JOSÉ HENRIQUE PRADO
ATRAVÉS DO PRESTÍGIO: ATUAÇÃO DA CHEFIA AMERÍNDIA
ENTRE OS KAIOWA DA TERRA INDÍGENA PIRAKUA
DOURADOS – 2013
JOSÉ HENRIQUE PRADO
ATRAVÉS DO PRESTÍGIO: ATUAÇÃO DA CHEFIA AMERÍNDIA
ENTRE OS KAIOWA DA TERRA INDÍGENA PIRAKUA
Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Antropologia da Universidade
Federal da Grande Dourados, como parte dos
requisitos finais para a obtenção do título de
Mestre em Antropologia, na área de
concentração em Antropologia Sociocultural.
Orientador: Prof. Dr. Antonio Hilário Aguilera
Urquiza.
Co-Orientadora: Profa. Dra. Beatriz dos
Santos Landa.
DOURADOS – 2013
1
999
V123e
Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Central - UFGD
Prado, José Henrique.
Através do Prestígio: atuação da chefia ameríndia entre os Kaiowa
da Terra Indígena Pirakua / José Henrique Prado. – Dourados, MS :
UFGD, 2013.
116p.
Orientador: Prof. Dr. Antonio Hilário Aguilera Urquiza
Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Universidade Federal da
Grande Dourados.
1. Índios – Mato Grosso do Sul. 2. Kaiowa. 3. Liderança. 4. Chefia
Ameríndia. 5. Pirakua.
2
JOSÉ HENRIQUE PRADO
ATRAVÉS DO PRESTÍGIO: ATUAÇÃO DA CHEFIA AMERÍNDIA
ENTRE OS KAIOWA DA TERRA INDÍGENA PIRAKUA
DISSERTAÇÃO PARA OBTENÇÃO DO GRAU DE MESTRE
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA – PPGAnt/UFGD
Aprovado em ______ de __________________ de _________.
BANCA EXAMINADORA:
Presidente e orientador:
Antonio Hilário Aguilera Urquiza (Dr., UFMS) _____________________________________
2º Examinador:
Levi Marques Pereira (Dr., UFGD) ______________________________________________
3º Examinador:
David Victor-Emmanuel Tauro (Dr., UFMS) _______________________________________
3
À memória de meu avô, Aparecido de Oliveira
Prado, e à comunidade Kaiowa do Pirakua.
4
AGRADECIMENTOS
Ao terminar essa dissertação me deparo com este campo destinado aos
agradecimentos. Sem dúvida esta é uma das mais desafiadoras tarefas do trabalho, pois são
muitos os nomes de pessoas e instituições que eu gostaria de citar aqui.
Primeiramente agradeço a minha família, pois sem o apoio e o amor de todos jamais
teria conseguido realizar este trabalho. Meu muito obrigado bilateralmente aos meus avós e a
toda a parentela. Especialmente agradeço a minha Mãe, Marina, e a meu Pai, Tadeu; sei o
tamanho de seus esforços para que eu conseguisse realizar este sonho. Obrigado por sempre
acreditarem em mim e pelo carinho e amor que me dedicaram mesmo a milhas de distância.
Agradeço imensamente ao Povo Kaiowa e Guarani, sem a permissão e amizade de
muitos de vocês eu jamais teria conseguido superar esse imenso e delicado desafio de
compreensão.
Expresso a minha gratidão a CAPES pela bolsa de estudos que possibilitou a
realização dessa pesquisa e do mestrado.
As pessoas que eu gostaria de agradecer são muitas, e não quero esquecer de nenhuma
delas. Por isso dedico aqui meus agradecimentos a todos que passaram pela minha vida até
este momento, e que de alguma forma, direta ou indiretamente, me ajudaram nessa trajetória.
A todas/os de Sorocaba, minha cidade natal, onde tudo começou. Especialmente a
amiga Andressa Bella, aos amigos Nilton Martins e André Menk. Agradeço também a minha
irmã, Paula Prado Arriba e ao meu cunhado, Luís Arriba, que há poucos dias deram as nossas
famílias a felicidade da renovação e da continuidade com o nascimento da pequena Beatriz.
A todas/os de Campo Grande, cidade que aprendi a amar nos últimos anos,
especialmente a Fernanda Serafim, Aretusa Carolina Brasil, Nayhara Almeida, Carla Fabiana
Costa Calarge, Sthefani Guerra e Elis Lima. Agradeço também aos amigos Ricardo Grassi,
Enéas dos Reis, Anédio Izumi, Jessé Marques, Saulo Conde Fernandes, Walterísio Camargo,
5
Alisson Pereira e Daniel Rossi. Pessoas sempre presentes nas comemorações e também nas
horas de maior dificuldade.
Agradeço também ao meu irmão Roberto Tadeu Prado Jr que – junto com a sua esposa
Tatiana e o meu amoroso sobrinho Eduardo e a recém-chegada e sorridente Mariana – vive
atualmente em Maceió. Vocês dão exemplos de perseverança ao encarar novos desafios e
enfrentar a vida como desejavam, morando ao lado mar.
As amigas e amigos que tive a oportunidade de conhecer e aprender a gostar nesse
tempo que vivi em Dourados: Elisa Kuhn, Fabiane Rocha, Lais Botarelli, Lauriene Seraguza,
Satine (in memoriam), Diógenes Cariaga, Fernando, Lilian, Sandra, Taiane, Sorrayla, Luis
Mônaco e a todas as demais pessoas que de alguma maneira se tornaram especiais para mim.
Não poderia deixar de mencionar a importância de ter vivido quase que integralmente
nessa caminhada do mestrado dividindo uma casa em Dourados com pessoas fenomenais que
com certeza me ensinaram muito sobre humanidade e respeito nesse tempo. Portanto, meu
agradecimento vai para o Valter Monteiro, Sheyla J. Ramos Peres, Rafael Lemos, Nairon
Martins e especialmente ao amigo Gabriel Ulian pela parceria de praticamente dois anos de
sofrimentos com os prazos e alegrias com as festas. Gostaria de citar aqui também o nome dos
amigos que viveram de maneira sazonal em nossa casa, seja para cumprir os créditos do
mestrado ou para fazer trabalho de campo, são eles: Valdir Aragão (PPGAnt), Bruno Tulux
(PPGHist), Rodrigo (PPGHist), Márcio (PPGHist), Saulo (PPGant), Rafael Lugo (PPGHist),
Pedro Rabello (PPGAnt), Kristina (Áustria), Tatiane Klein (USP), Sullivan (Chicago) e outras
pessoas que não me recordarei, foram muitas!
A
todas/os
que
estão
longe:
Heverson
Rodrigues
e
Maurício
Barros
(Florianópolis/SC); Dani e Cissa (Salvador/BA); Lucho (Equador ou pela América Latina);
Henrique Ghizzi (Alto Paraíso/GO);
Especialmente agradeço a algumas pessoas que diretamente me ajudaram em meu
trabalho: Carla Fabiana Costa Calarge por suas ajudas técnicas e pelas conversas que tivemos
nos momentos que precediam a minha qualificação e aos irreverentes amigos Alisson Pereira
e Valdir Aragão, ao primeiro por ter me ouvido por horas falar sobre o meu trabalho de
campo e sobre a minha pesquisa e também pelo brain storm que me ajudou a elaborar, e ao
segundo pelas imprescindíveis e cuidadosas correções e colaborações que fez em meu texto
final. Ao Professor Felipe Vander Velden (UFSCar), avaliador da qualificação, que
cuidadosamente escreveu um parecer me indicando caminhos que me ajudaram muito e que
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infelizmente não pôde estar presente na banca de defesa pela incompatibilidade de agendas;
No entanto, espero que possamos nos encontrar ainda muitas vezes em outros momentos mais
oportunos e, com certeza, enriquecedores.
Agradeço aos colegas de trabalho e as alunas e alunos que tive a oportunidade de
conhecer na reta final dessa dissertação como docente na UFMS de Naviraí. Com certeza,
essa têm sido uma experiência das mais intensa e importante que pude ter até o momento em
minha iniciante carreira como professor/aprendiz.
Aos Professores e Professoras do PPGAnt/UFGD: Jorge Eremites de Oliveira,
Antonio Hilário Aguilera Urquiza, Graziele Acçoline, Mario Sá, Levi Marques Pereira,
Marcio Silva, Roque de Barros Laraia e Simone Becker. Tenho certeza da imensa importância
de todas e todos em minha formação.
Um agradecimento especial ao meu orientador, Prof. Antonio Hilário, pela sua
pedagogia da paciência, e por ter acreditado mais uma vez na minha capacidade para
desempenhar essa pesquisa. Mais uma vez digo: tenho certeza que as aprendizagens mais
válidas estão além dos estudos antropológicos. Não resta dúvida que ainda levarei muito
tempo para compreender muitas palavras simples ditas por este mestre e amigo.
Finalmente, gostaria de agradecer a todas as pessoas do Pirakua que, de maneira muito
generosa, me receberam e abriram espaços em suas rodas de tereré para que eu pudesse
participar. Especialmente a Darci Reginaldo Gomes, Jorge Gomes, Célio, Anália, Irene, Élida,
Luana e as crianças que sempre me ensinaram a importância e a alegria de um bom banho no
Rio Apa: Lucas, Raíssa, Godão, Érik, Luan, Shelleyn, Matheus, Raiane e Luan. Meu muito
obrigado por todos os ensinamentos.
7
“O que se segue, portanto, não deve ser
tomado como um otimismo sentimental, que
ignoraria a agonia de povos inteiros, causada
pela doença, violência, escravidão, expulsão
do território tradicional e outras misérias que a
‘civilização’
ocidental
disseminou
pelo
planeta. Trata-se aqui, ao contrário, de uma
reflexão
sobre
a
complexidade
desses
sofrimentos, sobretudo no caso daquelas
sociedades que souberam extrair, de uma sorte
madrasta,
suas
presentes
condições
de
existência.”
(Marshall Sahlins, 1997)
8
RESUMO
A presente dissertação de mestrado tem como foco de investigação a atuação da chefia
ameríndia entre os Kaiowa da Terra Indígena Pirakua, localizada no município de Bela Vista,
Mato Grosso do Sul. A luz da perspectiva da antropologia política reelaborada por Pierre
Clastres é construído um modelo para a análise, aqui determinado como grupo de suporte,
que busca dar conta da observação da atuação da liderança como polo agregador de pessoas
entre os Kaiowa. O movimento é constante na política Kaiowa e a ausência de uma instituição
política de grande alcance, permite muita autonomia e dinamicidade para que, no caso
Kaiowa, cada parentela e cada grupo de suporte tenha muita liberdade para tomar decisões,
seguindo assim por um caminho de composição e decomposição constantes do social através
da política. O objetivo principal desta dissertação é compreender as relações existentes entre o
social e o político e, desse modo, fez-se necessário traçar um longo percurso etnográfico
durante a escrita para se chegar à compreensão da tese de que a chefia ameríndia entre os
Kaiowa não é a pessoa de poder e, sim, de prestígio.
Palavras-chave: Mato Grosso do sul – índios; Kaiowa; Liderança; Chefia Ameríndia;
Pirakua.
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ABSTRACT
This dissertation focuses on the role of amerindian leadership among the Kaiowa, from the
Pirakua Indigenous Land, located in the municipality of Bela Vista, Mato Grosso do Sul.
From the political anthropology perspective, reworked by Pierre Clastres, is built a model of
analysis, here determined as a support group, that seeks to account the observation of the
leadership actuation as a hub aggregator of people between the Kaiowa. The movement is
constant in Kaiowa politics and, the absence of a far reaching political institution, allows for
much autonomy and dynamism. Between the Kaiowa, every kindred and every support group
has much freedom to make decisions, thus following a path of constant composition and
decomposition of the social through politics. The main objective of this dissertation is to
understand the relations between the social and the political and, thereby, it was necessary to
trace a long ethnographic course during writing to achieve an understanding of the thesis
that the amerindian leadership among the Kaiowa is not centered around persons of power
but rather on prestige.
Keywords: Mato Grosso do Sul – Indians; Kaiowa; Leadership; Amerindian leadership;
Pirakua
10
RESUMEN
Esta presente disertación de maestría tiene como foco de investigación la actuación del
liderazgo (jefía) amerindia entre los Kaiowa de la Tierra Indígena Pirakua, localizada en el
municipio de Bela Vista, Mato Grosso do Sul. A la luz de la perspectiva de la antropología
política reelaborada por Pierre Clastres es construido un modelo para el análisis, aquí
determinado como grupo de soporte, que busca comprender a través de la observación de la
actuación del liderazgo como polo agregador de personas entre los Kaiowa. El movimiento es
constante en la política Kaiowa y el ausencia de una institución política de gran alcance,
permite mucha autonomía y dinamismo para que, en el caso Kaiowa, cada parentela y cada
grupo de soporte tenga mucha libertad para la toma de decisiones, siguiendo así por un
camino de composición y decomposición constantes del social a través de la política. El
objetivo principal de esta disertación es comprender las relaciones existentes entre el social y
el político y, de este modo, se hace necesario elaborar un largo recorrido etnográfico durante
la escrita para llegar a la comprensión de la tesis de que el liderazgo amerindio entre los
Kaiowa no es la persona de poder y, si, de prestigio.
Palabras-clave: Mato Grosso do sul – indios; Kaiowa; Liderazgo; jefia Amerindia; Pirakua.
11
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1 – Terras Kaiowa e Guarani em MS........................................................................31
Figura 2 – Terra Indígena Pirakua e Região.........................................................................60
Figura 3 – Regiões da Terra Indígena Pirakua.....................................................................61
Figura 4 – Núcleos de Moradia na Região da Ponte ...........................................................63
Gráfico 1 – Percentual de Pessoas por Região.....................................................................66
Gráfico 2 – Faixa Etária das Regiões da Terra Indígena Pirakua.........................................67
Gráfico 3 – Faixas Etárias dos Moradores do Pirakua.........................................................68
Gráfico 4 – Pessoas por Sexo e por Região da Terra Indígena Pirakua...............................73
Gráfico 5 – Produtos Cultivados nas Roças das Famílias Kaiowa da T.I. Pirakua..............76
Figura 5 – Ilustração das Esferas de Relacionamento do Modelo Concêntrico...................86
12
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 – Proprietários de cherogami e Moradores Abrangidos...........................................71
Tabela 2 – Ocupação dos Moradores da T.I. Pirakua, Dados Gerais e por Região ...............75
13
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
CAND – Colônia Agrícola Nacional de Dourados
Cia - Companhia
CIMI – Conselho Indigenista Missionário
FUNAI – Fundação Nacional do Índio
FUNASA – Fundação Nacional de Saúde
IAGRO – Agência Estadual de Defesa Sanitária Animal e Vegetal
INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
ISA – Instituto Sócio Ambiental
MS – Mato Grosso do Sul
PI – Posto Indígena
PPGAnt – Programa de Pós-Graduação em Antropologia
PPGHist – Programa de Pós-Graduação em História
PR – Paraná
RID – Reserva Indígena de Dourados
RS – Rio Grande do Sul
SC – Santa Catarina
SESAI – Secretaria Especial de Saúde Indígena
SP – São Paulo
SPI – Serviço de Proteção ao Índio
TI – Terra Indígena
UEMS – Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul
UFGD – Universidade Federal da Grande Dourados
UFMS – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
UNICEF – United Nations Children’s Fund
14
SUMÁRIO
Lista de ilustrações.......................................................................................................................8
Lista de tabelas.............................................................................................................................9
Lista de siglas.............................................................................................................................10
INTRODUÇÃO........................................................................................................................13
CAPÍTULO I– CONSIDERAÇÕES SOBRE O CONTATO: PERDA DA TERRA,
ESPARRAMO, CONFINAMENTO KAIOWA E GUARANI E OS PROCESSOS DE
RESISTÊNCIA..........................................................................................................................27
1.1 Povo Kaiowa e Guarani: Ação do Estado e Confinamento..................................................27
1.2 A Perda do Território (Ñane Retã) e os Processos Históricos Sobre os Territórios
Kaiowa e Guarani em Mato Grosso do Sul...............................................................................36
CAPÍTULO II – PERCORRENDO CAMINHOS NA REGIÃO DO APA: A RESISTÊNCIA
DO PIRAKUA ..........................................................................................................................45
2.1 A Resistência do Pirakua: os Caminhos e as Palavras da Região do Pirakua......................45
2.2 Linhas Históricas: os Caminhos Percorridos pelas Parentelas até o Pirakua.......................52
CAPÍTULO III – TERRA INDÍGENA PIRAKUA.................................................................57
3.1 Do Córrego Palmeira à parte Alta do Morro........................................................................57
15
3.2 Padrões de Assentamento no Pirakua...................................................................................64
3.2.1 Moradias............................................................................................................................64
3.2.2 Divisão Sexual de Tarefas, Formas de Subsistência e Padrões de Assentamento
Kaiowa........................................................................................................................................71
CAPÍTULO IV – ATRAVÉS DO PRESTÍGIO.......................................................................78
4.1 Mba’e jehu............................................................................................................................78
4.2 Organização Social e Política da Terra Indígena Pirakua....................................................80
4.2.1 Interação Entre o Parentesco e a Política: esferas sociais de cooperação..........................81
4.2.2 Grupos de Suporte Político e Econômico do Pirakua........................................................88
4.3 O Líder e o Prestígio Político no Caso Particular do Pirakua...............................................92
4.3.1 A Chefia Kaiowa e o Prestígio..........................................................................................92
4.3.2 Atributos Qualitativos da Chefia Ameríndia.....................................................................97
CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................................105
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.................................................................................107
16
INTRODUÇÃO
Esta introdução pretende apresentar brevemente parte dos pressupostos teóricos
utilizados no trabalho – o restante será esclarecido, debatido, apresentado no decorrer dos
capítulos e nas subsequentes discussões –, a delimitação do tema abordado na pesquisa e os
procedimentos metodológicos utilizados durante o trabalho de campo.
Por muito tempo, as pesquisas em Antropologia consideraram a instância política das
sociedades não ocidentais apenas como um aspecto da estrutura social. Os primeiros estudos
da Antropologia Política se iniciaram na década de 1940, a partir do estrutural-funcionalismo
de Radcliffe-Brown e seus discípulos.
No prefácio da obra “Sistemas Políticos Africanos”, de Fortes e Evans-Pritchard,
Radcliffe-Brown reflete sobre o “poder” sob a perspectiva do “direito”. Dessa forma
constituindo o campo político “fundamentalmente, pelo comum reconhecimento de regras ou
como o espaço da vigência de um direito” (CARDOSO, 1995, p. 130). A perspectiva que é
apontada por Radcliffe-Brown parte do pressuposto de que o direito, enquanto regra, está
instituído “como uma justiça repressiva”. O teórico trabalha a questão do poder nas
sociedades primitivas1 pelos cogitos da relação de poder coercitivo – como única forma
legítima de existência do mesmo – ou mando-obediência.
Nesse sentido, a Escola de Antropologia Britânica desenvolve uma teoria de
Antropologia Política das sociedades africanas – baseada em uma estrutura social segmentar,
compostas por grupos de descendência ou linhagens –, principalmente através da ideia de um
consenso sobre as regras e da vigência imediata das mesmas (como se essas regras
funcionassem de maneira “automática”), como reflete Lucy Mair, ao pensar a sociedade e o
político através de “regras sociais” e “regras políticas” em que as primeiras são norteadas
pelas relações pacíficas e as segundas por um caráter punitivo de resolução de conflitos. Em
outras palavras, as regras políticas teriam o objetivo de reparar a infração cometida pelos
1
O uso do termo sociedades primitivas nesse texto remete-se a definição formulada por Pierre Clastres (2003;
2004) baseado na divisão das sociedades em primitivas (Contra o Estado) e Com Estado (em suas diversas
formas). O termo é positivado pelo autor servindo como uma maneira de definir claramente um campo de
estudos para a Antropologia Política, ao mesmo tempo, que refuta e justifica o uso dessa divisão de maneira
positiva, não mais encarando as sociedades não ocidentais como incompletas politicamente, estando essas em
estágios primários do desenvolvimento político social da humanidade, mas sim baseando-se na ideia de
17
membros do grupo social. Centralizando-se, assim, na ideia de que necessariamente a política
contém em si essencialmente o poder repressivo da sociedade.
Desse modo, por mais que nos estudos da Escola de Antropologia Britânica seja
considerada a existência de uma política e de um poder nas sociedades não ocidentais, não se
deixa de crer na existência de um órgão de poder; que sempre estará mais ou menos diluído
no sistema social. Como pensado no caso dos grupos africanos que “mesmo descentrando a
política em relação ao Estado (uma vez que as linhagens possuem funções políticas) – como o
evolucionismo, aliás, descentrara a sociedade em relação ao contrato e ao indivíduo –, esse
modelo desenvolvido pela antropologia britânica recentrou na ideia de um sistema social
relativamente autônomo (como o evolucionismo recentrara a política no Estado)” (Lima;
Goldman, 2012, p. 09, destaque meu).
O poder do direito reconhecido por um grupo, pensado por Radcliffe-Brown,
pressupõe a detenção da “justiça repressiva”, ou seja, do “domínio da coerção legítima, o que
leva a definir a ‘organização política’ como campo do ‘exercício organizado da autoridade
coercitiva” (Cardoso, 1995, p. 130). Tal abordagem pode fazer sentido se pensarmos que
essas formulações foram desenvolvidas a partir do estudo de sociedades africanas. Torna-se,
por outro lado, muito difícil acreditar que tais parâmetros teóricos possam dar conta da
compreensão da instância do político e do poder nas sociedades ameríndias, principalmente
nas sociedades dos campos e serras das terras baixas. Isso porque os relacionamentos políticos
nessas sociedades, segundo Pierre Clastres, se dão por mecanismos outros, que
fundamentalmente, se apresentam contra o Estado, ou seja, contra a formação de um
determinado grupo ou instituição separado da sociedade que controlaria essas retratações
sociais descritas por Lucy Mair como as regras políticas ou na ideia de mínimal government.
Crer que o campo do político sempre estará necessariamente contido no poder
constituído pelo direito à repressão pode nos colocar em labirintos sinuosos, já há muito
superados. As formulações de Lapierre2, por exemplo, demonstram claramente o perigo de
transpor modelos biológicos – regidos por regras instintivas – para um viés social.
completude política de ambas. Porém tendo o poder, enquanto categoria de análise dos meandros políticos, lugar
e funcionamento diferentes em cada uma delas – nas sociedades Contra o Estado e nas sociedades Com Estado.
2
São justamente as formulações de Jean-William Lapierre em um ensaio sobre a política e o poder (Essai sur le
fondement du pouvoir politique, Faculté des Lettres d’Aix-en-Provence, Editions Ophrys, 1968), que servem de
ponto reflexivo para Pierre Clastres, em seu texto de abertura da obra A Sociedade Contra o Estado intitulado
“Copérnico e os selvagens” (2003), formular uma teoria antropológica para pensar a política e o poder das
sociedades ameríndias em uma perspectiva não mais de rotação ao entorno do Estado.
18
As formulações de Lapierre, que de certa medida acabam aceitando as “classificações
propostas pela antropologia anglo-saxônica para a África”, desse modo, ordenando a política
das sociedades primitivas – às quais Lapierre apresenta como sociedades arcaicas – em cinco
grandes tipos. Próximo ao ponto zero as sociedade que quase não apresentam poder político,
“ou mesmo não apresentam, poder político propriamente dito” seguindo no sentido das
“sociedades arcaicas” “nas quais o poder político é mais desenvolvido”. Desse modo,
Lapierre acaba por ordenar “[...] as culturas primitivas em uma tipologia baseada, em suma,
na maior ou menor ‘quantidade’ de poder político que cada uma delas oferece à observação”
(Clastres, 2003, p. 25).
Como afirmado por Clastres, crer que as sociedades ameríndias são incompletas por
não se basearem politicamente na forma-Estado não passa de uma abordagem com fixação
etnocêntrica.
[...] as sociedades primitivas não são os embriões retardatários das
sociedades ulteriores, dos corpos sociais de decolagem ‘normal’
interrompida por alguma estranha doença; elas não se encontram no ponto de
partida de uma lógica histórica que conduz diretamente ao termo inscrito de
antemão, mas conhecido apenas a posteriori, o nosso próprio sistema social
(Clastres, 2003, p. 216).
A partir da perspectiva de Clastres, as sociedades primitivas se diferem formando um
bloco separado das sociedades com Estado, no sentido que não possuem um órgão separado
do poder, ou seja, ignoram a divisão entre dominados e dominantes. “[...] determinar as
sociedades primitivas como sem Estado é enunciar que elas são, em seu ser, homogêneas
porque indivisas” (Clastres, 2004, p. 146). Desse modo, não se pode isolar a esfera do político
da esfera do social.
A pesquisa teve como foco a descrever as trajetórias de algumas parentelas da Terra
Indígena pesquisada, descrever brevemente a conformação social e a formação de grupos de
suporte da terra atualmente e – em um último momento – fazer algumas considerações sobre a
atuação da liderança entre os Kaiowa, mais especificamente da liderança política (mburuvicha
ou tendota). O trabalho de campo foi realizado na Terra Indígena Pirakua, localizada no
município de Bela Vista/MS, com o objetivo de compreender de que maneira determinadas
pessoas conseguem agregar em torno de si um grupo, onde atuam e acabam sendo
19
reconhecidas como referências ou liderança desse grupo, assim como, por quais mecanismos
a comunidade reconhece e legitima a atuação da liderança.
Levando em conta a perspectiva dos estudos de Antropologia Política, (re)elaborada
por Pierre Clastres, que propõe uma mudança epistemológica do olhar (a revolução
copernicana), de maneira que nos estudos de etnologia é necessário deixar de crer que a
política ameríndia só existe em uma relação de rotação ou em um movimento centrípeto ao
redor das sociedades ocidentais. Para realizar essas apreciações é necessário considerar a
importância das relações de parentesco, da parentela3 e da formação de grupos de cooperação
econômica e política na TI como centrais no desenrolar dos arranjos que compõem as relações
políticas entre os Kaiowa.
Desse modo, compreender a formação e a atuação de lideranças entre os Kaiowa e os
meandros políticos da comunidade referida, na atualidade, pode contribuir concretamente para
o pensar do trabalho de diversas políticas que incidem sobre esse povo, que muitas vezes, por
falta de entendimento sobre a composição das relações políticas internas, acabam não se
mostrando efetivas, fadadas ao que os Kaiowa consideram “resultados para os relatórios em
Brasília”.
Concretamente, o objetivo de compreender o processo de atuação do tendota (termo na
língua falada pelos Kaiowa para designar a liderança, ou “aquele que vai à frente”) pode vir a
se constituir como um importante elemento para facilitar a compreensão dos conflitos
existentes entre os Kaiowa quando já tem garantidos os seus direitos territoriais, pois é
pretensão da pesquisa compreender de que maneira ocorrem os processos de decisão e
consenso da sociedade.
Historicamente, esse povo passou por um violento processo de confinamento4 e de
acomodação das comunidades Kaiowa e Guarani5 para um novo, e reduzido território após o
contato com a sociedade não indígena e seus processos e procedimentos de ocupação da
3
Essa unidade sociológica é definida por Schaden (1974) como família extensa, porém adoto o termo parentela
por acreditar, assim como Pereira (1999), que este termo facilita a leitura e não prejudica o entendimento sobre
as formas de cooperação dos Kaiowa. Podendo ser caracterizada pela formação de um grupo de pessoas –
normalmente parentes entre si, seja por consanguinidade, afinidade ou agregação – que se distinguem das demais
através do reconhecimento de um vínculo de subordinação política a um determinado ego (cabeçante).
4
Sobre o conceito de confinamento Cf. BRAND (1997).
5
Por uma questão de facilidade utilizarei neste trabalho o termo Kaiowa e Guarani para me referenciar aos
Guarani Kaiowa, que se autoafirmam somente como “Kaiowa” em Mato Grosso do Sul e aos Guarani Ñandeva,
que se auto identificam somente como “Guarani”. Levando em conta o fato de cada um destes povos
corresponder a um povo diferente e específico, porém muito próximo cultural, linguistica e territorialmente,
ressaltando aqui, que ambos são povos que apesar de falarem línguas muito próximas e de apresentarem aspectos
20
região sul do estado de Mato Grosso do Sul. Ocupação que gerou fortes transformações nas
formas de reprodução cultural, social, política e econômica dos Kaiowa e Guarani.
Em meus estudos nos últimos anos foi possível compreender que existe uma lacuna no
campo do debate sobre a atuação da liderança indígena. Os povos Guarani Kaiowa e Guarani
Ñandeva, etnias da mesma família linguística (tupi-guarani), formam a maior população
indígena em Mato Grosso do Sul, com aproximadamente 43 mil pessoas, com uma taxa de
crescimento muito alta – quase metade de sua população ainda é de crianças (cerca de 48%)6.
