ROMULO FRÓES
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THIAGO FRANÇA_
Texto de contracapa do vinil_ "Malagueta, Perus e Bacanaço" (Goma Gringa, 2014)
"João Antônio ri".
Como um compositor de canções, sempre foi um mistério para mim a inspiração de quem
compõe música sem letra e me intriga ainda mais a escolha de seus títulos. Como nomear algo
tão abstrato e aberto quanto um tema instrumental? Lembro da inventiva maneira encontrada por
Moacir Santos para dar nome a seus lindos temas lançados no antológico Coisas, chamando-os
simplemente assim, coisas e numerando cada Coisa, de um a dez, para diferenciá-las entre si. O
desafio a que Thiago França se propôs com este disco que lança agora, é para mim ainda maior.
Como traduzir musicalmente o texto brilhante e original do conto Malagueta, Perus e Bacanaço,
a obra-prima do escritor paulistano João Antônio? Qual era o batuque tocado pelo engraxate em
sua caixa? Qual o som de uma bola de bilhar encaçapada? Qual a música ouvida nos salões de
sinuca frequentados por seus personagens na Lapa, Água Branca, República ou Pinheiros? Mais
ainda, qual o som das ruas da São Paulo de 1963? Um dos acertos de Malagueta, Perus e
Bacanaço, o disco, é escapar a este impulso memorialista. Mais do que uma simples trilha
sonora para o conto de João Antônio, Thiago França busca reinterpretá-lo a partir de sua própria
linguagem musical.
Valendo-se da estória como roteiro, Thiago nos apresenta aos protagonistas na primeira faixa do
disco, Malagueta, Perus e Bacanaço (Thiago França), homônima ao conto. De andamento
cadenciado, conduzida por um cavaquinho monocórdico, a melodia é construída aos poucos a
partir de um trombone um tanto preguiçoso, cambaleante, até que este se junte ao naipe de
metais. Se quisermos, para aproximá-lo do conto de João Antônio, atribuir fisionomia ao tema
composto por Thiago França, podemos imaginar o cavaquinho como o narrador da estória e os
instrumentos do naipe assumindo as vozes de seus personagens. Notadamente o saxofone de
Thiago, que lidera o naipe qual Bacanaço a seus parceiros. Na faixa seguinte, Picardia (Thiago
França), podemos sentir o deslocamento desses personagens em busca de jogo. O duelo entre
bateria e guitarra imprime tensão e pressa a essa busca. O naipe se mantém a distância, como
se estivesse estudando o jogo de seus adversários. Ao longo do disco, Thiago compõe temas
climáticos que aludem aos ambientes e sensações retratados no conto e que nos aproxima do
imaginário de João Antônio. Estão ali o vazio e o abandono de São Paulo de Noite (Thiago
França), o cansaço ao final da jornada noturna em De Volta a Lapa (Thiago França) e temas
mais literais como Nostalgia (Thiago França) e Fome (Thiago França). Há lugar também para
homenagens a personagens coadjuvantes, como a prostituta explorada por Bacanaço em Bolero
de Marli (Thiago França) e o mítico jogador de sinuca Carne Frita (Thiago França), mencionado
por João Antônio em seu conto.
Em sintonia com sua personalidade artística, Thiago abre espaço para canções em um repertório
fundamentalmente instrumental e suas escolhas se mostram outro grande acerto do disco. Assim
como acontece com os temas instrumentais, não se trata aqui de musicar o texto de Malagueta,
Perus e Bacanaço, mas de tomá-lo como inspiração para novas composições. Na Multidão (Kiko
Dinucci/Romulo Fróes), por exemplo, apesar de não se referir a nenhum episódio do conto, narra
um acerto de contas que poderia muito bem ser protagonizado pelos malandros de João Antônio.
Não é difícil imaginar tal fala na boca de um deles: "vou te amordaçar, vou provocar o teu
silêncio, vou arremessar teu corpo azul, na multidão". Vila Alpina (Rodrigo Campos) traduz a
personalidade individual de cada um dos protagonistas; seja expondo sua melancolia:
"Malagueta velho triste, vai partir como chegou, barraco caindo pro lado de lá, vai desabar,
barraco pendendo pro lado de cá"; seja revelando suas artimanhas: "o homem do prego falou,
que relógio bom vai parar, mas Bacanaço jurou, o dente de ouro empenhar". Perus é o narrador
da canção, e assim como no conto imagina na Vila Alpina sua Pasárgada: "Pra chegar na Vila
Alpina vou de trem, vou devagar, vai melhorar esse jogo de azar, vai melhorar, vai melhorar esse
jogo de azar". Dentre as canções do disco, Caso do Bacalau (Kiko Dinucci/Ogi) é a que mais se
aproxima da sintaxe de João Antônio. Partindo do refrão escrito por Kiko, em tudo mais próximo
de João Antônio: "desenxabido feito um coió, esqueceu da partilha e vacilou, a curriola já se
mordeu, não lembrou da barganha e se queimou", Ogi desenvolve o episódio narrado no conto,
sob uma rítmica influenciada pelo Rap, mas com uma acentuação e sotaque muito próprios. O
modo como divide melodicamente alguns versos: "um malandro descendente de família ni-pô-nica, que andava manco numa perna me-câ-ni-ca", o uso de gírias e interjeições e o modo como
estes se integram ao texto: "é zóião de thundercat ho, é zoião rei momo engordurou, pela cidade
eles vão lhe caçar, já já, já prometeram não amaciar, ha ha", imprimem à interpretação de Ogi
um ritmo que podemos identificar no texto de João Antônio. Não como reprodução, mas talvez
como uma atualização possível de sua prosódia. Não deixa de ser curioso imaginar o Rap como
um desdobramento da linguagem criada por João Antônio.
O Malagueta Perus e Bacanaço de Thiago França, além de uma linda e merecida homenagem
ao conto que acaba de completar cinquenta anos de seu lançamento, pode servir também como
um convite para se conhecer a genial obra de João Antônio, tão brilhantemente traduzida e
recriada neste disco. E João Antônio ri.
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