A ascensão do microconto brasileiro no início do século XXI FABRINA MARTINEZ DE SOUZA1 [email protected] RAUER RIBEIRO RODRIGUES2 [email protected] Uma geração de novos escritores brasileiros apostou no subgênero e iniciou o processo de migração da internet para o papel, aumentando a quantidade de livros e antologias dedicadas ao microconto. Essa geração foi impulsionada pela tecnologia que oferece suportes baratos para a publicação e divulgação do ofício da escrita. Assim como Ian Watt, no livro Ascensão do Romance, enumerou os impactos da revolução industrial do século XVIII que permitiram que a narrativa romanesca se estabelecesse, a proposta da comunicação é demonstrar que não é possível ignorar o impacto da internet na ascensão do microconto brasileiro. Para tanto, comparamos o poema “Amor”, de Oswald de Andrade, publicado em 1927 no Primeiro Caderno do Aluno de Poesia Oswald de Andrade, e um microconto de Daniel Galera, sem título, publicado em 2004 na antologia Os Cem Menores Contos Brasileiros do Século. Nossa proposição é de que a diferença entre a proposta estética dos dois decorre da revolução tecnológica do final do século XX, a partir do momento que a mídia eletrônica muda a forma como entendemos e nos relacionamos com a literatura. Palavras-chave: Micronarrativa, Daniel Galera, Oswald de Andrade. Diante da evidência empírica, válida para todas as Américas e para a Europa, da multiplicação de narrativas de poucas palavras em blogs, em periódicos e em livros, cabe perguntar: o microconto é uma forma literária nova? O microconto é uma forma literária? Ou, simplesmente: tendo por referência a produção atual na literatura brasileira, o que é microconto? Heloísa Buarque de Hollanda, pesquisadora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), afirma que “a crítica tem que correr atrás do seu objeto porque este está andando muito rápido e, principalmente agora, ele está andando mais rápido ainda” (Hollanda, 2010: 138). Nas últimas duas décadas, a quantidade de livros e antologias de microcontos no Brasil cresceu vertiginosamente. A pesquisa não. Sequer temos uma linha do tempo dos autores que em algum momento dedicaram-se ao subgênero. E não são poucos. Ou insignificantes. A pesquisadora afirma ainda que o “truque” para acompanhar os novos tempos é historicizar. Nesse caso, na busca de resposta a essas questões fulcrais, proponho que voltemos nosso olhar contemporâneo à Inglaterra do século XVIII com um questionamento em área das mais exploradas nos estudos literários: o romance é uma forma literária nova? No livro Ascensão do Romance, lançado em 1957, Ian Watt enumerou os impactos da revolução industrial que, no século XVIII, permitiram que a narrativa romanesca se estabelecesse mesmo em condições desfavoráveis, que não eram poucas ou insignificantes. A nossos olhos, acostumados com luz, era uma época estranha. Precisamos considerar, e talvez seja esse o melhor começo, que as condições para a leitura eram precárias. A privacidade era mínima, pois as moradias viviam cheias, o interior das residências era escuro e as velas, ainda 1 Fabrina Martinez de Souza é graduada em jornalismo, mestranda no Programa de Pós-Graduação em Letras na área de Estudos Literários da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – Campus de Três Lagoas, e Bolsista Capes/Reuni. 2 Rauer Ribeiro Rodrigues é professor de Literatura Brasileira na UFMS, doutor em Estudos Literários pela UNESP de Araraquara e professor no Mestrado em Letras da UFMS, em Três Lagoas, onde coordena o Grupo de Pesquisa Luiz Vilela (www.gpluizvilela.blogspot.com). Atas do Simpósio Internacional “Microcontos e outras microformas” (Universidade do Minho, 6 e 7 de outubro de 2011) Centro de Estudos Humanísticos Universidade do Minho Braga, Portugal Fabrina Martinez de Souza/Rauer Ribeiro Rodrigues – A ascensão do microconto brasileiro no início do século XXI que baratas, eram artigos de luxo. No século XVII foi instituído um imposto sobre janelas e as poucas que restaram eram fundas e estavam cobertas com papel ou vidro verde. O número de pessoas alfabetizadas era irrisório. Disciplina social e educação religiosa eram as prioridades: “ensinar a ler, escrever e fazer contas constituía um objeto secundário, raramente perseguido com grandes esperanças de sucesso” (Watt, 2010: 41). Raramente uma criança permanecia na escola: depois dos seis ou sete anos elas eram encaminhadas às fábricas e o trabalho tinha a duração da luz do dia. Saber ler era necessário somente para quem se destinava ao comércio ou à administração, por exemplo. Ironicamente, essa foi a época em que o