Acredito que este trabalho contribuirá na compreensão e no entendimento de processos
internos da política ameríndia Kaiowa e do surgimento e atuação de lideranças entre os
Kaiowa.
Os grupos guarani de Mato Grosso do Sul, Guarani Kaiowa (também conhecidos
como Paĩ-Tavyterã no Paraguai, se autoidentificando apenas como Kaiowa no Brasil) e os
Guarani Ñandeva (Conhecidos como Xiripá ou Avá no Paraguai, e que em Mato Grosso do
Sul se autoidentificam apenas como Guarani) ocupavam um território (ñane retã) que foi
sistematicamente reduzido e fragmentado; desestruturando, assim, um importante elemento
estruturante da vida do grupo: o território. Por exemplo, a desfragmentação e reelaboração de
relações no contexto da família extensa (Te’yi), unidade sociológica e política do grupo, muito
importante na formação da pessoa7 Kaiowa e Guarani em um contexto de comunidade, ou de
tekoha.
[...] los guaraníes estaban organizados socialmente en familias extensas o
‘linajes’ llamadas teyÿ, [...] El teyÿ constituía la unidad económica y política
básica, la familia extensa, caracterizada por un importante grado de
autonomía. (Wilde, 2009, p. 101).
Egon Schaden (1974) já apontou, durante a década de 1950, que a família extensa se
constituía como a unidade política agregadora, econômica, religiosa e social. Essa forma
sociais, culturais e econômicos bastante similares, se constituem como povos diferentes e afirmam a sua
diferença em diversos momentos oportunos.
6
Compreendo como essencial expressar esse dado neste trabalho, pois evidentemente tem sido muito ressaltado
nos meios midiáticos a perspectiva de que ambos os grupos citados vivem um momento crítico e de
vulnerabilidade, mortes, suicídios e muita violência nas Reservas, acampamentos a beira da estrada, retomadas e
nas Terras Indígenas. No entanto, creio que entender os Kaiowa e Guarani por uma perspectiva de crescimento,
devido a grande densidade populacional de crianças, evidencia – ou ajuda a evidenciar – as expectativas e a
preocupações que ficam facilmente constatadas em campo a respeito da importância e do desejo de permanência
que expressam, sendo as crianças consideradas como um forte fator de indicação desses desejos e expressões de
permanência enquanto povo, grupo, parentela, etc.
7
Cf. SEEGUER, Anthony; DA MATTA, Roberto; VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo B.. A Construção da
pessoa nas sociedades indígenas brasileiras. Rio de Janeiro; Boletim do Museu Nacional, 1979.
21
própria de organização em parentelas acabou sendo bastante modificada com o processo de
reorganização territorial em Mato Grosso do Sul.
Na clássica etnografia escrita por Bartomeu Melià junto com o casal Grünberg,
George e Friedl, são descritos como básicos para a socialização do grupo Paĩ-Tavyterã8 dois
sistemas de cooperação: a família extensa e o tekoha. A família extensa é uma unidade de
produção comunal (roças, edificação de casas, viagens, pesca e etc.) de uma parentela
composta por uma chefia que concentra o poder das decisões que interessam a família; O
tekoha se constitui como a base política, social e religiosa das comunidades, se manifestando
principalmente em festas religiosas, decisões políticas – a exemplo das Aty Guasu9 (grande
reunião) – conflitos externos (resistência contra invasões de terras e retomadas), ameaças
sobrenaturais como a feitiçaria má contra alguém ou contra a comunidade (Melià; Grümberg;
Grümberg., 2008).
É importante ressaltar que, para além da observação feita por Melià; Grümberg;
Grümberg (2008), a parentela pode ser definida como um grupo ou unidade de pessoas
ligadas por laços de sanguinidade, virtualidade e afinidade relativamente estáveis no tempo e
com uma trajetória particular. Entre os Kaiowa sua conformação se dá atualmente pela
agregação de um grupo de famílias nucleares, registrada por Pereira (1999; 2004) pelo termo
nativo che ypykukera que pode ser traduzido para facilitar a compreensão como fogo familiar.
Os pesquisadores Jorge Eremites de Oliveira e Levi Marques Pereira (2009)
complementam essa ideia na elaboração do laudo antropológico sobre a Terra Indígena
Ñanderu Marangatu ocupada por famílias Kaiowa e Guarani da região de Antonio João/MS,
afirmando que o tekoha expressa ao mesmo tempo a comunidade (grupo social) e o espaço
geográfico (território) em que essa comunidade vive do modo específico de suas práticas
culturais (sistema cultural).
Esse processo (de perda do território) desestruturou e reformulou a maneira ideal de
compreensão do mundo por parte do grupo. Impossibilitando a efetivação do modo de vida
ideal, ligado a relações de tradição com um passado mítico que determinam um modo de vida
8
Grupo falante de guarani e pertencente a da família linguística tupi-guarani, atualmente o grupo vive no
Paraguai. Na literatura etnológica o grupo é apontado como sendo parte do mesmo povo que atualmente vive na
região sul do estado de Mato Grosso do Sul no Brasil, conhecido como Kaiowa.
9
A AtyGuasu é uma reunião onde são convocados vários chefes políticos e religiosos. Esse encontro tem a
finalidade de debater e resolver questões graves que ocorrem ao conjunto da população Guarani. Em Mato
Grosso do Sul no ano de 2011 ocorreram duas AtyGuasu, em abril na Terra Indígena Arroio Korá no município
de Paranhos/MS e em agosto na Terra Indígena Passo Pirajú no município de Dourados/MS. Segundo Brand
(fala gravada durante Aty Guasu na Terra indígena Arroio Korá em abril de 2011) a primeira Aty Guasu ocorreu
em janeiro de 1978 na Terra Indígena Takuapiry.
22
específico, que segundo Lévi-Strauss, é guiado por imagines mundi, construídas em edifícios
mentais que facilitam a inteligência do mundo, na medida em que criam referências para
assegurar e assemelhar o mundo a uma maneira de pensá-lo e de construí-lo:
O próprio pensamento selvagem é ser intemporal, ele quer apreender o
mundo, como totalização sincrônica e diacrônica ao mesmo tempo, e o
conhecimento que dele toma se assemelha ao que oferecem num quarto
espelhos fixos em paredes opostas e que se refletem um ao outro (assim
como aos objetos colocados no espaço que os separa), mas sem serem
rigorosamente paralelos. Forma-se simultaneamente uma multidão de
imagens, nenhuma das quais é exatamente parecida com as outras; por
conseguinte, cada uma delas traz apenas um conhecimento parcial da
decoração e do mobiliário, mas seu agrupamento se caracteriza por
propriedades invariantes que exprimem uma verdade (Lévi-Strauss, 1989, p.
291).
Essa forma autorrefletida de construir o mundo, voltado para visões míticas que se
reelaboradas em si mesmas, talvez possa ser pensada, em relação aos Kaiowa e Guarani,
através da ideia de ñande reko10(nosso modo de ser), uma forma inclusiva de um modo de ser
diferenciador e específico, onde inclui-se implicitamente a esse modo de ser uma socialização
e uma historicidade que possibilitam essa alteridade sentida e ressaltada principalmente nos
momentos de contato e de conflito com outros grupos:
Ñande reko pone de relieve este aspecto de diferenciación cultural, que
incluye un tipo especial de organización social, una lengua y un lenguaje
propio (con sus formas peculiares de ‘pensamiento’ y de ‘simbolización’),
una religión tradicional, una economía característica, una lengua propia. [...]
El ñande reko hace que el Paĩ se considere, se sienta, se piense y se diga
diferente. (Melià et al., 2008, p. 105)
Adoto o princípio de que a identidade cultural não se apresenta como estática e
desorientada no espaço/tempo, pois seus traços culturais como crenças, valores, símbolos,
ritos, língua e demais aspectos estão em constante processo de apropriação e desapropriação –
de certa maneira os processos de apropriação, principalmente nos processos de contato,
10
Além de ser possível constatar o uso e o entendimento dessa expressão – ñande reko – em etnografias e em
trabalho de antropologia (Cf. BRAND, Antonio J. O impacto da perda da terra sobre a tradição
Kaiowa/Guarani:os difíceis caminhos da Palavra. Tese de doutorado, História da PUC/RS, 1997, 382 p.;
MELIÀ, Bartomeu; GRÜNBERG, Georg; GRÜNBERG, Friedl. Los Paĩ–Tavyterã: etnografia guarani
delparaguaycontemporáneo. 2° edição. Asunción: CEADUC/CEPAG, 2008) já tive a oportunidade perceber o
uso do termo nãndereko como relacionado a um modo de vida “mais tradicional” tanto entre grupos Guarani
Kaiowa e Guarani Ñandeva de Mato Grosso do Sul como entre um grupo Guarani M’byaem São Paulo (Terra
Indígena Tenondé Porã).
23
transcendem, em partes, as formulações de Lévi-Strauss – de elementos que se ressignificarão
a partir do jogo de espelho (imagines mundi). Portanto, a cultura e a tradição podem ser
entendidas como “[...]matéria de exclusão e inclusão, tomadas, não como diferenças
‘objetivas’, mas como elementos tornados significantes ou não.” (Schwarcz, 1999, p. 295).
No caso da liderança o mesmo não deixa de ocorrer, pois “[...] a chefia é algo plástico,
sendo constantemente redefinida ao longo da história.” (Sztutman, 2005, p. 262). Que
Gorosito Kramer complementa:
[Que] los liderazgos políticos guaraníes son fluidos y móviles, y el
ascendiente de un jefe es el resultado de la práctica cotidiana de un estilo de
conducta que es reconocida por sus seguidores como ajustado a las normas
de la cultura (tekó) o estilo propio de vida. (2005, p. 14) (destaque no
original)
Desde a Guerra entre o Paraguai e a Tríplice Aliança (1864-1870), passando pelo
primeiro empreendimento econômico da região sul do estado de Mato Grosso do Sul, a
Companhia Matte Larangeira11
(1892), sistematicamente os Kaiowa e Guarani foram
perdendo a posse sobre seus territórios. A propósito da importância da Companhia Matte
Larangeira nesse período e até a expansão da sociedade nacional para o oeste nos anos de
1940 e 1950, consta que a empresa chegou a ter arrendado cerca de 5.000.000 ha12 – que
coincidiam com o território de grupos Kaiowa e Guarani – para exploração dos ervais de mate
da região. O crescimento da Companhia em questão deveu-se, também, à criação do
Território Federal de Ponta Porã (1935) e pela instalação da Colônia Agrícola de Dourados
(1943) pelo governo de Getúlio Vargas.
Esse processo de diminuição e perda do território (ñane retã) foi agravado pelo
evidente direcionamento ideológico favorável aos colonos e a colonização por parte do Estado
brasileiro, que titulou muitas terras em Mato Grosso do Sul ocupadas por grupos Kaiowa e
Guarani que eram tidas como devolutas. Soma-se a isso uma conduta de tutela por parte do
órgão indigenista oficial (a partir de 1910, o SPI e, após 1967, a FUNAI), que se muniu de
11
Sobre as o período de exploração da Companhia Matte Larangeira em Mato Grosso do Sul, Cf.: FERREIRA,
Eva Maria Luiz. A participação dos índios Kaiowa e Guarani como trabalhadores nos ervais da
Companhia Matte Laranjeira (1902-1952). Dourados (MS): Universidade Federal da Grande Dourados
(Dissertação de Mestrado), 2007.
12
Verificando que “No final da década de 1950, do território original de aproximadamente 20.000 km² restavam,
legalmente, aos Kaiowa, apenas um total de 18.124 ha, incluídas as duas reservas predominantemente Guarani. E
estes 18.124 ha estavam divididos em oito reservas distintas.” (BRAND, 1997, p. 119).
24
métodos bastante opressivos, com o intuito de levar esses povos a um ideal de “civilização”,
aculturação e integração a sociedade nacional.
A partir desse contexto um dos objetivos da pesquisa é compreender as formas como
as lideranças Kaiowa atuam perante sua própria sociedade e por meio de quais representações
elas se relacionam com o Estado e a sociedade não indígena. Tendo como pretensão
metodológica uma prática, que Viveiros de Castro denomina de “rotação de perspectiva”. Ou
seja, valorizando a possibilidade indígena de compreensão e de “colonização do
colonialismo”. (1999, p. 115).
A exemplo, a instituição da figura do capitão, que foi imposta junto à intervenção do
Estado no controle desses povos, emergindo como um elemento exógeno à forma tradicional
de organização política dos indígenas, que até então – 1910 com a criação do SPI –
destinavam o papel da liderança, ou do chefe, a atores de relevância para a reprodução e
orientação do modo de vida baseado na tradição (ñande reko). A figura do ñanderu (rezador)
é exemplo do tipo de ator social tido como relevante, posto que é responsável pela ligação
entre o mundo físico e o espiritual e o mburuvicha ou tendota que tem atribuído a si a função
de orientar, liderar e negociar os interesses e conflitos dentro e fora (contato com outros
grupos ameríndios, sociedade nacional ou autarquias do Estado) do grupo. Na cosmologia dos
Kaiowa o aprendizado vem tanto das relações com as divindades, como das relações entre as
pessoas, não havendo exatamente uma divisão entre esses mundos (físico e extraterreno).
No entanto, a partir do momento em que a figura do capitão é imposta entre os grupos
indígenas, como foi no caso dos Kaiowa em Mato Grosso do Sul, ela passa a fazer parte da
vida da comunidade e a se relacionar e ter um valor e uma capacidade de articulação no
socius. No caso da Terra Indígena pesquisada (Pirakua) é possível perceber que o capitão é
uma pessoa de destaque, visto como o principal na resolução de problemas relativos aos
relacionamentos que extrapolam os limites da terra.
O trabalho de campo foi desenvolvido em três etapas. A primeira ocorreu no período
de aproximadamente uma semana em dezembro de 2011. O objetivo desse primeiro período
de trabalho de campo foi negociar com lideranças do Pirakua e com outras pessoas da
comunidade a autorização para a execução da pesquisa. O primeiro contato com a
25
comunidade se deu através da minha pesquisa de monografia, que relaciona-se com a
trajetória de vida da liderança Marçal de Souza Tupã’i13.
Através de uma das filhas de Tupã’i, foi possível o contato com uma família que vive
no Pirakua desde 1985. Tupã’i no final da década de 1970 e início da década de 1980 teve
uma relação de proximidade com algumas das famílias que lá residiam e que reivindicavam a
demarcação do Pirakua como Terra Indígena. Quando Tupã’i, com o apoio de integrantes do
CIMI,14realizaram as primeiras denúncias de violências (principalmente as tentativas de
expulsão do local por proprietários de terra) cometidas contra os grupos de famílias Kaiowa
que viviam em um local denominado pelo nome de Pirakua15à beira do rio Apa no início da
década de 1980 junto ao INCRA e a FUNAI com pedidos de reconhecimento do local
ocupado e proteção do Estado as 43 famílias nucleares Kaiowa que lá viviam na época.
Essa mesma filha de Tupã’i recomendou-me fazer contato com uma de suas primas
que atualmente vive no Pirakua, Darci Reginaldo, casada com uma das lideranças da Terra
Indígena (TI). Portanto, minha inserção foi intermediada pela família dessa liderança.
Nessa primeira etapa (dezembro de 2011) fiquei hospedado na casa do Jorge Gomes,
esposo de Darci, a partir do qual pude estabelecer contato com outras famílias e lideranças do
Pirakua. Desse modo, após alguns diálogos com moradores do Pirakua e da apresentação do
meu projeto para algumas lideranças, consegui constituir cenário favorável para a realização
de um período de pesquisa de campo mais longo.
13
Marçal de Souza foi um importante líder na luta por direitos dos povos Kaiowa e Guarani em MS, batizado em
guarani com o nome de Tupã’i (Pequeno Deus Trovão), nasceu em 1920 na região de Ponta Porã (Rincão Júlio),
passou por diversas Reservas Indígenas durante sua infância (principalmente a Reserva Indígena de Caarapó e de
Dourados), ficou órfão com aproximadamente 6 anos e foi adotado por uma família não indígena com a qual
teve a oportunidade de morar em Campo Grande e em Recife e frequentar a escola. Em 1940 Tupã’i retornou
para a Reserva Indígena de Dourados, inicialmente atuou como professor e depois formou-se enfermeiro em
1959 através de um curso promovido pela OMS (Organização Mundial de Saúde) e foi eleito capitão. O auge do
alcance de suas palavras se dará no ano de 1980 quando discursou para o Papa João Paulo II em nome dos povos
indígenas do Brasil. Lutou em muitas frentes pelos direitos dos Kaiowa e Guarani e morando na aldeia
Campestre (município de Antonio João) foi assassinado em 1983, tendo sua morte repercussão na imprensa
internacional e sendo rememorada nos encontros realizados pelos Kaiowa e Guarani como mártir da luta pela
demarcação de terras até os dias atuais. Cf. PRADO. José Henrique. Marçal de Souza Tupã’i: trajetória de um
líder Guarani.Trabalho de Conclusão de Curso, Ciências Sociais da UFMS, 2010, Campo Grande. 97 p.
14
Os nomes que constam no Laudo Antropológico de Demarcação da Terra Indígena Pirakua assinado em 25 de
julho de 1985 pelo antropólogo Rubem Thomaz Ferreira de Almeida são de Antonio Brand e Hugolino Becker.
Já em conversas com interlocutores (fev. 2013) que vivem atualmente no Pirakua e que acompanharam o
processo de resistência e conquista da terra surge também a participação de um padre de nome Luis.
15
Provavelmente o nome “Pirakua” tem sua origem por conta de um acidente geográfico em uma das curvas do
Rio Apa, que acabou formando um buraco na rocha que margeia o rio, os moradores dizem que havia uma
fartura muito grande de peixe no rio e que o local onde existe o buraco era ótimo para a prática de pesca. O
termo pode ser traduzido da língua falado pelos Kaiowa (guarani) como “buraco do peixe”, pois Pira = peixe e
kua=buraco.
26
O segundo período do trabalho de campo teve duração de fevereiro a abril de 2012.
Durante esse período, além das observações e interações na vida cotidiana do grupo,
desempenhei as seguintes atividades: a) levantamento censitário do Pirakua, realizando visitas
as famílias com a aplicação de questionários semiestruturados com questões sobre os
moradores da Terra, tais como quantidade de moradores por casa, idade, ocupação, filiação,
cultivos e atividades de subsistência, entre outros (quase a totalidade das casas da área); b)
escrita diária das observações, informações e reflexões realizadas a partir da interação com os
moradores do Pirakua em caderno de campo como instrumento para apreender dados
observados empiricamente e as informações pertinentes ao tema da minha pesquisa; c)
captação de áudio de conversas semiestruturadas que tive com lideranças e pessoas mais
velhas da terra com os seguintes temas: breve história de vida do interlocutor; história de
conquista do Pirakua; política e atuação da liderança; d) coleta de pontos para
georeferenciamento dos locais de moradia da área. Infelizmente esses dados não puderam ser
trabalhados em sua integralidade nesta dissertação como, por exemplo, a confecção de um
mapa para a facilitação da visualização da distribuição das parentelas.
O trabalho de levantamento censitário talvez tenha sido uma das atividades mais
importantes para a minha inserção junto ao grupo, pois, através dessa atividade,foi possível
conhecer e me aproximar de muitas famílias da área. Com o passar do tempo obtive
distintividade para o grupo – acredito que em muito auxiliado pelas visitas feitas às casas dos
moradores da TI, e, também, pelas partidas de futebol disputadas nos fins de tarde, quase que
diariamente, no campo ao lado da escola.
A atividade de recenseamento durou cerca de 55 dias para ser concluída. Nesse
período alternei as atividades de levantamento com escrita do caderno de campo, leituras –
principalmente nos dias de chuva – e conversas com as pessoas que estavam circulando pelo
centro da aldeia16 e acabavam parando no posto de saúde para tomar tereré17. Durante o
desenvolvimento dessa atividade os moradores que eu ainda não havia visitado me
questionavam quando chegaria a casa deles e muitos me davam longas indicações de como
chegar até as suas casas.
16
Utilizo o termo aldeia, pois é dessa forma que os próprios Kaiowa da Terra Indígena Pirakua e de outras
Reservas e Terras Indígenas utilizam na língua portuguesa para se referirem ao território onde vivem.
17
Bebida preparada a partir da efusão em água fria da erva mate (Ilexparaguariensis), que é colocada em um
copo ou em uma cuia (fruto da cuieira ou calabaça) sendo sugado através de uma bomba, que pode ser feita de
metal ou do modo tradicional dos Kaiowa, feita de broto de taquara que possuí seu caule oco.
27
Durante o desenvolvimento dessa atividade de levantamento constatei uma grande
velocidade de mudanças dentro da terra, pois um número relevante de deslocamentos,
mudanças de local de moradia na área e até mesmo a chegada de novas famílias e a saída de
outras, na maioria dos casos motivados por tensões políticas. Portanto, esse trabalho censitário
me possibilitou, “estando aqui” (being here), realizar atividades primárias para um
aprofundamento sobre a Terra Indígena Pirakua, como a contagem populacional, a percepção
sobre a formação e a dimensão das famílias que, somados às anotações do caderno de campo,
me auxiliaram na percepção de como se dão as divisões das parentelas e como se articulam as
redes de reciprocidade na terra.
O terceiro e último período de trabalho de campo na Terra Indígena Pirakua ocorreu
após o exame de qualificação (setembro de 2012) em um período de cinco dias durante o mês
de fevereiro de 2013. A proposta e finalidade desse último momento da pesquisa de campo foi
a de conseguir maior profundidade no diálogo com alguns interlocutores sobre as trajetórias
das parentelas que vivem atualmente no Pirakua e desse modo compreender melhor de que
maneira essa Terra Indígena chegou à composição social que apresenta hoje.
A dissertação esta divida em quatro capítulos. No primeiro capítulo é trabalhado o
processo de perda do território dos Kaiowa e Guarani e os impactos que as ações de
colonização e o regime tutelar do órgão indigenista oficial empreenderam contra os indígenas
em Mato Grosso do Sul.
O segundo capítulo desenvolve-se a partir de uma visão diacrônica elucidando uma
possibilidade de contar a história de resistência dos moradores do Pirakua durante o final da
década de 1970 até meados da década de 1980 quando o grupo consegue, através de um longo
processo de organização e de luta conquistar a demarcação da terra.
O terceiro capítulo tem um caráter voltado para a sincronia, onde são apresentados
dados populacionais e demográficos sobre o Pirakua no momento em que realizei a pesquisa.
Nesse capítulo são também apresentados alguns dados de campo que elucidam como se
compõem e como se desenvolvem as relações sociais no Pirakua.
O último capítulo reflete acerca das modalidades de organização social dos Kaiowa do
Pirakua, em particular, a interação entre as relações de parentesco e as práticas políticas,
propondo uma leitura que associa estas práticas com as esferas sociais e de cooperação de
modo a construir um modelo que suporte a analise realizada em seguida sobre a chefia
Kaiowa do Pirakua, sob a tese de que a chefia não detém poder e sim prestígio.
28
Levando em consideração que o todo se sobrepõe e orienta as relações entre as partes,
é necessário frisar que a relação dos termos é mais importante que a própria disposição destes.
Para compreender essas relações esta pesquisa focou na necessária apreciação entre os termos
apreendidos quantitativamente.
Durante a pesquisa foi essencial criar uma terminologia para agregar e evidenciar
grupos de pessoas que cooperam entre si nas esferas do social, do econômico e do político.
Para isso acredito que o termo grupos de suporte pode ser a chave para apreender como
acorrem as agregações e as diferenciações no desenrolar da política interna e cotidiana do
Pirakua.
Como tratado no último subitem, somente a partir da análise das relações de
parentesco e afinidade será possível compreender por quais meandros se desenrola a política
Kaiowa e de que maneira ocorre a atuação da liderança. Pressupõe-se, assim, que essa
liderança não é a autoridade que detém o poder coercitivo na sociedade, mas sim é a pessoa
que, valorada pelo prestígio, consegue agregar entorno de si um grupo de parentes
consanguíneos e “virtuais” que somado aos relacionamentos que se baseiam na afinidade
articula-se como a pessoa que fala para o grupo internamento e sobre o grupo no exterior.
29
...
30
CAPÍTULO I – CONSIDERAÇÕES SOBRE O CONTATO: PERDA DA TERRA,
ESPARRAMO, CONFINAMENTO KAIOWA E GUARANI E OS PROCESSOS DE
RESISTÊNCIA
Este capítulo se constitui a partir de necessárias reflexões preliminares para se
compreender basicamente o processo histórico do contato que ocorreu entre os Kaiowa e
Guarani em Mato Grosso do sul e a sociedade nacional, migrante e colonizadora. São
discutidas questões referentes à perda da terra pelos Kaiowa e Guarani, o processo de
confinamento18 e de esparramo (sarambi) e a ação do indigenismo oficial que através de
práticas colonialistas empreendeu ações que até hoje tentam ser revertidas pelos próprios
Kaiowa e Guarani em MS que se organizam enquanto movimento indígena e passam a lutar
pela devolução dos territórios e pela garantia e ampliação de direitos.
O enfoque e as discussões teóricas, de certo modo, destoam do que será apresentando
no restante do trabalho. No entanto, considerando que a antropologia – ou as antropologias – e
suas teorias podem, até certo ponto, dialogar entre si, aqui a tentativa é buscar através da
reflexão antropológica, que em parte pode ser compreendida, metaforicamente, como um
olhar (ocidental, particular, relativizando, etc.) que necessariamente precisa ajustar o foco
para compreender o que deseja observar.
Portanto, no caso deste capítulo o foco é brevemente relatar como se deram os
processos coloniais no sul de Mato Grosso do Sul, de modo a complementar as reflexões que
surgem no próximo capítulo, basicamente focado na perspectiva de tentar sistematizar a
história da resistência e da conquista contada pelos moradores do Pirakua.
18
Confinamento seria o processo histórico de ocupação do território por frentes não indígenas, que se seguiu à
demarcação das reservas indígenas pelo SPI, forçando a transferência dessa população para dentro dos espaços
definidos pelo Estado como posse indígena. Indica, portanto, o processo de progressiva passagem de um
território indígena amplo, fundamental para a viabilização de sua organização social, para espaços exíguos,
demarcados a partir de referenciais externos, definidos tendo como perspectiva a integração dessa população,
prevendo-se sua progressiva transformação em pequenos produtores ou assalariados a serviço dos
empreendimentos econômicos regionais (Brand, 1997).
31
1.1 Povo Kaiowa e Guarani: Ação do Estado e Confinamento
O território ocupado hoje pelos atuais Estados Nacionais da Argentina, Brasil, Bolívia
e Paraguai, em sua grande parte, pode ser considerado [o território] como espaços tradicionais
de ocupação do povo Guarani19.
Atualmente a população Guarani Kaiowa da região sul do estado de Mato Grosso do
Sul é de aproximadamente 31.000 pessoas, enquanto que a Guarani Ñandeva20 é contabilizada
entorno de 13.000 no Brasil (MS, PR, RS, SC, SP)21. No entanto, a população estimada para
ambos os grupos, que dividem espaço em muitas das terras hoje em Mato Grosso do Sul, é de
aproximadamente 40.000 pessoas, distribuídas em 28 áreas e com muitos outros grupos que
hoje vivem em acampamentos a beira da estrada ou em processo de retomada à espera de
decisões judiciais sobre a demarcação de terras indígenas.
É possível mensurar o tamanho do território de ocupação Kaiowa e Guarani anterior
ao contato com sociedades nacionais através de relatos de cronistas e missionários em
pesquisas históricas e etnográficas. Eva Maria Ferreira (2007) relata que o território Kaiowa e
Guarani apresentou no passado características e dimensões que se modificaram muito a partir
do contato com a população nacional tendo esse território uma abrangência aproximada, por
informações dispostas em registros do período colonial, que“[...]se estendia desde o rio Apa
até o rio Miranda, tendo ao leste a serra de Amambai e, a oeste, o rio Paraguai.” (Ferreira,
2007, p, 23).
19
O termo “povo Guarani” neste contexto tem o intuito de servir como uma unidade sociológica que inclui
vários povos de língua guarani. Cf. SCHADEN, Egon. Aspectos fundamentais da cultura Guarani. 3ª Edição.
São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1974, p. 11: “relativa uniformidade no tocante à língua, à
religião, à tradição mítica e a outros setores da cultura”.
