de geração, pois o relacionamento entre homens e mulher e adultos e crianças “são autoritários até certo ponto e em ambos os casos os primeiros [homem; adulto] se encontram em condições de dizer aos últimos o que devem fazer” (Rivière, 2001, p. 107). 76 Cf. PEREIRA, Levi Marques. Imagens Kaiowá do Sistema Social e seu entorno. São Paulo, SP: Tese de Doutorado, Antropologia Social da USP, 2004.; GALLOIS, Dominique Tilkin. O movimento na cosmologia Waiãpi: criação, expansão e transformações no universo. São Paulo: Tese de doutorado, Antropologia Social da USP, 1988. 77 O termo refere-se ao tipo de habitação praticada após o matrimonio, que no caso das sociedades guianenses se dá de forma uxorilocal, ou seja, após o casamento o esposo vai morar junto a família de seu sogro. 107 Um ponto importante desses processos de agregação e desagregação que pode também ser pontuado como um atributo qualitativo de responsabilidade da chefia é sua capacidade de articulação “para fora”, seja, no caso do Pirakua, na articulação com pessoas da cidade (prefeito, vereadores, comerciantes, gerentes de fazenda, etc.) ou na apropriação e distribuição de cargos e recursos advindos da presença do Estado para a Terra Indígena. Desse modo a chefia contemporânea Kaiowa se constitui basicamente como alguém com atributos, ou seja, com uma atuação talvez muito parecida, estruturalmente falando, a atuação de uma chefia em tempos passados, porém, no entanto, a liderança contemporânea necessita hoje dominar conhecimentos da sociedade nacional e traduzi-los para as demais pessoas do seu grupo. 108 CONSIDERAÇÕES FINAIS A chefia ameríndia constrói-se por caminhos outros aos quais estamos habituados quando pensamos a política e o poder nas sociedades não indígena. No caso específico dos Kaiowa e Guarani e do Pirakua percebemos que essa chefia só se torna chefia quando consegue, através de um série de habilidades políticas específicas, tornar-se uma pessoa com traços distintivos em relação ao grupo que só pode ser sustentado com o prestígio repercutido pelas suas ações. Diferente do que pensou Pierre Clastres a sociedade não pré-existe a liderança, no caso Kaiowa ela (a liderança) necessita primeiro formar um grupo que, de forma centrípeta, permeará o entorno de suas decisões enquanto pessoa que dá um caráter de unidade para determinado grupo, seja ele um núcleo parental mais restrito, estendido ou mesmo em uma abrangência que pode chegar ao tekoha (tekoharuvicha) ou a ideia de povo Kaiowa e Guarani. No entanto, devemos ponderar que a perspectiva apresentada por Pierre Clastres de que o poder não é concentrado na chefia e sim no corpo do social também se conforma ao que pôde ser observado em campo, pois como bem coloca Etienne de La Boétie em sua obra o Discurso da Servidão Voluntária (1982 [1574]) não existe servidão sem voluntariado, ou seja, não existem lideres sem que a sociedade (ou parte dela) o reconheça como tal. No caso dos Kaiowa essa servidão pode ser observada, no entanto, jamais é operada pela liderança de modo a coagir seus liderados em uma relação de mando-obediência. Pouco antes de terminar este texto tive a oportunidade de um rápido retorno ao Pirakua, passei apenas uma noite e um dia na TI. No entanto, esse tempo foi suficiente para perceber determinadas características de um movimento pendular (entre forças centrípetas e centrífugas) agindo na política da terra. Cerca de dois dias antes de minha chegada havia sido feita uma reunião entre os moradores da TI, nessa reunião foi realizada a troca da liderança principal, ou como os dizem os Kaiowa: do capitão ou da liderança oficial. Apesar do pouco tempo que permaneci na terra tive oportunidade de conversar com diversas pessoas que já havia conhecido durante o período maior do trabalho de campo em 2012. Obviamente os discursos se polarizavam em dois, os que eram a favor da troca de liderança e os que eram contra. 109 Aqueles com quem conversei que se demonstraram contra a troca se manifestavam dizendo que o trabalho da liderança não é fácil que o antigo chefe era muito prestativo para a comunidade e que a mudança foi equivocada, pois a nova liderança não tinha experiência e, desse modo, não conseguiria desempenhar a função como a liderança anterior. Assim, acabaria não sendo uma boa chefia, pois tinha poucos conhecimentos para desempenhar esse papel. No entanto, as pessoas que se posicionavam dessa maneira tinham, com certeza, um grau maior de tolerância às ações do líder que acabara de ser “afastado”, pois eram parentes próximos (sogra, irmão e cunhado) como bem notou Rivière em sua obra O indivíduo e a Sociedade na Guiana: um estudo comparativo da organização social ameríndia (2001). Já as pessoas com quem conversei que se demonstraram a favor da mudança diziam que a troca foi necessária, pois a antiga liderança já não estava mais cumprindo o seu papel de redistribuir as coisas que conseguia trazer de fora como representante da aldeia Pirakua (esse é um tipo de acusação bastante recorrente quando os Kaiowa querem desprestigiar alguma de suas chefias). O fato é que as pessoas que se demonstravam insatisfeitas, apesar dos grandes esforços do ex-capitão para permanecer como o principal, conseguiram se organizar para retirar dele o papel que ocupava. As principais acusações que ouvi foram que o ex-capitão tinha roças grandes demais, havia comprado um carro e sua casa era boa demais. O movimento é constante na política Kaiowa e a ausência de uma instituição política de grande alcance, permite muita autonomia e dinamicidade para que, no caso Kaiowa, cada parentela e cada grupo de suporte tenha muita autonomia para tomar decisões, seguindo assim por um caminho de composição e decomposição constantes do social através da política. 110 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRAND, Antonio J. O impacto da perda da terra sobre a tradição Kaiowá/Guarani:os difíceis caminhos da Palavra. Tese de doutorado, História da PUC/RS, 1997, 382 p. BRAND, Antonio J.; COLMAN, Rosa S. e COSTA, Reginaldo B.. Populações indígenas e lógicas tradicionais de Desenvolvimento Local. Interações(Campo Grande) [online]. 2008, vol.9, n.2, pp. 171-179. BRASIL. Decreto Presidencial de 13 de Agosto de 1992. Título de Homologação da Terra. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasilia, DF, 14 de agosto de 1992. BRIGHENTI, Clovis Antonio. 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