ofício da escrita deixou de ser restrito a quem se dedicava a aprender ou ao menos aparentava isso. As pessoas comuns estavam trabalhando e não tinham tempo para aprender a ler, o que dirá imaginar. Mas esse foi o século dos autores, quando homens de “todos os níveis de capacidade, todo tipo de instrução, toda profissão e todo emprego se dedicaram com tamanho ardor à palavra impressa” (Dr. Johnson apud Watt, 2010: 613). Numa época na qual as pessoas mal conseguiam enxergar os tipos sobre o papel, escrever virou profissão. Relativamente bem remunerada, uma vez que os livreiros – um cargo semelhante ao do atual editor – pagavam por página produzida. Os livreiros não faziam distinção entre poema e prosa, o que eles viam era a página escrita, prestes a ser impressa e vendida. Tornou-se comum, na época, dizer que as obras eram desnecessariamente alongadas para que o autor pudesse ganhar mais com o trabalho. Sobre o preço dos exemplares, Watt explica que proporcionalmente se manteve no mesmo patamar até 1956, quando realizou seu estudo. Já o salário cresceu, no mesmo período, até dez vezes. “Nenhuma velha pode arcar com o preço, mas (todas) compram Robinson Crusoé”, caçoava Charles Gildon4 (apud Watt, 2010: 43). A edição original custava dinheiro suficiente para sustentar uma família por uma semana ou duas. Depois de tantas dificuldades, o processo natural é nos perguntarmos: quem lia? Mulheres. A revolução industrial permitiu que as mulheres deixassem de realizar algumas atividades, aumentando o período de ócio. O acesso à diversão também era restrito, uma vez que elas não podiam participar do entretenimento masculino, que consistia basicamente em beber. Além das mulheres, é preciso considerar os aprendizes, camareiras e criados mais favorecidos que usufruíam de condições favoráveis para leitura, tempo e, é claro, da biblioteca dos patrões. Watt afirma que é difícil precisar quanto do ócio era dedicado à leitura, mas que era existente e considerável. Contudo, para o propósito específico desta comunicação, nos interessa relacionar a revolução industrial do século XVIII com as mudanças na mecânica industrial do final do século XX. Por quê? Deixemos a explicação com Ítalo Calvino: A segunda revolução industrial, diferentemente da primeira, não oferece imagens esmagadoras como prensas ou laminadores ou corridas de aço, mas se apresenta com bits de um fluxo de informação que corre pelos circuitos sob a forma de impulsos eletrônicos. As máquinas de metal continuam a existir, mas obedientes aos bits sem peso. (Calvino, 1990: 20) Quando pensamos na produção literária brasileira, a afirmação de Calvino, publicada em Seis Propostas para o Próximo Milênio, nos mostra pelo menos duas linhas de força; Em seu trabalho, Watt referencia as seguintes obras: 1) Londres, 1904, p. 26. 2) Helen Sard Hughes, “The middle class reader and the English novel”, JEGP, XXV (1926), pp. 362-78. 3) H. J. Habakkuk, “English land owership, 1680-1740”, Economic History Review, X (1940), pp. 2-17. 4 Gildon, Charles. Robinson Crusoe examin’d and Criticis’d, Ed. Dottin (Londres e Paris, 1923), pp. 71-2. 3 2 Atas do Simpósio Internacional “Microcontos e outras microformas” (Universidade do Minho, 6 e 7 de outubro de 2011) Centro de Estudos Humanísticos Universidade do Minho Braga, Portugal Fabrina Martinez de Souza/Rauer Ribeiro Rodrigues – A ascensão do microconto brasileiro no início do século XXI sociedade e escritor. O microconto é um subgênero em ascensão no Brasil que, muitas vezes, se confunde com a poesia. Desde a década de 1920, autores como Oswald de Andrade publicam poemas desconcertantemente curtos. É dele, inclusive, o marco dessa contravenção linguística brasileira, publicado em 1927: Amor humor (Andrade, 2006: 27) Entretanto, o microconto brasileiro – enquanto subgênero narrativo – ganhou fôlego somente setenta anos depois, na primeira década do século XXI, no momento em que uma geração de autores brasileiros começa a migrar da internet para o papel. Não nos interessa discutir o suporte, as novas tecnologias ou a convergência da mídia. Não é caminho necessariamente novo, se lembrarmos que muitos romancistas do século XVIII publicavam em jornais para depois publicarem seus folhetins em livros. O que nos importa, nesse momento, é pensar na leveza e agilidade da revolução anunciada por Calvino, pois ela traz consigo elementos que estão na raiz do microconto. Para historicizar, vejamos o depoimento de um novo autor brasileiro: Publiquei meus primeiros textos na web, em diversos sites e publicações online, o que me permitiu formar um público leitor antes mesmo de