20
Refiro-me aos Guarani Kaiowa apenas como “Kaiowa” e os Guarani Ñandeva somente como “Guarani”, pelo
fato dessa ser a forma de autoidentificação dada pelos integrantes do próprio grupo a sua identidade. Em
diversos momentos do texto utilizo e utilizarei mais adiante o termo “Kaiowa e Guarani” como forma de incluir
na argumentação ambos os povos (Guarani Kaiowa e Guarani Ñandeva), sabendo, e ressaltando aqui, que ambos
são povos que apesar de falarem línguas muito próximas e de apresentarem aspectos sociais, culturais e
econômicos bastante similares, se constituem como povos diferentes e afirmam a sua diferença em diversos
momentos oportunos.
21
Sobre esses dados populacionais, consultar o sítio do Instituto Sócio Ambiental.
http://pib.socioambiental.org/pt/povo/guarani-kaiowa e http://pib.socioambiental.org/pt/povo/guarani-nandeva .
32
Observando, mesmo que brevemente, a situação atual das comunidades de Kaiowa e
Guarani de Mato Grosso do Sul, torna-se, portanto, perceptível a grande diminuição do
território imposto a diversas famílias e comunidades Kaiowa e Guarani.22
O processo que levou os Kaiowa e Guarani a viverem em Reservas evidentemente se
embasou em uma situação histórica23 guiada por elementos de cunho colonial. A dominação
nas relações empreendidas pelo Estado Nacional de maneira nenhuma ocorreu de forma
passiva para os dominados, pois esses reagem de maneira ativa no decorrer das ações
realizadas na região “reinterpretando, selecionando e remanejando as pressões que recebe do
polo dominante” (Pacheco de Oliveira, 1988, p. 10).
Neste item da dissertação o processo histórico realizado pelo Estado e pelo órgão
indigenista oficial em Mato Grosso do Sul durante o processo de territorialização dos Kaiowa
e Guarani tem como fio condutor o conceito de confinamento desenvolvido por Antonio J.
Brand (1997). E, desse modo, não é descartada a necessidade de se realizar uma breve análise
sobre os impactos no modo de vida das comunidades no decorrer do processo de
reservamento – e consequentemente de perda de uma grande parte do território de uso
tradicional dos índios – para se compreender a história de resistência das famílias que vivem
atualmente no Pirakua.
O antropólogo Levi Marques Pereira, no quarto capítulo de sua Tese sobre as Imagens
Kaiowá do sistema social e seu entorno (2004), realiza um movimento reflexivo sobre o
conceito de confinamento. Acreditando na relevância dos pontos que Pereira levanta sobre o
conceito de confinamento desenvolvido por Brand (1997) como relevantes para pensar o
processo de territorialização24 imposto aos Kaiowa e Guarani em Mato Grosso do Sul – e
também para compreender parte do processo de luta pela terra no Pirakua –, nos prenderemos
à reflexão.
Pereira (2004, p. 351) afirma que o confinamento exerce caráter duplo de
funcionamento, “espacial e principalmente cultural”, como fator desestabilizante do sistema
22
Mesmo não tendo o principal enfoque nas teorias do contato nesta parte do trabalho faz-se necessário pontuar
a grande importância das ideias relacionadas aos processos de territorialização desenvolvidas por Pacheco de
Oliveira, que afirma: “A atribuição a uma sociedade de uma base territorial fixa se constitui em um ponto-chave
para a apreensão das mudanças por que ela passa, isso afetando profundamente o funcionamento das suas
instituições e a significação de suas manifestações culturais.” (1998, p. 55)
23
Pacheco de Oliveira (1988, p. 57) define situação histórica como a “noção que não se refere a eventos
isolados, mas modelos ou esquemas de distribuição de poder entre diversos atores sociais” [destaques no
original]
33
social kaiowa e gerador de diversos impasses entre lideranças consideradas como “jovens” e
as lideranças “tradicionais” (como xamã; chefes de parentela; lideranças políticas
(mburuvicha); anciãos da sociedade e etc.).
No cenário multiétnico ou na dimensão espacial, estão confinados em
relação aos segmentos majoritários das suas comunidades, alinhados com a
perspectiva dos ‘brancos’, como as lideranças jovens, pentecostais, ‘índios
letrados’, etc. O confinamento se reflete internamente na aplicação das
categorias ‘jovens’ e ‘antigos’ (Pereira, 2004, p. 351).
Portanto a perda do território e o processo de territorialização, em reservas, promovido
pelo Estado Nacional, desfez e separou diversas parentelas. Desse modo, fragmentando
politicamente diversas comunidades comprometendo a reprodução física e cultural de
diversas parentelas Kaiowa e Guarani e criando uma série de problemas no interior das
comunidades confinadas nas reservas:
Tal situação comprometeu e segue comprometendo a reprodução física e
cultural da população kaiowa e guarani, criando sérios impasses para a
convivência da população aglomerada nas reservas, o que se expressa no
agravamento de problemas sociais como a violência, conflitos internos,
desnutrição infantil e mesmo em frequentes surtos epidêmicos de suicídios.
(Pereira, 2010, p. 118)
O Serviço de Proteção aos Índios (SPI), entre 1915 e 1928, delimitou oito reservas
para os Kaiowa e Guarani no atual Mato Grosso do Sul25 (Dourados, Caarapó, Amambai,
Limão Verde, Taquaperi, Sassoró, Pirajuí e Porto Lindo), assinaladas no mapa abaixo; o
restante é resultado de demarcações realizadas pela FUNAI, a partir da década de 1980, fruto
de mobilizações dos próprios Kaiowa e Guarani que em alguns casos resistiram (como é, por
exemplo, o caso do Pirakua) no local que ocupavam e em outros retornam para retomar o
local de ocupação tradicional (tekoha) fruto de esbulho no processo histórico de ocupação do
estado de Mato Grosso do Sul.
24
Pacheco de Oliveira (1998, p. 54) define o processo da seguinte maneira: “[...] a atribuição a uma sociedade de
uma base territorial fixa se constitui em um ponto-chave para a apreensão das mudanças por que ela passa, isso
afetando profundamente o funcionamento das suas instituições e a significação de suas manifestações culturais”.
25
Antigo sul do estado de Mato Grosso, divido em Mato Grosso e Mato Grosso do Sul no ano 1977.
34
Figura 1 – terras Kaiowa e Guarani em MS
Fonte: Geoprocessamentos do Programa Kaiowá Guarani, NEPPI, UCDB (2005). Disponível em:
<http://www.trilhasdeconhecimentos.etc.br/mato_grosso_do_sul/guarani.htm>. Acesso em: 03 nov. 2012.
O reservamento de terras para os Kaiowa e Guarani em Mato Grosso do sul realizado
nas décadas de 1910 e 1920, cumpre, como afirma Lima (1995) o “melhor produto” da
dinâmica tutelar. A ação do SPI ao demarcar essas reservas iniciais sinaliza e oficializa o
processo de confinamento e de acomodação que os Kaiowa e Guarani sofreram,
representando uma forte estratégia colonialista que se embasava na tutela para realizar a
intervenção junto aos povos indígenas no Brasil. Nesse sentido a ação colonialista tem como
principal caractere a unilateralidade das ações, desconsiderando as possíveis demandas e
perspectivas do objeto da ação.
Naquele momento não havia preocupação por parte do Estado em demarcar as terras
que os Kaiowa e Guarani já vinham ocupando. A Reserva passou então a cumprir a função
política e de áreas de acomodação26, como afirmam Jorge Eremites de Oliveira e Levi
Marques Pereira. A finalidade era liberar as terras para a especulação imobiliária garantindo a
26
PEREIRA (2007, p. 03) propõe que as reservas podem ser consideradas como “áreas de acomodação”, pois lá
se instituem espaços sociais geradores de novas características nas figurações Kaiowa que se “acomodam” a uma
nova realidade.
35
posterior ocupação agropecuária, “[...]dessa maneira a reserva se transformou em área de
acomodação para a população de diversas comunidades indígenas” (2009, p. 107).
As reservas foram constituídas e definidas em processos de alienação, arbitrário e
desrespeitoso às dinâmicas internas das comunidades. Lima (1995, p. 76) define as reservas
indígenas da seguinte maneira:
[...] porções de terra reconhecidas pela administração pública através de seus
diversos aparelhos como sendo de posse de índios e atribuídas, por meios
jurídicos, para o estabelecimento e a manutenção de povos indígenas
específicos. (destaques no original)
Segundo o mesmo autor, é possível pensar o poder tutelar27 integrado a elementos da
sociedade nacional que pretendem a soberania (enquanto controle e administração dos
territórios) e a disciplina (na busca de sedentarização dos povos tutelados e de inserção desses
a um sistema de produção nacional). “O exercício do poder tutelar implica em obter o
monopólio dos atos de definir e controlar o que seja a população sobre a qual incidirá.”
(LIMA, 1995, p. 74).
A estratégia do Estado até momentos bastante recentes de nossa história – o primeiro
avanço mais significativo em relação à integração e tutela dos índios no Brasil se deu com a
inserção do artigo 231 na Constituição de 1988 – era a de integrar e aculturar, através da
prática da tutela – que considerava os povos ameríndios como incapazes de se autogovernar –
exercida pelo órgão indigenista oficial.
Os povos indígenas eram considerados como grupos transitórios. A criação
de reservas indígenas e toda a estrutura de “proteção” eram consideradas
apenas uma etapa no processo evolutivo que culminaria com o seu
desaparecimento. Os indígenas passariam por etapas de humanização,
através da religião católica e da educação escolar, até atingir um patamar
superior considerado “civilização”. (Brighenti, 2010, p. 177)
27
O conceito de “poder tutelar” é definido no estudo do antropólogo Antonio Carlos de Souza Lima; Onde Lima
demonstra que as práticas do Estado em relação aos povos indígenas mantinham em vista a ideia de assimilação,
integração e a inserção desses povos em meio a sociedade nacional como trabalhadores rurais, dessa forma,
agindo através de praticas embasadas em uma visão e uma ação bastante colonialista, ou seja, que reproduzia a
ideia de metrópole e de colônia, sendo a sociedade nacional relacionada a primeira enquanto que os povos
indígenas se relacionariam a segunda. Cf. LIMA, Antonio C. de Souza. Grande Cerco de Paz: poder tutelar,
indianidade e formação do estado no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1995.
36
O poder tutelar não tinha como intenção ser uma ação perpétua por parte das políticas
do Estado, seu término ocorreria quando os povos indígenas estivessem incorporados
(“civilizados”) e ajustados à sociedade nacional.Assim sua função era de mediação entre a
cultura dos índios e dos não índios, de forma política, disciplinadora e pacificadora, dessa
forma “[...]regularizando minimamente o mercado de terras e criando condições para o
chamado desenvolvimento econômico” (Pacheco de Oliveira, 1998, p. 52).
A estratégia da administração era sedentarizar esses povos considerados empecilhos
para o desenvolvimento econômico e social da Nação nas regiões em que esses povos
habitavam, realizando sua fixação em lugares previamente definidos e coordenados por um
Posto Indígena (PI) que era comandado por uma pessoa designada chefe de posto, um
funcionário do órgão indigenista oficial, quase unanimemente não índio, com o encargo de
tornar os índios produtivos. Produtivos ao modo ocidental de produção e nos parâmetros
impostos pelo Estado Nação. Essa ação facilitava a atuação para as políticas do Estado e do
órgão indigenista28.
A prática de aldear os povos indígenas foi promovida pelo Estado desde o período
colonial, até a promulgação da Constituição Federal de 1988, em que estava prevista a
demarcação de terras indígenas respeitando as especificidades dos usos, costumes e tradições
de cada povo.
O processo histórico de aldeamento indígena estava intrinsecamente relacionado às
ações e interesses das frentes de expansão agropecuárias, porém, para isso era necessário
delimitar o espaço reservado aos indígenas – como o caso da demarcação das oito reservas
iniciais – e convencê-los e em alguns casos até mesmo coagi-los a nelas se recolherem. Essa
medida era vista como uma ação humanitária por parte do Estado, porque nos aldeamentos os
índios teriam suas vidas preservadas e receberiam assistência e orientação para se tornarem
cristãos e “civilizados”:
O “aldeamento indígena” era visto, portanto, como o espaço privilegiado
para o desenvolvimento da prática missionária, de programas de educação
escolar e introdução de práticas econômicas voltadas para o atendimento das
necessidades do mercado. Acreditava-se que o conjunto dessas ações iria
preparar gradativamente a população indígena para o destino irrefutável da
diluição da contrastividade étnica, resultando em sua plena assimilação.
(Oliveira; Pereira, 2009, p. 47)
28
Ver BRAND, 1997; OLIVEIRA & PEREIRA, 2009; BRIGHENTTI, 2010.
37
Nas reservas destinadas aos Kaiowa e Guarani em Mato Grosso do Sul o chefe de
posto era incumbido de implantar uma nova forma organizacional em busca de viabilizar a
convivência da população que lá se acomodaria. Sendo ainda prática do chefe do Posto
Indígena nomear entre os índios um capitão, que lhe serviria como seu ajudante de ordens.
Na reserva a autoridade máxima era o chefe de posto, que detinha a
prerrogativa de substituir a liderança indígena sempre que julgasse
necessário. Ele também interferia em todos os assuntos internos da
comunidade, decidindo sobre a convivência ou não da realização de festas,
venda de madeira e contratos de trabalho para a prestação de serviços aos
proprietários rurais, além de planejar e organizar mutirões para atender as
necessidades produtivas do Posto Indígena. (Oliveira; Pereira, 2009, p. 49)
Para exemplificar a atuação do chefe do posto, aponto abaixo a fala de uma liderança
da Reserva indígena de Dourados, feita durante uma assembléia na Missão Bororo de Meruri
no ano de 1975, em Mato Grosso, em que ele expõe brevemente o grau de interferência que o
encarregado do posto indígena, através do órgão indigenista, poderia exercer sobre a
população das reservas:
Estou reclamando do que tem acontecido com os índios Caiouás que, por
qualquer coisa, são transferidos. Como o índio pode possuir alguma coisa na
vida, assim desse jeito? Os índios são transferidos como gado que a gente
pega e põe num campo e no outro [...]. Outra coisa que eu quero dizer é que
lá, os índios ganharam um trator, mas o trator fica nas mãos do capitão.
(Prezia, 2006, p. 43)
De fato a demarcação de áreas pequenas e descontínuas destinadas às populações
Kaiowa e Guarani do sul de Mato Grosso do Sul demonstrava o evidente intuito de
transformar esses povos em trabalhadores nacionais, tutelados pelas ações do órgão
indigenista oficial, que passa a administrar e controlar tanto as terras quanto a inserção dos
Kaiowa e Guarani à sociedade nacional, de forma local expressada diretamente nas ações e
interesses do Posto Indígena e de seu chefe.
As elites nacionais pretendiam “desindianizar” os Kaiowa e Guarani do sul de MS,
fato que logicamente não ocorreu. Mas, como verificamos aqui, afetou de forma significativa
suas condições de vida:
38
O confinamento dos Kaiowá e Guarani não significou apenas a perda de
terras de ocupação tradicional e conseqüentemente problemas para a
satisfação de suas necessidades e demandas por proteção, segurança
alimentar, saúde, entre outros, mas impôs-lhes profundas transformações em
relação a sua organização social (Brand; Colman; Costa, 2008, p. 173)
Este processo de confinamento tem seu auge na década de 1980, dessa forma,
tornando os Kaiowa e Guarani, aglomerados reservas, a passarem a ser a mão-de-obra barata
e, portanto preferida para os trabalhos de plantio e colheita da cana nas usinas de álcool que
estavam sendo instaladas na região. Objetivamente, o reservamento é uma última alternativa
encontrada pelos indígenas em busca da manutenção da sua sobrevivência.
A atividade nas usinas de álcool, que absorve a quase totalidade de mão-deobra indígena, ao contrário do desmatamento e da limpeza de pastos, que se
caracterizou pelo esparramo, exigiu o confinamento e a sua concentração.
(Brand, 1997, p.90, Destaques no original)
Os trabalhos temporários praticados pelos índios fora das reservas foram substituídos
pelo trabalho assalariado compulsório. Dentro das reservas não existem alternativas viáveis de
subsistência e sob a ótica do capitalismo e do assalariamento quanto mais concentrada estiver
a mão de obra, mais fácil é sua orientação e seu controle (Brand, 1997, p. 91).
Em 1990 tem início a implantação de usinas de álcool na região, que exigiam o
emprego intensivo de mão de obra:
A changa, enquanto trabalho temporário prestado pelos índios fora das
Reservas, cedeu lugar ao assalariamento continuo de até 10 meses por ano.
Trata-se de um assalariamento compulsório, porque dentro das Reservas
inexistem outras alternativas viáveis de subsistência. (Brand, 1997, p. 91)
Esse processo histórico coloca as comunidades Kaiowa e Guarani em um contexto de
negação de seus direitos. A atual situação desses povos é alarmante, tendo como principal
fator desta degradação a falta de terras acarretada pela condução ideológica das políticas do
Estado a favor dos colonos, que migraram para a região ao longo do século XX. As
demarcações, seccionaram e fragmentaram o território tradicional, desmobilizando e
desorientando muito os padrões de organização social, principalmente pelo cerceio do acesso
a vínculos com a terra, relacionados à tradição e ao nosso modo de ser (ñande reko).
39
1.2 A Perda do Território (Ñane Retã) e os Processos Históricos Sobre os Territórios Kaiowa
e Guarani em Mato Grosso do Sul
Tinha este órgão [indigenista oficial] clareza sobre a
importância do território para a continuidade do modode-ser tradicional; tinha clareza sobre o impacto do
confinamento na economia, na sociedade e na religião
tradicionais. (Brand, 1997, p. 262-263)
Para compreender a relação entre modo de viver tradicional e território é preciso
revisar o significado desses conceitos no interior da cultura Guarani, oferecendo elementos
para a compreensão do impacto do processo de reservamento sobre a cultura tradicional. O
conceito de ñande reko (nosso modo de ser) na cultura Guarani só é, obviamente, possível em
uma situação dada no seio de seu contexto cultural, mais especificamente é um “nós”
inclusivo de todo o grupo que possuí características e dinâmicas culturais bem específicas,
onde se incluem implicitamente a esse modo de ser uma socialização e uma historicidade que
possibilitam essa alteridade sentida e ressaltada principalmente nos momentos de contato e de
conflito com outros grupos29.
Espalhados por um vasto território mantinham uma organização social basicamente
orientado em dois sistemas de cooperação, a família extensa e o tekoha. A família extensa é
uma unidade de produção comunal (roças, edificação de casas, viagens, pesca e etc.) de uma
parentela composta por uma chefia que concentrava o prestígio e a responsabilidade das
decisões que interessam a família; O tekoha se constituí como a base política, social e
religiosa das comunidades, se manifestando principalmente em festas religiosas, decisões
políticas – a exemplo das Aty Guasu (grande reunião) – conflitos externos (resistência contra
invasões de terras e retomadas), ameaças sobrenaturais como a feitiçaria má contra alguém ou
contra a comunidade. (Melià; Grümberg; Grümberg, 2008)
A terra para um Guarani esta relacionada à sobrevivência física, social, política e
cultural. Os frequentes embates em reconquista de terras pelos Kaiowa e Guarani e a grande
dificuldade de diálogo entre índios, Estado e agricultores acaba gerando um cenário
29
Além de ser possível constatar o uso e o entendimento dessa expressão – ñande reko – em etnografias (Cf.
BRAND, Antonio J. O impacto da perda da terra sobre a tradição Kaiowá/Guarani:os difíceis caminhos da
Palavra. Tese de doutorado, História da PUC/RS, 1997, 382 p.; MELIÀ, Bartomeu; GRÜNBERG, Georg;
GRÜNBERG, Friedl. Paï–Tavyterã: etnografia guarani del paraguay contemporáneo. 2° edição. Asunción:
CEADUC/CEPAG, 2008) já tive a oportunidade observar o uso do termo nãnde reko como relacionado a um
modo de vida “mais tradicional” tanto entre grupos Guarani Kaiowa e Guarani Ñandeva de Mato Grosso do Sul
como entre um grupo Guarani Mbya de São Paulo (aldeia Tenondé Porã).
40
contrastante na vida desses povos, que em pouco mais de 50 anos passou por intensas
transformações.
A economia tradicional Guarani30 se distingue muito da forma econômica encontrada
em sociedades de tradição ocidental, pois se divide basicamente em unidades de produção e
consumo coletivos que se orienta em torno da distribuição, redistribuição e reciprocidade,
baseada principalmente no conceito de propriedade não individual:
[...] la mayor repartición posible de los riesgos para poder garantizar la
supervivencia de la comunidad. Es una economía de interés comunal (de
familias extensas e del tekoha) orientada hacia el abastecimiento óptimo de
sus miembros y dependiente da cooperación de todos ellos. (Melià;
Grümber; Grümberg, 2008, p. 109)
Portanto, no processo de trabalho não existe a apropriação individual dos meios de
produção. A terra, até o início da disputa por ela com colonos e com a sociedade nacional era
um bem comum, coletivo, que deve se integrar aos homens e que deve ser usada segundo as
leis divinas. Somente Ñande Ru ou Ñane Ramõi possuí propriedade sobre a terra; terra e
corpo são interpretados como parte da mesma coisa: “porque los cuerpos se convierten en la
tierra después de la salida del alma y así somos nosotros la tierra, nuestros antepasados y
nuestros hijos al mismo tiempo!” (Melià; Grümber; Grümberg, 2008, p. 111).
A divisão do trabalho é realizada através dos sexos, o que Pierre Clastres vai chamar
de oposição entre o arco e o cesto em sua etnografia sobre os Aché (subgrupo Guarani) do
Paraguai:
Cada um desses dois instrumentos [o arco e o cesto] é, com efeito, o meio, o
signo e o resumo de dois ‘estilos’ de existência tanto opostos como
cuidadosamente separados. [...] o arco, arma única dos caçadores, é um
instrumento exclusivamente masculino, ([...]) o cesto, coisa das mulheres, só
é utilizado por elas: os homens caçam e as mulheres carregam. (Clastres,
2003, p. 123)
Aos homens destinam-se os trabalhos de derrubada de árvores e queimadas para o
plantio; caça; coleta de mel, erva-mate e lenha; cuidados com os animais; edificações de casas
e etc. Já as mulheres são encarregadas principalmente da produção de cerâmica e cestos,
30
Neste ponto, sobre a economia dos Guarani, de maneira mais genérica me remeto diretamente ao a etnografia
de Melià, George e Paz Grünberg “Los Paĩ Tavyterã” (2008).
41
tecidos e de plantar o avaty morotï31 entre outros tubérculos comestíveis. Sendo que ambos os
sexos participam de atividades de pesca, coleta e cuidados das criações domésticas.
A agricultura tem uma função essencial na vida dos Guarani,32 se relacionando
diretamente com :
“Puesto que labrar su propia tierra no es considerado trabajo, sino más bien
cumplimiento del deber religioso y social (teko ndaha’ei tembiapo), la
agricultura está muy vinculada a su ideología.”(Melià; Grümberg;
Grümberg, 2008, p. 116).
No caso de Mato Grosso do Sul, a imposição de um progressivo assalariamento,
primeiro na colheita da erva-mate, depois nas derrubadas e no trabalho de implantação das
fazendas de gado, e atualmente, nas usinas de álcool é um fator que contribui para a
desestruturação e a instabilidade das famílias, tanto as famílias extensas, como as nucleares
(Brand, 1997, p. 263).
O tempo que esta mão de obra, em sua maioria homens adultos, é retirada das reservas
para trabalhar e acaba inviabilizando momentos importantes de socialização, como a
realização de festas e o ritual de iniciação para a fase adulta dos meninos (mitã pepy33e o
avatikyry34) – principalmente atividades relacionadas à agricultura, pesca e caça.
É necessário compreender que a prática do ñande reko só se dá em um espaço
geográfico e de uma “territorialidad política” (Melià; Grümber; Grümberg, 2008, p. 106),
que, em guarani, recebe o nome de ñane reta. Sendo este o lugar designado por Ñande Ru ou
Ñane Ramõi35 para uso e desfrute da terra pelos Kaiowa e Guarani. A particularização do
termo ñane reta é ñande rekoha – lugar do nosso modo de ser, onde somos o que somos – ou
seja, o lugar onde é possível o ñande reko (nosso modo de ser).
31
O avaty morotï (milho branco) é o cultivo mais sagrado dos Guarani; é como uma criança que recebe vários
cuidados especiais. “Se preparan sus rozados aparte, en la mejor tierra y nunca se mezclan sus semillas con otras
variedades de maíz. (…)[além de ser usado na produção da chicha (kãgui) é] objeto de un ciclo de rezos, cantos
y bendiciones (ñembo’e, mborahéi y jeovasa). Cf. MELIÀ, Bartomeu; GRÜMBERG, Georg; GRÜMBERG,
Friedl. Paï–Tavyterã: etnografia guarani del paraguay contemporâneo. 2° edição. Asunción: CEADUC/CEPAG,
2008.
32
Com exceção de alguns grupos nômades. Como é o caso dos Aché do Paraguai. Cf. CLASTRES, Pierre.
Crônica dos índios Guayaki: o que sabem os Aché, caçadores nômades do Paraguai. Traduzido por Tânia
Stolze Lima e Janice Caiafa. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995
33
O mitã pepy é considerado uma festa de grande importância para o grupo, é a celebração da incorporação de
novos membros masculinos a comunidade adulta, onde se realiza a perfuração labial e a colocação do tembeta ou
tembequa .
34
Avatikyry é uma festa da chicha (bebida sagrada para os Guarani feita a base de milho) geralmente envolve
quase toda a comunidade do tekoha. Sendo a chicha preparada exclusivamente pelas mulheres.
35
Ambos referem-se à entidade criadora e doadora do mundo para uso dos Guarani (Kaiowa, Ñandeva e Mbya).
42
O processo de transformação do território de ocupação tradicional dos Kaiowa e
Guarani de Mato Grosso do Sul iniciou-se com o fim da Guerra entre o Paraguai e a Tríplice
Aliança (1864-1870). Uma vez que, a partir daí tem início a incipiente ocupação por frentes
de colonos e criadores de gado no estado, que atinge em cheio locais onde os indígenas
radicavam seus tekoha. Essa ocupação é gradativa, sendo concretizada com mais veemência a
partir da década de 1950 com os incentivos por parte do Estado para a ocupação do CentroOeste36.
As áreas que apresentavam ervais nativos37 em abundância sofreram impactos pela
instalação da Cia Matte Larangeira, isso a partir de 1890, que segundo Brand (1997, p. 91)
“[...] ela [Cia Matte Larangeira] atingiu especialmente, as regiões de Caarapó, Juti, Ramada,
Amambai, Campanário e outras”. No entanto a relatos dos moradores da região do rio Apa
(entre Bela Vista e Antonio João) que era comum na região a exploração da erva-mate por
empreendedores não índios.
A primeira frente de expansão econômica e de contato que causou impacto sobre o
território e vida dessas populações foi, portanto, a ação extrativista realizada pela Cia Matte
Larangeira. Nesse sentido, observa-se que:
Com o final da Guerra [entre Paraguai e a Tríplice Aliança], as autoridades
locais veem a necessidade de proteger as fronteiras, adotando como medida
urgente radicar aí homens “brancos” e estabelecer postos militares, para
impedir a entrada de estrangeiros. Dessa forma, o pós-guerra assistiu a um
incremento na vinda, para o Sul de Mato Grosso, de inúmeros migrantes
tanto paraguaios como brasileiros vindos de Minas Gerais, São Paulo,
Paraná e Rio Grande do Sul. (Ferreira, 2007, p. 28)
A exploração da erva-mate correu sobre diversas áreas de ocupação Kaiowa e Guarani,
desestabilizando a forma e os sentidos de uso, consumo e reprodução que esses tinham da
terra. Muitos indígenas estabeleceram relações de trabalho com a Cia Matte Larangeira,
sofrendo exploração e endividamento quando adquiriam mercadorias, quase sempre
superfaturadas, nos barracões da Cia Matte.
Talvez seja possível fazer um paralelo com a ideia de regime de “barracão”. Onde,
Roberto Cardoso de Oliveira em sua obra “O índio e o Mundo dos Brancos” (1981) e suas
36
Cf. OLIVEIRA & PEREIRA, 2009.
No entanto, segundo o Professor Jorge Eremites de Oliveira existem trabalhos de arqueologia que afirmam que
a região dos ervais explorada pela Companhia Matte Larangeira eram obra de anos de manejo dos povos
autóctones que viviam naquela região.
37
43
pesquisas com o Povo Tikuna do Alto Solimões, afirma que o regime de barracão se constitui
basicamente na empreitada de um não índio que se apropria de um determinado espaço
utilizado por um povo, ali estabelece um sistema de exploração da mão de obra baseado no
pagamento em mercadorias exógenas à cultura local gerando um sistema de endividamento,
que o sujeito que trabalha, sendo explorado em parte de seu próprio território, acaba por não
conseguir sair desse ciclo de divida a não ser fugindo para outra área38. Tratando-se de um
sistema de exploração da mão de obra dessas populações, e em decorrência disso, numa
espécie de servidão por dívida. Como é possível conferir novamente aqui Serejo (1986, p.
144, apud BRAND, 1997, p.68-69) diz que “caso raro raríssimo mesmo – nos ervais, um peão
com Haber na caderneta”.
Brand (1997, p.68-69), adiante, situa a estratégia do “adiantamento” como forma de
“selar o compromisso” sendo um “forte mecanismo de forçar a manutenção dos trabalhadores
nos ervais”. Conclui que a estratégia de “prender o trabalhador aos ervais através da divida foi
usada por mais de meio século”.
Paralelo a isso ocorre o esparramo39 ou sarambi40, fazendo com que parte da
população Kaiowa e Guarani, ao se encontrarem em uma relação de exploração e dependência
inesgotável, acabe fugindo para outras áreas onde ainda poderiam viver em busca de manter
as práticas culturais e sociais sem o contato e a opressão da Cia Matte Larangeira e de seus
encarregados. Esses locais eram, por exemplo, fundos de fazendas que ainda mantinham
algum resquício de mata nativa. Todas essas transformações desmantelam vários tekoha e
grupos de parentelas que acabaram se acomodando durante a década de 1980 nas reservas que
serviram como áreas de acomodação e, desse modo, também como espaços de reorganização
política.
O monopólio da Cia Matte Larangeira foi quebrado, Segundo Ferreira e Brand (2009,
p. 110), a partir do decreto Lei nº 725, de 24 de setembro de 1915: “[...] quebrou-se o
38
Cf. FERREIRA, Eva Maria Luiz. A participação dos índios Kaiowá e Guarani como trabalhadores nos
ervais da Companhia Matte Laranjeira (1902-1952). Dourados (MS): Universidade Federal da Grande
Dourados (Dissertação de Mestrado), 2007.sobre a participação dos índios Tikuna da região do Alto Solimões
conferir LÓPEZ, Claudia L. .“Procesos de formación de fronteras en la región del alto Amazonas/Solimões:La
historia de las relaciones interétnicas de los Ticuna”, 2005.
39
BRAND (1997) define o processo de esparramo (sarambi) como um movimento dispersivo de diversas
comunidades Kaiowa e Guarani pela região sul de MS. O esparramo tem seu inicio marcado pela exploração da
erva mate (final do séc. XIX) e segue até a fim do processo de formação das fazendas e o início da mecanização
da produção (déc. 1970 e 1980), antecedendo o momento mais forte do reservamento das populações indígenas
da região.
40
Sarambi: dispersão; confusão; falta de sentido e orientação. Cf. PEREIRA. Levi. Demarcação de terras kaiowa
e guarani em MS: ocupação tradicional, reordenamentos organizacionais e gestão territorial. In: Tellus. Campo
Grande. Ano10, n. 18, p. 115 – 137. Jan – Jun 2010.
44
monopólio da Companhia Matte Larangeira, embora seu domínio tenha permanecido até
1943.” quando então o Presidente Getúlio Vargas, que criou o Território Federal de Ponta
Porã anulando definitivamente os direitos da Matte. Ao romper com os direitos da Cia Matte
Larangeira, o Estado tinha como objetivo liberar as terras do sul de Mato Grosso para a
colonização.
A criação da Colônia Agrícola Nacional de Dourados (CAND) em 1943 pode ser
considerada como um fator incentivador da migração em busca de terras na região sul de
Mato Grosso. O impacto do processo é bem maior que o da exploração de erva-mate pela Cia
Matte Larangeira, principalmente porque nesse momento ocorria a exploração efetiva do
território, pela agricultura e principalmente pela pecuária (bovinocultura) até a década de
1960.
A partir da criação da CAND, em 1943, a especulação pela terra se acirrou no sul de
Mato Grosso do Sul, surgindo um novo modelo econômico e, por conseguinte, colonizador na
região: o da formação das fazendas e dos empreendimentos agropecuários que se somavam
paralelamente ao processo de retirada das populações Kaiowa e Guarani que ainda viviam em
“fundos de fazenda” – em matas que ainda não tinham sido alcançadas pela ocupação
agropecuária.
Esse processo tornou-se mais intenso no período que vai da década de 1940
à 1980, quando as fazendas foram definitivamente implantadas, a mata foi
totalmente derrubada e os índios refugiados em “fundos de fazenda” foram
“descobertos” e dali retirados. Nas reservas ainda hoje em dia é comum
presenciar a chegada de “índios de fazenda”, que muitas vezes são as últimas
famílias de comunidade que foram sendo retiradas aos poucos, como no caso
da comunidade Cerro’i, também chamada de Ita Vera’i, localizada no
municio de Guia Lopes da Laguna, da qual o Ministério Público Federal, a
FUNASA e a própria FUNAI tomaram conhecimento muito recentemente. O
certo é que ainda existem casos em que esse processo não se consumou
plenamente, gerando conflitos e disputas pela posse da terra entre índios e
fazendeiros. (Oliveira; Pereira, 2009, p. 118)
Após o processo de mecanização da agricultura na década de 1970 e o fim dos
trabalhos de derrubada das matas e abertura de estradas (onde houve participação efetiva dos
grupos indígenas citados neste trabalho) tornou-se inconveniente para os “novos”
proprietários manter os indígenas em “suas terras”. Sobreveio então uma mobilização, em
alguns casos com apoio do órgão oficial indigenista, para expulsar de vez esses grupos ou
famílias. Acreditava-se, por parte do Estado, que “lugar de índio era dentro da reserva”.
45
Esse processo se intensificava cada vez mais com o passar das décadas e com a vinda
cada vez maior de imigrantes, sendo possível pensar em um ápice entre os anos de 1970 e
1980; marcado como o período de integração entre o oeste e o leste do Brasil, que tinham
como propostas e ações a mecanização da produção agrícola; a divisão do estado de Mato
Grosso pelo Presidente Geisel, o aumento da produtividade agrícola através do uso de
insumos agroquímicos e a expansão das fronteiras agrícolas no Cerrado (que, no caso de MS,
“vitimou” uma série de trabalhadores do campo que se viram obrigados a migrarem para as
cidades)41 e interesses estratégicos.
Para o Estado já se tinha como resolvida a questão de terras para os Kaiowa e Guarani
com a pretensão de reservamento dos grupos nas oito reservas demarcadas e destinadas a eles
entre 1915 e 1928. Por outro lado, foi justamente nesse período que os Kaiowa e Guarani de
Mato Grosso do Sul lograram reconquistar aldeias perdidas, ou resistir com êxito à expulsão
das mesmas, rompendo com o processo de transferência e o confinamento em áreas já
reservadas. Era o início da organização de um movimento indígena.
Rancho Jacaré e Guaimbé [...], conseguiram a demarcação legal de suas
terras em 1984. Representam as duas primeiras áreas indígenas demarcadas
na região após 1928. Takuaraty e Yvykuarusu, Pirakuá, Cerrito, Jaguari,
jaguapiré, Sete Cerros, Guasuty e Jarará são outras aldeias que, a partir da
década de 1980, conseguiram resistir à pressão dos fazendeiros e de órgãos
governamentais e obtiveram êxitos legais no que se refere à posse da terra.
(Brand, 1997, p. 106-107)
É possível verificar que essa organização de um movimento indígena durante as
décadas de 1980 e 1990 não se deu apenas com os Kaiowa e Guarani, existem exemplos no
Equador, México e Bolívia.
Em decorrência da consolidação de um neoliberalismo agressivo e expansivo a partir
da década de 1990, houve uma série de eclosões de movimentos indígenas cada vez mais
organizados e propensos ao diálogo com os instrumentos legais, assim como com os códigos
da sociedade nacional, que se fundava, inicialmente, a partir do nascimento de uma ordem
civilizatória com os processos colonizadores na América promovidos pelos europeus.
O momento se torna bastante favorável pela confluência de uma série de processos
ocorridos também nos anos de 1970 e 1980, como por exemplo, o fortalecimento da Teologia
41
Cf. MORO, Nataniél Dal. O Poder Legalizado no Processo de Formação das Fronteiras Econômica e
Demográfica no Sul do Estado de Mato Grosso (Décadas de 1960-70). In: História em Reflexão: Vol. 3 n. 6 –
46
da Libertação (que no caso do Brasil atuou e atua através do da Comissão Indigenista
Missionária (CIMI)), somado à emergência de processos democráticos na América Latina que
afetam diretamente a formação e auxiliam na criação de condições para a formação de um
movimento indígena que reivindica uma série de direitos até então sistematicamente negados
a esses povos. (Dávalos, 2005)
Verifica-se, portanto, que a partir da década de 1980 ocorre um processo muito
contraditório. Ao mesmo tempo em que ocorria a radicalização do confinamento e o
simultâneo crescimento das taxas de violência nas reservas, culmina justamente com o início
da quebra deste mesmo processo histórico de confinamento, mediante a luta pela retomada de
terras que nesse processo de mais de 100 anos42foram perdidas.
O Povo Kaiowa e Guarani continua sua luta por direitos, dos anos 1990 até a
atualidade, principalmente quanto à retomada de seus territórios de ocupação precedente a
expulsão incentivada pelo processo de colonização da região sul de Mato Grosso do Sul. A
terra significa a garantia de uma vida digna “segundo seus usos, costumes e tradições” em um
espaço destinado ao uso do grupo, conforme reconhece a Constituição Federal de 1988, no
seu art. 231.
Em muitos casos as tentativas de reação por partes dos Kaiowa e Guarani foram
cerceadas de maneira brutal pelas elites agropecuárias do estado de Mato Grosso do Sul. a
participação do Estado Nacional no desvendamento desses crimes tende a ser um processo
lento, gerando um grande sofrimento para todos os envolvidos.43
UFGD – Dourados jul/dez 2009.
42
Levando em conta desde o início da atuação da Cia Matte Larangeira (1892) até os dias atuais.
43
Para citar apenas alguns exemplos de assassinatos e o desaparecimento de lideranças que até o momento não
tiveram resolução ou que se arrastam nos tribunais brasileiros podemos apontar os seguintes nomes: Marçal de
Souza, Marcos Verón, Nísio Gomes, etc.
47
48
CAPÍTULO II – PERCORRENDO CAMINHOS NA REGIÃO DO APA: A
RESISTÊNCIA DO PIRAKUA
Durante os períodos em que realizei o trabalho de campo, ouvi de muitos
interlocutores histórias sobre como o Pirakua surgiu enquanto Terra Indígena. Basicamente, a
principal tese das pessoas da comunidade é a de que o Pirakua é uma terra de resistência44. A
ideia de resistência se explica pelo fato de – na região onde hoje é situado o Pirakua – haver
famílias Kaiowa que viviam basicamente do cultivo da terra e de trabalhos esporádicos em
fazendas da região. Quando um fazendeiro da região inicia o processo de expulsão as famílias
que ali viviam, elas se unem contra a pressão da expulsão e se mobilizaram de modo a resistir
às tentativas do referido fazendeiro que reclamava os direitos legais sobre a terra e que,
naquele momento, pretendia iniciar a exploração econômica do local; transformando-o em
pastagem para a criação bovina.
2.1 A Resistência do Pirakua: Os Caminhos e as Palavras da Região do Pirakua
“conhecemos enquanto caminhamos e não antes de
caminhar.” (Ingold, 2005, p. 12)
O Pirakua nem sempre teve esse nome. Segundo os moradores da Terra Indígena,
anterior à luta, Pirakua era apenas o nome de um buraco existente em uma das margens do
Rio Apa que atualmente não faz parte dos limites da Terra Indígena. Nos três parágrafos que
seguem, trabalho basicamente com as conversas que tive com um interlocutor de minha
pesquisa nascido onde hoje atualmente é considerado o Pirakua.
44
Quem me explicou com muita paciência e clareza esse ponto crucial da história do Pirakua em uma conversa
informal foi o Prof. Júnior, um Kaiowa, nascido no próprio Pirakua, que atualmente é professor da Escola
Indígena do Pirakua e esta desenvolvendo o seu trabalho de conclusão da licenciatura intercultural indígena
justamente defendendo a tese de que o Pirakua é uma terra de resistência e não de retomada como é possível
identificar em vários outros lugares de onde os Kaiowa foram expulsos e agora retornam para reivindicar o
direito de uso novamente do local.
49
Argemiro Escalante, m’borahei jara (dono da reza) de aproximadamente 65 anos,
afirma que nasceu exatamente no lugar onde hoje é o Pirakua, no entanto, afirma que na
época o nome do local, ou como afirma Argemiro: “o nome desse mato, chamava yvy hu...
que significa terra preta mesmo.” Na época em que o lugar era chamado pelos Kaiowa da
região como yvy hu “o mato não tinha dono, mas um dia chegou o Astúrio Monteiro e falou
que esse mato era dele”. Com a reivindicação feita por Astúrio Monteiro de Lima (já
falecido), João Vargas, finado esposo de Valentina que atualmente tem por volta de 92 anos,
deu para o fazendeiro “dois corotinho” de ouro. “O fazendeiro pegou e falou para ele... agora
você vai ficar aqui e morar”.
Sobre a história do ouro, tive a oportunidade, durante o trabalho de campo, de ir até a
casa de Dona Valentina. Na oportunidade, tive muita dificuldade em compreender as histórias
que essa senhora, já bastante idosa, me contou em um guarani bastante arrastado e cansado.
Por sorte, na ocasião, estava comigo um dos agentes de saúde da TI (Valmir Franco) que fez a
tradução. Dona Valentina conta uma história muito parecida com a versão de Argemiro.
Segundo ela, seu esposo na época tinha guardado uma certa quantidade de ouro e quando
Astúrio apareceu pedindo para que eles deixassem a terra seu marido “comprou” o direito de
permanecer no local lhe entregando o ouro. No entanto, segundo Dona Valentina, esse acordo
foi “esquecido” pelo filho de Astúrio, Líbero Monteiro de Lima que nos anos finais da década
de 1970 começa uma longa disputa com as famílias que viviam onde hoje é o Pirakua.
Os mais velhos da TI contam que no passado não havia delimitações e marcos
territoriais como existem hoje em dia. Esses interlocutores relatam que na região existia uma
série de aldeias (tekoha) que foram se desfazendo – ou esparramando, como muitas vezes
dizem os próprios Kaiowa – pela ação dos novos proprietários das terras (meados da década
de 1950 e 1960) e também pela chegada de doenças até então desconhecidas pelos grupos que
acabavam se tornando epidemias e acabavam por fazer com que as famílias se dispersassem
para outras localidades da região ou então para trabalhos em fazendas.
Argemiro Escalante conta que nesse tempo era comum os índios andarem muito nas
matas em busca de caça, de mel e de frutas silvestres. Em conversas com Argemiro, Augusto
Gomes, Jorge Gomes, Coche e outros interlocutores foi possível fazer um levantamento dos
nomes de alguns desses antigos espaços de habitação que atualmente estão dentro de
fazendas. Sendo eles: Suvirandó; Gua’a kua; Ñakã Puku(Cabeceira Comprida; Cabeceira
Puku); Yvy hu; Candiré; Naraña ty; Guaxupé; Bakaiowa; Itaverá; y said’ju;
50
Porém a trajetória e os caminhos percorridos pelas famílias, expulsas desses antigos
tekoha, não foram esquecidos pelos mais velhos que sempre fazem questão de apontar as
direções e os marcos que permaneceram – notadamente para indicar que ainda se lembram
dos antigos rios que frequentavam e também dos cemitérios que ali estão. Lembram-se, ainda,
de antepassados com quem conviveram na região e ressaltam sempre aos mais novos a
importância de se lembrarem onde estão localizadas as terras das quais seus antepassados
foram expulsos.
Quando cito a ideia de caminhos percorridos, busco orientar o meu pensamento em
analogia à ideia trabalhada por Ingold (2005) que discute a ideia de descobrir-caminho pelo
movimento de um lugar a outro de uma região. Estando em campo, ficou evidente que todos
os Kaiowa com mais de 35 anos – ou seja, antes da luta pelo Pirakua – com quem conversei
haviam percorrido uma série de caminhos antes de chegarem ao Pirakua. Desse modo, são
exímios conhecedores da região e com o passar do tempo conseguiram elaborar histórias e
nutrir sentimentos por esses lugares, mesmo que atualmente não estejam mais disponíveis
para o seu uso. Como analisa Ingold (2005, p. 7):
“[...] separar a tradição da localidade ou a cultura do lugar significa, também,
divorciar o conhecimento tradicional do contexto de sua produção, na
experiência de seus participantes situada no ambiente.”
Portanto, é possível pensarmos nesses caminhos como trilhas que foram percorridas
pelos Kaiowa dessa região, levando em consideração que uma “[...] trilha deve ser
compreendida não como uma série infinita de pontos discretos, ocupados em instantes
sucessivos, mas como um itinerário contínuo de movimento” (Ingold, 2005, p. 8). No
próximo item (2.2) serão, brevemente, descritos quais foram algumas das trilhas/caminhos
percorridos por algumas parentelas até chegarem ao Pirakua.
Em agosto deste ano tive a oportunidade de passar rapidamente pelo Pirakua e lá foi
possível ter acesso a um texto em fase de elaboração pelo Professor Junior Joel Lopes
Machado sobre a história de resistência do Pirakua. No referido texto, ele demonstra que o
contato e os relacionamentos em troca de serviços já eram bastante comuns na região:
Conversando com alguns dos mais velhos da minha aldeia, contaram que
antes de ter uma área limitada, segundo Argemiro Escalante 64 anos as
51
pessoas tinham espaço para caçar, pescar, plantar e praticar suas danças e
rezas.
Naquela época eram somente matas, tinham aldeias que era localizada
distante uma das outras aonde eles iam a dias festivos quando tinha batismo
de milho, chicha e o (mitã ka'u) era o ritual de perfuração dos lábios das
crianças. Eram localizadas várias aldeias conhecidos como yvy hü,
suvirando, naranha ty, guaxupe e outros, Augusto Gomes disse que conhece
essas regiões porque em um desses lugares eles moravam com seus pais
antes de vir para essa aldeia.
Argemiro Escalante lembra quando tinha catorze anos foi a época em que
acompanhou a colheita de erva mate em um lugar chamado Rincón na região
de Antonio João ele vivia na aldeia suvirando hoje extinto.
Gentil e Olimpio iam da aldeia suvirando para trabalhar na colheita da erva,
eles estavam desde começo da luta pela aldeia Pirakua hoje Gentil já e
falecido. Muitas pessoas trabalhavam na colheita da erva em troca de
comida, ferramenta e outros. Argemiro lembra que a erva era colhido e
levado a um buraco para ser secado o chamado (voravakua) eles erguiam
cerca de 150 kl de ervas nas costas. Além da erva tinha muita laranja azeda
naquela região, as pessoas que mandavam na erva aproveitava tudo as folhas
e frutos para fazer doces e remédios.
Argemiro relata que naquela época na colheita da erva apareceu umas
pessoas que começaram a demarcar terras para serem fazendas, eles iam
fazendo picadas no meio da mata. Vendo aquelas pessoas demarcando terras
quem moravam na aldeia suvirando pediu a ele que deixassem a aldeia deles
para que ali pudesse morar então a aldeia foi deixada aos índios, mas com
aumento das fazendas a aldeia foi vendida aos fazendeiros sem eles saberem,
a única saída foram eles saírem da aldeia deles e irem para outros lugares.
(LOPES MACHADO, s/ data, p. s/n)
Retornando a história da resistência: dizem os Kaiowa do Pirakua que nos anos finais
da década de 1970, Líbero Monteiro de Lima assume a fazenda Serra Brava após o
falecimento de seu pai, Astúrio Monteiro de Lima. Argemiro conta que primeiro ele (Líbero)
em parceria com outro fazendeiro, Rachid (já falecido), “tocou” os índios do Gua’a Kua
(atualmente localizado na Fazendo Dois de Ouro). Argemiro conta que:
Aqui, o Dama Kuê... aqui tudo era aldeia mesmo. Em 1980 eu morava no
poção, perto do pirizinho... nessa época o Lázaro era solteiro ainda, eu
trabalhava na fazenda Pirakua, o dono, um dia chegou e disse que o Líbero
ia tocar todos que viviam na beira do Apá.
Em seguida Líbero começou a desmatar uma parte próxima ao local onde residiam
algumas famílias Kaiowa. É fato que essas famílias viviam na região e mantinham contato
com os não índios e em muitos casos trabalhavam esporadicamente para os novos
proprietários de terras da região. No entanto, enquanto viviam nos “fundos” da fazenda
52
conseguiam ser autônomos e como diz Jorge: “Naquela época o índio não se preocupava em
pedir o documento da terra... tudo que ele queria era caçar, plantar a sua roça, pescar, rezar e
tomar chicha... depois com o tempo o fazendeiro começou a desmatar e a querer tirar o
pessoal da terra... aí começou a luta”.
Argemiro conta que um dia Líbero mandou um de seus empregados, de nome
Floriano, “tocar todos os índios que viviam ali”, no entanto, Floriano se recusou a executar o
serviço e Líbero o despediu e colocou um outro “rapaz bom pra fazer esse serviço... aí veio o
Rômulo, né... Rômulo Gamarra... paraguaio também... aquele chegou aqui e começou a
derrubar o mato lá no fundo [apontando para a região do morro] e mandou nóis tudo sair”.
Argemiro diz que na época tinha 29 anos e que agora (2012) esta com 64. Por essa indicação é
possível pensar que essa “ofensiva” de Líbero através do seu novo gerente tenha ocorrido por
volta do ano de 1977/78.
Segundo Coche, um dos lideres da resistência Kaiowa no Pirakua, em 1979 Marçal de
Souza, Antonio Brand45 e um padre chamado Luís foram até a casa do Jacinto46. Chegaram de
manhã, comeram peixe e mandioca assada e conversaram sobre a situação das famílias (entre
25 e 30) que estavam correndo o risco de serem expulsas por Líbero, que já havia mandado
Jacinto plantar colonião (capim-guiné - panicummaximum) na região onde hoje é a escola, na
beira do rio Apa, e depois se mudar para outro lugar. Nesse momento começam as primeiras
articulações dos moradores do Pirakua para conseguirem a demarcação de suas terras.
Portanto, quem inicialmente começou a “mexer” – como diz Coche – com o
reconhecimento da terra foi Jacinto Ireno junto com um de seus filhos Luiz Ireno. Eles foram
auxiliados por Marçal de Souza, liderança de grande expressão no cenário político regional
em MS àquela época e com muito acesso a informações legais de como fazer as denúncias às
autoridades responsáveis pelo reconhecimento do TI em questão. Luiz Ireno ainda
permaneceu mais um tempo liderando o processo de resistência, no entanto, sua grande
dificuldade em compreender e falar o português se configurava como uma grande barreira
para as negociações com as autoridades do Estado.
45
Segundo uma fala do falecido Professor Antonio Brand feita durante uma Aty Guasu na aldeia Arroio Korá em
abril de 2011, ele chegou ao Mato Grosso do Sul no ano de 1978 para fundar e dirigir a regional do CIMI no
estado.
46
Quando realizei meu trabalho de campo em 2012 o neto de Jacinto Ireno, Marciano, me informou que seu avô
já estava com cerca de 98 anos de idade. Jacinto era conhecido no Pirakua como “vovô Jacinto”, já não andava
mais e raramente saia da cama ao lado de sua esposa de idade bastante semelhante, Narcisa Gomes. Infelizmente
quando retornei ao Pirakua este ano (fev. 2013) recebi a notícia do falecimento do vovô Jacinto.
53
Em Pirakuá, os Kaiowá discutiam o futuro da comunidade e as
possibilidades de permanência na terra. Aos poucos a comunidade foi se
mobilizando e criando um consenso em torno da defesa intransigente da
terra. Mobilizados, passaram a pressionar a FUNAI para que reconhecesse a
terra, entretanto o tempo passava e a comunidade não aferia maiores
resultados com as gestões e pressões junto ao órgão indigenista oficial.
Cansados de esperar por uma solução diplomática e não suportando mais as
pressões do fazendeiro que com frequência ameaçava a comunidade de
despejo, através da presença constante de seguranças armados, resolveram
agir por conta própria. (Pereira, 2003, p. 139)
No entanto, Marçal foi assassinado a tiros no ano de 1983 em sua casa na aldeia
Campestre (cerca 40 km de distância do Pirakua). Após a morte de Marçal as famílias do
Pirakua perderam o apoio que tinham de fora da terra e, desse modo, uma nova liderança,
Lázaro Morel, que já tinha iniciado um processo de liderar o grupo, se levantava (como
costumam dizem os próprios Kaiowa) e encabeçava o movimento de resistência. Segundo
Pereira (2003), da mobilização mencionada:
[...]surgiu um líder de nome Lázaro Morel, já falecido, que assumiu a
responsabilidade de convencer líderes de outras comunidades a apoiar a
comunidade de Pirakuá na demanda pela demarcação da terra. Lázaro
realizou uma verdadeira peregrinação por diversas áreas guarani expondo
para seus líderes os problemas enfrentados por sua comunidade e a
importância de contarem com o apoio para a realização de uma mobilização
de grande impacto. Cobrou também da FUNAI e de outras organizações
indigenistas que se posicionassem ao lado da comunidade na disputa com os
fazendeiros. A postura firme e determinada na cobrança de apoio para a
resolução do problema da terra também foi adotada pelas lideranças de
outras comunidades e isto surpreendeu muitos dos representantes destas
agencias, pois estranharam a mudança de comportamento das lideranças
indígenas, que antes pareciam aceitar com resignação os desmandos
impostos pelos fazendeiros, administradores e políticos na região. (Pereira,
2003, p. 139)
Lázaro faleceu no Pirakua no ano de 2006, no entanto, hoje em dia seu nome é
lembrado de maneira quase mítica pelos moradores do Pirakua, sempre que algum morador
relembra o momento da luta cita o nome de Lázaro Morel como o grande articulador e
responsável pela conquista.
Lázaro Morel, antes de ir viver no Pirakua, trabalhava para Líbero na derrubada de
mata para a formação de espaço de pastagem. Por volta de 1979 ele abandona essa atividade e
vai morar no Pirakua. No começo dos anos 1980 ele se intitula– e é confiado pela comunidade
– como “o representante” da luta. Segundo Coche, Lázaro sabia ler um pouco e tinha um
54
gravador. Desse modo, ele começa a participar de reuniões em outras terras, principalmente
na Reserva Indígena de Dourados (1983-84), onde ele passava para as outras pessoas qual era
a situação das famílias no Pirakua.
Segundo vários moradores do Pirakua nesse período Lázaro Morel percorreu diversas
outras aldeias Kaiowa e Guarani. Coche conta que no ano de 1984 “os fazendeiros” também
se organizaram e derrubaram parte da mata da região do Morro (a descrição das regiões do
Pirakua é feita no capítulo III), cerca de 400 hectares. Em contrapartida os índios também se
organizaram para defender a área que estava sendo invadida.
Lázaro e Coche vão para a Reserva Indígena de Dourados onde passam cerca de 30
dias em busca de mais pessoas para ajudar na resistência do Pirakua. Lá encontraram Amilton
Lopes47 que se junta a eles e, desse modo, facilita muito os necessários trabalhos de leitura e
de tradução de falas e de documentos, pois Amilton quando criança fora adotado por uma
família não indígena e cresceu na cidade de Campo Grande onde pôde cursar o ensino
fundamental, estudar teatro e conhecer com muita profundidade o mundo dos não índios.
Entre 1982 e 1983 os conflitos se acirraram e a resistência dos Kaiowa do Pirakua
começou cada vez mais a ser ameaçada. Lázaro continuou suas viagens por várias aldeias,
recrutando mais pessoas para lutar contra o processo de esbulho que estavam sofrendo no
Pirakua. Enquanto isso, as famílias que ficaram na terra dedicavam-se ao plantio de uma
grande roça de milho e mandioca na parte que foi derrubada e queimada pelo proprietário de
terra Libero Monteiro de Lima. Coche afirma que “conforme a luta foi crescendo foi
chegando mais gente.”; motivando o grupo a erguer barracos de lona e a fazer refeições
coletivas para garantir a permanência dos que tinham chego para ajudar na resistência.