ter livro publicado. O uso desse meio me pareceu uma escolha óbvia na época, por seu baixo custo e alto potencial de divulgação. Não sei como estaria hoje sem a internet. (Galera, 2009) A afirmação do escritor Daniel Galera, que nasceu em 1979 e publica na rede desde 1996, pode ser lida como uma epígrafe de toda uma geração. Entre os anos de 1998 e 2001, antes do twitter e do blog, Galera era criador e colunista do mailzine Cardosonline (COL), que revelou – no mínimo – dois outros escritores: Daniel Pellizzari, nascido em 1974, e Clarah Averbuck, que nasceu em 1979. Galera, com Pellizzari e o artista plástico Pilla, fundou em 2001 o selo editorial independente Livros do Mal, onde lançou a coletânea de contos Dentes Guardados (2001) e a novela Até o Dia em que o Cão Morreu (2003). Três anos depois, Mãos de Cavalo, seu primeiro romance, foi publicado pela Companhia das Letras, uma das maiores editoras comerciais do Brasil. Desde então, sua novela foi reeditada (2007), lançou um segundo romance, Cordilheira (2008), e a graphic novel Cachalote (2010). Atualmente trabalha em um novo romance, ainda sem data prevista de lançamento. Além disso, fez parte de diversas antologias focadas nos novos autores e mantém um site pessoal, uma conta no twitter e um perfil no facebook. Galera ocupa um lugar confortável na literatura brasileira. A crítica especializada aponta sua produção como consistente, seus contos foram adaptados para o teatro e cinema, a novela deu origem ao premiado filme Cão sem Dono e seus primeiros livros impressos se tornaram objetos de desejo. Num site que reúne milhares de sebos e livreiros brasileiros, só há um exemplar de Dentes Guardados disponível à venda por R$ 100 reais, aproximadamente 40 euros.5 Os livros de Galera, produzidos em sua extinta editora, são rapidamente vendidos. A qualquer preço. 5 Site Estante Virtual, disponível em http://estantevirtual.com.br/livrariapassos/Daniel-Galera-Dentes-Guardados-52213941, consultado em 05/10/2011. 3 Atas do Simpósio Internacional “Microcontos e outras microformas” (Universidade do Minho, 6 e 7 de outubro de 2011) Centro de Estudos Humanísticos Universidade do Minho Braga, Portugal Fabrina Martinez de Souza/Rauer Ribeiro Rodrigues – A ascensão do microconto brasileiro no início do século XXI O escritor, ainda jovem com seus 31 anos, é visto como um referencial para aspirantes e iniciantes. Em 2004, participou da antologia Os Cem Menores Contos Brasileiros do Século, com o microconto: Botei uma sunga para apavorar. (Galera apud Freire, 2004: 36). Tendo esse microconto em nosso horizonte e depois de tantas analogias, vejamos as diferenças formais entre romance e microconto. E não se trata apenas de tamanho. Jornal e romance “estimulam um tipo de hábito de leitura rápida, desatenta, quase inconsciente” (Watt, 2010: 51). Está tudo lá. Personagens, espaço, acontecimentos e outras categorias que definem um discurso narrativo. Olhemos para o microconto de Galera. Um discurso com enunciado referencial, formado por cinco palavras, sendo dois verbos. Embora haja uma única indicação do gênero da personagem, que vem através do substantivo sunga, não há evidências de que realmente se trate de um homem. O que podemos afirmar com certeza é que esse microconto narrado em primeira pessoa constrói uma imagem e lança inúmeras dúvidas. O microconto – a julgar por esse – é um desafio. O microconto faz referência ao período anterior ao lançamento do primeiro livro de Galera. O COL6 inicialmente era visto como um mailzine com resenhas, reportagens ou contos, contudo, dez anos depois do seu fim, é inegável que ele tenha seu lugar na literatura brasileira contemporânea. Para nos mantermos no mesmo autor, é preciso dizer que 13 dos 14 contos selecionados no livro de estreia de Galera foram publicados inicialmente no mailzine. Nos arquivos do COL é possível encontrar textos confessionais, de memória ou biográficos que expõem a vida desses jovens escritores. E fotos. Nelas, registros das festas que aconteciam na casa dele em Porto Alegre. Numa dessas, um amigo dele chegou e declarou: coloquei uma sunga para apavorar. O microconto é, nesse caso, uma piada interna, uma piscadela de Galera ao passado, aos amigos e aos antigos leitores. Cumplicidade que se repete várias vezes em sua obra e de várias formas. Após a extinção do COL, muitos participantes migraram para sites pessoais ou blogs e mais recentemente para as redes sociais. Cabe aqui uma hipótese interessante que merece ser devidamente pesquisada, já que foge do objetivo deste artigo. Aparentemente, a quantidade de informações sobre a vida pessoal dos