Foi assim que em 1986, Lázaro Morel dirigiu um amplo movimento de
desintrusão da terra reivindicada pela comunidade de Pirakuá, contando com
o apoio de guerreiros armados, oriundos de diversas comunidades guarani de
MS. Da mobilização participaram inclusive os Terena de Dourados. Tal
evento teve um grande impacto na imprensa e em setores da sociedade civil
(nacional e internacional) simpáticos à garantia dos direitos indígenas,
forçando a FUNAI a encaminhar uma solução definitiva para o problema.
Disto resultou a inclusão da referida área no rol das terras que seriam objeto
de estudos de demarcação. (Pereira, 2003, p. 139 - 140)
47
Amilton Lopes foi uma importante liderança Kaiowa e Guarani que infelizmente se afogou e faleceu no rio
Apa ano de 2012 enquanto pescava com sua esposa.
55
A morte de Marçal em 1983 deu visibilidade para a luta do Pirakua, pois os indiciados
pelo crime foram o gerente da Fazenda Serra Brava, Rômulo Gamarra como executor, e
Libero Monteiro de Lima como mandante do crime, apesar do caso ter sido dado como
inconcluso por falta de provas.48
Diversas denúncias já haviam sido feitas em relação aos mandos e ameaças que os
moradores do Pirakua estavam sofrendo e o Estado interviu impedindo Libero de executar
qualquer tipo de serviço na área em litígio. No entanto, as atividades de desmatamento para a
formação de pasto continuavam na região do Morro. Desse modo os índios planejaram uma
“emboscada”. Pelo que relatam, havia um grupo de jagunços que estava cuidando da região
do Morro a mando de Libero, no local os Kaiowa haviam feito roças de milho e de mandioca.
Lázaro e Coche serviram de isca para render o grupo. Quando os homens do Libero
abordaram a dupla, foram surpreendidos por um grupo grande e armado de índios que
estavam escondidos ao redor.
Em uma das viagens de Lázaro, ele foi até Campo Grande reclamar das autoridades da
FUNAI na época a demarcação da TI Pirakua; no entanto, como era de praxe, lhe foi entregue
uma documentação. Todavia,Lázaro tinha minimamente conhecimento sobre as letras, pois
havia estudado os anos iniciais da educação escolar na escola do Dama Kuê. Argemiro conta
que: “o delegado da FUNAI [de Campo Grande] entregou um documento prô Lázaro, que
sabia ler um pouco e procurou o Antônio [Brand] na vila São Pedro em Dourados, Antônio
disse que ele precisava ir pra Brasília”.
Lázaro retornou ao Pirakua e informou para o grupo que viajaria para Brasília e
voltaria em quinze dias: “deu quinze dia ele voltou... chegou e fez reunião com nóis... lá onde
é a casa do Lídio [região do Piri atualmente]”. Segundo Argemiro na reunião ele transmitiu
para o grupo que em dois dias chegaria um representante da FUNAI na aldeia, de nome
Arceu. Junto com Arceu havia um padre e Argemiro se recorda que “naquele tempo a
Juvelina, minha filha, tinha 6 meses.”49.
A partir desse momento começa então o processo de reconhecimento que se desfecha
no ano de 1985 e de demarcação e homologação que só têm seu fim no ano de 1992. Contudo
48
Existem ainda na região mais outras duas versões sobre a morte de Marçal de Souza que ouvi, a primeira é que
Marçal foi assassinado a mando de um grupo de fazendeiros por pistoleiros paraguaios por “estar incomodando
demais” e a segunda que Marçal havia sido assassinado por um desafeto que havia feito na região não tendo
nenhuma relação com a luta pela terra. No entanto, essa discussão não cabe nesta dissertação sendo oportuna
trabalhá-la em outro momento.
49
Atualmente Juvelina Escalante tem 30 anos (2012), esta casada e mora na região do morro. A partir dessa
informação de Argemiro é possível calcular como data aproximada o ano de 1982.
56
esse feito não pode ser visto apenas e simplesmente pelo prisma de uma ação que parte do
Estado em demarcar a Terra Indígena do Pirakua. Para os moradores da TI o espaço em que
vivem hoje é fruto de uma longa resistência que terminou na conquista e na demarcação do
Pirakua. Entretanto, esse processo só foi possível a partir desse movimento de mobilização
feitos pelas diversas famílias que ali viviam. Como diz Augusto Gomes: “Nós conseguimos a
terra pela nossa união!”.
2.2 Linhas Históricas: os Caminhos Percorridos Pelas Parentelas até o Pirakua
Na realização do trabalho de campo fui hospedado na região do Palmeiras e participei
mais ativamente das atividades desenvolvidas pelo fogo doméstico da família do Jorge e de
Darci, cabeçantes de uma parentela bastante influente no Pirakua, com uma composição sui
generis em relação às demais, pois apesar de não ser uma parentela muito extensa (em
número de pessoas) mantém sua influência bastante vinculada ao poder aquisitivo que
conseguiu acumular desde sua chegada a TI em 198550.
Jorge nasceu em um lugar conhecido antigamente como Cabeceira Puku51, como ele
mesmo diz, “nessa região, do outro lado do Rio Apa” e quando ainda era criança sua mãe veio
a falecer, provavelmente atingida por uma epidemia que houve na região aproximadamente na
década de 1960. Após a morte da sua mãe seu pai foi trabalhar em uma fazenda na região e lá
Jorge foi criado. Após sofrer um acidente quando tinha 18 anos, cuidando de um cavalo
acabou sendo levado para o hospital da Missão Evangélica Caiuá que oferecia na Reserva
indígena de Dourados atendimento específico para os índios da região sul do estado de Mato
Grosso do Sul.
Durante sua recuperação do acidente Jorge conheceu D. Darci, com quem se casou em
1979 e permaneceu morando na Reserva Indígena de Dourados (RID). No período que
viveram em RID Jorge sobreviveu trabalhando em diversas atividades, entre elas em
50
A parentela de Jorge e Darci é dona de várias cabeças de gado de corte e algumas de leite no Pirakua,
destoando da maioria das outras parentelas que não possuí, ou que não se empenha na aquisição de “posses”
desse gênero.
51
Cabeceira comprida.
57
“changas”52nas lavouras da região de Presidente Prudente/SP, como auxiliar de enfermagem
do hospital da Missão Evangélica Caiuá e em uma fábrica de tijolos próxima à Reserva
Indígena de Dourados.
Entre o ano de 1984 e 1985, Jorge decidiu retornar para a região do Apa. Inicialmente
na fazenda onde foi criado, lá o “velho” (o dono da fazenda) disse a ele que poderia ficar, e
que os animais que Jorge havia ganho (boi e vaca) já haviam dado cria e a tropa estava
aumentando. Como a propriedade não era grande (300 ha) com o tempo seria necessário
vender os animais. Nesse período Jorge ficou sabendo do processo de reconquista das terras
do Pirakua e resolveu fazer uma visita, pois havia no local muitos parentes. Chegando ao
Pirakua “os parentes” – termo bastante genérico para os Kaiowa e que pode ser uma categoria
com vários níveis – disseram a ele para retornar a área, pois aquela terra também pertencia a
ele.
No dia 17 de julho de 1985 Jorge voltou para o Pirakua, inicialmente morou onde é
hoje a antiga casa do posto de saúde; desde então Jorge acompanhou os processos de disputa e
de definição da Terra Indígena, ajudou a garantir a ocupação da região do Morro, que em
1987 que estava sendo reivindicada por um proprietário rural da região. A participação de
Jorge no processo de retomada, na época, tendo como principal figura a atuação de Lázaro
Morel como cabeçante da disputa pela demarcação do Pirakua rendeu a Jorge a possibilidade
de formar sua parentela e conseguir prestígio suficiente para hoje ser considerado uma
liderança importante no Pirakua.
Outra caso que podemos enunciar aqui é o de Augusto Gomes, que apesar de ter o
mesmo sobrenome que Jorge não é, ao menos penso que não seja, um parente próximo de
Jorge. Augusto nasceu “por aqui mesmo”, na beira do Rio Apa, “chamava isso tudo aqui de
yvy hu”, como ele afirma: “não se chamava Pirakua”. O local onde Augusto vive hoje na
região do Morro era conhecido como Ña Roka (lugar de demônio). Segundo Augusto
“antigamente o pessoal saia muito... não ficava muito em um lugar, era comum andar bastante
pela região”.
Augusto morou e trabalhou por cerca de 10 anos junto com “brancos” e depois voltou
a morar onde hoje é o Pirakua. Quando retornou ao Pirakua afirma ter por volta de 25 anos,
hoje (2012) Augusto esta com 59. Com isso é possível presumir que esse retorno ocorreu por
volta de 1978, período que coincide exatamente com o fim da formação das fazendas da
52
Termo usado para designar os trabalhos temporários que são realizados durante alguns períodos do ano em
58
região, onde a mão de obra dos índios para a derrubada de matas, plantio de pastos,
cercamentos e abertura de estradas deixa de ser necessária pois as fazendas já estavam
formadas.53
A última trajetória que será exposta é a de José Conceição, conhecido no Pirakua e na
Reserva Indígena de Dourados apenas como Coche. No ano de 1979 Coche foi contratado
para ir a região do Pirakua para uma derrubada de mata. Até então Coche viva na Reserva
Indígena de Dourados. Um dia, enquanto trabalhava na região, encontrou um grupo de
Kaiowa (Erázio, que hoje em dia vive na RID; Salomão, já falecido, irmão de Alexandre
Barbosa que atualmente vive no Pirakua), esse grupo o convidou para participar de uma festa
de chicha54. Nesse evento conheceu Bibiana Ireno (já falecida), filha de Jacinto Ireno, com
quem se casou e foi morar na fazenda onde Coche estava trabalhando.
O nascimento do primeiro filho do casal em 1981, Gerson, motivou o casal a retornar
para próximo da família da esposa de Coche, onde hoje é conhecido como Pirakua. Lá Coche
construiu uma casa e começou a plantar sua roça. Justamente nesse momento começa o
processo de resistência pela terra e Coche será de grande importância nesse movimento, pois
como havia sido criado na Reserva de Dourados pôde contribuir muito nas articulações que
foram coordenadas por Lázaro. Sendo, após a saída de Lázaro com o fim do processo de
demarcação do Pirakua, o próximo capitão.
Essa breve descrição das histórias de vida de Jorge Gomes, Augusto Gomes e José
Conceição podem, de alguma maneira, servir como parâmetro para compreender como se deu
o processo de retorno de uma série de outras famílias que compõem o Pirakua que durante o
processo de formação das fazendas na região entre as décadas de 1950 e 1980 acabou gerando
um “processo de esparramo”55de diversos grupos de famílias Kaiowa56 que em seguida se
reagruparam no Pirakua.
fazendas.
53
Cf. EREMITES DE OLIVEIRA, Jorge; PEREIRA, Levi Marques. Ñande Ru Marangatu:laudo antropológico
e histórico sobre uma terra Kaiowa na fronteira do Brasil com o Paraguai, município de Antônio João, Mato
Grosso do Sul. Dourado, MS: UFGD, 2009.
54
Bebida tradicional feitas por grupo ameríndios de língua guarani à partir da fermentação natural do milho,
cana ou batata doce. As reuniões de chicha são sempre lembradas pelos Kaiowa como importantes motivos para
reunir pessoas tanto para a reza como para festas.
55
Sobre o conceito de processo de esparramo Cf. BRAND, 1997.
56
Durante o levantamento censitário no Pirakua encontrei pessoas que afirmam ter nascido em vários tekoha que
hoje são propriedades rurais, como exemplo é possível citar Cabeceira puku, Suvirandó, Gua’a kua, Córrego
Estrela e Pysyry e Yvy Jaú no Paraguai.
59
60
CAPÍTULO III–TERRA INDÍGENA PIRAKUA
Este item dedica-se a realizar as primeiras aproximações sobre a Terra Indígena (TI)
Pirakua, como objetivo de contextualizar o leitor a respeito do locus da observação empírica
dessa pesquisa. Para isso, o tópico se desenvolve a partir de documentos e principalmente das
observações realizadas durante o período do trabalho de campo, tendo como estrutura
discursiva a descrição básica das regiões que compõem a TI.
Cooperação, ocupação e o uso do espaço na Terra Indígena Pirakua. Os temas
discutidos nesse capítulo buscaram trazer elementos para pensar as relações políticas na
sociedade estudada. Na mesma linha, expor dados quantitativos é parte de uma estratégia que
busca percorrer um diálogo essencial, que tem como objetivo a confecção de uma etnografia a
partir da materialização de dados coletados durante o trabalho de campo, esses servindo para a
construção de um modelo sociológico – grupo de suporte – que possibilita, em parte, a
compreensão das relações sociais e políticas através de esferas do sistema social Kaiowa.
3.1 Do Córrego Palmeira à Parte Alta do Morro
Os Kaiowa consideram a Terra Indígena do Pirakua como uma das aldeias mais
adequadas para as práticas do modo de vida tradicional. O Pirakua tem ainda preservado cerca
de 1.000 hectares de mata nativa, que segundo informações dos Kaiowa que vivem lá, isso
possibilita a preservação e o manejo de boa parte da flora e da fauna nativa, permitindo que as
famílias realizem regularmente a coleta de ervas e plantas para produção de remédios, de mel,
pratiquem atividades de caça e pesca – embora essas atividades não estejam apenas limitadas
as fronteiras da terra – vistos como momentos de lazer e divertimento importantes para o
resguardo de uma série de conhecimentos tradicionais de seu povo.
Cabe esclarecer que o termoñande reko, citado acima, pode ser definido como um
aspecto de diferenciação cultural dos povos guarani, sendo relacionado ao tipo de organização
61
social em que a terra e a posse do território têm um papel fundamental. Sua importância pode
ser percebida se considerarmos que esse “modo de ser” é determinado pelo uso de uma língua
e uma linguagem própria, uma religião específica e uma economia característica, sendo esse
um forte traço de distinção em relação a outros povos. Como afirmaram Melià e o casal
Grünberg em sua clássica etnografia sobre os Paĩ-Tavyterã57 do Paraguai “El ñande reko hace
que el Paĩ se considere, se siente, se piense y se diga diferente.” (2008, p. 105).
A Terra Indígena Pirakua esta localizada no estado de Mato Grosso do Sul, entre os
municípios de Bela Vista, Ponta Porã e Antonio João, conforme Certidão de Registro de
Imóvel, Matrícula 8.624, Ficha 01, Livro 2, Registrado no 1º Cartório de Registro de Imóveis
de Bela Vista:
Área indígena Pirakwá, localizada neste município de Bela Vista, Estado de
Mato Grosso do Sul, com superfície total de 2.384,0554ha. (DOIS MIL,
TREZENTOS E OITENTA E QUATRO HECTARES, CINCO ARES E
CINQUENTA E QUATRO CENTIARES) e perímetro de 23.387,10 (Vinte
e Três Mil, Trezentos e Oitenta e Sete Metros e Dez Centímetros), com a
seguinte descrição: OESTE/NORTE A presente descrição inicia-se no
Marco 01 de coordenadas geográficas aproximadas 22º 00’55,4’’S e
56º04’35,6’’Wgr., localizado na confluência do Córrego Pirizinho com o Rio
Apa; daí segue por uma linha reta confrontando com o Sr. José Ferreira de
Camargo, com azimute e distância de 53º58’55,7’’ e 3.917,74metros, até o
Marco 05 de coordenadas geográficas 21º59’40,5’’S e 56º02’45,1’Wgr., daí
segue por uma linha reta confrontando com o Sr. Olan Garcia de Souza, com
azimute e distância de 28º41’59,6’’S e 3.785,26metros, até o Marco 04 de
Coordenadas Geográficas 21º57’52,6’’S e 56º01’41,7Wgr. LESTE; Do
marco antes descrito, segue por uma linha reta, confrontando com o Sr.
Libero Monteiro de Lima, com azimute e distância de 165º24’39,6’’ e
5.938,63metros, até o Marco 03 de coordenadas geográficas 22º01’01,0’’S e
56º00’49,1’’Wgr., localizado na margem direita do Córrego Palmeira, daí
segue por este, a jusante, com uma distância de 3.122,71metros, até sua
confluência com o Rio Apa no Marco 02 de coordenadas geográficas
22º02’06,1’’S e 56º01’56,7’’Wgr. SUL: Do Marco antes descrito segue pelo
referido rio, a jusante, com uma distância de 6.572,75metros até o Marco 01,
inicial da descrição desse perímetro [sic, destaque no original].
Conforme o mesmo documento, a área foi homologada pelo Decreto Presidencial de
13 de Agosto de 1992, publicado no Diário Oficial da União de 14 de Agosto de 1992: “(...)
trata-se de terras de posse imemorável e tradicional dos Grupos Indígenas GUARANY E
KAYOWÁ” (BRASIL, 1992).
57
Os Paĩ-Tavyterã, no Brasil são conhecidos e auto identificados como Kaiowa. Ao conversar com um de meus
interlocutores durante o trabalho de campo a explicação para a fixação do nome do grupo como Kaiowa seria
pelo fato de que nos primeiros contatos com a sociedade não indígena ao perguntarem sobre quem eram, eles
respondiam em Guarani “kaaguy gua” que em uma tradução livre seria “moradores da mata” que com o passar
do tempo acabou se transformando em Kaiowa.
62
Figura 2 – Terra Indígena Pirakua e Região (FUNAI, 2012) – i3Geo/Google Earth
Para chegar à Terra Indígena Pirakua é necessário seguir uma estrada vicinal, que fica
na altura do Km 60 da estrada MS-384, que liga os municípios de Antonio João a Bela Vista,
ao lado do posto fiscal da IAGRO (Agência Estadual de Defesa Sanitária Animal e Vegetal).
São cerca de 20 quilômetros até a entrada da Fazenda Pedra Branca. Por dentro da fazenda
segue-se a estrada por mais três quilômetros até a entrada do Pirakua,que fica após atravessar
a ponte sobre o Rio Apa.
A Terra Indígena Pirakua é dividida em quatro regiões, chamadas pelos moradores de
Palmeiras, Ponte, Piri e Morro. Todas as regiões têm seus nomes originados em acidentes
geográficos, ou no caso da Ponte que é a “entrada da Terra”, a Ponte que passa sobre o Rio
Apa.
A Região do Palmeiras, nome originado pela proximidade com o Córrego Palmeiras,
fica na parte sudeste da TI, onde vivem 85 pessoas, sendo 42 homens e 43 mulheres, em 21
moradias58. Essa região apresenta uma extensa parte de mata nativa preservada, sendo comum
que pessoas das outras regiões do Pirakua vão até ela praticar atividades de caça. A Região do
58
Uso o termo “moradia” por compreender que o uso de outro termo, como, por exemplo, família nuclear,
poderia causar confusão pelo fato de que em algumas moradias existe mais de uma família nuclear residindo
junto.
63
Palmeiras tem seu acesso limitado para veículos somente até a casa de uma das lideranças da
Terra. A partir desse trecho, o caminho só pode ser feito a pé, de moto ou a cavalo.
Figura 2 – Regiões da Terra Indígena Pirakua – adaptado (ISA, 2012) – Google Earth
A economia nessa região é baseada fortemente nas atividades agrícolas. Podemos
justificar essa informação por alguns fatores que corroboram para uma espécie de isolamento
geográfico. A região é circundada ao Sul pelo Rio Apa, ao Leste pelo córrego Palmeiras (as
fronteiras da Terra) e a Oeste e Norte por uma morraria. Não há na região escola, nem posto
de saúde, sendo que esses atendimentos são realizados na Região da Ponte. Aparentemente,
essa área apresenta as melhores condições para os plantios59, pois, segundo alguns
interlocutores da pesquisa, apresenta boa qualidade de terra, extensos espaços planos e poucas
pedras na superfície.
A Região da Ponte, como dito, principal entrada da Terra Indígena é compreendida
pelos Kaiowa como dividida em duas, a Ponte e a Ponte Centro. Essa é a região mais
populosa da terra com 184 moradores, sendo 94 homens e 90 mulheres, em 38 moradias e
onde se encontram a escola e o posto de saúde.
59
Durante o trabalho de campo foi possível conhecer boa parte das variedades de cultivo agrícola das famílias,
os itens que mais tiveram ocorrência são: milho, mandioca, abóbora, moranga, batata-doce, banana, melancia,
mamão, mexerica, limão.
64
A parte considerada como “Ponte Centro” é onde precisamente se encontra a “Escola
Indígena do Pirakua”, o “Posto de Saúde” e o campo, que tem jogos de futebol quase todos os
dias no final da tarde com os moradores. Ao redor da escola e do posto de saúde moram a
maioria dos professores, com exceção de um que mora na Região do Morro. É importante
pontuar que alguns desses professores não mantêm o cultivo do roçado, no entanto é bastante
comum ver em suas casas muitas criações de animais de pequeno porte que servem para a
subsistência da família que é complementada com a compra de produtos alimentícios com o
salário que recebem pelas funções exercidas na escola. A justificativa para o não cultivo da
terra é que nas proximidades, além de haver animais de criação como gado de corte e cavalo,
existem muitas pedras na superfície e a terra “não é boa”.
A “Escola Indígena do Pirakua” possui apenas quatro salas, cinco professores e um
coordenador em atividade, sendo que uma das salas é utilizada como Sala de Professores e as
outras para atividades de aula, em regime multi-seriado, ou seja, não há separação entre os
anos escolares. Existe também uma extensão da “Escola indígena do Pirakua” na parte baixa
da região do Morro.
Já o Posto de Saúde fica sob os cuidados do Auxiliar de Enfermagem, Gelson, que
apesar de residir na Reserva Indígena de Dourados permanece no Pirakua durante quase todo
o mês, retornando para sua casa em média a cada dois finais de semana. Ao lado do Posto há
uma construção precária que serve de alojamento para Gelson, o prédio apresenta goteiras,
rachaduras, incidência de mofo, e está em péssimo estado de conservação.
O Posto disponibiliza atendimentos de saúde preventiva através de um calendário
específico com agendamento dos dias de visita dos agentes as SESAI (Secretaria de Saúde
Indígena) do Polo localizado no município de Antônio João. O Polo atende além do Pirakua
as Terras Indígenas Campestre, Ñanderu Marangatu e Kokuê’i. Quando ocorrem casos de
emergência ou urgência, Gelson promove os primeiros socorros, solicita o atendimento ao
Polo pelo rádio que envia um veículo para o transporte do paciente até o Posto de Saúde de
Antônio João (cerca de 45 km) ou ao Hospital em Bela Vista (cerca de 70 km).
No Centro há também um orelhão acoplado a uma espécie de antena, que nem sempre
funciona, e que aparentemente deixou de ser usado pela comunidade. Apesar de ser difícil
conseguir sinal em aparelhos de telefonia móvel nas partes baixas da TI, algumas famílias têm
antenas em suas casas ou encontram soluções para conseguir o sinal em determinados lugares
(pequenos morros ou clareiras – como o escanteio do campo de futebol).
65
O Centro também é o lugar de maior movimento de pessoas durante o dia, entre elas
as crianças que frequentam a escola, os moradores que utilizamos serviços de atendimento de
saúde preventiva oferecido através da SESAI, as visitas de representantes de órgãos externos
(autarquias governamentais, ONG’s e Universidades), entre outros. Há ainda uma espécie de
galpão construído de sapê e toras que fica ao lado da Escola, nele são realizadas as reuniões
de pais e professores, reuniões gerais da comunidade60, reuniões com representantes externos
e eventualmente festas.
Figura 4 –Núcleos de Mordia na Região do Morro– adaptado (ISA, 2012) – Google Earth
Os outros moradores da Região da Ponte (não central) estão distantes uns dos outros,
formando núcleos de parentelas na área. Desse modo, foi possível observar que existem
quatro locais distintos de ocupação. O primeiro fica na margem do rio Apa, no sentido da
estrada que leva para a Região do Palmeiras sendo ocupado por moradores de praticamente
uma mesma parentela que plantam suas roças na Região do Palmeiras; o segundo esta
localizado beirando a estrada que segue para a Região do Morro, ocupado por casas
construídas em áreas abertas em meio à vegetação de pastagem (principalmente colonião) e de
mata nativa, os moradores desse local têm suas roças plantadas nas margens do Córrego
60
As reuniões não têm frequência para acontecerem, são realizadas apenas quando ocorre algum incidente mais
66
Pirizinho (que passa próximo à fronteira leste da terra) ou em clareiras abertas no interior da
mata (oeste); o terceiro e o quarto são núcleos de famílias que vivem e cultivam suas roças em
clareiras abertas no interior da mata nativa, tendo, cada um dos núcleos, apenas uma estrada
como acesso principal das moradias (ver figura 4).
A Região do Piri é de uso predominante de uma única família extensa, a Família
Escalante – apenas uma moradia pertence a outra parentela que aparentemente está
fragmentada na terra, pois não foi possível encontrar parentes próximos dessa família
morando no Pirakua.
São seis moradias com 30 pessoas, 17 homens e 13 mulheres. O nome da região tem
origem por conta do Córrego Pirizinho, e é delimitada pela estrada que leva ao Morro e a
divisa Oeste da Terra Indígena. Os moradores mantêm roças próximas das suas casas ou na
região do Morro, argumentando a dificuldade de cultivo pela incidência de vegetação de
pastagem (Colonião), o que torna mais trabalhosa a manutenção da área de cultivo do roçado.
No núcleo dessa parentela, há uma igreja evangélica (filiada à Igreja Universal do Reino de
Deus) coordenada por Urbano Escalante e Sabino Escalante, que acaba por agregar pessoas de
outras parentelas, frequentadoras dos cultos que ocorrem principalmente nos sábados de
manhã.
A Região do Morro fica no Norte da Terra Indígena Pirakua e para descrevê-la farei a
divisão em “parte baixa” e “parte alta”. É também uma região bastante populosa com 128
pessoas, entre 73 homens e 55 mulheres, em 27 moradias. Na parte baixa existe uma espécie
de vale entre os morros que separam a Região do Morro e a Região do Palmeiras. A Região
não apresenta áreas extensas de mata nativa, foi bastante desmatada porque, segundo alguns
interlocutores, foi reconquistada – juntamente com a parte alta do Morro – tendo pertencido
aos proprietários rurais locais que, com a intenção de garantir a posse da terra, promoveram
desmatamentos e queimadas no fim da década de 1970 e início da década de 1980. Hoje esse
espaço é tomado, em grande parte, por cobertura de pastagem (Colonião e Brachiaria). Boa
parte das famílias dessa região possui roças.
Existe na parte baixa uma extensão da Escola Indígena do Pirakua que funciona com
duas salas muti-seriadas, onde as crianças do entorno realizam seus estudos escolares. Essa
escola é atendida apenas por dois professores, um que tem a casa ao lado da escola e outro
grave.
67
que mora na região da Ponte, mas que se desloca até lá de moto61nos dias letivos para dar
aula. É também no prédio da Escola que são feitos os atendimentos de saúde destinados à
população dessa Região. A maioria das famílias mora ao pé do Morro e tem suas roças
plantadas no vale que é cortado por um córrego.
A parte alta do Morro é de difícil acesso por dentro da Terra, a estrada é muito ruim,
não sendo possível o trânsito nem mesmo de trator criando, desse modo,certo isolamento
entre ambas as partes (baixa e alta). Existe outra entrada para a Região do Morro ao norte da
terra, através de uma estrada que leva à Cabeceira do Apa, um vilarejo pertencente ao
município de Ponta Porã. Especificamente, a estrada que leva ao Morro, por fora do Pirakua
passa pela Rodovia MS-270. Pelo isolamento com o centro da TI, as famílias preferem que as
crianças estudem na Escola da Cabeceira do Apa, inclusive utilizam para isso o transporte
escolar rural oferecido pela prefeitura. As roças, nessa parte alta, são plantadas próximas às
casas.
3.2 Padrões de Assentamento no Pirakua
Por entendermos a íntima relação da ocupação (padrões de assentamento) com o modo
de ser dos Kaiowa ñande reko, no próximo item faremos breve e detalhada descrição das
moradias e distribuição populacional, assim como a divisão sexual do trabalho e as distinções
entre os padrões de assentamento da TI Pirakua.
3.2.1 Moradias
61
Uma reflexão interessante: Alguns kaiowa e pessoas da região que pude conversar alegam que nos dias atuais
ter uma moto é menos custoso que um cavalo, por exemplo, pois a moto cumpre a função de facilitar o
deslocamento, no entanto, sua manutenção e até mesmo o valor para adquirir são menores que o de manter um
cavalo ou outro equino.
68
Pelos dados levantados constatei que no Pirakua residem aproximadamente 427
pessoas morando em cerca de 92famílias nucleares, distribuídas em aproximadamente 12
famílias extensas.Em alguns casos não foi possível visualizar a unidade de parentela pela
fragmentação que apresentaram e também pelo tempo necessário para compreender com
profundidade a composição de redes tão complexas. Segundo Pereira, a parentela, ou a
família extensa, é caracterizada pela formação de um grupo de pessoas que se distingue as
demais através do reconhecimento de um vínculo de subordinação política a um determinado
ego (cabeçante), “[...] não sendo possível descrevê-la enquanto um grupo de conformação
estável no tempo e permanente em termos de ocupação territorial” (Pereira, 2004, p. 90).
Gráfico 1 – Percentual de pessoas por região
Total de Pessoas por Região
9%
Morro
30%
Palmeiras
Piri
34%
Ponte
20%
Ponte Centro
7%
A partir do gráfico acima é possível verificar que as famílias se distribuem de forma
heterogênea pelas regiões da TI. Observando que as maiores concentrações de pessoas estão
nas regiões da Ponte, Ponte Centro e do Morro, ambas somando juntas 73% das pessoas. Em
relação à região da Ponte é evidente a sua alta densidade, é possível relacioná-la a oferta e
demanda de serviços do Estado que ali se realiza.
A população do Pirakua apresenta dados de uma população bastante jovem, com uma
taxa de crescimento alta, como é possível visualizar no gráfico abaixo:
69
Gráfico 2 – Faixa etária das regiões da terra Indígena Pirakua
Faixa Etária por Região
5
5
Ponte Centro
12
13
3
16
Ponte
20
32
55
23
1
6
Piri
5
9
9
2
16
19
18
Palmeiras
4
20
Morro
0
Mais de 60 (Idoso)
31-59 (Adulto)
16-30 (Adulto Jovem)
5-15 (Idade Escolar)
0-4 (Idade Pré-escolar)
10
Morro
4
20
24
54
24
20
Palmeiras
2
16
19
30
18
30
24
24
54
30
Piri
1
6
9
9
5
40
50
Ponte
16
20
32
55
23
60
Ponte Centro
5
5
12
13
3
É possível verificar também um equilíbrio entre as pessoas de sexo masculino e
feminino no Pirakua (ver gráfico 2 abaixo). Para determinar os recortes geracionais foram
seguidos os seguintes critérios: para a primeira e a segunda faixa etária, de zero a cinco anos e
de cinco a 15 anos, o critério foi o início da escolarização, dado que as crianças na primeira
faixa etária ainda não frequentam a escola e as da segunda, em sua grande maioria, estão
estudando ou na “Escola Indígena do Pirakua” ou em sua extensão na Região do Morro ou, no
caso de algumas famílias que moram na parte alta da Região do Morro na escola da Cabeceira
do Apa. Para a terceira faixa etária o critério foi que nessa faixa de idade, de 16 a 30 anos, é
comum os homens começarem a procurar trabalhos em fazendas da região e também é nessa
faixa etária que são consumados o primeiro casamento, desse modo, constituindo-se em novos
fogos familiares. A quarta faixa etária foi determinada a partir do critério de que as pessoas
70
dessa faixa de idade, de 31 a 59 anos, normalmente já possuem filhos e apresentam-se como
pessoas constantes dentro da parentela. A quinta e última faixa etária é destinada às pessoas
idosas que normalmente já têm três ou quatro gerações de descendentes, sendo comum as
pessoas que nela estão, serem tratadas pelas pessoas da TI pela forma de tratamento de vovó
ou vovô, por exemplo: “vovô Jacinto” ou “vovó Valentina”.
Gráfico 3 – Faixas etárias dos moradores do Pirakua
Faixa Etária por Sexo
13
15
Mais de 60 (Idoso)
30
31-59 (Adulto)
37
48
48
16-30 (Adulto Jovem)
5-15 (Idade Escolar)
79
82
30
0-4 (Idade Pré-escolar)
43
0
F
M
0-4 (Idade Préescolar)
30
43
5-15 (Idade
Escolar)
79
82
20
40
16-30 (Adulto
Jovem)
48
48
60
80
31-59 (Adulto)
30
37
100
Mais de 60
(Idoso)
13
15
Compreendo que a divisão feita pelo pesquisador na tabela acima é um tanto quanto
desconexa da forma como os Kaiowa pensam suas gerações. No entanto, o objetivo da
exposição do gráfico é oferecer subsídios para pensar a população Kaiowa da Terra Indígena
em questão.62
62
Um outro “caminho” para pensar as divisões geracionais talvez seja o que pude ter contato durante a disciplina
de Parentesco e Organização Social, oferecida pela PPGant/UFGD no primeiro semestre de 2012 e ministrada
pelos professores Levi Marques Pereira e Márcio Silva. Durante as discussões na disciplina foi possível pensar
um modelo à partir do largo conhecimento e dos trabalhos de Pereira sobre a organização social Kaiowa em
apenas três gerações, porém em cinco categorias para a observação. A geração do ego (G0) que seria a “própria
geração”; a G+1 uma geração acima de G0; a G-1 uma geração abaixo de G0. Sendo que as gerações acima de
G+1 (G+2, G+3, ...) são englobadas e reconhecidas pelos Kaiowa como uma única geração, a dos ascendentes
71
Durante a pesquisa identifiquei basicamente três tipos de moradia na área: com
paredes feitas de taquara batida e cobertas com sapê ou folhas de bacuri; com as paredes feitas
de toras de guariroba e cobertas com sapê ou com folhas de bacuri; casas feitas de material
(cimento, tijolos e coberta com telhas de cerâmica) doadas pelo governo – cherogami, que
segundo as informações dos interlocutores significa “minha casinha”, sendo este também,
provavelmente, o nome dado ao programa governamental que construiu as casas.
Abaixo segue algumas fotos sobre as casas:
Moradia (esquerda) e cozinha (direita) feitas de taquara batida e sapê
Casa feita de toras de guariroba coberta de folhas de bakuri
(avôs e avós) ou ramoy (avô) e jarí (avó); as gerações abaixo de G -1 (G-2, G-3, ...) são reconhecidas pelos
72
Che rogami
Kaiowa como a geração dos descendentes ou reamirirõ.
73
Essas últimas, cherogami, pertencem a apenas algumas famílias do Pirakua. Tendo
sido construídas no mesmo estilo das casas de conjuntos habitacionais que vemos em algumas
cidades brasileiras, com dois quartos, sala/cozinha e um banheiro.
Abaixo segue a relação de famílias e a quantidade de moradores abrangidos pelo
programa de construção de casas.
Tabela 01 - Proprietários das cherogami e moradores abrangidos.
Região
Cabeçante
Quantidade de Moradores
1.
Palmeiras
Jorge Gomes
4
2.
Palmeiras
2
3.
Palmeiras
4.
Palmeiras
Roberto
Mendonça
Feliciano
Mendonça
Lúcio Fernandes
5.
Piri
Lauro Benites
7
6.
Piri
Felipe Vargas
2
7.
Piri
Lídio Escalante
4
8.
Ponte
Arlindo Vargas
8
9.
Ponte
Claudina Barbosa
9
10. Ponte
Cassiano Barbosa
10
11. Ponte
Vicente Morel
2
12. Ponte
7
15. Ponte
Cândido Lopes
Machado
Arnaldo Alves
Franco
Gerson Franco da
Silva
João da Silva
11
16. Ponte
Severino Franco
7
17. Ponte Centro
7
18. Ponte Centro
Gerson Lopes
Machado
Jacinto Ireno
19. Ponte Centro
Marciano Ireno
6
20. Ponte Centro
Nímia Cristina
Romero
Élcio Canteiro
Gomes
Junior Joel Lopes
Machado
Pedro Canteiro
3
Alexandre
Barbosa
Leonardo Alves
de Souza
Roberto Carlos
Richard
Total
4
13. Ponte
14. Ponte
21. Ponte Centro
22. Ponte Centro
23. Ponte Centro
24. Ponte Centro
25. Ponte Centro
26. Ponte Centro
5
6
6
3
2
3
2
1
4
6
131
74
Como é possível observar, no total existem vinte e seis cherogami no Pirakua, sendo
que essas atendem a 131pessoas.
Na Região do Morro não há nenhuma família de moradores que foi beneficiada com
essa moradia. Sobre esse assunto, a alegação de alguns moradores é que durante a construção
das cherogami não havia possibilidade de chegada dos materiais até a região e por isso apenas
algumas famílias conseguiram receber a casa.
É comum que as famílias que receberam a cherogami empreendam modificações
arquitetônicas nas casas, construindo em seu entorno, cozinha (tataypy) e outros espaços de
cobertura feita com materiais encontrados na região e que garantem abrigo para os dias mais
frios ou chuvosos e sombra para os dias de sol.
3.2.2 Divisão Sexual de Tarefas, Formas de Subsistência e Padrões de Assentamento Kaiowa
Durante o período de levantamento foi possível perceber que as relações de produção e
trabalho mantêm sua distribuição de tarefas baseadas na divisão sexual – e quando digo que
elas se mantêm é pelo fato dessa divisão de tarefas ser amplamente conhecida na literatura
antropológica sobre povos ameríndios, portanto não quero aqui conotar um caráter de
permanência e sim de composição. Até mesmo em uma observação rápida é possível notar
que as tarefas são executadas, vinculadas e baseadas na divisão sexual, ou seja, existem
atividades e responsabilidades destinadas às mulheres e atividades e responsabilidades
destinadas aos homens.
Basicamente, os cuidados com o fogo doméstico (che ypykukera), as criações
pequenas (galinhas, porcos, patos, gansos e etc.) são atividades controladas pelas mulheres.
Assim como, em grande parte, a educação e o acompanhamento das crianças até a escola e a
responsabilidade de manter da roga (casa) e do okarapylimpos (pátio – retornarei a descrição
deste espaço), a coleta de remédios e produtos agrícolas plantados ao redor do okarapy.
75
Gráfico 4 – Pessoas por sexo e por Região da Terra Indígena Pirakua
Pessoas por Sexo por Região
16
Ponte Centro
22
74
72
Ponte
13
Piri
17
43
42
Palmeiras
Mulheres
55
Morro
0
Mulheres
Homens
10
Morro
55
73
20
Palmeiras
43
42
30
40
Piri
13
17
50
60
Ponte
74
72
Homens
73
70
80
Ponte Centro
16
22
É importante ressaltar que evidentemente é a mulher quem controla a economia
(monetária) de sua casa. Sendo comum ser designada à mulher a tarefa de realizar os
deslocamentos mensais para a cidade, onde comumente são feitos os saques dos benefícios
governamentais (“bolsa família”, aposentadoria e etc.), essas viagens à cidade normalmente
são aproveitadas para a compra de produtos industrializados como açúcar, arroz, feijão, sal,
óleo entre outros produtos como biscoitos, doces, salgadinhos e refrigerante.
O Pirakua está localizado a cerca de 45 km do centro de Antonio João e 70 km do
centro de Bela Vista, sendo essa última priorizada nas viagens à cidade, principalmente por
ter um comércio maior – por sinal, muito conhecido pelos índios – e por possibilitar a
travessia da fronteira para o Paraguai, onde são encontrados diversos produtos com preços
menores que no Brasil.
Os Kaiowa que vivem no Pirakua utilizam com maior frequência três maneiras de
chegar aos centros comercias de Antônio João e de Bela Vista: a primeira e mais comum é
conseguir um lugar na Van que a comunidade possui. Essa Van fica sob os cuidados de uma
das lideranças que vive na região da Ponte Centro, a única pessoa habilitada para conduzi-la.
Normalmente as viagens da Van ocorrem uma vez por semana e nos dias de recebimento de
benefício.As despesas da viagem são custeadas pelos passageiros que contribuem com valores
que são estabelecidos para as seguintes categorias: professores (R$30), beneficiados do
programa “bolsa família” (R$20), aposentados e outras pessoas que não se enquadram nessas
categorias (R$25). Os valores arrecadados servem para pagar os custos de combustível e
76
manutenção do veículo, bem como um salário no valor de R$400 (quatrocentos reais) ao
motorista;
A segunda forma é pagar por uma corrida de taxi. O taxi é chamado da cidade e
normalmente cobra valores que variam de R$120 (cento e vinte reais) a R$200 (duzentos
reais) onde está incluso a ida à cidade e o retorno ao Pirakua. Normalmente usado em casos
de maior urgência ou rateado por diversas pessoas que desejam ir à cidade para fazer compras
ou para resolver algum problema burocrático na FUNAI em Ponta Porã (cerca de 90 km de
distância da TI Pirakua) ou no polo da SESAI em Antônio João;
A terceira é limitada apenas a algumas famílias que possuem motos. Normalmente
essas motos não têm permissão para rodar em território brasileiro, pois são veículos de origem
paraguaia – em sua maioria em condições precárias pelo falta de manutenção e pelo constante
uso na zona rural.
A quarta forma de chegar até o centro das cidades mais próximas, menos comum
atualmente, é percorrer a pé uma distância de aproximadamente 23 km até o asfalto da estrada
que liga os municípios de Bela Vista e Antônio João; e de lá é possível ou pegar um ônibus
intermunicipal ou pedir carona para os veículos que passam na rodovia.
A mulher desempenha um papel importante na estrutura da familiar, pois é dela a
responsabilidade pelo preparo dos alimentos que serão consumidos. Para isso, é a mulher que
normalmente colhe os produtos da roça mais próxima da casa (normalmente mandioca, milho,
abóbora e batata-doce) sendo esta uma atividade quase diária63. Porém os trabalhos de preparo
e manutenção da roça, ou seja, o arado da terra e a capina são atividades normalmente
realizadas pelos homens.
Aos homens, além do preparo e manutenção da roça que é feito em alguns momentos
com a ajuda das crianças, cabem principalmente as tarefas de construção e conserto de casas,
cozinhas, bancos, mesas e de demais objetos que se apresentem como uma demanda da
família, além dos cuidados com as criações maiores como, por exemplo, o gado e cavalos,
comum em algumas famílias com maior poder aquisitivo no Pirakua, a coleta de remédios na
mata, atividades de caça e em muitos casos o trabalho temporário como peão em fazendas da
região.
77
Tabela 2 – Ocupação dos moradores da Terra Indígena Pirakua, dados gerais e por regiões.
Ocupação
Geral
Palmeiras
Ponte Centro
Ponte
Piri
Morro
Profissional da
Educação
11
0
5
3
0
3
Profissional da Saúde
6
3
1
0
1
1
Roça
61
15
6
17
6
17
Aposentado
9
1
4
3
0
1
Trabalha em Fazenda
30
2
2
13
1
12
Estudante
146
16
14
63
9
41
Dona de casa
74
17
6
26
7
18
Outros
13
4
2
6
1
0
Os grupos guarani e especificamente os Kaiowa são conhecidos na literatura
etnográfica como povos motivados fortemente pelas atividades agrícolas. É possível verificar
na tabela acima que das 92 moradias da área 61 delas possuem suas próprias roças. Sendo
importante ressaltar que especificamente a esse questionamento foi atribuída resposta para
todos os moradores das casas que tinha idade igual ou superior a escolar.
A atividade de trabalho em fazenda é uma ocupação quase que exclusivamente dos
homens mais jovens (entre 16 e 40 anos), sendo essa desempenhada durante períodos de
tempo que são passados nas próprias fazendas – entre cinco e 15 dias – intercalados por
períodos que são passados na TI junto à família64. Os homens que trabalham em fazendas, em
sua maioria, desempenham atividades de “peão”, ou seja, na lida de lavouras ou no trato de
animais de grande porte como o gado de corte predominante na região do Rio Apa.
Algumas famílias têm mais de uma roça, uma mais próxima da casa e outra mais
distante. As roças que ficam próximas da casa são mais diversificadas onde podem ser
encontrados com facilidade mandioca, milho, abóbora-moranga, batata-doce emelancia.
Tendo esses cultivos a finalidade do uso mais cotidianoda família, demandando maiores
63
No Pirakua é comum que no meio da manhã seja feita, pela esposa em companhia das crianças, uma ida a roça
para buscar alguns produtos que serão consumidos na refeição feita para o almoço (normalmente entre 11h e
12h).
64
Quando retornei ao Pirakua para o último período de trabalho de campo (fevereiro de 2013) vários homens
(cerca de 20) haviam sido contratados para trabalhar por um período de dois meses na colheita de maças na
região noroeste do Estado do Paraná. As discussões referentes ao trabalho masculino feito fora da aldeia com
certeza ainda pode render muito para as reflexões acerca do relacionamento interétnico entre os Kaiowa e a
sociedade não indígena, no entanto, não pude trabalhar com mais profundidade esses dados nesta dissertação.
78
cuidados pela sua diversidade. Já as roças que ficam mais distantes, comumente, são de
monocultura e os plantios mais comuns são o arroz, o milho e a mandioca.
Gráfico 5 – Produtos cultivados nas roças das famílias Kaiowa da Terra Indígena Pirakua
Produtos Cultivados nas Roças
Quantidade de Vezes Mencionada
Variedade de Frutas
2
8
Milho
Manga
54
9
1
49
Laranja
4
18
Cana
10
9
Banana
23
12
Amendoim
Abacaxi
2
21
1
O padrão de assentamento de uma família Kaiowa é, em muito, determinante para a
sua subsistência. A “casa” de uma família na realidade é composta também por um pátio, um
espaço limpo, ou seja, sem a presença de mata, onde são desenvolvidas as atividades
cotidianas da família, designado pelo termo em guarani com o nome de okarapy.
Foi possível perceber um padrão de assentamento das famílias nucleares kaiowa do
Pirakua. O okarapy normalmente é composto por uma casa (roga), utilizada apenas durante o
período da noite, para dormir. Existe no okarapy também uma tataypy, construída
independente da casa. A tataypyé feita com materiais disponíveis na área (taquara, toras de
guariroba, bakuri, sapê e etc.) sendo esse o local onde são preparados os alimentos, servindo
também de local de reunião da família no período da manhã, onde, principalmente, os adultos
se reúnem para tomar mate e conversar à beira do fogo, ao mesmo tempo em que é preparada
a primeira refeição65 do dia pela mulher que é responsável pelo fogo familiar.
Após essa refeição matinal os homens saem para fazer suas atividades, isso, quando
não estão trabalhando durante a semana em alguma fazenda da região. Já as mulheres se
65
Normalmente as famílias fazem três refeições durante o dia, todas baseadas na ingestão de proteína e amido.
Por exemplo, macarrão, arroz, feijão, carnes, milho e mandioca, sendo comum o consumo de ao menos um
desses itens em todas as refeições feitas durante o dia.
79
encarregam de atividades como alimentar as criações pequenas, varrer o pátio e designar
atividades para as crianças que permanecem no okarapy.
Normalmente todo okarapy tem ao redor da casa um pomar (cheyvytĩ).A variedade de
frutas pode ser vista como um indicativo do tempo de ocupação da família no local e também
do local como moradia, pois é bastante comum a existência de “invernadas” – como dizem os
índios do Pirakua – que estão abandonadas e a qualquer momento podem voltar a ser
utilizadas por alguém que procura um novo lugar para construir sua casa.
Um cheyvytĩ antigo apresenta árvores bastante produtivas, sendo comum encontrarmos
uma variedade grande de frutas, como mexerica, maricota, pôkan, tangerina,laranja, manga,
goiaba, abacate, limão, mamão, seriguela e etc. Esse pomar é muito utilizado durante o dia
pelas crianças, que entre as refeições costumam comer as frutas que estão maduras na época.
Em relação ao fogo familiar é importante ressaltar o papel da mulher no controle desse
elemento. A função de manter o fogo garante à mulher o controle de quase todas as atividades
que estão ocorrendo no okarapy durante o dia. Pois sua função de garantir a subsistência e a
nutrição do grupo dá a ela uma posição muito privilegiada sobre a designação de tarefas às
crianças, na recepção de pessoas que chegam de outras casas e também na administração dos
recursos que a família tem (dinheiro, alimentos, etc.).
Demonstrados os tipos de moradia, os dados populacionais e os padrões de moradia
que apontaram alguns caminhos para se pensar a composição das atividades divididas pelo
sexo, pretendo discutir no próximo capítulo, aspectos da organização social e política da Terra
Indígena Pirakua que serão pensados através do parentesco como relação mediadora das
interações econômicas e políticas.
80
81
CAPÍTULO IV – ATRAVÉS DO PRESTÍGIO
“[...] povos que sobreviveram fisicamente ao assédio
colonialista não estão fugindo à responsabilidade de
elaborar culturalmente tudo o que lhes foi infligido. Eles
vêm tentando incorporar o sistema mundial a uma
ordem ainda mais abrangente: seu próprio sistema de
mundo.” (Shalins, 1997, p. 52)
Nesse capítulo as redes de relacionamento da organização social e política da Terra
Indígena Pirakua são pensadas através da ideia de cooperação, suporte e cisões. Sendo
compreendidas através do entendimento de que as interações políticas se dão – para essa
observação – em basicamente três instâncias do “modelo concêntrico” elaborado por Levi
Marques Pereira, precisamente entre o fogo familiar (che ypykukera), um grupo formado por
consanguíneos e afins que residem próximo e pode ser compreendidopelo termo nativo de che
ñemonare e também pela ideia de jehuvya parentela (Te’yi).
4.1 Mba’ejehu
Nem bem os primeiros raios da manhã começam a aparecer e Ava Yvyra’ijá está
colhendo a lenha, ainda bem úmida pelo sereno que caiu durante a madrugada. Ava Yvyra’i
leva os troncos e toras de guariroba, cortados no dia anterior, para a tataypy; a cozinha da
moradia. Calmamente ele acende o fogo e se esquenta enquanto Jacy Tata Poty, sua esposa,
traz uma vasilha com água e coloca sobre a grade de ferro que está sobre o fogo recém-aceso.
Nenhuma palavra é dita até que Ava Yvyra’i me convida a sentar “d’jahajaguapy”.
Fora da tataypy ouvem-se os pássaros cantarem na mata ao lado do okarapy. Enquanto a água
esquenta Ava Yvyra’i prepara uma cuia com ka’a para tomar o primeiro mate do dia. Os
primeiros raios de sol acendem o dia, mas ainda não conseguem alcançar o okarapy, clareiam
a copas das arvores maiores e aos poucos vão penetrando a mata recolhendo o orvalho
novamente para a atmosfera.
82
O mate é servido quente por Ava Yvyra’ique fala pausadamente. A rotina matinal, que
acompanhada do mate, é seguida por uma fala que relembra momentos vividos no yma guare;
em tempos antigos. Nessa manhã Ava Yvyra’i fala do tempo de criança e das expedições de
caça que realizava em família. Acompanhado de seus pais e dos avós, passavam alguns dias
coletando e caçando na mata.
O sol já está mais forte, não se pode mais ver a lua. Ava Yvyra’i diz, em português, “é
a moto do Kurumbe”, consigo perceber o som do motor. Kurumbe é o único filho homem de
Ava Yvyra’i, que teve mais três filhas com Jacy Tata Poty. Kurumbe senta conosco na tataypy
para o mate, enquanto os dois filhos que o acompanham brincam no okarapy.
Jacy Tata Poty prepara a primeira refeição do dia, peixe ensopado, pescado por
Kurumbe na noite anterior. E alguns cascudos que são assados nas cinzas ao lado do fogo.
Kurumbe avisa que deixará as crianças aos cuidados da mãe para ir pescar em um afluente
mais distante. Sua mãe responde em guarani que não há problemas das crianças passarem o
dia lá.
Com o dia já bem claro, reinando o sol em um esplêndido céu azul, Ava Yvyra’i sai da
tataypy para iniciar o dia de trabalho na construção da nova tataypy para a esposa: “esta já
está muito velha e não tem mais concerto”, por isso seu empenho nos últimos dias para
finalizar a nova construção.
Enquanto conversávamos sobre antigas aldeias da região do rio Apa, Jacy Tata Poty
sai até a porta e chama “ed’ju tembi’u”, a comida está pronta, as crianças largam a bola, eu e
Ava Yvyra’i seguimos em direção a tataypy. Segundo Ava Yvyra’ia primeira refeição do dia
tem que ser reforçada, pois o trabalho é sempre puxado, e “esse negócio de comer pão de
manhã não sustenta... tem que comer carne mesmo”.
Ñahatĩ, filha mais nova do casal, chega depois da refeição carregando sua filha. Ava
Yvyra’i faz uma pausa em seu trabalho para tomar tereré com Ñahatĩ. A conversa é sobre a
escola, na qual Ñahatĩ é professora. Ava Yvyra’i faz um longo discurso dizendo que os
professores precisam aprender que é importante que se transformem em yvyrad’ja. Jacy Tata
Poty traduz otermo dizendo que o mesmo faz referência a um aprendiz, a alguém que está
próximo de um mestre.
Para Ava Yvyra’i,as lideranças novas e os professores devem tornar-se yvyraid’ja, pois
são os “caciques”– ñanderu (rezador) e o mburuvicha (liderança política)– que sabem o
verdadeiro passado, “nós temos um passado e os professores tem que saber”.De repente a fala
83
de Ava Yvyra’i é interrompida pelos gritos de Akekẽ, que chega ofegante falando em guarani,
apontando para a mata e gesticulando muito. Um dos mitã (criança) olha para mim e com os
olhos arregalados e diz: “Onça!”.
“Onça?”, questiono sem compreender de imediato.
Todos se levantam rapidamente, Ava Yvyra’i pega seu facão, as crianças se armam
(lanças, foices, podão e os estilingues, que raramente saem do pescoço). Decido seguir o
grupo, ainda sem entender o que estava acontecendo. Próximo à casa de Akekẽ seguimos por
um tape po’i, uma trilha que adentra a mata. Os dois quilômetros de caminhada são
percorridos em pouco tempo, encontramos ainda dois homens e duas mulheres que
espreitavam uma jaguatirica no alto da árvore.
Akekẽ é o primeiro a tentar acertá-la com seu arco e flecha, mas percebe que o animal
está em um galho muito alto, difícil de mirar. Ava Yvyra’i vai ao centro da aldeia buscar uma
espingarda. Esperamos o retorno de Ava Yvyra’i. Ñahatĩ me disse que a jaguatirica “come
muito as criações e pode acabar atacando alguma criança”, justificando a caçada. Ava Yvyra’i
retorna acompanhado de outro professor da escola, dono da arma, só havia quatro projéteis de
calibre 22. Os três primeiros foram usados pelo professor, que acertou apenas um no pescoço
do animal. Ava Yvyra’i disse que atiraria o último. Certeiro, no ouvido da jaguatirica que caiu
de quase 30 metros e logo foi recolhida pelos homens que estavam aguardando.
As crianças se aproximaram do animal e passaram a mão em seu couro. Ava Yvyra’i
disse que não comeria a carne e deu o animal abatido ao anciãoCarai, pedindo apenas o couro
para si. No caminho de volta para a casa, com um brilho nos olhos,Ava Yvyra’i celebra o êxito
da caçada e rememora em voz alta outras histórias das caçadas bem-sucedidas. Essa
expedição será mais uma no repertório do grande caçador Kaiowa.
4.2 Organização Social e Política da Terra Indígena Pirakua
Como dito anteriormente, desde os primeiros clássicos da Antropologia Social
Britânica, em especial Radcliffe-Brown, a dimensão da organização social e política passa a
ocupar o centro das pesquisas e reflexões da antropologia, inicialmente a partir de pesquisas
84
com sociedades africanas e, posteriormente, em outras regiões do mundo. Sendo repensada
essa Antropologia Política por Pierre Clastres.
Neste momento do trabalho, nos propomos a descrever e refletir acerca das
modalidades de organização social dos Kaiowa do Pirakua, em particular, a interação entre as
relações de parentesco e as práticas políticas, propondo uma leitura que associa estas práticas
com as esferas sociais e de cooperação.
4.2.1 Interação Entre o Parentesco e a Política: esferas sociais de cooperação
“Se deixarmos de considerar o equilíbrio como objetivo,
não haverá mais lugar para falar em ameaça ao
equilíbrio ou em esforço para a sua restauração.”
(Perrone-Moisés, 2011, p. 870)
Pretendo desenvolver a ideia de que as relações políticas são, em parte, determinadas
pelas relações de parentesco e da afinidade. Podendo ser apreendidas também pelas
manifestações no campo da cooperação econômica entre grupos de pessoas ligadas através
das relações de parentesco e das relações de afinidade. Para designar esses grupos utilizarei o
termo “grupos de suporte”, realizando uma apreciação teórica análoga aos escritos de Clastres
(2004) em seu ensaio “A Economia Primitiva” no qual realiza a escrita do prefácio à obra de
Marshall Sahlins (1976)66, considerando que torna-se impossível pensar as relações
econômicas no exterior das relações políticas.