autores é tão abundante que acabamos por saber mais do autor do que da obra. Essa (por falta de opção assim a chamaremos) nova fronteira entre o público e privado pode tanto iluminar quanto prejudicar a leitura dos microcontos. O microconto não é gentil. Não tem a compaixão do romance ou a simpatia do conto. Não oferece filme ou foto. Exige. É o leitor quem começa, termina ou, simplesmente, aceita a história. Sob esse aspecto notamos uma grande diferença entre Oswald e Galera. E não está na forma, mas no contexto. Oswald fala com todos e Galera fala aos seus. Amor é um tema comum, e por isso não o entenda como ordinário. Mas universal. O poema de Oswald é transparente quando pensamos nas reações que o amor provoca no indivíduo. Todas as oscilações de humor que ele provoca. Ele é transparente aos nossos olhos enquanto o microconto de Galera é quase 100% evocação. Quem colocou uma sunga? Quem será apavorado? Por quê? Ele provoca perguntas que podem ser respondidas por quem vivenciou seu período de formação como escritor. 6 O arquivo do COL, que inclui as 278 edições regulares, especiais e fotos, está disponível para download no endereço http://qualquer.org/col/, consultado em 27/09/2011. 4 Atas do Simpósio Internacional “Microcontos e outras microformas” (Universidade do Minho, 6 e 7 de outubro de 2011) Centro de Estudos Humanísticos Universidade do Minho Braga, Portugal Fabrina Martinez de Souza/Rauer Ribeiro Rodrigues – A ascensão do microconto brasileiro no início do século XXI E mais uma vez, ao tentarmos entender o microconto, somos jogados diante de um novo problema. Quem é o público-leitor da literatura contemporânea brasileira? E de carona com esse problema, outro. A excessiva oferta de informações sobre os autores afeta o entendimento de categorias dos estudos literários, como, por exemplo, escritor ou leitor? Antonio Candido, crítico brasileiro, afirma que a produção literária é formada por quatro momentos: “a) o artista sob o impulso de uma necessidade interior, orienta-o segundo os padrões de sua época, b) escolhe certos temas, c) usa certas formas e d) a síntese resultante age sobre o meio.” (Candido, 1976: 21). No caso do microconto brasileiro, é preciso considerar que a internet tem uma influência significativa na produção, mas não é determinante. Nesse sentindo, é preciso repetir, ela funciona como um suporte de divulgação. O livro ainda é o objetivo dos autores. Não apenas como uma conquista pessoal, mas como um reconhecimento social. Ou, nas palavras de Candido, uma ação de “reconhecimento coletivo”. Não para responder se ele é uma forma literária nova, se é uma forma literária ou o que é. Considerando que os autores o praticam, que as editoras os publicam, devemos analisá-los diante da diacronia da literatura brasileira com o objetivo de definir qual é, nesta primeira década do terceiro milênio, a poética do microconto brasileiro. Contudo, o externo não é o prioritário. Considerando a ascensão constante do microconto, é preciso olhar para o enunciado. Para concluir: o microconto é uma forma literária nova? Não. Seja no gênero narrativo ou gênero poético, as narrativas breves são constantes na Literatura Brasileira. Raul Pompéia, Carlos Drummond de Andrade, Dalton Trevisan, Manoel de Barros, Marçal Aquino, Ivana Arruda Leite e Marcelino Freire, são alguns dos muitos escritores brasileiros que em algum momento dedicaram-se ao microconto. Dedicação que nos direciona a uma nova resposta. Sim. O microconto é uma forma literária. Resposta, que só deixará de ser pessoal, especulativa e provocativa quando a crítica brasileira enfim se debruçar sobre o microconto. REFERENCIAL ANDRADE, Oswald (1971), Obras completas VII: Poesias reunidas, 5.ª ed., Rio de Janeiro, Civilização Brasileira. CALVINO, Italo (1990), Seis Propostas Para o Próximo Milênio, trad. Ivo Barroso, 2.ª ed., São Paulo, Companhia das Letras. CANDIDO, Antonio (1976), Literatura e Sociedade, 5.ª ed., São Paulo, Nacional. FREIRE, Marcelino (org.) (2004), Os cem menores contos brasileiros do século, São Paulo, Ateliê Editorial. GALERA, Daniel (2009), “‘Não sei como estaria hoje sem a internet’, diz escritor Daniel Galera”, A Cultura na Era Digital [em linha], disponível em http://culturanaeradigital.wordpress.com/2009/09/15/nao-sei-comoestaria-hoje-sem-a-internet-diz-escritor-daniel-galera, consultado em 27/06/2011. WATT, Ian (2010), A Ascensão do Romance, trad. Hildegard Feist, São Paulo, Companhia das Letras. HOLLANDA, Heloísa Buarque de Hollanda (2010), Matraga, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, vol. 17, n.º 27, pp. 134-148, jul/dez. 2010. 5