Clastres ao falar da obra de Sahlins afirma que as sociedades primitivas são compostas
de “unidades de produção e consumo”. Com efeito, cada uma dessas unidades funciona como
um grupo autônomo do conjunto da sociedade. Isso é justificado pelo fato dessas unidades de
produção e consumo – aqui, no caso, definidas como grupos de suporte – apresentarem
“tendências centrífugas”, ou seja, cada grupo de suporte, sendo um grupo econômico e
político, busca sua independência em relação aos outros grupos que compõem o corpo do
social. E também “tendências centrípetas”, ou seja, cada família e pessoas que compõem o
66
Prefácio escrito por Pierre Clastres à obra de Marshall Sahlins “Âge de Pierre, age d’abondance” (Paris:
Gallimard, 1976). A obra em questão tem como título original “Stone Age Economics”.
85
grupo de suporte buscam sempre alternativas para escapar de uma centralização em apenas
um cabeçante. Como nos indica Perrone-Moisés (2011):
Afinal, ser, entre os ameríndios, é sempre devir; devir contrário, acima de
tudo (Viveiros de Castro, 2009 et passim). [...] sugere, com efeito, uma
constante dinâmica entre tendências centrípetas e tendências centrífugas;
igualmente perceptível no ciclo de vida das aldeias, entre constituição
(fundação), crescimento e dissolução (abandono) (Perrone-Moisés, 2011, p.
868).
Portanto, é importante que a reflexão seja sempre feita levando em consideração esses
elementos que perpassam a visão – ou cosmovisão – empreendida pelos ameríndios. Ao modo
que Perrone-Moisés (2011) propõe que esse movimento da política ameríndia que interage
dinamicamente através dessas forçar contrárias e não complementares, pois se o fossem
chegaríamos à ideia de uno – e bem sabemos as ressalvas feitas por Clastres em relação tal
caráter de unidade – abominado por sociedades que lutam permanentemente contra a
formação de um Estado. Desse modo, deve-se observado e pensar o modelo a seguir de
maneira dinâmica; ou através de um movimento pendular.
A “filosofia da chefia” estaria englobada num pensamento segundo o qual o
social, como tudo mais, situa-se no intervalo de oposição entre ser e não ser,
nem uma coisa nem outra, tampouco a soma dos dois. Uma coisa e outra.
Feita de relações entre polos opostos, a política entre os ameríndios parece
bem ser (também) movimento entre-dois. Movimento pendular cujo retorno
é sempre deslocado, sempre transformado, de modo que o ponto de
“chegada” jamais é exatamente o de “partida”: quase o mesmo, mas não
completamente. “Perpétuo desequilíbrio”, sempre. (Perrone-Moisés, 2011, p.
869)
O sistema social Kaiowa apresenta uma gama variada de esferas que determinam a
proximidade das relações econômicas e políticas entre as parentelas. Pereira (1999; 2004)
expõe, através de um modelo concêntrico, essas escalas de interação e solidariedade, das
quais pretendo aqui suscitar quatro. Utilizando como recurso metodológico a descrição das
unidades sociológicas de menor abrangência passando às mais gerais. Nas palavras de Pereira
(2004, p. 48), “nas quais algumas dessas unidades são englobadas por outras de maior
amplitude”.
86
Diferente do que aponta, por exemplo, Clastres, os relacionamentos econômicos e
políticos não se dão de maneira generalizada entre os Kaiowa, pois existem esferas
cosmológicas e sociais, que organizam e dão sentido às relações, determinando, assim, o
sentido e a forma como são construídas e articuladas as redes e esferas de reciprocidades.
Como afirma Pereira (2004):
A conduta econômica entre os Kaiowa não se pauta por uma reciprocidade
generalizada, como nos sugeriria uma leitura acrítica da bibliografia. Na
verdade, combina a existência de pequenos círculos de pessoas que se
consideram próximos e entre os quais existe um alto grau de solidariedade,
com unidades sociológicas maiores e mais abrangentes (Pereira, 2004, p.
49).
Acreditando que através da observação dessas esferas sociais de interação que se torna
possível um caminho para observar a formação, a manutenção e interação dos grupos de
suporte do Pirakua; que se constituem como políticos e econômicos. Dessa maneira,
possibilitando o recorte para a observação aqui pretendida. Sendo elas:
 Che ypykykuera ou o “fogo familiar” seria a unidade de solidariedade mais íntima e
intensa da vida de um Kaiowa, pois esta unidade – que pode ser entendida em
nossos termos como a família nuclear – é formada basicamente por pais, filhos e
agregados, sendo a “unidade mínima fundamental”, ordenadora das relações em um
nível micro sociológico contida pelas relações econômicas e gozando como a esfera
de relacionamento com maior autonomia. Tendo como significado próximo “meus
ascendentes próximos, da mesma origem”. “Qualquer pessoa tem que estar ligada a
um fogo para que sua existência social se torne viável, quando a pessoa rompe com
um fogo por casamento ou dissensão, imediatamente se insere num outro fogo”
(Pereira, 1999, p. 83);
 Ñemoñare “minha prole” ou descendentes é constituído pelo “agrupamentos de um
certo número de fogos e tem como base a ênfase as relações de consanguinidade
que os une” (Pereira, 2004, p. 155). O che ñemoñare é basicamente delimitado pelo
reconhecimento de um ancestral em comum a todos – que torna o grupo semelhante
entre si – compondo essa esfera do sistema social Kaiowa.
 Jehuvy pode ser compreendido através do verbo “jehu” que pode ser traduzido para
o verbo em português “ajudar”, já o termo jehuvy enfoca a cooperação e significa
“aqueles que se ajudam”. Essa esfera do modelo concêntrico desenvolvido por
87
Pereira (2004) designa núcleos de adensamento de fogos no interior da parentela
extensa (te’yi). Segundo Pereira (2004) geralmente o jehuvy é formado por um
número pequeno de fogos que pode variar entre 2 a 6 fogos e sua principal
característica de agregação se dá através da economia, diferentemente do ñemoñare
espaço de predominância da consanguinidade.
 Te’yi ou “parentela” se apresenta a esfera de agregação mais ampliada de
solidariedade, baseada principalmente em relações políticas e composta
principalmente por relações consanguíneas, que, porém, permitem a incorporação e
o englobamento de afins e aliados, reunindo um número variável de fogos
domésticos. A identificação de uma parentela normalmente é dada através do nome
de seu cabeçante, é muito comum ouvir “tal pessoa da família do Sr. Fulano”.
No Pirakua, tive a oportunidade de visualizar com mais proximidade a interação entre
as parentelas que residem na área e o relacionamento nas diversas esferas do sistema social
kaiowa apontadas acima. Observando as formas de cooperação entre elas pude apreender que,
de fato, o planejamento econômico e político mais estratégico está contido, principalmente,
nas relações do fogo familiar (ypykukuera) e que o âmbito mais amplo da parentela, a te’yi,
acaba sendo ordenado através do casal de cabeçantes67, denominados pelos termos de hi’u
para o homem e ha’i para a mulher ocupando assim um lugar central na hierarquia da
parentela.
O hi’u e a ha’i são pessoas geralmente mais velhas, ainda bastante ativas
economicamente, com filhos já casados que compõem o entorno da parentela. É possível
pensar que as redes formadas e as esferas de organização parental e de afinidade dos Kaiowa
são compostas por um centro (referenciado pelo casal de cabeçante – hi’u e há’i) e por uma
periferia.
Em termos sócio-políticos, a parentela possui um centro e uma periferia. O
centro constitui uma espécie de cidadãos de primeira classe, uma elite
política que acumula prestígio, poderes, atribuições e privilégios, sendo
formada pelos fogos vinculados diretamente ao cabeça da parentela,
geralmente seus parentes próximos. A periferia, por sua vez, é composta
pelos fogos mais distantes do cabeça de parentela em termos genealógicos e
políticos. (Pereira, 2004, p. 126)
67
O “casal de cabeçantes” apresenta em uma relação matrimonial estável, servindo como referência – muitas
vezes econômica e política - para o restante da parentela. Tendo esse casal a capacidade de manter próximo de si
suas filhas e seus filhos casados, netos e em alguns casos os bisnetos.
88
Para tentar visualizar essas relações do modelo concêntrico e também a ideia de centro
e periferia da parentela foi elaborada uma figura (segue abaixo) que busca de maneira singela
ilustrar esses relacionamentos.
Figura 4 – Ilustração das esferas de relacionamento no modelo concêntrico
É possível pensar a mulher como a base da reprodução física e cultural do povo
Kaiowa e Guarani, pois sem a mulher não há fogo. Assim a mulher desempenha um papel
muito importante nas relações mais horizontais e cotidianas, é através das atividades que
desempenha a mulher Kaiowa que se institui e que se organiza a vida social das pessoas do
che ypykukuera.
A existência do fogo enquanto unidade sociológica depende da existência do
fogo culinário aceso no interior da casa, ou em um pequeno compartimento
construído ao lado desta, funcionando como cozinha externa. O fogo
culinário é o símbolo da vida, portanto, nunca deve se apagar. Mesmo nos
momentos em que não estão sendo preparadas refeições, é comum encontrar
uma chaleira com água quente ou batatas [doce] e frutos assando sobre a
brasa, um dos passatempos das crianças. (Pereira, 2004, p. 68)
89
Cada fogo doméstico é autônomo e responsável pelo sustento das pessoas que fazem
parte dele, portanto, cada família nuclear é responsável pela produção de seu sustento. Dessa
forma as práticas agrícolas, principal atividade de sustento da maioria das famílias no Pirakua,
é desenvolvida no âmbito da família nuclear à beira de seu próprio fogo.
Em diversos momentos foi possível constatar que o casal de cabeçantes é sempre
consultado para a tomada de decisões que necessitam de uma habilidade maior, assim como é
comum que esse casal ajude financeiramente, pois uma das características para estar em lugar
de referência dentro da parentela (te’yi) é ter a capacidade de produzir um excedente, que no
caso dos Kaiowa do Pirakua está diretamente ligado a ter uma roça grande o suficiente para
suprir possíveis necessidades que venham a ter os parentes que residem em outros fogos
domésticos e também em ter condições financeiras para a obtenção de produtos e serviços
negociados com as sociedades ao entorno do Pirakua.
Essa capacidade de produzir excedente foi possível de ser observada durante o
trabalho de campo no Pirakua. A grande movimentação de pessoas que pude observar no
okarapy de alguns cabeçantes de parentelas apontaram para uma relação intrínseca das
reciprocidades e da (re)produção econômica, talvez em uma observação mais atenta seja
possível compreender esse movimento como o próprio jehuvy, ou seja, como uma das esferas
de compreensão do sistema social Kaiowa com tendências mais voltadas para a cooperação
econômica (que não deixa de ter implicações políticas). Durante o tempo que estive no
Pirakua era muito comum na casa do casal de cabeçantes em que eu estava alojado o trânsito
de pessoas que chegavam para trocar serviços (limpeza de roçado, pequenos consertos,
alimentar animais, debulhar milho...) por produtos da roça do casal, pelo pagamento de diárias
de trabalho e também por produtos industrializados advindos de comércios da cidade.
Outro fator importante de status do casal de cabeçantes é dispor de membros
ocupantes de cargos assalariados na escola, posto (ambulatório), no serviço de saúde ou
mesmo em trabalhos contratados por produtores rurais da região. É o caso, por exemplo, da
família de uma das lideranças mais importantes e respeitadas do Pirakua que tem atualmente
suas três filhas atuando como professoras (duas no Pirakua e uma no Campestre), o único
filho homem trabalha em fazendas da região entre Bela Vista e Antônio João e um dos genros
do casal de cabeçantes, morador do Campestre, é agente de saúde no polo de atendimento da
SESAI de Antônio João. Essas relações permitem ao casal privilégios na aquisição de
produtos que só podem ser obtidos na cidade (óleo, açúcar, sal, sabão em pó, refrigerante,
bolachas, etc.). Dessa maneira, colocam o casal em uma posição de privilégio para o
90
estabelecimento de trocas com pessoas de outras famílias e de outros grupos de suporte no
Pirakua.
Durante o período que permaneci na casa do casal Jorge e Darci, quase diariamente
aparecia algum parente, chamado por eles muitas vezes de “parente’i”68 oferecendo serviços
que em troca eram recompensados com as refeições durante o tempo de serviço e produtos
agrícolas da roça do casal. A atuação do casal de cabeçantes pode ser pensada através da
circulação da parentela na sua casa e também pela frequência que as filhas e os filhos casados
os visitam para negociar demandas que acreditam ser essenciais. Nessas visitas é comum a
socialização ser feita em meio a uma roda de tereré, sendo a bebida servida por uma criança
que, na maioria das vezes, não participa da conversa permanecendo apenas como ouvinte dos
assuntos discutidos.
Esses intervalos dedicados ao tereré, além de ser um momento de descanso, dedicado a
conversas cotidianas, servem também para o pedido de conselhos, para pleito de auxílios
financeiros para viagens à cidade com o objetivo de comprar produtos ou algum tipo de
serviço necessário dos quais os parentes do entorno da parentela não têm condições
financeiras para realizar sem a ajuda do casal de cabeçantes – que quase sempre apresenta
estabilidade e maior disponibilidade de recursos.
Como o caso de um dos filhos de Jorge e Darci que estava se preparando durante o
período que estive em campo para tirar habilitação de motorista. A habilitação seria custeada
pelo pai, em contrapartida – sempre que possível – os filhos auxiliam o pai em serviços
diversos, como o corte de madeira, o concerto de objetos entre outros. Porém, não se
estabelecendo essa prestação de serviços como uma “troca” negociada diretamente
(habilitação em troca de serviços gerais).
Nesse subitem foi desenvolvida basicamente a ideia de que é possível apreender as
relações políticas cotidianas na interação entre as esferas que perpassam do fogo familiar ao
da família extensa acrescida das relações de afinidade, compreendendo assim um grupo que
pode ser denominado como grupo de suporte.
68
Na língua guarani o lexema “i” pode ser interpretado/traduzido com a conotação de diminutivo ou “pequeno”,
“menor”, diferentemente do lexema “guasu” que conota aumentativo, como exemplo: “aty guasu” (grande
reunião).
91
4.2.2 Grupos de Suporte Político e Econômico do Pirakua
Como citado na introdução desta dissertação e no terceiro capítulo, a T.I. Pirakua é
composta basicamente por quatro regiões (Palmeiras, Ponte, Piri e Morro). Essas regiões não
são de uso exclusivo de apenas uma parentela, porém é possível perceber que a formação de
grupos de suporte econômico e político que se conforma em relações de vizinhança. Ou seja,
esses grupos são possíveis de serem apreendidos através da observação das relações de
parentesco e afinidade imbricadas fortemente a aspectos da territorialização; realizando uma
análise é possível verificar que cada uma das regiões apresenta características particulares na
ocupação e na territorialização.
É importante ressaltar que os grupos de suporte69 se conformam como uma espécie de
unidade de cooperação que desempenham atividade de trocas com a finalidade de obter a
produção e o consumo simbólico e material dessa unidade, que, em parte, podem ser
identificadas com o “estilo de parentela”, já brevemente discutido no capítulo 2 da
dissertação.
Desse modo, esses grupos têm uma dinâmica sociológica atuando, dentre outras
possíveis perspectivas, através das relações de parentesco e de afinidade que podem ser
ativadas/positivadas através do estabelecimento de alianças. Essas relações de parentesco se
positivam, ou seja, são rememoradas, passando de uma relação não tão próxima no passado a
uma relação de proximidade e de cooperação com muita fluidez e elasticidade, mesmo que a
consanguinidade70 seja algo difícil de comprovar, com muita rapidez e destreza política dos
Kaiowa (Pereira 1999). Não havendo regras de prescrição e de assentamento pós-matrimônio
a agregações que formam os grupos de suporte se pautam, em muito, na capacidade do casal
de articuladores (hi’u e há’i) de criar e recriar de maneira quase ininterrupta, as demais
69
Acredito que o “grupo de suporte” deve ser compreendido em uma perspectiva de formação de redes
complexas de relacionamento. Compreendendo que a sócio-lógica, e tudo que ela necessariamente implica para
sua existência – associações, dissensos, cooperações, cisões, reciprocidades e relacionamentos que compõe e
fragmentam, necessárias para a sua criação e permanência no tempo e no espaço. Ou como apresenta Viveiros de
Castro (2006, p 298) “Em sentido particular, (uma) sociedade é uma designação aplicável a um grupo humano
com algumas das seguintes propriedades: territorialidade; recrutamento principalmente por reprodução sexual de
seus membros; organização institucional relativamente auto-suficiente e capaz de persistir para além da vida de
um indivíduo; distintividade cultural”.
70
Mesmo compreendendo que não é só pela consanguinidade que o parentesco se estabelece, é importante
ressaltar sua importância estrutural e fundadora de regras negativas que alicerçam e geram outras positivas
obrigando o estabelecimento da aliança para além das relações incestuosas.
92
esferas sociológicas que estão para além do fogo familiar – no caso o ñemoñare, juhuvy e em
uma perspectiva mais ampliada dessas relações a te’yi e o tekoha.
Ouvi de alguns interlocutores a seguinte afirmação “tal pessoa é meu primo” isso
quando ambos, o interlocutor e a pessoa referenciada, apresentavam idades equivalentes, ou
então “tal pessoa é meu sobrinho” ou “meu tio” quando apresentavam idades e
posicionamento político que se diferenciavam o suficiente para que não pudessem pertencer a
mesma geração.
Um exemplo cotidiano dessa “elasticidade” das relações que sustentam os grupos de
suporte econômico e político no Pirakua pode ser observado em três conversas que mantive
com um interlocutor, Lúcio Gomes, morador na Região da Ponte. Em uma tarde fui até a sua
casa para fazer o meu trabalho de recenseamento. Durante nossa conversa disse a Lúcio que
estava hospedado na casa de Jorge na região do Palmeiras e prontamente ele afirmou que esse
era seu primo. Em outro momento, conforme fui conhecendo melhor as famílias e as relações
de parentesco do Pirakua percebi que Lúcio Gomes não era exatamente “primo” de Jorge e
sim um aliado político considerado como tal, pois ambos não têm nenhuma relação de
parentesco concreta (através da consanguinidade). Sendo que até mesmo outras pessoas da
parentela de Lúcio não veem Jorge como um aliado político e sim fazem oposição e reclamam
do tempo em que Jorge foi capitão71do Pirakua.
Nesse caso, e em outros possíveis de observar no Pirakua, percebemos que as
apreciações de Viveiros de Castro sobre o parentesco amazônico, referenciadas em Dumont,
fazem sentido no caso dos Kaiowa, pois, a “[...]afinidade engloba hierarquicamente seu
contrário, a consanguinidade” (Viveiros De Castro, 2006). Ao passo que a afinidade tem
como matriz o relacionamento com o cosmos e a consanguinidade se constitui como
“província do construído”, ou seja, constitui a intenção e a ação de atualizar as relações
humanas.
71
Sobre o cargo ou posição de “capitão” a seguinte consideração deve ser feita: por mais que seja amplamente
conhecido que essa figura – capitão – surge entre os Kaiowa e Guarani em MS durante o processo de
colonização realizado pelo indigenismo oficial do SPI e FUNAI (pós 1967) hoje esse cargo/posição é apropriada
pela organização social Kaiowa se tornando uma “coisa” Kaiowa também. Desse modo, essa figura acaba sendo
também um exemplo de chefia que acaba se evidenciando muito pela incumbência de resolver e desenvolver
relações que dizem respeito principalmente pelo funcionamento dos atendimentos de educação, saneamento e
saúde na aldeia, no entanto, a pessoa que ocupa essa posição de status diferenciado acaba também sendo um
chefe que se mantém pela referência da formação e manutenção do seu próprio grupo de suporte que de maneira
alguma deve liderar através de relações coercitivas de mando e obediência.
93
No caso dos Kaiowa, a identificação de uma relação de parentesco virtual72 é a chave
para uma aproximação e para o reconhecimento da aliança que em seu cerne surge de uma
“afinidade potencial” que possibilita o desdobramento de relações de cooperação econômica e
política.
Na segunda conversa foi possível compreender que essa relação entre Lúcio Gomes e
Jorge Gomes se dá muito mais no campo da afinidade e do reconhecimento de Jorge Gomes
como cabeçante de um grupo, e por isso muito respeitado no Pirakua, do que pelo campo do
parentesco real ou de uma aliança efetuada pelo matrimônio, por exemplo. Nessa visita a casa
de Lúcio Gomes, sua mãe, Mari Canteiro Gomes, estava presente. Ao me fazer a mesma
pergunta, onde eu estava hospedado, após a minha resposta D. Mari expressou uma reação de
total desaprovação ao trabalho desenvolvido por Jorge como liderança no Pirakua. Nesse
momento Lúcio não se pronuncia, apenas abaixa a cabeça em tom de abnegação de expressar
qualquer opinião.
No terceiro momento que estive na casa de Lúcio sua mãe, moradora da Região do
Morro, não estava presente e Lúcio claramente afirmou para mim que Jorge era a “verdadeira
liderança da terra”, pois ambos eram muito amigos e Jorge o ajudava muito. E isso se
confirma pelas várias visitas que Lúcio fez a Jorge e vice-versa durante o trabalho de campo.
Era comum nessas visitas combinarem trabalhos para cooperarem um com a atividade do
outro. Importante dizer que no momento Lúcio construía uma nova casa, pois acabara de se
casar novamente e Jorge estava reformando o telhado de um galpão que tem em seu okarapy
onde são guardados o trator que fica na região do Palmeiras e também suas ferramentas.
Desse modo, a parentela extrapola o parentesco baseado apenas na consanguinidade. E
as relações dentro da categoria de análise proposta (grupo de suporte) extrapolam o
parentesco concreto se expandindo também para o parentesco virtual, desse modo,
apresentando em seu caráter econômico e político o englobamento, em muitos momentos, das
relações consanguíneas pela afinidade ou pelo parentesco virtual. Como demonstra Pereira
(2004) em sua tese sobre os Kaiowa: “[...] pertence à parentela quem se identifica com o
grupo, sendo que essa identificação passa necessariamente pelo reconhecimento da posição de
liderança de seu cabeça” (Pereira, 2004, p. 102).
Portanto os grupos de suporte do Pirakua não são formados apenas por relações de
parentesco consanguíneo. No entanto, é necessário ponderar o fato de que a parentela se
72
Definida por Viveiros de Castro (2006) como “afinidade potencial”.
94
apresenta como referência do grupo, muitas vezes identificado pelo nome de seu cabeçante,
como um traço de diferenciação entre pessoas que compõe os grupos de suporte econômico e
político diferentes.
Em uma análise sucinta das relações cotidianas, não é possível afirmar que na política
interna do Pirakua essas relações políticas e econômicas se deem baseadas na ideia de
sociedades ameríndias “igualitárias” (Clastres, 2003; 2004).
Com o passar dos dias, na convivência, passa a ser cada vez mais evidente que a
sociedade Kaiowa é extremamente fragmentada, e nesse ponto é possível concordar com
Pierre Clastres (2003): “contra o uno”, ou seja, contra a formação de um poder institucional,
separado da sociedade. No entanto, é possível perceber um intenso “jogo” de disputas por
espaços privilegiados de relacionamento dentro da parentela, na relação entre parentelas e nas
relações com o entorno da sociedade.
Esse jogo ou essas disputas marcam uma forte hierarquia, deixando evidente que a
capacidade de mobilização do cabeçante de um determinado grupo com a sua própria
parentela e com os seus aliados marca o ponto possível de assumir uma ideia de unidade
articulada através da representação de um grupo de suporte econômico e político ou até
mesmo, em momentos oportunos, da ideia de tekoha, principalmente em reuniões do conselho
Aty Guasu (grande reunião de lideranças de diversas TI e acampamentos Kaiowa), em
negociações com órgãos governamentais (como a FUNAI, SESAI, universidades) e não
governamentais.
Desse modo, os grupos de suporte têm uma configuração fluída, porém hierarquizada,
pois existe um “polo agregador”, representado pelo casal de cabeçante da parentela que
centraliza relações sob si e tenta manter e ditar relações de produção, consumo e troca que em
momentos precisos, onde há agregação (como no caso das festas) testa o prestígio e
reconhecimento como pessoas que lideram um grupo. E em casos de cisão – afinal não
podemos encarar a formação desses grupos de suporte apenas na perspectiva da composição –
e desentendimento, a capacidade da chefia é em muito testada pelo grupo que, de certo modo,
aguarda que a chefia se utilize do prestígio e do reconhecimento que tem para pacificar
(principalmente através da fala) e reorganizar as relações no interior do grupo.
95
Portanto, ao contrário do que foi aventado por Clastres (2003), que a sociedade existe
e antecede o líder e este trabalha em prol do desejo e da vontade daquela, na verdade,
constatamos, no caso particular do Pirakua, que o líder73 é aquele que cria/funda a sociedade.
4.3 O Líder e o Prestígio Político no Caso Particular do Pirakua
O papel da liderança política na sociedade do Pirakua constitui-se muito mais através
de um status de “prestígio”, como pensou Pierre Clastres, do que de “poder”. Para Clastres
“prestígio não significa poder, e os meios que o chefe detém para realizar sua tarefa de
pacificador limitam-se ao uso da palavra” (2003, p. 223). Sendo perceptivelmente de
incumbência da pessoa que detém o status de prestígio, de chefia, a tarefa de mediar conflitos
entre pessoas, famílias ou parentelas principalmente pelo uso de suas habilidades discursivas.
É necessário então fazer uma reflexão: o que seria esse status de prestígio? De que
maneira ele se amplia ou se perde? E, finalmente, quais elementos/coisas/qualidades estão
ligadas ao acúmulo de prestígio por determinadas pessoas que ocupam cargos de liderança
entre os Kaiowa?
4.3.1 A Chefia Kaiowa e o Prestígio
Inicialmente já é possível pensar que o primeiro questionamento exposto acima (o que
seria esse status de prestígio?) está diretamente relacionado à ocupação de uma posição de
distintividade em relação à sociedade. Basicamente esse “ocupar” um lugar socialmente
distinto, nesse caso, se dá por um processo dialético. Dialético pelo fato que, em um primeiro
73
Quando falamos em um líder ou em uma chefia temos que nos atentar para o fato de que a pessoa que têm o
status de chefia, na maioria dos casos entre os Kaiowa um homem, na realidade só pode ocupar esse papel
estando casado. Portanto, a liderança ou chefia é na realidade sempre a “síntese” de um casal que encabeça um
grupo.
96
momento – diferentemente do que foi postulado por Pierre Clastres – a sociedade não préexiste a chefia, é necessário que essa sociedade seja criada e é a chefia, que se torna chefia por
ter como papel fundamental a criação de seu próprio grupo de liderados. Já em um segundo
momento para que essa chefia continue a ser chefia é preciso que o grupo o reconheça e o
legitime como tal e isso se dará através do prestígio, do apreço social, que o grupo tem por
essa pessoa-líder.
Para que a chefia mantenha um grupo entorno de si, é preciso muita habilidade.
Inicialmente é enfrentado o desafio de criar o grupo e em seguida é preciso que ele seja
mantido no tempo.Nesse segundo ponto é possível concordar com as colocações feitas por
Pierre Clastres em seu ensaio sobre a filosofia da chefia ameríndia. Cabe ao chefe ser um
apaziguador, ser generoso com os bens que consegue através do seu trabalho de representante
do grupo, ter a responsabilidade da palavra, porém, não de qualquer palavra, sim de uma
palavra que faz a reflexão que o grupo quer ouvir, que diagnostica os problemas e capaz de
convencer, pois como bem colocou Clastres, convencer através da coerção, da ação de
mando-obediência, é inaceitável, e isso é válido também no caso do Kaiowa do Pirakua.
Tanto Pierre Clastres quanto a pesquisadora Graciela Chamorro (2008) nos indicam
caminhos quando discutem a palavra como um elemento essencial para o reconhecimento
dessa liderança perante sua sociedade. Clastres afirma que “Na obrigação exigida ao chefe de
ser homem de palavra transparece, com efeito, toda a filosofia política da sociedade
primitiva.” (Clastres, 2003, p. 171). A teoria de Clastres, de que é o “chefe” quem detém a
obrigação e a responsabilidade pela manutenção da palavra nas sociedades indígenas, ela – a
palavra – apresenta-se como elemento essencial da cosmovisão dos povos Guarani e está
intrinsecamente relacionada não só ao mundo material, mas também ao mundo extraterreno.
Já Chamorro (2008), quando escreve sobre a cosmologia Guarani, complementa e dá foco
para o grupo estudado neste trabalho traduzindo os lexemas referentes à palavra da seguinte
maneira:
Uma das associações mais frequentes com a qual se costuma traduzir os
lexemas básicos (ñe’ẽ e ayvu) é palavra-alma, que é a palavra divina e
divinizadora. (...) mas os termos em questão na associação palavra-alma são
ñe’ẽ e ayvu, que podem tanto ser traduzidos como ‘palavra’ como por ‘alma’
com o mesmo significado de ‘minha palavra sou eu’ ou ‘minha alma sou eu’.
(Chamorro, 2008, p. 57/58)
97
Ñe’ẽ é uma das distinções do conceito de alma realizado pelos Kaiowa em Mato
Grosso do Sul e também por outros grupos Guarani. Ñe’ẽ seria a alma espiritual,
correspondendo à palavra-alma, e se manifesta através da fala, tendo sua morada durante a
vida das pessoas na garganta, e se manifestando através da fala (Melià; Grümberg; Grümber,
2008).
Nesse mesmo sentido, Friedl Paz Grümberg complementa a importancia da palavra e
sua ligação com o sagrado:
En principio los guaraní distinguen dos tipos de alma. El alma espiritual ñe’e
y el alma corporal ã. Los seres humanos poseen las dos durante toda su vida
en la tierra. El alma espiritual se expresa por medio de la palabra, se ubica en
la garganta y después de la muerte sale del cuerpo para regresar directamente
a su ‘morada celestial’ que se encuentra en uno de los siete niveles celestiales.
(Grümberg, 2003, p.02)
Seguindo este caminho da importância da palavra, pretendo aqui levar adiante os
debates referentes à atuação da liderança Kaiowa, tomando como ponto de partida a
importância da palavra na atuação da liderança e na permanência dessa liderança como chefia,
pois enquanto esta puder realizar a manutenção desse elemento, essencial no fazer cotidiano
da política entre os Kaiowa do Pirakua, permanecerá em uma posição de prestígio em relação
ao grupo. Pois o simples fato de pedir a palavra, por exemplo, em uma reunião por qualquer
motivo que seja na aldeia, já é uma grande demonstração da posse desse status de prestígio.
Portanto, a reflexão possível é a seguinte, essa “posse” na realidade acaba sendo posse
por doação do grupo, doação do espaço para a fala e do respeito (e da responsabilidade) que o
grupo apresenta durante a fala. Quando uma liderança esta falando, por mais que pessoas
pertencentes a grupos não aliados dessa liderança estejam ouvindo e não concordem com o
posicionamento jamais há uma situação de interrupção abrupta ou de retruque com
truculência. Durante o tempo que permaneci no Pirakua foi possível acompanhar situações
como essa, onde percebi claramente que o posicionamento de um grupo dos “ouvintes” era
outro ao da liderança que estava falando, porém, no entanto, aguardaram que a fala terminasse
para assim ser conduzido o uso da palavra por outra chefia que não necessariamente
contrariava a fala anterior, mas sim buscava contornar os argumentos.
98
É possível perceber também o esvaziamento durante uma fala que não agrada algum
grupo. Para suscitar melhor essa afirmação exponho uma breve observação feita durante o
trabalho que desenvolvi como assistente de pesquisa em um levantamento de percepção de
direitos no ano de 201174 na Reserva Indígena de Dourados. Na referida experiência,
estávamos (eu mais o grupo que compunha o projeto) realizando um grupo focal com
lideranças na aldeia Bororó, na oportunidade os participantes do grupo focal falavam sobre as
suas perspectivas sobre diversos assuntos de interesses para a elaboração do relatório (saúde,
segurança, alimentação, moradia, educação, etc.). Era perceptível a presença de ao menos dois
grupos bastante distintos na reunião. Ao perceber que um dos grupos (o que estava em maior
número) “monopolizou” a palavra, integrantes do outro grupo de lideranças não interferiram
nas falas, no entanto, aos poucos foram esvaziando o local, até que ao fim do encontro do
grupo focal restará apenas um dos grupos de liderança, que, no caso, era composto pelo
capitão, no momento representado pelo vice.
A liderança não se relaciona com a sua sociedade pelo estabelecimento de um aparato
de poder coercitivo. O que possibilita a sua atuação é o prestígio, ou seja, o grau de
consideração que suas palavras, ações e representações podem alcançar perante a sociedade.
No entanto, a garantia de permanecer líder, ou de permanecer como um tendota
(aquele que vai à frente), não se resume apenas no uso da palavra, é preciso considerar
também a importância da demonstração e da manutenção de uma série de habilidades
qualitativas que devem ser colocadas à serviço da sociedade. Seria um erro crer que a atuação
da liderança se efetiva como um exercício de aumento de poder – principalmente se isso
pressupor controle da violência e do mando de ordem na perspectiva da coerção – , sendo
importante, nessa perspectiva, denominar essa atuação como uma busca, ou como o aumento
e a manutenção do prestígio perante o grupo.
Da boca do chefe escapam não palavras que sancionariam a relação de
mando-obediência, mas o discurso da própria sociedade sobre ela mesma,
através do qual ela se proclama comunidade indivisa e desejosa de
perseverar neste ser indiviso. (Clastres, 1982, p. 108-109)
Um dos atributos da chefia é fazer o grupo “aparecer”, visto que nem a liderança, nem
o grupo já estão dados no universo, mas precisam ser criados. E nesse processo de construção
74
UNICEF. Análise Comparativa do Grau de Conhecimento e Realização de Mulheres e Crianças Indígenas
Em Dourados e Alto Solimões. Brasília, 2011. [no prelo]
99
é a chefia que acaba se evidenciando como uma espécie de “polo agregador”, encabeçando
sua parentela e sendo reconhecido por outras parentelas e pessoas aliadas e afins como tal.
Isso se evidenciou em alguns momentos em campo e também pode ser verificado nos
trabalhos etnográficos de Pereira (1999; 2004), sendo comum ouvir-se que uma pessoa é da
parentela de uma determinada pessoa, como, dizem os Kaiowa “fulano kuera”75.
Nesse movimento de criação realizado pela chefia ameríndia é comum entre os
Kaiowa que, na política cotidiana, sua voz afirme “sua unidade frente às outras unidades”
(Clastres, 1982, p. 108), ou como afirma Sztutman:
Embora destituído de poder político como mando e coerção, o chefe possui
um papel fundamental: criar uma aparência de unidade – identidade –
capaz, de sua parte, de eclipsar a multiplicidade dos pontos de vista
divergentes que poderiam irromper a todo momento. Nota-se que eclipsar
não significa anular, tampouco aniquilar, pelo contrário. Não se trata de
dissolver a heterogeneidade que compõe o social, mas dar a ela um ar de
homogeneidade. (Sztutman, 2005, p. 255) [destaques meus]
Essa atividade de representação de uma unidade, principalmente de falar pela ideia de
unidade “da” e “para” a sociedade requer muita habilidade, muito “jogo de cintura” do
portador da fala, pois, necessariamente o líder precisará conciliar e apaziguar os diferentes
conflitos que a comunidade apresenta para se manter na posição que ocupa e que é destinada a
ele pelo corpo do social.
Gallois (1988) também faz algumas contribuições nesse sentido e quando em suas
reflexões sobre a constituição dos grupos políticos entre os Waiãpi expõe a relevância de se
atentar para a importância da palavra, que funda, unificando e dando sentido e identidade para
o grupo – mesmo a partir de uma sociedade de composição evidentemente heterogênea. Esse
caráter de unidade só é possível com um intenso trabalho da chefia de abrandamento dos
conflitos. Um contínuo trabalho de pacificação das animosidades que se desenvolvem no
interior da sociedade:
A estabilidade dessa unidade, enquanto associação de diversas famílias
ligadas por laços de consanguinidade e de afinidade, depende do equilíbrio
nas relações entre posições muitas vezes conflituosas: equilíbrio que deve
ser garantido pelo chefe, cuja a função é justamente ‘falar e apaziguar’.
(Gallois, 1988, p. 22)
75
O termo kuera pode ser compreendido como coletivo de algo.
100
Portanto, a chefia, através de seu prestígio, de sua posição assimétrica de destaque em
relação às demais pessoas que compõe a sociedade, funda e da forma a um grupo – aqui
entendido como grupo de suporte – ao qual ele “deve” um constante desempenho para
permanecer como tal.
4.3.2 – Atributos Qualitativos da Chefia Ameríndia
A partir de Pierre Clastres uma preocupação se evidenciou durante o desenvolvimento
desta dissertação: compreender por quais atributos qualitativos a chefia ameríndia – nesse
caso Kaiowa – precisa se articular para ser considerada uma liderança no momento
contemporâneo.
Assim, inevitavelmente é necessário se atentar para o processo de contato pelo qual
essas etnias passaram, desde o processo de esparramo, bastante estimulado pela concessão de
terras a Cia Matte Larangeira (final do século XIX) e depois, pelo incentivo na ocupação dos
territórios do Centro-Oeste brasileiro nas décadas de 1940 e 1950 (criação da CAND em
1943), concomitante a um forte processo de confinamento realizado pelo Estado a essas
populações, o qual se intensifica com o fim das derrubadas de matas e o incremento da
mecanização da produção agrícola a partir da década de 1970, e em um outro momento pelos
movimentos de organização dessas etnias com o intuito de reclamar e retomar suas terras
tradicionais a partir da década de 1980 em diante, que organiza processos próprios de luta e
resistência – como é o caso do Pirakua.
Desse modo, a chefia, basicamente, necessita estabelecer um forte domínio sobre os
conhecimentos do mundo não indígena, ter um forte apreço valorativo e conhecimento das
tradições mantendo um equilíbrio entre ambos os conhecimentos; ser generoso e dedicado ao
seu povo; ser paciente; saber falar, levando em consideração sempre os parâmetros e os
desejos de seu grupo; realizar um trabalho de pacificação nos conflitos da comunidade;
Encontramos alguns desses traços nos escritos de Pierre Clastres, que, no entanto,
apresentam em campo limites que o extrapolam suas colocações, que não “perdem” sua
101
validade, porém servem como parâmetro para iniciar a reflexão sobre tal tema que aqui se
apresenta seguido de uma série de outros apontamentos feitos em outras etnografias.
Desse modo, Clastres afirma sobre tais atributos qualitativos:
Em um texto de 1948, Robert Lowie, analisando os traços distintivos do tipo
de chefe anteriormente evocado, por ele denominado titular chief, isola três
propriedades essenciais do líder índio, cuja recorrência ao longo das duas
Américas permite apreender como condição necessária do poder nessa
região:
1] O chefe é um “fazedor de paz”; ele é a instância moderadora do grupo (...)
2] Ele deve ser generoso com seus bens, e não se pode permitir, sem ser
desacreditado, repelir os incessantes pedidos de seus “administrados”.
3] Somente um bom orador pode ter acesso a chefia. (Clastres, 2003, p. 47)
A antropóloga Ana María Gorosito Kramer (2005) indica, em sua pesquisa realizada
entre os M’bya de Misiones na Argentina, outros elementos qualitativos da liderança que
podem ser relacionados como “complementares” aos que foram expostos por Clastres. Sobre
a liderança política (ruvicha) Gorosito Kramer (2005) afirma que necessariamente essa – a
liderança política – é encarregada de: 1) organizar a vida material e as atividades cotidianas;
2) gerenciar conflitos internos; 3) negociar com a sociedade nacional interesses do grupo ou
da comunidade; 4) conhecer a tradição e ter domínio sobre os valores religiosos; 5) realizar
um trabalho constante de consenso no interior do grupo; 6) ter domínio sobre a língua os
códigos da sociedade não indígena (oral e escrita) para poder, por exemplo, realizar a
tradução e interpretação e elaboração de documentos.
Segundo Wilde (2009), descrições dos jesuítas do século XVII já continham
informações sobre a forma de atuação da liderança e da forma como se estabelecia a
autoridade entre os povos indígenas, onde são muito valorizadas as relações que estas –
lideranças – estabelecem com a sociedade através, principalmente, de relações de parentesco e
alianças. Tanto a família extensa quanto um grupo de famílias extensas e em um nível mais
amplo o tekoha – no caso Kaiowa e Guarani - compunham esferas políticas diferentes entre si
e autônomas:
Cada uno de estos niveles (ruvicha o mburuvicha) que mantenía relaciones
de alianza o conflicto con los demás, siendo flexible su posición en la que
102
podrían acumular o restar prestigio mediante la agregación-desagregación de
nuevos miembros para su grupo. (Wilde, 2009, 101)
Para uma maior elucidação é possível recorrer às reflexões feitas por Lévi-Strauss em
sua obra Tristes Trópicos na parte destinada ao grupo Nambikuara em Mato Grosso. Em seu
artigo “Homens, mulheres e chefes” ele afirma que o “prestígio pessoal e a aptidão para
inspirar confiança” (2010, p. 293) se constituem como elementos essenciais da política diária
na sociedade Nambikuara. Se atentando também para a importância da liderança ter um
conhecimento sobre o território que o grupo ocupa – o que no caso dos grupos Nambikuara se
constitui como algo de relevância, principalmente pela prática de ocupação nômade em um
vasto território de perambulação.
Desse modo, acaba ficando sob a responsabilidade da chefia decidir, por exemplo,
quais os cultivos que devem ser feitos e em qual lugar serão feitas as expedições de coleta e
de caça. Só alguém com muitos conhecimentos das possibilidades territoriais e do entorno que
compõe o território é capaz de liderar atividades de subsistência, passando a confiança que o
grupo necessita para continuar o seguindo.
A liderança, como já indicado, aparece nos trabalhos de Clastres como portadora de
alguns necessários atributos necessários para a manutenção desse status de prestígio, que não
podem ser observada sem uma correlação de trocas consequentes ao “cargo” como Clastres
afirma, tem como cerne conter em si um “poder esvaziado”, sem voz de comando (mandoobediência), em uma relação que não se baseia na noção de “poder” como controle de
instrumentos coercitivos. Ficando esse líder então na posição de fiel depositário da sociedade
pela posição diferenciada que ocupa, confiada pela sociedade à pessoa do líder na forma de
prestígio, ou seja, de respeito pela suas capacidades de interpretação, tradução e pelos
conhecimentos que tem sobre como manter o grupo coeso apesar das constantes contendas
que surgem no convívio social.
A chefia em troca dessa posição de prestígio tem que recompensar com palavras,
interpretações, representações, e em momentos de maior importância para o grupo terá o
papel de exprimir reflexões sobre acontecimentos que ocorreram ou que estão ocorrendo na
comunidade. Sobre a necessária capacidade de diagnosticar acontecimentos que dizem
respeito direto ao grupo atributo valorado à chefia, cabe um parênteses para uma reflexão feita
durante uma observação. No ano de 2011 tive a oportunidade de passar um período curto, de
103
apenas três dias, na aldeia Tenondé Porã do grupo Guarani M’bya localizada no município de
São Paulo/SP.
Na oportunidade, possibilitada pela generosidade do colega e também mestrando em
antropologia Jan-Arthur Eckart na época, pude acompanhar os encontros noturnos que
aconteciam na casa de reza (opy). Segundo este colega os encontros na opy são momentos de
grande importância para a manutenção das relações de reciprocidade e dos laços sociais,
voltados, principalmente, para práticas de cantos, rezas, conversas e brincadeiras. Em uma
dessas oportunidades de estar na opy pude observar um momento onde as lideranças da
comunidade falavam sobre uma festa que havia ocorrido e que, de certa forma, entrava em
desacordo com a imagem que gostariam que fosse passada da comunidade para a sociedade
externa. As lideranças, uma a uma, fizeram falas trazendo a tona uma discurso crítico e
moralizante que desaprovava as músicas que tocaram na festa e a presença de bebidas
alcoólicas, ressaltavam a importância de não deixarem que esses elementos da cultura no
juruá (não indígena) passassem a fazer partes dos próximos momentos de confraternização da
aldeia pois isso poderia desmoralizar o grupo perante a sociedade envolvente a área que
ocupam.
Lévi-Strauss ao escrever a Introdução à obra de Marcel Mauss aponta que a troca se
constitui como um elemento necessário às relações entre indivíduo e sociedade, sendo a troca
sempre fruto de uma construção. Essa troca não está posta para o etnólogo, necessitando a
esse descobrir uma “fonte de energia que opere sua síntese” (Mauss, 2003, p. 34).
Essa troca não é possível de ser visualizada simplesmente nos fatos, só a observação
empírica não é suficiente para fornecer às relações de trocas, mas sim “três obrigações: dar,
receber e retribuir” (Mauss, 2003, p. 33).
A troca não é um edifício complexo, construído a partir das obrigações de
dar, receber e retribuir, com o auxílio de um cimento afetivo e místico. É
uma síntese imediatamente dada ao e pelo pensamento simbólico que, na
troca como em qualquer outra forma de comunicação, supera a contradição
que lhe é inerente de perceber as coisas como os elementos do diálogo,
simultaneamente relacionadas a si e a outrem, e destinadas por natureza a
passarem de um a outro. (Lévi-Strauss In Mauss, 2008, p. 40-41)
É possível perceber que as apreciações de Lévi-Strauss ao escrever a introdução à obra
de Marcel Mauss apontam uma importante nuance do trabalho de campo na pesquisa
104
etnológica. A “dádiva” da troca não existe objetivamente, como uma propriedade física dos
bens trocados. Pois, os bens trocados extrapolam os objetos físicos – como é o caso da relação
que a liderança tem com a “obrigação da fala” –, são trocadas dignidades; cargos; privilégios;
prestígio e etc.E, dessa maneira, pela produção etnográfica e em algumas experiências de
campo que tive a oportunidade de incorrer que é possível apontar a liderança política
relacionada como uma liderança de parentela, aparentemente como um “polo agregador” de
outros parentes e pessoas afins em torno de suas qualidades de chefia.
No trabalho de Gallois (1988) com os Waiãpi, a liderança se constitui e é evidenciada
como “polo agregador” pelo fato do líder [deter] a primazia sobre a escolha dos sítios
agrícolas,sobre os percursos de caça e coleta, justamente por ter ele ‘reconhecido’ a área
“ocupada pelo grupo” (1988, p. 23), onde Gallois complementa:
[...] prestígio acumulado pelos chefes em função de sua qualidade de
‘fundador’ e de ‘organizador’ nas atividades de subsistência, se relaciona
diretamente com os laços de afinidade e, sobretudo, é reforçado pela regra de
residência uxorilocal observada pelos Waiãpi. (Gallois, 1988, p. 23)
A partir destas colocações de Gallois é possível fazer algumas considerações sobre os
Kaiowa. Como já foi exposto o status de prestígio da chefia se dá por conta da sua condição
de cabeçante da sociedade, no caso dessa dissertação, pela sua capacidade de criação e das
articulações para a manutenção de um grupo de suporte. No entanto, em relação a necessária
função desempenhada pelo parentesco, nesse processo, o grupo Kaiowa se diferencia pois não
existem regras (como no caso Waiãpi) de residência nem prescrições de matrimônio, sendo
determinante para a definição da residência pós-marital a capacidade de agregação
desempenhada pelo cabeçante de um ou do outro grupo dos cônjuges. Nesse caso a agregação
ou desagregação será determinada entre outras coisas pela quantidade de prestígio acumulado
pelo cabeçante, ou, no caso, do casal de referência do grupo de suporte.
Ao pensarmos a relação entre o líder e seu grupo, percebemos que o relacionamento
vital da estrutura política se dá entre o líder e sua aldeia (Rivière). Sendo que ambos acabam
sendo intimamente associados em uma relação de dependência, e dessa forma, a sociedade (na
forma de aldeia) acaba dependendo, para a sua existência, da sobrevivência do líder. Que em
muitos casos acaba dando reconhecimento linguístico para o local de ocupação:
105
A aldeia é referida como lugar de determinado líder. [...] por ocasião de sua
morte a aldeia normalmente é abandonada.” (2001, p 106)
Para isso, para um bom relacionamento entre o líder e a aldeia, é necessário que a
pessoa que está na chefia corresponda a uma série de atributos que são medidos pelos outros
integrantes da aldeia de maneira qualitativa para a ocupação do cargo, na forma de
competências.
Uma aldeia é acima de tudo um fenômeno social, e uma liderança bemsucedida deriva da capacidade de lidar com a rede social que constitui a
aldeia e a comunidade. Isso exige a posse de determinadas competências.
(Rivière, 2001,p. 106)
Rivière elabora uma lista dessas qualidades/competências que são requeridas ao
líder. As quais serão apresentadas logo abaixo de forma resumida, de maneira a facilitar a
apreensão, pois é através delas que a permanência da aldeia se torna possível:
1.
Comando de atividades: a liderança tem que buscar conciliar e favorecer a
realização de atividades pelo seu próprio exemplo, sempre buscando uma
postura que não se paute na distribuição de ordens e sim de exemplos;
2.
Competência para formular julgamentos: é papel da liderança organizar e
dar andamento a questões rotineiras de modo a saber determinar, por exemplo,
a construção e o planejamento da aldeia e dos roçados; assim como auxiliar na
composição do grupo nos momentos onde ocorrem desavenças e brigas por
parte das demais pessoas que compõem a aldeia;
3.
Falar bem: tanto “para fora” (discursos energéticos e diplomáticos) com a
finalidade de representar a sociedade como uma totalidade una, quanto “para
dentro” (discursos persuasivos) com a finalidade de convencer a sociedade a
realizar atividades comunitárias, assim como a obrigação de apaziguar e
mediar conflitos;
4.
Generosidade: a liderança deve participar ativamente das redes de
relacionamento de troca de bens, alimentos, assim como a recepção de
visitantes ocasionais da aldeia;
106
5.
Deter conhecimentos específicos: O líder deve ser um profundo conhecedor
sobre os rituais, mitos, xamanismo e sobre o que diz respeito à tradição.
Como Clastres bem ressalta em sua filosofia da chefia indígena (2003) o líder nas
sociedades sem Estado (ameríndias) jamais se efetiva através do domínio de um poder
coercitivo ou em relações estabelecidas através de comandos baseados em uma relação de
mando-obediência.
Algo que o líder de modo algum se pode permitir é ser autoritário. O líder
não tem meios de impor a sua vontade aos outros. Tendo em vista a baixa
tolerância em relação a coerção. (Rivière, 2001, p. 106)
Porém, na prática é realmente muito difícil que uma pessoa que esteja ocupando um
cargo de representação e que seja possuidora de uma série de conhecimentos sobre o passado
e sobre a tradição não acabe extrapolando alguns limites. Para isso Rivière aponta que existem
duas exceções para o caso do líder se impor através da coerção.
A primeira exceção demonstrada por Rivière, no caso da Guiana, se relaciona a
tolerância pela proximidade de parentesco com a liderança, quanto mais próximo o parentesco
com o líder mais fácil será a possibilidade de perdoar suas falhas, sendo assim torna-se menor
a possibilidade se considerar que as suas ações sejam autoritárias. Para este ponto é
interessante notar que na maioria das sociedades indígenas a liderança se constitui como uma
pessoa agregadora de parentes76, o que no caso das sociedades ameríndias guianenses se
comprova pela forma preferencial de moradia uxirilocal77.
A segunda exceção a forma de poder coercitivo é baseada nas relações de gênero e
de geração, pois o relacionamento entre homens e mulher e adultos e crianças “são
autoritários até certo ponto e em ambos os casos os primeiros [homem; adulto] se encontram
em condições de dizer aos últimos o que devem fazer” (Rivière, 2001, p. 107).
76
Cf. PEREIRA, Levi Marques. Imagens Kaiowá do Sistema Social e seu entorno. São Paulo, SP:
Tese de Doutorado, Antropologia Social da USP, 2004.; GALLOIS, Dominique Tilkin. O movimento
na cosmologia Waiãpi: criação, expansão e transformações no universo. São Paulo: Tese de
doutorado, Antropologia Social da USP, 1988.
77
O termo refere-se ao tipo de habitação praticada após o matrimonio, que no caso das sociedades
guianenses se dá de forma uxorilocal, ou seja, após o casamento o esposo vai morar junto a família de
seu sogro.
107
Um ponto importante desses processos de agregação e desagregação que pode também
ser pontuado como um atributo qualitativo de responsabilidade da chefia é sua capacidade de
articulação “para fora”, seja, no caso do Pirakua, na articulação com pessoas da cidade
(prefeito, vereadores, comerciantes, gerentes de fazenda, etc.) ou na apropriação e distribuição
de cargos e recursos advindos da presença do Estado para a Terra Indígena.
Desse modo a chefia contemporânea Kaiowa se constitui basicamente como alguém
com atributos, ou seja, com uma atuação talvez muito parecida, estruturalmente falando, a
atuação de uma chefia em tempos passados, porém, no entanto, a liderança contemporânea
necessita hoje dominar conhecimentos da sociedade nacional e traduzi-los para as demais
pessoas do seu grupo.
108
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A chefia ameríndia constrói-se por caminhos outros aos quais estamos habituados
quando pensamos a política e o poder nas sociedades não indígena.
No caso específico dos Kaiowa e Guarani e do Pirakua percebemos que essa chefia só
se torna chefia quando consegue, através de um série de habilidades políticas específicas,
tornar-se uma pessoa com traços distintivos em relação ao grupo que só pode ser sustentado
com o prestígio repercutido pelas suas ações.
Diferente do que pensou Pierre Clastres a sociedade não pré-existe a liderança, no caso
Kaiowa ela (a liderança) necessita primeiro formar um grupo que, de forma centrípeta,
permeará o entorno de suas decisões enquanto pessoa que dá um caráter de unidade para
determinado grupo, seja ele um núcleo parental mais restrito, estendido ou mesmo em uma
abrangência que pode chegar ao tekoha (tekoharuvicha) ou a ideia de povo Kaiowa e Guarani.
No entanto, devemos ponderar que a perspectiva apresentada por Pierre Clastres de
que o poder não é concentrado na chefia e sim no corpo do social também se conforma ao que
pôde ser observado em campo, pois como bem coloca Etienne de La Boétie em sua obra o
Discurso da Servidão Voluntária (1982 [1574]) não existe servidão sem voluntariado, ou seja,
não existem lideres sem que a sociedade (ou parte dela) o reconheça como tal. No caso dos
Kaiowa essa servidão pode ser observada, no entanto, jamais é operada pela liderança de
modo a coagir seus liderados em uma relação de mando-obediência.
Pouco antes de terminar este texto tive a oportunidade de um rápido retorno ao
Pirakua, passei apenas uma noite e um dia na TI. No entanto, esse tempo foi suficiente para
perceber determinadas características de um movimento pendular (entre forças centrípetas e
centrífugas) agindo na política da terra.
Cerca de dois dias antes de minha chegada havia sido feita uma reunião entre os
moradores da TI, nessa reunião foi realizada a troca da liderança principal, ou como os dizem
os Kaiowa: do capitão ou da liderança oficial. Apesar do pouco tempo que permaneci na terra
tive oportunidade de conversar com diversas pessoas que já havia conhecido durante o
período maior do trabalho de campo em 2012. Obviamente os discursos se polarizavam em
dois, os que eram a favor da troca de liderança e os que eram contra.
109
Aqueles com quem conversei que se demonstraram contra a troca se manifestavam
dizendo que o trabalho da liderança não é fácil que o antigo chefe era muito prestativo para a
comunidade e que a mudança foi equivocada, pois a nova liderança não tinha experiência e,
desse modo, não conseguiria desempenhar a função como a liderança anterior. Assim,
acabaria não sendo uma boa chefia, pois tinha poucos conhecimentos para desempenhar esse
papel. No entanto, as pessoas que se posicionavam dessa maneira tinham, com certeza, um
grau maior de tolerância às ações do líder que acabara de ser “afastado”, pois eram parentes
próximos (sogra, irmão e cunhado) como bem notou Rivière em sua obra O indivíduo e a
Sociedade na Guiana: um estudo comparativo da organização social ameríndia (2001).
Já as pessoas com quem conversei que se demonstraram a favor da mudança diziam
que a troca foi necessária, pois a antiga liderança já não estava mais cumprindo o seu papel de
redistribuir as coisas que conseguia trazer de fora como representante da aldeia Pirakua (esse
é um tipo de acusação bastante recorrente quando os Kaiowa querem desprestigiar alguma de
suas chefias). O fato é que as pessoas que se demonstravam insatisfeitas, apesar dos grandes
esforços do ex-capitão para permanecer como o principal, conseguiram se organizar para
retirar dele o papel que ocupava. As principais acusações que ouvi foram que o ex-capitão
tinha roças grandes demais, havia comprado um carro e sua casa era boa demais.
O movimento é constante na política Kaiowa e a ausência de uma instituição política
de grande alcance, permite muita autonomia e dinamicidade para que, no caso Kaiowa, cada
parentela e cada grupo de suporte tenha muita autonomia para tomar decisões, seguindo assim
por um caminho de composição e decomposição constantes do social através da política.
110
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José Henrique Prado
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